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EDUARDO ARENS ASIA RAEMN OR. NOS TEMPOS DE Jj POST ee eC Ee ha eee Coy Nees SURE MO eeLa ans e CMa escritores se dirigem a comunidades que viviam dentro de coordenadas socioeconémicas, politicas e religiosas es- pecificas. Neste livro o autor reconstréi 0 contexto social, eco- némico, politico e religioso necessario para compreender o nascimento, o desenvolvimento e a expansao das comu- nidades cristas pela Asia Menor no primeiro século da nossa era. Sem levar em conta esse contexto, os escritos dos primciros missiondrios cristaos correm o risco de ser mal interpretados. Este livro, portanto, é excelente ajuda para a compreensio dos escritos de Paulo, Lucas ¢ Joao. EDUARDO ARENS nasceu em Dresden (Alemanha) e educou-se no Peru. Doutorou-se em Leologia em Friburge (Suica) e fez estudos de pés-graduagao em Biblia na Ecole Biblique Archéologique Francaise de Jerusalém e na Fa- CRORE LD Sd Ferre eve ears Coin oer eee eres Pe a Lima (Peru) e membro da Studiorum Novi Testamenti Societas e da Catholic pele eral Beatccereren ren 9 8 I 738 Superiov de Estudos Leoldgic biblioteca de estudos biblicos erent Dados Internacionais de Catalogagaa na Publicagao (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Arens, Eduardo ‘Asia Menor nos tempos de Paulo, Lucas @ Joao : aspectos sociais e econémicos para a compreenso do Novo Testamento / Friuardo Arens ; {tradugao Jodo Rezende Costa]. — Sho Paulo : Paulus. 1997. — (Biblioteca de estudos biblicos) Titulo original; Asia Menor en tiempos de Pablo, Lucas y Juan. Bibliografia. ISBN 85-349-0977-6 1. Biblia, N, T. — Histéria de acontecimentns contamporAneos 2. Biblia. N. T. - Joao — Critica e interpretagao 3. Biblia. N. T. Lucas ~ Critica ¢ interpretacao 4. Biblia, N, T. Paulo — Critica e interpretagao {. Titulo. II. Série, 97-0821 CD0-225.85 indices para cataloge sistematic 1. Novo Testamente : Asia Menor : Contexto econdmico : Historia de fatos contemporaneos 225,95 2. Novo Testamento : Asia Menor : Contexto social : Hist6ria de fatos contemporaneos 225.95 BIBLIOTECA DE ESTUDOS BiBLICOS + Biblia: AT — Inirodugau aos escritos e aos métodes de estudo, ||. W. Wolff + Os partidos religiosos hebraicos na época neotestamentaria, K. Schubert + Segundo as Eserituras: Estrutura fundamental do NT, C. H. Dodd + Jesus @ as estruturas de seu tempo, E. Morin + Chave para a Biblia, W. J. Harrington + Biblia, palavra de Deus — Curso de introdugdo a Sagrada Escritura, V. Mannucci + Paulo, a Lei e 0 pova judeu, E. P, Sanders + As origens cristas a partir da muther — Uma nova hermenéutica, E. 8. Fiorenza + Evangetho, figuras e simboios, J. Mateos ¢ F. Camacho + Jesus @ a sociedade de seu tempo, J. Mateos e F. Camacho. + Autopia de Jesus, J. Mateos + Libertando Pauio — A justica de Deus e a politica do apéstolo, M. Elliott + Asia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Jodo, E. Arens EDUARDO ARENS ASIA MENOR NOS TEMPOS DE PAULO, LUCAS E JOAO Aspectos sociais e econémicos para a compreensao do Novo Testamento PAULUS a ll 33. 43 43 46 52 55 69 75 79 82 84 88 92 95 96 99 107 109 112 116 123 INDICE Prélogo Apresentacaa Introdugdo DESCRICAQ DAS CONDICOES SOCIOECONOMICAS NUMA CIDADE “TiPICA” DA ASIA MENOR NA SEGUNDA METADE DO SECULO PRIMEIRO DEPOIS DE CRISTO Primeira Parte DESCRICAO OASPECTO SOCIAL . Classes sociais? . Estruturagéo da sociedade greco-romana . A aristocracia A administracao local Os escravos Os libertos . A familia. As mulheres . Os pobres . Os camponeses 10. Cidaddos e estrangeiros 11. O exército 12. A educagado O ASPECTO ECONOMICO Recursos naturais na Asia Menor ocidental A vida nas cidades . O sistema e o desenvolvimento econémico Ocupacées e industrias . O munde comercial . Rendimentos e tributes EXCURSO: ROMANIZACAO OU HELENIZACAO? COINAAR ONE Oakey 129 129 135 187 142 146 149 152 157 158 160 163 165 168 170 176 185 185 187 190 192 193 194 199 207 209 Segunda Parte RELACOES RICOS E POBRES. 1. Quem era o pobre? 2. A“honra” do pobre 38. O rico perante o pobre 4. O Estado e os pobres 5. Associacées 6. Filantropia 7. Caridade judaica OS JUDEUS NA DIASPORA 1. Migragoes judaicas 2. Privilégios imperiais 3. As comunidades judaicas 4. Asociedade judaica 5. Judeus: ricos ou pobres? 6. A atracdo judaica e seus prosélitos 7. Manifestagies antijudaicas A VISAO SOCIAL DAS FILOSOFIAS E RELIGIOES 1. Ocinismo 2. O estoicismo 3. O epicurismo 4. O neoplatonismo 5. O neopitagorismo 6. Religides BIBLIOGRAFIA REFERENCIAS: PRINCIPAIS TESTEMUNHOS DQ PRIMEIRO SECULO. IMPERADORES ROMANOS, EQUIVALENCIAS MO- NETARIAS ABREVIATURAS Titulo original ; ‘Asia Menor en tiempos de Pablo, Lucas y Juan ~ Aspectos sociales y econémicos para la camprensién del Nuevo Testamento © Eduardo Arens, 1995 Tradugao Jodo Aezende Costa Revisan H. Datbosco © PAULUS — 1996 Rua Francisco Cruz, 229 0417-091 Sao Paulo (Rrasil) Fax (011) 570-3627 Tel. (011) 575-7362 http://www. paulus,org.br direditorial@paulus.org.br ISBN 85-349- 977-6 ISBN 84-8005-022-5 (ed. original) PROLOGO Este estudo baseia-se em duas convivgées basicas: os textos biblicos originaram-se em época e situagées histéricas concretas, e seus escritores dirigiram-se a comunidades que viviam dentro de coordenadas sociceconémicas, politicas e religiosas determi- nadas. Ao compor 0 escritor seu texto, fé-lo em seu tempo e em seu mundo, tendo presente uma comunidade especifica desse tempo e desse mundv. Assim, por exemplo, se se quiser compreender o que um autor como Lucas quis comunicar a seu auditério (a comuni- dade para a qual escreveu) acerca de pobreza e riqueza, sera ne- cessdrio tomar consciéncia de que nao tratou em seu evangelho desses temas por lhe terem ocorrido espontaneamente ou por té- los considerado de interesse teolégico. Fé-lo antes porque cer- respondiam a uma situacao concreta: havia nessa comunidade um conflito relacionado com as diferengas socioeconémicas entre seus membros.’ Para comecar a compreender, portanto, a mensa- gem de Lucas sobre a relagdo do homem com os bens materiais, serd necessdrio familiarizar-se com as condigées socioeconémicas do mundo em que viviaim os membros da comunidade de Teéfilo, para os quais Lucas escreveu sua obra.” } Em sua resenha do liven de H. Moxnes, The economy of the kingdom, D. Hamm concluiu dizendo que “precisamos com urgéncia de estudos rigorosos sobre o contexte cul- tural da tratagdo de pobres e ricos em Lucas” (Theol. Studies 51[1991] 173). A essa justa exigéncia responde, pelo menos em parte, a presente estudo. 2 Vejam-se a esse respeito algumas obras que moslram clarameute a importancia do estuda socioeconémico para a compreensao de Lucas, como Ph. F. Esler, Community and gospel in Luke-Acts, Cambridge. 1987: J. H. Neyrey (org), The social world of Luke- Acts, Peabody, 1991; H. Moxnes, The economy of the kingdom, Filadélfia, 1988; mais brevemente, K, Aguirre, Del movimiento de Jestis a la iglesia cristiana, Bilbao, 1987, cap. VI. 5 Para entender as condigdes humauas eu que vivia uma co- munidade em determinado momento histdrico, faz-se necessdrio conhecer suficientemente os diversos estratos sociais da época bem como os diversos niveis econdmicos, suas causas, possibilidades e conseqiiéncias. Existiam a aristocracia e 0 povo ou vulgo; homens e mulheres; uns eram livres, outros libertos, e o resto, escravos. Quais foram as condigées de vida e os diversos estratos sociais nas comunidades de Paulo, Tedfilo e Joao (todas elas na Asia Me- nor)? O objetivo desse estudo é responder a essa e outras pergun- tas conexas, esbogando as condigées sociais e econdémicas da Asia Menor durante a segunda metade do séc. 1 d.C., com 0 fito de aju- dar a compreender melhor certus aspectos dos escritos de Lucas e Jodo, assim como das cartas de Paulo (e deuteropaulinas)." Uma generosa bolsa de estudos, concedida pela fundagao ca- tAlica Stinendienwerk Lateinamerika-Deutschland, deu-me a opor- tunidade de levar a cabo na Universidade de Taibingen durante meu ano sabatico (1988/1989) a pesquisa que constitui o nucleo desse livro. E justo, pois, que expresse gratidao para com os mem- bros do “curatorium” da mencionada fundagao, de modo particu- lar ao professor Peter Hiinermann, seu presidente, que de mais a mais me animou em repetidas ocasides a levar avante esse proje- to. Também devo expressar gratidao para com as pessoas que nao deixaram de me brindar com seu apoio (que se estente até hoje) durante minha estada na Alemanha: a secretaria da fundagao, senhora Maria Below, o padre Tomas Begovic, que me ofereceu alojamento e amizade no calor de seu “lar”. O professor Martin Hengel, reconhecido erudito nesse campo de estudos, deu-me va- liosas orientagdes e sugestées. Foi ele que mc animou a publicar esse trabalho. Se nao o fiz antes foi pela Calla de Lempou para the dar forma final e por ainda nao ter contado com 0 apoio necessa- * Dou por suposte que a comunidade de Jodo morava em Efeso, como afirma a tradi- gao. Estou, de mais a mais, convencido de que Lucas escreveu para uma comunidade de eristéos que também se encontrava na Asia Menor, quer em Eteso, quer perto dessa cidade, Nao subemos se Lucas escreveu # partir dai iesmo ow a partir de outro lugar como, por exemplo, Roma. Mas compreende-se melhor o fato de que em seu evangelho e nos Atos se dirjja a Teéfilo, se se aceita que Lucas e Teéfilo viviam em lugares diversos e distantes. 6 rio para que viesse 4 luz. Nesse sentido, minha gratidao se esteu- de a um grande amigo e companheiro de estudos em Jerusalém, Jesus Peléez del Rosal, que possibilitou sua publicacdo. Por fim, nao teria chegado esse trabalho a seu termo, se nado fossem as oportunidades e as facilidades que, com sacrificio de sua parte, me proporcionaram meus irm4os maristas do Peru (a auséncia de um membro da familia faz com que a carga de trabalho recaia sobre os demais, que mais pesa quando esses séo poucos). A todos eles meus agradecimentos. APRESENTACAO As analogias entre as grandes cidades sul-americanas e as metrépoles da Asia Menor na época do império romano talvez sejam maiores do que possamos imaginar. A Asia Menor era en- tao provincia florescente: nessa regido foram executadas constru- gécs grandiosas ec, relativamente aos agitados séculos anteriores das monarquias helenisticas e a brutal dominagao do império, a “pax romana” trouxe consigo tranqitilidade e cerla seguranga ju- ridica. A burguesia acomodada das cidades vivia relativamente satisfeita, apresentando, porém, ao mesmo tempo grandes som- bras. Os simples agricultores dos grandes latifiindios da Frigia, Bitinia ou Galacia nao passavam em geral de arrendatarios semi- livres na época. Quando, fugindo da pobreza no campo, chegavam As grandes cidades, careciam nelas de todo direito civil e com fre- qiiéncia se deparavam com o desprezo e a rejeigao da populagao urbana. . Inclusive cidades como Efeso, Esmirna ou Pérgamo tinham em seus arrabaldes bairros marginais de simples chogas de bar- ro, nas quais morava uma populagdo que s6 podia sobreviver a duras penas, ainda que os magistrados das cidades e os governa- dores das provincias romanas sempre se empenhassem em evitar grandes tensées sociais e, pelo menos de vez em quando, ofereces- sem po e espetdaculas nao s6 em Roma, mas também na Asia Menor. No entanto, a “paz romana” nao péde impedir que surgissem disputas entre as cidades e, dentro delas, tensées e perseguigées religiosas contra certas minorias; um bandoleirismo em elevagdo tornava inseguras amplas regides da provincia, e o florescimento 9 das cidades muitas vezes era sé aparente e fugaz. Cresceu nesse ambiente, a partir da missao de Paulo, a comunidade crista na Asia Menor com mais forca do que em qualquer outra provincia do império romano. Houve assim, desde a época de Domiciano e Trajano c depois sobretudo sob Marco Aurélio, fortes persegui- ges contra os cristéos. Mas, apesar da opressao oficial e das inces- santes hostilidades, amplas regides da Asia Menor na segunda metade do século III eram como que um pais “cristAo” O livro do professor Eduardo Arens surgiu em Lima, e af, de onde o autor descreve acontecimentos histéricos ocorridos hé quase dois mil anos, ele jamais perdeu de vista o presente. U seu livro é em conseqiiéncia ao mesmo tempo histérico e atual, Da testemu- nho da pregacao, da vida comunitdria e das tribulagées dos pri- meiros cristéos na época em que ali cresceu a fé crista, e relaciona esses falus com a exposi¢ao de seu fundo social e econémico, em que também 0 judaismo, a religido-mae do cristianismo, desem- penha papel essencial. Este livro quer ao mesmo tempo interpelar o leitor a respcito de nosso cristianisme, pondy de manifestu cou se vivia a fé na- quele tempo e como se deveria viver hoje. E livro que nasceu de muitas tribulagdes e que por isso pode nao sé instruir os cristaos atribulados, mas também fortalecé-los em sua fé. Martin Hengel 10 INTRODUCAO Aprendemos a ler a Biblia na América Latina em estreita correlagao vor as realidades humanas em que estamos imersos. Muitas dessas realidades, sobretudo as de ordem social e econd- mica, que se acham inseparavelmente unidas, séo muito duras para quem n4o se isola em mundo protegido — inclusive literal- mente com muros e protecgées de janelas — da dura realidade de pobreza e miséria, de marginalizagao e abandono. B um mundo que “invadiu” nossas grandes cidades, nossos parques, nao excluin- do as caleadas e vias piblicas. Por isso se fala desde algum tempo de uma leitura da Biblia “a partir dos pobres”, ou seja, levanda seriamente em conta essa realidade socioeconémica em que nos achamos imersos como ponto fixo de referéncia, e dialogando a partir dela com a Biblia. Trata-se de um circulo hermenéutico pragmatien. Talvez a mais eanhecido expositor dessa maneira de ler a Biblia scja Carlos Mesters.* Esse modo de ler — compreender e interpretar — a Biblia, que tem como ponto de partida uma série de pressupostos e um contex- to humano muito diverso do que tém muitos estudiosos, professo- res, inclusive clérigos o progadores da Palavra, produziu (como era de esperar) as mais variadas reagées. Atacaram-no alguns com maior ou menor paixao. Nele viram outros um desafio; de fato, ndo poucos repensaram seu enfoque e apreciagao da Biblia, particular- mente de acordo com suas experiéncias proprias ou comunitdrias.® *Veja-se C. Mesters, Flor sin defensa, Bogota, 1984, ondeo autor discute essa maneira “popular” de ler a Biblia. * Veja-se os fundamentos tedricos expostos pur C. Mesters, v.c.; iunbén 5. Croatto, Hlernvenéutica biblica, Buenos Aires, 1985; E.Arens, “La Biblia es para todos”, em P, Thai a1 OS TEXTOS BIBLICOS E SEU CONTEXTO HISTORICO Para compreender o que esta em jogo, é preciso ter presentes algumas observagoes: 1. Como ja indiquei, foram escritos os textos biblicos em con- texto histérico, em circunstAncias e condicionamentos muito con- cretos e em didlogo cui eles. E mais: muitos textos biblicos foram redigidos tendo precisamente em conta essas condigées politicas, sociais, econdmicas e religiosas, com a finalidade de oferecer orientacées diretas ou indiretas a seus destinatarios, ajudé-los a viver sua fé nas circunstancias em que se achavaim. O exemplo mais claro disso sao as cartas de Paulo, mas outro tanto sucedeu com nossos quatro evangelhos. 2. A “inspiracdo divina” n&o isolou absolutamente o autor humano de seus condicionamentos histéricos, sociais e culturais. 3. Os escritos bfblicus foram palavra imediata de Deus para os destinatarios imediatos e diretos dos escritos em questao: a comunidade de Lucas, os cristéos de Corinto, Filémon etc. Para nds sia Palavra mediada de Deus, isto 6, néo comoe ccus primei ros destinatdrios. Daf a importancia da exegese e da hermenéutica. A origem e a natureza dos escritos biblicos 6 algo sobre o que foi e continua sendo preciso refletir, deixando de lado dogmatismos infundados e levando seriamente em conta muitas aspectos antes ignorados, como os que precisamente reoultam dos catudos sécio- cconémices acerca do bergo dos textos biblicus, entre outros. Os escritos biblicos e sua inspiragao nao se materializaram em escri- tério de uma torre de marfim construida em remota ilha do Medi- terraneo.® Deve-ee compreender, nessa linha a reflexdo € observayau, a tao discutida Teulogia da libertagao, que tenta fazer sério esforco para dar resposta cristé a situagdes de grandes injusticas socioeco- némicas. Foram precisamente as condigdes de vida de grande parte Hop —E, Arens (org.), El quehacer teolégico desde el Pert, Lima, 1986, 73-94. Um estudo que avalis partindo da Europa esse enfoque é oferecido em C. Rowland — M. Corner, Liberating exegesis, Louisville, 1Y89. $d. D. G. Dunn oferece umu transpurente exposi¢ao dos pontos mencionados em The living word, Londres, 1987. 80 dos Po 12 da populagéo mergujhada na pobreza, no abandong, na impolén- cia, na exploragdo, na discriminagdo e na opressao, que desperta- ram as consciéncias dos que eram sensiveis a essa realidade no continente latino-americano para buscar uma resposta crista enraizada na Biblia. Dessas condigées falaram claramente os bis- pos latino-americanos, reunidos primeiro em Medellin (1968) e dez anos depois em Puebla, e de novo, ainda mais timidamente (por razdes conhecidas), na reuniao de Sao Domingos (1992). Foi- se forjando de cara a essa realidad a Toologia da libertagéo como ensaio de reflexdo e orientacao cristé que se foi polindo gragas as criticas recebidas. Essa linha de reflexéo nao cessara enquanto existirem as condicdes socioeconémicas que a produziram, ou seja, enquanto nado houver “libertagao” de situagées desumanizantes, coulrdria @ vontade salvifica integral de Deus. Trata-se de tarefa profética — perseguida e difamada como o foi em tempos biblicos — que nao pode terminar, pois o verdadeiro discipulo de Cristo nao para de segui-lo “por onde quer que va”, adotando sua mesma opgao preferencial onde ha pobres, cegos, paraliticos, prostitutas, criangas abandonadas..., vude ainda udo se implantou o reino de Deus. Pois bem, um dos tracgos da Teologia da libertagao é preci- samente sua sélida ancoragem na Biblia, resultado de leituras que levam seriamente em conta as situacdes e condigées de vida concretas daqueles remotos tempos (b{blicos) para perceber e ex- pressar suas analogias com nosso proprio tempo.” A exegese na Europa Na Europa, a dura realidade da pobreza e miséria que existe no chamado Terceiro Mundo fica muito distante. Ver filmes sobre harracos e favelas, ou escutar conferéncias sobre a pobreza no mundo, nao encurta a distancia que separa da realidade mesma, que sd se poderd compreender em toda sua crueza quando é vista de perto. Nao estranha, pois, que os estudos biblicos na Europa sé excepcionalmente levem em conta as dimensées politicas, sociais e econémicas nas quais viveram os autores (e os que os precede- * Vejam-se, por exemplo, os estudos reunidos em N. K. Gutwald, The Bible und liberation: political and social hermeneutics, Maryknoll, 1983. 18 Tam) e suas respectivas comunidades. Esses estudos ainda se con- centram primordialmente no texto como tal e poe a acentuacdo nos aspectos teolégicos (ética, cristologia, escatologia ete.). Mas felizmente pouco a pouco a exegese européia — e mais a esta- dunidensc — vai se livrando da camisa de forga do métoda histé- ricu-critico, mais preocupado pelo passado do que pelo futuro do texto, ainda que essa libertacdo se traduza para muitos em con- centracdo nas dimensies lingit 8 & camunicativas do texto. Inclusive o conesito de contexto ou situagao vital (Sitz im Leben) permanece vago e imprecisu pura a maioria. Seguindo as pegadas de seus melhores expoentes, M. Dibelius e R. Bultmann, o con- texto vital continua reduzido ao Ambito religioso (catequese, parénese, apologética, pregagao etc.) dentro da comunidade que supostamente dcu origem e forma aos textos estudadus. A hermenéutica na Europa é dominada pela filosofia e linguistica; é altamente intelectual e idealista. Uma anedota ilustraré o que se disse. Pouco depois de minha chegada a Tiibingen, no comeca de meu ano sabatico, o professor Walter Gross (da cdtedra do An- tigo Tcotamento) me indicou que “na Alemanha wav lid sensibili- dade para us aspectos sociais e econémicos entre os estudantes e os eruditos”. Kissa frase me chamou a atencdo e inclusive me pa- receu exagerada, pois lera os estudos de G. Theissen. Poucos dias depois, porém, tive que dar a razdo ao professor Gross. Um co- nhecido professor daquela universidade, a quem pedira que me assessorasse inicialmente em meu projeto de pesquisa sobre a realidade socioeconémica da comunidade de Lucas, depois de lon- ga conversa resumiu sua apreciagaa dizendo que “o fundo social e econémico do texto do Novo Testamento é secundario e pode ser ignorado porque é€ icrelevante. Ao invés, sao primordiais as ra- zoes teologicas que motivaram Lucas a sublinhar a importancia do desprendimento e repartigdo das riquezas”. Minha surpresa e desengano foram enormes. Nao pude evitar recordar o que uns dias antes ouvira dizer o professor Ernst Kasemann numa cunfe- réucia: “Muilos alemaes vivem em esquizofrenia: falam de cristia- nismo idealista, vivendo ao mesmo tempo uma vida que qualifi- cam de realista, mas ambos estao desligadas.” Isso vale nao sé para a Alemanha. ac Aspectos sociais e econdémicos no estudo da Biblia A consideragéo dos aspectos sociais e econdmicos, além dos politicos e histéricos, nos estudos sobre o Antigo Testamento, esté se ampliando, sobretudo quando se trata dos profetas, dada a na- tureza dos temas tocados na maioria de seus escritos. Quando, po- rém, se trata do Novo Testamento, por alguma raz4o misteriosa, 0 que se observa é uma intensa concentragdo nos textos mesmos e em sua histéria (especialmente literaria e redacional), em sua men- sagem teologica e em suas derivagoes éticas. Segundo o texto que se estuda, podem-se incluir consideragdes tomadas da realidade politica e histérica. Mas os aspectos sociais e econémicos costumam briJhar pela auséncia. Na realidade, a maioria dos cristaos enten- de o Novo Testamento da mesma maneira que os judeus ortodoxos entendem o Antigo: desligado das circunstancias humanas em que se forjaram e cresceram os textos. Em outras palavras, os cristéos nao temos reparos em estudar o Antigo Testamento da perspectiva socioeconémica e politica, além da religiosa, mas nao estamos dis- postos a tomar essas mesmas perspectivas seriamente ao se tratar do Novo Testamento. Basta rever os comentérios biblicos. O que na realidade estA aqui em jogo 6 a maneira concreta de ver e avaliar escritos como os cvangelhos c os Atos dos Apéstolos, o papel desem- penhado por seus escritures ¢ sua relagau comm as respectivas co- munidades, assim como certos conceitos basicos como os relativos a inspiracao, & autoridade da Biblia e 4 sua qualidade de Palavra de Deus. Estamos tocando nos pressupostos operativos dos estudio- sos da Biblia, e nao poucos deles inconscientemente 840 mais fun- damentalistas do que admitiriam ser. Estudos sobre as condigées socioecondmicas da Palestina e da Asia Menor Acrescente-se a tudo que se observou mais uma coisa: ainda que tenhamos estudos excelentes e minuciosos sobre as condigdes sucivecuudmivas oa Palestina do século I d.C.,* todavia (pelo que * Por exemplo, os estudos de Joaquim Jeremias, de Emil Schirer, ¢ 03 que aparccem rounidos em Compendia rerum Iudaicarum (Assen, 1974ss) 15 sei) nao se fez estudo semelhante sobre a Asia Menor com refe- réncia ao cristianismo nessa regiao, ou sobre os escritos do Novo Testamento relacionados com essa importante parte do Império Romano. Uma das pnssiveis razées que explicariam esse vazio é que — apesar de tantos cstudos — ainda nao nos desprendemos suficientemente da prioridade absoluta que realmente outorga- mos ao Jesus histérico, o palestino. Nao tomamos com a serieda- de com que deveriamos, e com o peso normative que sua cano- nicidade exige, o Jesus dos evangelhos, o Jesus pregado depois dos acontecimentos em torno do ano 30 na Palestina. E nao fal- tam os que pensam ingenuamente que o judaismo conhecido pe- jos evangelistas era idéntico ao judaismo que Jesus conheceu na Palestina.® No mundo de fala inglesa, particularmente nos Estadus Uui- dos, foram realizados estudos acerca das condigées sociais e eco- némicas das comunidades nas quais vieram & luz alguns dos es- critos biblicos. Na Europa, porém, muitas vezes se rontinua a ver os evangelistas como tedlogos de universidades. Nao surpreende que com freqiiéncia exegetas, professures e biblidfilos projetem seu préprio mundo no mundo dos evangelistas. Como ja indiquei, o método exegético predominante é 0 método histérico-critico, ain- da que alguns de seus pressupostos estejam sendo questionados, e os estudos lingitisticos de diversa indole tenham ganhado terre- no, A exegese continua, purém, seido uma espécie de trabalho de arqueologia, em busca das origens dos textos e da reconstrucdo de sua evolucdo ideoldgica e literdria. Trata dos textos como os arquedlogos tratam no Oriente préximo de um tell ou jazida ar- queolégica. Prova clara disso é que, nos estudos sobre o tema da pubreza vu riqueza no Evangelho de Lucas, so ocasionalmente se leva em conta a dimensao socioeconémica, ao passo que se coloca énfase no aspecto teolégico, coma se a pobreza nao fosse realidade e problema de cardter econdmico, c como se Lucas tivesse escrito * As adverténcias de P. S. Alexander (“Rabbinic Juddaism and the New Testament”, em ZNW 74 (1983) 237-246) devem ser levadas seriamente ein conta, Compare-se, por cxcmplo, o estudo de E. Sanders, Jesus and Judaism (Filadélfia, 1985) com os estudos de J. Jeremias e a mancira come recorrem A literatura judaica. 16 sobre uma pobreza espiritual ou ascética e nao subre una pobre- za cruamente material.” O pressuposto com que freqiientemente se léem certos escri- tos biblicos estA muito distante da realidade que os gerou. Costu- ma-se supor que foram escritos devido a preocupa¢ées doutrinais. Todavia, a realidade é que muitas passagens, inclusive escritos inteiros, foram elaborados em vista de alguma situag¢ao concreta, de alguma preocupaedo humana imediata, social, politica ou eco- némica, que exigia resposta ou orientagéo para os crentes. Obecr- va-se um exemplo dessa falta de sensibilidade humana no livro influente de H. Conzelmann, O meio do tempo: para o autor, o evangelista (Lucas) “fixa a posic¢ao histérico-salvifica da Igreja, dai deduzindo as normas para sua atitude para com 0 mundo”. Quem estiver cousciente dos pressupostos mentais e dos diversos fatores que influenciaram 0 evangelista, assim como das causas e razées de seu comportamento, notard que os evangelhos sao pro- duto de uma relagio dialogal entre determinada realidade e a mentalidade vigentc; que os comportamentos que refletem e mes- mo seus discursus sau respustas a siluagdes ¢ condicionamentos concretos. Significa, para os evangelistas, que seus escritos foram produto desse didlogo entre essa realidade em que estavam imersos ou que conheciam bem (que amitide foi a causa on raza pela qual escreveram, por exemplo, no que diz respcito ac uso ¢ abuso das riquezas numa comunidade integrada por pobres e ri- cos) e sua fé crista. A realidade “mundana” que viviam. influen- ciou sua compreensdo e apreciacdo do acontecimento Jesus Cristo. do conceito de salvagéo ete. Ao mesmo tempo, seu compromisso com Cristo e sua misséo influenciaram sobre sua compreensao e apreciacao do mundo em que viviam. Por isso, com uma aprecia- go muito diferente da que expressou Conzelmann acerca da rela- ¢4o do evangelista com 0 mundo, Ph. F. Esler pade afirmar com ra- z4o que os “fatores sociais e politicos foram significativos na moti- * Por exemplo, H.-J. Degenhardt, Lukas Evangelist der Armen, Stuttgart, 1965; W. E. Pilgrim, Good news to the poor, Minneapolis, 1981; D. P. Seccambe, Possessions and the poor in Luke-Acts, Linz, 1982; F. W. Horn, Gaube und Handetn in der Uheologre des Lukas, Gdttingen, 1983. Mas vejam-se os estudos mencionados na n. 2. " Die Mitte der Zeit, Tubingen, 1964, 117. 17 vagao da teologia lucana; em outras palavras, Lucas deu forma as tradigées evangélicas que estavam 4 sua disposigaéo como respos- ta a pressées sociais e politicas experimentadas por sua comuni- dade”. Ao se falar da relagdo evangelista-comunidade, costuma-se fazer de maneira muito abstrata. O termo “comunidade” costuma esconder uma totalidade amorfa, vista e definida desde o ponto de vista religioso. Em outras palavras, n4o se costuma destacar — pelo menos de manoira suficientemente clara c conseqiiente — a dimens&o humana da comunidade em questao, ou seja, o fato de que os cristaos (pessoas reais, nao ficticias) que constituiam a comunidade de Efeso, por exemplo, viviam em momento politica concreto, em determinada geografia, no seio de estruturas sociais © em niveis econémicos delimitados etc. Se se entender “cuuuni- dade” em seu sentido integral, encarnada e nao abstraida de seu mundo real, entao a interagdo evangelista-comunidade sera mui- to mais acertadamente compreendida, e se entenderd o préprio evangelho dentro do marco da interago entre o evangelista, sua comunidade e o mundo concrete onde viviai e se moviam e escre- vera. E, como 0 evangelista de fato escreveu respondendo a rea- lidades concretas e imediatas — como 0 indica Lucas nas primei- ras linhas de seu evangelho (1,1-4, esp. v. 4) —, 6 indispensavel que nao se percam de vista as rclagécs mencionadas, para com- preender que a compusigav du lextu biblico era motivada pela co- munidade-realidade, que exigia resposta orientadora da parte do evangelista-tedlogo. OS METODOS DE ESTUDO DOS EVANGELHOS Voltcmos aos métodos de estudo dos evangelhos. A critica redacivual busca destacar a contribuigdo particular do escritor: sua teologia, suas preocupacées, inquietudes e interesses, que se deduzem dos retoques feitas na material que ele herdou e do ma- terial que lhe é préprio, assim como da estrutura que deu & sua 2 Community and gospel in Luke-Acts, 2. 18 obra. O fato mesmo de ter admitido o material que incluiu, tendo tido a liberdade de omitir 0 que nao convinha ou era desnecessa- rio para seu propésito, é em si indicativo da relacdo evangelista- ecomunidade: ele escreveu para essa comunidade, nao para outra, tendo presentes suas necessidades concretas (de orientagao, apoio, corregao). A propésito, é ai que se deve situar bem a inspiracdo biblica: nesse aqui e agora concretos. A Formgeschichte ou critica das formas interessa-se pelo tipo de situagdo que deu origem ao uso de determinada forma literé ria, ou seja, a chamada “situayaée ou cuntexto vital” (Siz im Leben). Assim 0 expressou RK. Bultmann, 0 exegeta mais influente em nosso século: “A compreensdao precisa da critica das formas baseia-se na opi- niao de que a literatura pela qual uma cumuuidade, inclusive a primitiva comunidade crista, Lumou forma, brota de condigées e nevessidades muito cuncretas da vida, da qual se furja um estilo bem definido, com formas e calegorias bem especificas... O Sitz im Leben nao é, porém, um acontecimento hisléricu particu- lar, mas uma situacao tipica ou ocupagao na vida de uma comu- nidade.”"* Todavia, a situagdo vital, sobre a qual, a partir de Bultmann em diante, se concentrou a atengao, foi quase exclusivamente a interna 4 comunidade mesma (e essa entendida desde seu aspec- to religioso): pregagao, pardnese, eatequese, polémicas ete. Ou soja, o que se buscava determinar era a situagao na vida religiosa, to- talmente separada do conjunto de situagdes mais amplas que em grande medida determinaram o estilo de vida das pessoas que viviam na grande comunidade humana de Ffeso, Roma ou Antio- quia." A palavra “vida” (Leber) foi inconscicntementc reduzida a dimensao religiosa, numa espécie de docetismo, devido 4 concen- tragdo quase obsessiva sobre a teologia e a fé expressas nos tex- tos; o que acarretou o esquecimento da vida real subjacente a essa teologia e fé, vida que em grande medida deu aos textos a forma e » The history of the synoptic tradition, Oxford, 1968, 4. ‘4 [sso ja tinha observado também G. Theissen em seus Estudios de sociologia del cristianismo primitivo, 14. 19 a acentuagdo que possuem. Esse aspecto é muito claro nos estu- dos exegéticos de Bultmann, especialmente em sua interpretacéo existencialista (heideggeriana) que justamente foi criticada por Dorothee Sille como falta du realism e de cousciéncia social.* ‘Toda a atengao se concentrava no proprio texto, isolado do contex- to ao qual respondia, e no autor do texto, o homem, igualmente isolado da contexta em que vivia humanamente. Como acertada- mente afirmou J. Z. Smith, “temos sido cativados por uma descrigdéo de um Sitz im Leben que carece de ‘assento’ concreto (isto é, ndo-teolégico) e sd oferece a mais abstrata compreensao de ‘vida’ ”.! O método de estudo exegético que se impés, chamado “histé- rien-critien”, eam todos os grandes acertos que tem, concentrou a atengdo no estudo literdrio do texto e numa visdo critica da su- pusla histéria narrada pelo mesmo, entendida como historia fatual, ou seja, 0 que sucedeu realmente. E certo que havia interesse em conhecer o contexto politico e os costumes da época. Mas, uma ver mais, estes foram tratados como dados sem importancia c igno rou-se a dimensao social e mais ainda a econémica. Como ja indi- quei, é verdade que alguns estudiosos mostraram interesse por esses aspectos em seus estudos sobre o Antigo Testamento, ou sobre 0 mundo de Jesus de Nazaré, na linha de J. Jeremias. Mas, com algumas notdveis execgdcs, néo sc tomou cm consideragao séria o mundo real no qual viveram vs autores dos escritos neotestamentdrios e as comunidades para as quais escreveram. E, quando se busca a razdo ou causa pela qual se escreveu o que lemos neste ou naquele texto biblico, pensa-se quase exclusiva- mentc (cxceto quando é demais ébvic) em termos teuldgicus ¢ em alguma situagéo vital religiosa da vida interna da comunidade (esta também entendida em termos religiosos). Ou seja, os enfo- ques agora considerados como classiens pela maioria dissociaram inconscientemente texto, comunidade c mundo. Essa dissociagéo € mais dbvia ainda va exegese estruturalista, que se interessa ® D. Sélle, Teologia politica, Salamanca, 1969. ‘©The social description”, £9, 20 unica e exclusivamente pelo texto em seu estado atual, isolado de todo contexto que nao seja o literdrio,"” Duas observagées adicionais. Por um lado, antes de sc redi- gir o primeiro dos escritos que constituem u Nuvu Teslamento, 0 cristianismo existiu como realidade vivencial. Nao foram os escri- tos do Novo Testamento que deram inicialmente forma a0 cristia- nismo, mas ao contrario. De mais a mais, os escritos do Novo Tes- tamento foram compostos a partir de um presente e para um pre- seule, a partir de uu crislianismo real e concreto e para comuni- dades concretas.'* O acontecimento Jesus Cristo foi atualizado, de modo que se testemunhava hoje o Jesus de ontem, nao camo alguém que falou e agiu no passado, mas falando e agindo no pre- sentc... o aqui e agora do redator e de seu auditério. Nao um Je- sus da recordagéo, mas um Jesus vivo aqui e agora. Por outro lado, os estudos realizados a partir da perspectiva da comunica- cdo manifestaram que a relacdo emissar-receptor implica levar a sério o mundo real de cada um deles, incluindo 0 socioeconémico em que viviam. De fato, os estudus linyiiistico-comunicatives dos textos biblicos foram se aproximando pouco a pouco dos estudos sociolégicos dos mesmos. Em certos meios se saiu da leitura ex- clusivamente intertextnal para fixar a atencdo numa leitura his- t6rico-sociolégica, além da teolégica, que considera o texto como um testermunho da {é vivida de forma concreta em momentos, lu- gares, circunstancias e condicionamentos concretos. Além das razées mencionadas, ha outras pelas quais nao se prestou a devida atengao a dimensao socioeconémica da situagio vital que foi parte integral da formagao dos textus biblicos. Os estudos bfblicos foram dominados particularmente pelas posigdes e opinides dos eruditos alemdes, herdeiros de uma visao idealista da realidade que ainda perdura. Com efeito, foram as diferentes * A literatura sobre esse enfoque é vasta e facil de encontrar. Vaja-se a critica, por exciuplu, eur W. Egger, Mezhodentehre 2um Neuen Testament, Friburgo, 1987, 30, n. 4. notério quo o método cstruturalista de interpretagao de textos comeyuu v se deseuvolveu particularmente na Franca qnase ao mesmo tempo que surgia outro enfoquo, um enfoque antes socioldgico, desenvolvido em outro continente: os Estados Unidos. ' Veja-se particularmente a coleténea de estudos de H. Frankenmille, Biblische Handlungsweisungen, Mainz, 1983. ai correntes filoséficas que marcaram em grande medida o rumo para os estudos humanisticos em geral; uma determinada filosofia sem- pre foi o pressuposto com que se operou. Nao farei a histéria dos vaivens da exegese bfblica ou das ciéncias afins, mas cabe desta- car a grande influéncia que durante varias décadas ao longo do segundo terco de nosso século exerceu a leitura e interpretacdo existencialista, proposta e praticada por R. Bultmann e seus dis- cipulos: trata-se de leitura individualista, que se concentra em minha decisao de fé e em minha obediéncia a Palavra de Deus dirigida a mim, entendida como relagao vertical, que ignora (ou ao menos minimiza) as dimensées horizontais da vida. Conse- qientemente, essa leitura deixa de lado toda preocupagao pelas dimensées concretas da vida humana, como a politica e a socioeconémica; apesar de seu discurso acerca da importancia do Sitz im Leben dos textos, ignora as implicacées sociais da Palavra de Neus (a justifiengda pelo. fé era o conceita central; nenhuma palavra se dizia sobre justiga social). Acresce a isso outro fator: a iucumpreenusao da natureza dos proprios evangelhos, que se desdobrou paulatinamente em torno da discussao sobre o Je- sus histérico em meados do século. Enquanto os evangelhos foram tomados como histérias de Jesus, e enquanta toda a aten- go sc concentrava nos textos cm si mesmos, nao sc prestou atengao av mundo do evangelista. Quando muilo v inleresse se fixou na patria de Jesus de Nazaré e no mundo de sao Paulo. Era de pouco interesse conhecer as condicées socioeconémicas de uma comunidade em relagao com determinado evangelho, enquanto nao se reconhecesse que esse constituia um testemu- nho da fé vivida num aqui e agora concretos, dentro de uma comunidade humana mais englobante, e na trama de uma série de condicionamentos. O terceiro fator que explica a falta de interesse pelas di- mensdes sociais e econémicas foi — e continua sendo em alto grau — a excessiva preocupacao de corte fundamentalista pela historicidade dos relatos na Biblia, que foi acompanhado pela febre pelos descobrimentos arqueolégicos, para sustentar a tese da total veracidade (inerr4ncia) e, portanto, confiabilidade da Biblia. Esse fator esta irmanado com uma concepgaéo ingénua da 22 Biblia como “a Palavra de Deus para mim” em sentido estrito, de tal modo que néo tem nenhuma importancia conhecer 0 mun- do em que um dia foi hamanamente formulada nem (0 que ain da é mais grave) as eveuluais siluayoes pulilicas, suciais, econd- micas e afins, que puderam determiné-la. Segundo isso, a inspi- ragao biblica seria uma espécie de pocdo magica que protege o escritor sagrado de todo contagio histérico e cultural que pudes- se distorcer o carater absoluto dessa Palavra de Deus. Esse enfoque sustenta que sua palavra no foi historicamente encar- nada nem condicionada; trata-se de pressuposto filoséfico, e nao teolégico. O ESTUDO DA REALIDADE SOCIAL BE ECONOMICA DO MUNDO DO NOVO TESTAMENTO Com essa falta de interesse de conhecer a situagao real e con- creta em que viveram tanto o autor biblico como sua comunidade, nda se podiam esperar estudos sacioldgicos (e menos ainda econd- micos) dessc mundo. Nao havia razdo aparente que levasse a fazé- los, a nao ser a curiosidade arqueolégica. E nao se superara isso enquanto se estiver exclusivamente preocupado pela imediata validez da mensagem do texto como tal.'® Nao 6 de estranhar que nos diciondrios © enciclopédias da Biblia se busquem em vo seccdes dedicadas a conceitos e reali- dades socioldgicas: familia, mae, diarista, pobreza, escravidao, cidadania, profissées, aristocracia, associagées etc. Inclusive em publicagées dedicadas A apresentagao do meio ambiente da Bi- blia ou dos infcios do cristianismo, néo passam de umas poucas paginas as dedicadas ao aspecto social e econémico. Assim, EF. Lohse, em seu livro Umwelt des Neuen Testaments (Gottingen, 1980, 5? ed.), mal Ihe dedica espaco. A mesma coisa acontece no livro informativo de S, Freyne, The world of the New Testament 19 Uma simples mas ampla apresentagin das diversas angulos a partir dos quais se interpreta hoje a Biblia encontra-se em V. Hochgrebe — H. Meesmann (orgs.), Warum. versteht ihr meine Bibel nicht?, Friburgo, 1989. Cf. também a revista Concifium, nm. 158 (1980), 23 (Wilmington, 1980), e a secgao que J. Giblet dedicou ao mundo helenistico e romano na famosa Infroducdo critica ao Novo Testa- mento (Barcelona, 1986), editada por A. George o P. Grelot (me- aus de duas pdginas). Na mais recente ¢ ampla Ind:uduydu uo Novo Testamento “no marco da historia das religides e das cultu- ras no tempo helenistico e romano” (Salamanca, 1989), escrita por H. Koester, apesar de sen enfoque e subtitulo, surpreende quc mal dedique ao aspecto sociocconémico umas quantas pince- ladas nas quais se mesclain tragos de diferentes tempus e luga- res. Koester 6 muito mais extenso no que se refere ao periodo helenistico anterior ao cristianismo (um par de séculos), dando a impressao de que nao houve diferencas para com os séculos ante- riores. Um pouco mais amplo é J. Leipoldt e W. Grundmann (eds.), em O mundo do Novo Testamento, vol. I (Madri, 1973), que, toda- via, fica mais no mundo das idéias que no das realidades sociais. Obras como as deJ. Finegan, The Archeology of the New Testament. The Mediterranean world of the early Christian apostles (Boulder- Londres, 1981) concentram-se nos restos arqueoldgicos e dados histéricos, mas nao oferecem dados sobre a situagao social e eco- némica que se desprende desses vestigios. Apesar de seus titulos, estudos como os de E. Lohmeyer, Soziale Fragen im Urchristentum (Leipzig, 1921) e de J. Leipoldt, Der soziale Gedanhen in der altchristilichen Kirche, (Leipzig, 1952), uéo passam de oferla de umas poucas pinceladas sobre a realidade social, ficando presos uma vez mais no mundo das idéais daquela época sem descer a erua realidade da vida nesse tempo. Foram basicamente duas correntes de pensamento social que levaram os estudiosos a interessar-se seriamente pela realidade social e econémica da antiguidade em relagao com os estudos bi- blicos. Uma foi a corrente socialista do primeiro terco de nosso século na Europa (E. Troeltsch, L. Ragaz, K. Kautsky, H. Freissig); a outra surgiu quase ao mesmo tempo entre um grupo de estu- diosos que constituiu o que se chamou de “Escola de Chicago” (S. J. Case, S. Matthews, F. Grant, L. Wallis). Certo namero de estadunidenses a partir da década de sessenta retomau a fia da “Escola de Chicago” (J. G. Gager, H. C. Kee, A. Malherbe, W. A. Meeks, N. K. Gottwald), aos quais se deve acrescentar os nomes 24 de G. Theissen na Alemanha e E, A. Judge na Australia.” Obser- vando-se as épocas em que surgiram estudos sociolégicos relati- vos A Biblia, cair-se-A em conta de que enincidem com momentos em que houve grande preocupagao de ordem social. Uma vez mais, a situayau wu vide delerminou a concenLragao da alengao na rea- lidade que exigia urgente resposta nesse momento. Um dos problemas que venho observando em minhas leitu- ras 6 o descuide que se sente para com as coordenadas espacio- temporais da informagao manejada. Assim, com toda tranquili- dade se fala da escravidao “na antiguidade” como se tivessem sido iguais as condigdes em que viviam os escravos em Roma, Atenas e Alexandria, ou nos tempos da Republica e do Principado. K ilustrativa disso a Harper’s encyclopedia of Bible life (ed. revista, Nova York, 1978), yue divide sua ubra Lema licammenle assim: “How the people of the Bible (=?) lived/worked/etc.” nivelando todos os momentos como se as condigdes de vida sob Salomao tivessem sido iguais as condigées sob os persas ou os gregos. Em resumo, fala-se do “povo da Biblia”, nos “tempos biblicos”, como se fossem blocos uniformes e monoliticos. Pelo que expusemos até aqui, ha de ficar claro que nao sé se justifica mas também é necessdrio procurar conhecer o melhor pos- sivel as condigées sociais e econémicas relacionadas com o mundo dos diversos autores biblicos. Para poder compreender o alcance e os possiveis limites daquilo que determinado autor biblico (ou a tradicao de que foi herdeiro) expés, e ainda para compreender o que quis dizer e a razAo pela qual a disse (aquila a que respondia), € nceessdrio conhcecr scu mundo conercto, humang, real, que é 0 que em boa medida determinou sua visa dv mundy, seu horizonte conceitual acerca do mundo em que viviam ele e aqueles com quem se comunicava. Recordemos que a inspiracdo divina nao subtraiuo autor desse mundo, mas que se deu nele e para ele, como Jesus Cristo que se encarnou num mundo concreto. Esses velhos textos foram Palavra de Deus imediata e viva nesse mundo em que foram compostos e ao qual se dirigiram; para que o sejam para nos é preciso * Uma boa sintese se encontrara na coletanea de artigos reunidos por W. A. Meeks em Zur Suzivlogie des Urchristentums, Muuique, 1979 (euin bitslingrafia). 25

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