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As linhas intensivas de um corpo em

situação de rua
Luiz Carlos Garrocho(*)

Ainda não são nove horas da manhã, na Praça Rui Barbosa (Praça da Estação), em Belo
Horizonte. Imerso na questão das linhas de composição. Há sim um tema subjacente a esse
olhar: as linhas e os traçados de composição. Estou indo para uma reunião num projeto de
uma Escola Livre de Artes.

A poiesis dos corpos imersos no cotidiano – fora do campo da intencionalidade artística – é o


que vem me ocupando. Para pensar o movimento e o que pode ser uma cena. Par pensar o
corpo e suas potências. Nesses momentos, a cidade é um terreno fértil de pesquisa. O olhar
típico do voyeur, tão afamado nas teorizações sobre a cena, não é esse o plano que produz a
consistência dessa busca, mas sim um estado meditativo, no qual o observador se observa
também no ato de observar.

Deixo de lado as linhas arquitetônicas, os movimentos perfilados dos transeuntes que saem
massivamente da estação dos trens urbanos (e que muito me impressionam) indo para seus
afazeres, para me deter nas pessoas em situação de rua. Naqueles que perderam, que foram
destituídos ou ainda que abandonaram por algum motivo esses objetivos. Venho constatando
nos últimos anos o número crescente de pessoas que assim se encontram, suspensos que
estão nesse vazio. Que se encontram quase absolutamente desassistidos pelo Estado.
Somente nessa praça percebo mais de uma centena. São esses corpos que tomam a minha
atenção. Diria ainda: atores/atrizes, performadores/performadoras, bailarinas/bailarinos,
aprendam a olhar esses corpos em ruínas, aprendam com esses corpos em estados outros.

Alguns dormiram ali, outros provavelmente passaram a noite em um abrigo municipal que não
fica longe da praça. Há pequenos agrupamentos nos quais alguma coisa é compartilhada: das
conversas, dos cigarros às garrafas de cachaça. Outra parte, de indivíduos aparentemente
solitários, alguns ainda dormindo, se espalha pelos bancos, muitos deles deitados, cada um
com seu cobertor.

Nesse rastreamento, meu olhar se detêm por um momento sobre o corpo de um jovem negro,
meio que habitando um espaço entre o deitar e o erguer, com os pés no banco de cimento da
praça, os joelhos dobrados, um dos braço às vezes acenando a algo tão distante quanto
próximo, e o outro a manipular o cobertor. Como uma pessoa que estando deitado tem de se
sentar um pouco para dizer algo a alguém, ajeitando a coberta a essa nova posição, para logo
em seguida deitar-se de volta, retomando o estado de quietude. Que nesse caso dura pouco. O
movimento se reitera diversas vezes, num fraseado de imagens corporais. Ele tem o dorso nu,
está descalço e se veste com um calção ou bermuda de cor verde.

Percebo toda uma arquitetura de linhas. Elas sustentam um tônus que se ergue no vazio e no
vazio se mantém em suspenso, para fazer outros dobramentos. A cada movimento ele entrava
noutra posição e a mantinha formando uma escultura viva, feita de linhas intensivas.

Explico o que entendo por linhas intensivas. Mais proximamente, um outro corpo contrasta
totalmente com esse que toma o meu foco. É um jovem deitado sobre o banco da praça, de
calça jeans, camisa, tênis e boné, que recosta a cabeça na mochila e consulta um celular.
Há nesse corpo um estado relaxado, apesar de articuladamente atento ao entorno. As linhas
de intensidade não passam ali. Não há uma arquitetura que respira sua própria vida. Não se
ergue um monumento – para pensar com Deleuze Guattari. Observo igualmente outros
corpos nessa situação: meio que abandonados, meio que a espera do que não vem ou nunca
poderá vir, meio que desistidos ou ainda insistindo em algo que, no entanto os fez parar ali.
Sim, há um intenso a percorrer alguns desses corpos. Mas de outra ordem: corpos boiando
num mar de náufragos, exauridos, meio que à espera de um socorro que não vem nunca e
somente o sol o mar liso em volta. O do jovem com o celular e outros em situação similar
mostram o contrário disso: os seus interesses e ocupações não o deixam no espaço entre – ou
ao vago, para lembrar Fernand Deligny e suas observações sobre as linhas de errância das
crianças autistas.

O jovem em questão, objeto desse pequeno ensaio, vai desdobrando imagens após imagens e
componho histórias que ainda não são histórias, pois que não me interessa despejar nele
minhas considerações e saberes. Mas sim captar os perceptos e afectos desse corpo –
possivelmente de um psicótico, dados alguns indícios (falando sozinho em voz alta, como se
um mundo a volta o escutasse e ninguém ali perto dele). Ele navega, ele naufraga, ele se ergue
e afunda de novo, sucessivamente – numa repetição diferencial.

Ainda assim alguns corpos formam isso que eu penso ser uma arquitetura de linhas intensivas.
Volto-me ao jovem que se cobria e se descobria com o seu cobertor, e me pergunto para onde
ele olha quando se ergue. Que terras longínquas avista ou que interlocutor lhe faz companhia
sem que eu possa vê-los. Tive a impressão, depois, que me percebia também, dado que eu o
observada, mesmo com cuidado para não tornar isso evidente.

Por isso, desfiz meu olhar, retomando um enquadramento mais amplo da Praça repleta de
pessoas em situação de rua. . Deixando que o meu olhar flutuasse um pouco, sem focar
demoradamente aqui ou lá, até dar a hora de ir para o meu compromisso ali perto. Com a
minha memória tomada pelo intenso dessas linhas que compõem uma poiesis do corpo.

Volto-me ao tema da poiesis e do monumento. Você poderia me perguntar com que direito eu
me aproprio da imagem de um corpo que não está compartilhando comigo desse ato de
observação. Com que direito teço narrativas sobre poesia corporal? E não seriam essas puro
construto do meu olhar, que nada têm a ver com aqueles que lá estão ao abandono de si e da
sociedade? Não seria puro voyeur?

Penso que é tudo isso de outra ordem. Que tais categorias não nos ajudam a pensar esses
corpos e suas poéticas possíveis, suas potências destroçadas pela vida cotidiana, por uma
sociedade incapaz de uma solidariedade mínima, incapaz de estabelecer políticas protetoras.
Que seriam políticas que trariam à tona as potências desses corpos e lhes permitiriam aceder à
vida pública e a estabelecer vínculos outros.

A poiesis é uma instauração/fabricação de um mundo. E o monumento é o que Deleuze e


Guattari dizem sobre a composição em arte (no livro O que é filosofia?). Não o monumental.
Mas aquilo que se sustenta por si. Uma duração – que seja um átimo. Nesse aspecto, talvez
não fosse nesse corpo que me parece o de um jovem psicótico, possível ver o monumento.
Pois que ele sempre naufraga. No entanto, meu olhar o salva por um instante e eu componho
nessas linhas aqui traçadas um poema e ergo com os perceptos e afectos que esse corpo me
proporciona um monumento. Uma reverência, sim.
Paulo Rocha, um performador e anarquista, disse certa vez que os movimentos dos pobres
desvalidos e em situação de rua na cidade o lembravam os artistas do Butô – essa dança outra
dos ventos varridos nos corpos esquálidos, cortados pelas próprias imagens que produzem.
Também me lembra o que uma vez disse o Mestre Zen Ryotan Tokuda, nos idos dos anos de
1970, em uma palestra: que os mendigos são como sutras budistas nos quais podemos ler.

(*) Professor e criador cênico na interface entre Teatro Físico, Performance e ambiência.
Participante-fundador dos grupos Contraponto <experiência> e Bando à Parte - MG.

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