Você está na página 1de 2

Por que os bolsonaristas falam tanto

em narrativas?
Abrir mão da realidade é aceitar a força como único critério para
resolver conflitos

Joel Pinheiro da Fonseca


Economista, mestre em filosofia pela USP.

Folha de São Paulo - 12.jul.2021 às 23h15

Comentando sobre o áudio da ex-cunhada de Bolsonaro que o


incriminava no esquema de “rachadinhas”, seu filho Flávio opinou que
tudo não passa de uma “narrativa que tentam armar contra a família
Bolsonaro”. O próprio presidente, no mês passado, em discurso em
Chapecó, acusou a CPI da Covid de “inventar narrativas” contra ele.
Quem acompanha os meios bolsonaristas sabe que “narrativa” se
tornou uma verdadeira palavra de ordem. A lógica é: nós temos a
Verdade; contra nós se erguem “narrativas”, ou seja, histórias falsas ou
tendenciosas. Mas quem tem, realmente, uma narrativa?
Para agirmos no mundo, precisamos de conhecimento. Usando nossa
razão, conseguimos a muito custo descobrir alguns fatos.
Nosso conhecimento, no entanto, não é um mero acúmulo de fatos
desconexos. É preciso estabelecer relações entre eles, de forma que
contem uma história coerente e simplificada que nos permita entender
a realidade e nosso lugar nela de maneira mais ampla. Isso é uma
narrativa.
É possível, a partir dos mesmos fatos, contar histórias muito diferentes.
Veja: uma maioria do povo brasileiro, indignada com a corrupção e
inoperância da política e farta do discurso do PT, votou em Bolsonaro
para fazer uma limpeza ética e botar o Brasil pra funcionar.
Uma maioria do povo brasileiro, refletindo preconceitos de longa data
e desejando dar livre vazão a seus desejos mais violentos e egoístas,
votou em Bolsonaro em 2018. Duas narrativas diferentes do mesmo
período.
Todo lado tem uma narrativa, inclusive o lado que diz não tê-la, e assim
foge da questão: como saber se minha narrativa é verdadeira? Essa
indagação leva à disposição de sempre corrigi-la, melhorá-la ou até
abandoná-la à luz de novos fatos e argumentos.
Sem essa disposição de submeter a narrativa ao conhecimento objetivo,
sobra apenas a guerra de comunicação. E é justamente nisso que o
bolsonarismo aposta. A característica principal desse tipo de disputa é
tirar o foco do assunto sendo discutido —o mérito da questão— e focar
na desqualificação das pessoas.
Os dados do desmatamento são falsos porque ONGs internacionais
querem nossa selva; cientistas não devem ser ouvidos porque estariam
a serviço do PT; nas universidades e Redações, só tem maconheiro. Não
existem problemas reais de meio ambiente, saúde pública ou economia.
Existem apenas narrativas em conflito e uma disputa a ser vencida com
técnicas de persuasão e propaganda.
Ninguém vê a si mesmo como irracional. Ninguém defende que se
descartem fatos em nome de uma crença. A condição mental em que,
na prática, abre-se mão da própria racionalidade é o resultado de um
condicionamento psicológico.
Quando as pessoas são incentivadas a odiar cada vez mais seus supostos
inimigos, a defender seus líderes (e seus símbolos) como se fossem
sagrados, a confiar cegamente nos membros de seu próprio grupo e
desconfiar de qualquer informação que venha de fora, elas colocarão
sua narrativa favorita acima de sua racionalidade. Essa é a função dos
comunicadores bolsonaristas.
Abrir mão da busca —sempre incompleta— pela realidade objetiva, que
deve balizar nossas narrativas e desejos, é aceitar que o único critério
para a resolução de conflitos é a força. Num universo sem verdade, onde
é impossível persuadir alguém racionalmente e onde as crenças
refletem apenas interesses, a única maneira de se sobrepor é se impor
pela violência. Não é à toa que seja justamente isso que Bolsonaro
ameace fazer.

Você também pode gostar