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Thoth 6
Thoth 6
Thoth
no 6 setembro/dezembro 1998
ISSN: 1415-0182
ATUAÇÃO PARLAMENTAR
Projetos de Lei
Pronunciamentos
Dia Nacional da Consciência Negra, aniversário de Zumbi (Câmara dos Deputados) ..... 89
A luta afro-brasileira no Senado ................................................................................. 115
O gabinete do Senador
Da esquerda para a direita: Elisa Larkin Nascimento, co-editora de Thoth; Oswaldo Barbosa Silva, assessor téc-
nico; Éle Semog, secretário parlamentar, Theresa Martha de Sá Teixeira, chefe de gabinete; senador Abdias Nas-
cimento; Celso Luiz Ramos de Medeiros, assessor técnico; Paulo Roberto dos Santos, secretário parlamentar;
Carlos Alberto Medeiros, assessor técnico. Esses foram os competentes e dedicados colaboradores do senador
Abdias Nascimento durante o exercício do seu mandato. Eles também tornaram possível produzir esta revista.
Esta foto é um registro e uma homenagem que a eles presta A. N.
APRESENTAÇÃO
Mas Thoth não foi apenas um registro de minha atuação parlamentar. Em suas pági-
nas, procuramos, minha equipe e eu, oferecer um amplo panorama da luta negra no Brasil
e na diáspora, abrindo espaço a uma gama de assuntos que abrangem desde a história
das civilizações africanas até as manifestações mais atuais da rebeldia negra. Pudemos,
assim, publicar uma variedade de textos de autores negros do passado, tanto quanto ma-
térias mais frescas, produto de nossos jovens militantes na arena intelectual. Creio termos
conseguido, desse modo, dar ao menos uma ideia da riqueza de um pensamento africano
que não tem se dobrado às imposições de seus poderosos adversários, nem tampouco se
deixado seduzir pelo canto da sereia de ideologias melífluas como a “democracia racial”.
Sei que tudo isso pode parecer um testamento, sobretudo por provir de um ativista
– um agitador, como gosto de me definir – com tanto tempo de existência e de dedicação à
causa. Essa não é, porém, minha intenção. Depois de todas essas décadas, já não sei viver
sem lutar. É o que continuarei fazendo, por meio de meus textos, de minha pintura, de
palestras e conferências em foros nacionais e internacionais, na pregação do evangelho da
libertação de nosso povo. É essa a missão que recebi dos orixás, e que pretendo continuar
cumprindo enquanto eles me derem força e lucidez.
Axé!
Brasília, dezembro de 1998
AN
Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em
1995, marcado pela Marcha contra o Racismo, pela Ci-
dadania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âm-
bito nacional e internacional em todo o País, verificamos
que a questão racial no Brasil atinge um novo estágio.
Setores da sociedade convencional reconhecem o caráter
discriminatório desta sociedade, e o debate passa a foca-
Thoth lizar as formas de ação para combater o racismo, ultra-
passando o patamar que marcou a elaboração da Cons-
tituição de 1988: a declaração de intenção do legislador
dá lugar à discussão de medidas concretas no sentido de
fazer valer tal intenção.
Nesse contexto é que o Senador Abdias Nasci-
mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Sena-
do Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy
Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve soli-
dário com a luta antirracista. O mandato do Senador Ab-
dias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla de
luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à ques-
tão racial, com base numa verdade que o movimento
negro vem afirmando há anos: a questão racial constitui-
-se numa questão nacional de urgente prioridade para a
construção da justiça social no Brasil, portanto merece-
dora da atenção redobrada do Congresso Nacional.
14 THOTH 6/ dezembro de 1998
1 Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme influência
sobre neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII
Thoth 17
de adotá-las no Brasil, colocando o país abre grandes espaços pelos quais esca-
em dia com as obrigações assumidas na pam os agentes do crime.
arena internacional. Sala das Sessões, 3 de abril de
Finalmente, o projeto amplia o 1997.
elenco de circunstâncias agravantes Senador ABDIAS NASCIMENTO.
genéricas do Código Penal para nele
incluir os preconceitos de raça, sexo e Publicado no Diário do Senado Federal de 9-4-97.
outros. Com essa sistemática, afasta-se
a necessidade de uma previsão casuísti- Situação atual do projeto: Comissão de Cons-
ca que, enumerando em detalhes as cir- tituição, Justiça e Cidadania do Senado, aguar-
dando parecer do relator, Senador Pedro Simon,
cunstâncias de prática da discriminação,
desde 17 de abril de 1997.
Projeto de Lei do Senado no 73, O Congresso Nacional decreta:
de 1997
Art. 1o Fica proibida a contra-
tação, sob qualquer modalidade, pela
Proíbe a contratação, pela
União, suas autarquias, fundações, em-
União, suas autarquias, fundações,
presas públicas e sociedades de econo-
empresas públicas e sociedades de mia mista, de pessoa física ou jurídica
economia mista, de pessoas físicas que, diretamente ou por associado,
ou jurídicas que tenham cometi- controlador, acionista majoritário ou
do atos ou omissões favoráveis a empresa coligada, notoriamente, tenha
regime ou ações de discrimina- contribuído, incentivado, participado
ção racial, crimes contra a ordem por ação ou omissão ou, de qualquer
econômica ou tributária, atos que forma, apoiado ou estimulado regime ou
visem ou possam levar à formação ações de discriminação racial, no Brasil
de monopólio ou à eliminação da ou no exterior.
concorrência e dano ambiental não § lo A comprovação dos atos de
reparado, e dá outras providências. que trata este artigo será feita, perante
o responsável pelo contratante, por do-
cumentação, fornecida por organismos
nacionais ou internacionais de reconhe-
cida reputação e idoneidade, e encami-
nhada por:
26 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar
tanto, a mínima compensação por esse “Art. 5o Todos são iguais perante
gigantesco trabalho. a lei, sem distinção de qualquer nature-
O escravo, no Brasil como em za, garantindo-se aos brasileiros e aos
toda a América onde a escravidão exis- estrangeiros residentes no país a invio-
tiu, foi vítima de toda espécie de atro- labilidade do direito [...] à igualdade
cidades, torturas e degradações, justifi- [...].”
cadas pela ideologia da supremacia do .....................................................
branco-europeu como uma necessidade. Esse princípio, no entanto, ainda
Necessidade de quem, perguntamos. não se constituiu num verdadeiro direito
Obviamente, não dos africanos e seus para o negro brasileiro, o qual continua
descendentes escravizados, que nunca discriminado em todos os aspectos de
foram indenizados pela espoliação do sua vida em nossa sociedade. Fazem-se
sangue e suor que verteram, cimentando necessárias, portanto, medidas concre-
a edificação do Brasil. Sem o esforço do tas para implementar o direito constitu-
seu trabalho, este País não existiria. cional da igualdade, garantida aos brasi-
leiros negros pela Constituição.
É tempo de a Nação brasileira sal-
dar essa dívida fundamental para com os O presente projeto de lei atinge
edificadores deste País. O princípio da apenas três dimensões da discriminação
isonomia na compensação do trabalho racial contra o negro no Brasil: as opor-
torna moral e juridicamente imperativa tunidades e a remuneração do trabalho,
a educação e o tratamento policial.
uma ação compensatória, da sociedade e
do Estado, destinada a indenizar, embo- Inúmeras pesquisas científicas,
ra tardiamente, o trabalho não remune- algumas patrocinadas e realizadas por
rado do negro escravizado e o trabalho órgãos internacionais, como a Organiza-
sub-remunerado do negro supostamente ção das Nações Unidas para a Educação,
libertado a 13 de maio de 1888. a Ciência e a Cultura – UNESCO, com-
provam a discriminação contra o negro
Rui Barbosa, que, na qualidade no mercado de trabalho. Em 1959, após
de Ministro da Fazenda da República, pesquisa feita no mercado de trabalho
ordenara a incineração dos documen- no Rio de Janeiro, a chefe de Coloca-
tos relativos ao tráfico escravo e à es- ção do Ministério do Trabalho, Sra Vera
cravidão, certa vez mencionou, roman- Neves, afirmou que “é o preconceito de
ticamente, que os escravos deviam ser cor que se encontra em primeiro lugar
indenizados. Entretanto nada fez para como fator de desemprego”. O mesmo
concretizar essa exigência da justiça e foi constatado em relação a Porto Ale-
da consciência cívica. gre, em pesquisa realizada pelo Sistema
A Constituição brasileira garan- Nacional de Emprego –SINE, do Minis-
te a inviolabilidade dos direitos enu- tério do Trabalho (O Jornal, 14-6-59).
merados no seu artigo 5o, cujo caput As estatísticas existentes confir-
assegura: mam o quadro inegável de desigual-
Projetos de Lei
Ação compensatória 35
das Culturas Negras (IPCN) do Rio de IBGE. Esse fato traduz arbitrariedade
Janeiro, do Ipeafro de São Paulo e do no critério utilizado para se decidir se o
Rio de Janeiro, e de muitos outros movi- item cor deve constar ou não, deixando-
mentos, o negro vem exigindo, constan- -nos sem qualquer certeza da disponibi-
temente, que seja efetivado o compro- lidade de dados para a análise da exis-
misso constitucional que lhe assegura tência ou não da discriminação racial.
direitos iguais. No plano da ação das autoridades
Em 1946, a Declaração Final da públicas, a recente criação, pelo Gover-
Convenção Nacional do Negro enfatizou no Federal, do Programa Nacional de
a necessidade de medidas complemen- Direitos Humanos, do Grupo de Traba-
tares nas áreas da educação e economia, lho para a Eliminação da Discriminação
para que o negro pudesse realmente des- no Emprego e na Ocupação – GTEDEO
frutar de oportunidades iguais no cam- e do Grupo de Trabalho lnterministerial
po do trabalho e da sociedade em geral.
para Valorização da População Negra
Sem essas medidas complementares,
traz a inovação de levar a discussão de
uma legislação tratando meramente de
assuntos tão caros aos negros brasileiros
emprego não teria condições de efetivar,
para o interior do Estado. O primeiro
de fato, uma modificação significativa
possui entre suas metas a formulação de
no existente quadro de desigualdades no
políticas para a redução das desigualda-
mercado de trabalho.
des no Brasil. O Gtedeo e o grupo de va-
Para que se possa avaliar a imple-
lorização da população negra tratariam
mentação ou não do princípio do direito
de propor medidas compensatórias, des-
constitucional à isonomia racial, impõe-
tinadas aos negros brasileiros, nas áreas
-se a necessidade de dados estatísticos
de saúde, educação, mercado de traba-
diferenciados por categoria racial, o que
lho e meios de comunicação.
se tem convencionalmente chamado de
“quesito cor”, Nos censos demográficos Outro acontecimento de grande
brasileiros de 1872, 1890, 1940, 1950, relevância para a população negra foi
1980, no suplemento da Pnad de 1976 o seminário Multiculturalismo e Racis-
e na Pnad _ Cor da População de 1987, mo: o papel da Ação Afirmativa nos Es-
o quesito cor foi consignado. Trata-se, tados Democráticos Contemporâneos,
portanto, de uma prática bem enraiza- promovida pelo Ministério da Justiça.
da nas nossas tradições censitárias e de No discurso de abertura desse evento, o
pesquisa. Presidente Fernando Henrique Cardoso
Verifica-se, entretanto, a necessi- concitou seus participantes a usar a cria-
dade de se estabelecer a obrigatoriedade tividade para buscar soluções contra o
legal dessa prática, de forma sistemáti- preconceito e a discriminação raciais e
ca, pois nos censos de 1960 e 1970 e em afirmou expressamente ser necessário
algumas edições da Pnad o quesito cor “desmascarar” a forma como se pratica
não constou dos dados publicados pelo a discriminação racial no Brasil.
Projetos de Lei
Ação compensatória 39
téria, a qual exige imediato aperfeiçoa- para tanto, sugestões apresentadas pela
mento para uma aplicação eficaz”. Associação Nacional dos Procuradores
4. Para tal fim, o art. lo do proje- da República, subscritas pela Subprocu-
to confere privativamente ao Ministério radora-Geral da República, Dra Ela Cas-
Público a iniciativa para a proposição da tilho, Presidente da ANPR.
ação civil cabível, e defere, no seu pará- 9. Com efeito, há que se afastar a
grafo único, legitimidade subsidiária, para restrição configurada no art. 1o da propo-
o mesmo propósito, à sociedade civil que sição original, segundo a qual a iniciativa
preencha os requisitos enumerados nos in- cabe privativamente ao Ministério Pú-
cisos I e II do parágrafo único daquele ar- blico. É a regra, neste tipo de legislação,
tigo. O § 2º faculta outras sociedades civis que a iniciativa seja concorrente e não
ou associações e habilitarem-se como li- sucessiva. Propõe-se, para tanto, emenda
tisconsortes de qualquer das partes. O § 3o modificativa ao caput desse artigo.
prevê a substituição processual, em caso
10. Há que se afastar, também, a
de desistência ou abandono da ação, por
restrição segundo a qual o ingresso da
sociedade ou associação legitimada pelo
ação subordina-se a eventual inação do
Ministério Público.
Ministério Público, propondo-se, para
5. Prevê, nos demais artigos, nor- tanto, emenda modificativa ao parágra-
mas processuais a serem atendidas pela
fo único do art. 1o, que se transforma no
ação civil pública. Estipula, no art. 5o,
caput do artigo seguinte (art. 2o), para
a cominação de penalidade diária, inde-
conformá-lo à aludida regra da iniciati-
pendentemente de requerimento do autor.
va concorrente.
6. O art. 7o remete à criação do
11. Também o § 3o do art. 1o, deve
fundo de defesa e combate ao racismo à
ser ajustado a esta regra. Modifica-se a
Secretaria Nacional de Direitos Huma-
expressão “substituirá processualmen-
nos, no prazo de 12 meses a contar da
data da publicação da presente lei. te”, pois, sendo a competência concor-
rente, “o Ministério Público ou outro
7. Já o art. 8o faz aplicar, subsidia-
legitimado assumirá a titularidade ati-
riamente ao disposto na lei, o “Código
va.” Amplia-se essa possibilidade, pois
Penal, o Código de Processo Penal e a
se afasta a restrição de somente o Mi-
Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985”.
nistério Público poder dar seguimento à
É o relatório. ação, no caso de desistência ou abando-
no por parte do autor original.
Discussão
A norma constitucional (art. 129,
8. A proposta examinada é com- §1º) diz quanto às funções institucionais
patível com os novos parâmetros cons- do Ministério Público que:
titucionais em vigor. Entretanto, algu- § 1o A legitimação do Ministério
mas modificações ou reparos devem para as ações civis previstas neste arti-
ser feitos ao texto proposto. Acatamos, go não impede a de terceiros, nas mes-
Projetos de Lei
Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 47
-se Cruz e Sousa. Nas palavras de Alceu É, portanto, esse grande nome,
Amoroso Lima, a grandiosidade de sua merecedor de nossa reverência, que o
obra chamou a atenção para “esse hu- presente projeto de resolução pretende
homenagear. É para a meritória iniciati-
milde filho de uma raça que, até então,
va que encarecemos o acolhimento pe-
não produzira nenhuma figura marcante los ilustres pares.
nas nossas letras”.
Sala das Sessões, 25 de setembro
Nesse final de século, em que as
de 1997.
reivindicações dos movimentos negros
têm redundado em consideráveis avan- Senador ABDIAS NASCIMENTO
ços sociais, é importante trazer à baila Senador ESPERIDIÃO AMIN.
a figura de Cruz e Sousa, o homem e a
Publicado no Diário do Senado Federal, de 26-9-97
obra.
Parecer no 778, de 1997 Da Comissão de Educação, sobre o Pro-
jeto de Resolução do Senado no 126, de
1997.
1. Relatório
1. Relatório
RESOLUÇÃO
No 1, DE 1998-CN
JUSTIFICAÇÃO
os filhos para que estes não crescessem do provocou calafrios na elite fundiária
como escravos –, passando pela pura e que governava a Colônia. Seus piores
simples fuga, até a revolta organizada pesadelos se haviam concretizado.
contra todo um sistema. Quase todas Para apreendermos plenamente o
essas formas de resistência ocorreram que isso significava, é necessário enten-
onde quer que tenha havido africanos der o que representava a escravidão na
escravizados. Uma delas, porém, teve vida da Colônia. Não se tratava da es-
no Brasil os seus exemplos mais bri- cravidão do mundo antigo, a que todos
lhantes. Refiro-me à resistência organi- os povos um dia se viram submetidos.
zada, da qual os quilombos constituem A nova escravidão, introduzida com o
a mais relevante manifestação em todo mercantilismo, constituía a base, o es-
o continente.
teio de todo um modo de produção que
Reza a história que os primeiros se estava implantando no Novo Mun-
africanos chegaram ao Brasil já nas do. Desse modo, toda a economia de
décadas iniciais da colonização portu- Pernambuco – como, de resto, de toda
guesa, trazidos para as lavouras de cana a Colônia – dependia da exploração da
de açúcar que começavam a pontilhar mão de obra africana. Isso, se por um
o litoral, desde São Vicente (atual São lado produzia grande fausto e riqueza,
Paulo) até o Recife. Não se está falan- ao mesmo tempo sustentava um sistema
do, evidentemente, dos muitos africanos profundamente desigual e injusto, em
que faziam parte das tripulações dos que essa mesma riqueza se concentrava
navios exploradores europeus, tampou-
nas mãos de pouquíssimos, enquanto até
co daqueles que, segundo nos mostram
mesmo os brancos pobres sobreviviam
numerosos registros arqueológicos, esti-
em meio à fome e à miséria. Afinal, a
veram na futura América muito antes de
região sequer produzia alimentos para
Colombo. Falamos somente dos que fo-
sua população, apenas cana de açúcar
ram arrancados à força de sua terra natal
para atender à demanda externa. Os ri-
e trazidos para uma terra estranha, sob o
cos não se importavam com isso, uma
jugo do crudelíssimo imperialismo por-
vez que consumiam alimentos importa-
tuguês. É significativo, portanto, que já
dos de Portugal e de outras colônias. O
em princípios do século XVI um desta-
camento do Exército colonial português descaso que manifestavam quanto à sor-
tenha descoberto na região que chama- te de seus compatriotas – para não falar
ram de Palmares, na Serra da Barriga, dos africanos, aos quais sequer reconhe-
interior da Capitania de Pernambuco, ciam a humanidade – ficaria marcado na
área que hoje pertence ao Estado de Ala- mentalidade das elites brasileiras, que
goas, um agrupamento organizado de desde então se acostumaram a desprezar
negros fugidos da escravidão. Tão orga- os excluídos de qualquer origem.
nizado que conseguiu derrotar os solda- Ao primeiro contato militar com
dos portugueses, obrigados a fugir para Palmares, seguiram-se dezenas de ou-
salvar a pele. O relato por estes produzi- tros. Mais de 30, assinalam os registros
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Atuação Parlamentar
sua tradição guerreira, souberam vender vieram a ser conhecidas como Revoltas
caro a derrota. Foram necessárias mui- dos Malês, assim como motivou a cha-
tas investidas, e algumas derrotas, para mada Revolta dos Búzios, ou Conjura-
que o exército de Domingos Jorge Velho ção Baiana, movimento popular, a ferro
conseguisse penetrar no quilombo do e fogo reprimido, que – diferentemente
Macaco, maior e mais importante mo- da Conjuração Mineira – associava as
cambo, impregnando o solo da serra de bandeiras da independência e da aboli-
sangue africano. Era setembro de 1694. ção da escravatura.
Zumbi, contudo, não fora captu- Hoje, 303 anos transcorridos des-
rado. Junto com um punhado de seus de o assassinato de Zumbi, os descen-
homens, embrenhara-se no mato, em dentes de africanos no Brasil continu-
refúgio seguro, buscando recobrar as am subjugados por um sistema que os
forças, reorganizar-se e contra-atacar. oprime, humilha e exclui. Ainda esta
E talvez conseguisse fazê-lo, não fosse semana, a Folha de São Paulo publica-
um capricho da sorte. Um ano depois, va reportagem, baseada em dados do
em setembro de 1695, o mulato Antônio IBGE, mostrando, entre outros índices
Soares, que chefiava um destacamento de desigualdade racial, que a mortalida-
de Zumbi, foi capturado e, submetido às de infantil é muito maior para negros do
mais cruéis torturas, obrigado a trair seu que para brancos no Brasil. Isso, infe-
chefe, escondido numa garganta próxi- lizmente, apenas reitera e quantifica as
ma à cachoeira do rio Paraíbas, na Serra denúncias do Movimento Negro – en-
dos Dois Irmãos. A brava resistência foi grossadas nos últimos anos pelos mais
inútil diante de um inimigo muito su- renomados organismos internacionais,
perior em número e armas. A 20 de no- como a ONU e a OEA – que apontam
vembro de 1695, Zumbi dos Palmares este País como um dos campeões do
foi decapitado e esquartejado, num ri- racismo e da discriminação em nível
tual sangrento característico da civiliza- mundial. Muito longe, como se vê, da
ção que os portugueses implantaram nos fantasiosa imagem, construída durante
trópicos, cujas memórias se reavivam a décadas por ideólogos oficiais – todos
cada chacina policial de nossos dias. brancos –, que pintavam o Brasil nas
A derrota de Palmares não foi, cores triunfalistas de uma “democracia
porém, o fim dos quilombos, que se racial”.
multiplicaram como cogumelos por to- O trabalho de denúncia e cons-
das as regiões do Brasil, onde quer que cientização realizado pelo Movimento
houvesse negros em número suficiente Negro tem tido eco neste Congresso,
para se organizar e lutar por sua liber- graças à atuação de uns poucos parla-
dade. O mesmo espírito dos quilombos mentares negros – dentre os quais tenho
esteve presente também nas várias in- a honra de me incluir – cuja atuação re-
surreições ocorridas na Bahia, lidera- vela seu compromisso com a causa de
das por africanos de origem nagô, que Zumbi. No meu caso, trata-se esse de
Pronunciamentos
Homenagem a Zumbi dos Palmares 83
de 1997, que inscreve – ao lado de Tira- Sousa de Monografia, que acabou apro-
dentes e Zumbi – os nomes de João de vado. Tratava-se, aqui, de homenagear
Deus do Nascimento, Manuel Faustino aquele que muitos consideram um dos
dos Santos Lira, Luís Gonzaga das Vir- maiores nomes da poesia simbolista
gens e Lucas Dantas Torres, líderes da universal, cuja biografia constitui um
Conjuração Baiana de 1798, no “Livro exemplo do gênio e da determinação
dos Heróis da Pátria”. Revolução articu- dos afro-brasileiros em sua luta contra
lada nas ruas, entre escravos e libertos, o preconceito e a discriminação. Insti-
soldados e artífices, o movimento baia- tuído nas categorias geral e estudante,
no de 1798 teve o objetivo de propiciar o Prêmio Cruz e Sousa de Monografia
aos homens do povo acesso aos postos obteve pleno êxito, atraindo uma parti-
de trabalho que lhes eram negados por cipação numerosa e qualificada.
mero preconceito de cor. Em última Ao apresentar essas iniciativas
instância, os revolucionários baianos
no Senado, não tive a pretensão de ser
lutaram pela emancipação dos escravos,
original, nem me travesti com as rou-
perseguindo o ideal da instalação de
pagens de um iluminado. Ao contrário,
um governo que não fizesse distinção
nelas utilizei o acúmulo de experiên-
de raça entre os cidadãos. Sentencia-
cias pessoais e coletivas propiciado por
dos com a pena de morte, os líderes do
uma militância de quase sete décadas
movimento foram executados e tiveram
em que tive a oportunidade de travar
seus corpos esquartejados. Como Tira-
contato com as pessoas e as obras de
dentes, e também como Zumbi, foram
grande parte dos intelectuais e ativistas
marcados para o sacrifício, como forma
da causa negra na África e na Diáspo-
de aplacar a fúria da Coroa portuguesa,
ra. Prefiro, desse modo, ser considerado
e demonstraram a bravura dos mártires.
O propósito dessa iniciativa é, pois, re- um veículo, um cavalo dos nossos ori-
parar uma imensa injustiça histórica, xás na tarefa de manter acesa a chama e
promovendo o justo resgate, para a cena com ela iluminar novos caminhos para
brasileira, de um importante episódio da a redenção de nosso povo. Assim, neste
história nacional, no justo momento em momento em que se aproxima o fim de
que ele comemora 200 anos. Com pare- meu mandato, quero deixar registrada a
cer favorável do ilustre Senador Lúcio prestação de contas deste filho de Zum-
Alcântara, esse projeto de lei ainda tra- bi, na certeza de ter envidado o melhor
mita nesta Casa. de meus esforços e concentrado o que
me resta de energias no propósito de
Além dos supracitados projetos
concretizar os generosos ideais de nosso
de lei, apresentei em parceria com o ilus-
herói maior.
tre Senador Esperidião Amin, Projeto de
Resolução instituindo o Prêmio Cruz e Axé, Zumbi!
Pronunciamento feito na Câmara
dos Deputados, Sessão de 13 de no-
vembro de 1985.
Dia Nacional da Senhor Presidente,
Consciência Negra, Senhores Deputados,
política. Como parte deste pronuncia- tronco familiar africano. A não ser em
mento, lerei um texto sobre o assunto, função de recente interesse do expan-
que elaborei por ocasião do Segundo sionismo industrial manipulado pela
Congresso de Cultura Negra das Amé- elite econômica, o Brasil, como nor-
ricas, realizado no Panamá em 1980, ma tradicional, ignorou o continente
e publicado no Brasil no meu livro O africano. Voltou suas costas à África
quilombismo: documentos de uma mi- logo que não conseguiu mais burlar a
litância pan-africana (Petrópolis: Vo- proibição do comércio de carne afri-
zes, 1980). cana imposta pela Inglaterra, por volta
de 1850. A imigração massiva de eu-
ropeus, subsidiada pelos cofres públi-
O QUILOMBISMO: UMA
cos, ocorrida daquela data em diante,
ALTERNATIVA POLÍTICA AFRO-
fundamentou-se não só na intenção das
-BRASILEIRA
classes dominantes em tornar a popu-
lação do País cada vez mais branca,
Memória: a antiguidade do sa- como também no propósito de erradi-
ber negro-africano car da mente e do afeto dos descen-
dentes de escravos a imagem da África
como lembrança positiva de nação, de
É urgente a necessidade de o ne- pátria, de terra nativa. Por isso, no sis-
gro brasileiro recuperar sua memória, tema educativo brasileiro, nunca houve
sistematicamente agredida pela estrutu- qualquer disciplina ensinando apreço,
ra de dominação ocidental-europeia há interesse ou respeito às culturas, ar-
quase 500 anos. Um processo análogo tes, línguas, religiões, sistemas políti-
se registra com a história dos africanos cos, econômicos ou sociais de origem
no continente e de seus descendentes es- africana. E o próprio contato direto
palhados pelas Américas. do afro-brasileiro com seus irmãos no
A memória dos afro-brasileiros, continente e na diáspora foi continua-
ao contrário do que afirmam certos his- mente impedido ou dificultado entre
toriadores convencionais de visão curta outros obstáculos, pela negação de
e superficial entendimento, não se ini- meios econômicos que lhe permitissem
cia com o tráfico negreiro nem nos pri- viajar para fora do País. Entretanto ne-
mórdios da escravização dos africanos nhum empecilho teve o poder de obli-
no século XV. Em nosso País, a elite terar completamente de nosso espírito e
dominante sempre desenvolveu esfor- da nossa lembrança a presença viva da
ços para evitar ou impedir que o negro mãe África.
brasileiro, após a chamada abolição da As estratégias e os expedientes
escravatura (1888), pudesse identifi- utilizados contra a memória do negro
car-se e ativamente assumir suas raízes africano ultimamente vêm sofrendo
étnicas, históricas e culturais, com essa profunda erosão e irreparável descré-
operação tentando seccioná-Io do seu dito. Esse fato se deve à dedicação e
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 93
vedor insolvente, esse mundo negro logos ocidentais. Ele demonstra que,
é o próprio iniciador da civilização após a campanha militar de Bonaparte
“ocidental” ostentada hoje dian- no Egito, em 1799, e a decifração dos
te dos nossos olhos. A matemática hieróglifos da Pedra Rosetta por Cham-
pitagórica, a teoria dos quatro ele- pollion, o jovem, em 1822, os egiptó-
mentos de Tales de Mileto, o ma- logos se desarticularam atônitos diante
terialismo epicureano, o idealismo da grandiosidade das descobertas reve-
platônico, o judaísmo, o islamismo ladas.
e a ciência moderna estão enraiza-
dos na cosmogonia e nas ciências Eles geralmente a reconhece-
egípcias. Só temos de meditar sobre ram como a mais antiga civilização,
Osíris, o deus redentor, que se sa- a que tinha engendrado todas as
outras. Mas o imperialismo sendo
crifica, morre e é ressuscitado, uma
o que é, se tornou crescentemente
figura essencialmente identificável
“inadmissível” continuar aceitando
a Cristo.
a teoria evidente até então: de um
(1974:XIV) Egito negro. O nascimento da egip-
As afirmações de Diop se ba- tologia foi assim marcado pela ne-
seiam em rigorosa pesquisa, derruindo cessidade de destruir a memória de
as estruturas supostamente definitivas um Egito negro, a qualquer custo,
do conhecimento “universal” a respeito em todas as mentes. Daí em diante,
da antiguidade egípcia e grega. Gostem o denominador comum de todas as
ou não gostem, os ocidentais têm de tra- teses dos egiptólogos, sua relação
gar verdades como esta: íntima e profunda afinidade, pode
ser caracterizado como uma ten-
(...) quatro séculos antes da tativa desesperada de refutar essa
publicação de A mentalidade pri- opinião [de um Egito negro]. Quase
mitiva, de Levy-Bruhl, a África ne- todos os egiptólogos enfatizaram
gra muçulmana comentava a lógica sua falsidade como uma questão
formal de Aristóteles (a qual ele fechada.
plagiou do Egito negro) e era espe-
(1974: 45)
cialista em dialética.
( Diop 1963:212) A pretensão eurocentrista nesse
episódio se expõe de corpo inteiro: os
E, não esqueçamos, isso aconte- egiptólogos prosseguiram obstinada-
cia quase 500 anos antes do nascimento mente no vão esforço de provar “cien-
de Hegel ou Marx... tificamente” uma origem branca para a
Diop revolve toda a mistificação antiga civilização do Egito negro. Por
que transformou um Egito fundamen- mais precária que fosse a base dessas
talmente negro em país branco, por teorias nos fatos históricos, elas eram
artes da magia europeia dos egiptó- aceitas pelo mundo “civilizado” como
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 95
dígenas americanos que pré-data, com deste País. A despeito dessa realidade
uma anterioridade de vários séculos, o histórica, entretanto, os africanos e seus
tráfico negreiro estabelecido pelos euro- descendentes nunca foram e não são tra-
peus. A base histórica para a solidarie- tados como iguais pelos segmentos mi-
dade entre os povos originais de ambos noritários brancos que complementam o
os continentes foi muito mais profunda quadro demográfico nacional e que têm
e autêntica do que tem sido geralmente mantido a exclusividade do poder, do
reconhecido. Assim sendo, se o quilom- bem estar e da renda nacional.
bismo busca no presente o futuro, e atua Porções significativas da popu-
por um mundo melhor para os africanos lação brasileira de origem europeia co-
nas Américas, ele reconhece e proclama meçaram a chegar ao Brasil nos fins do
que sua luta não pode separar-se da li- século passado como imigrantes pobres
bertação dos povos indígenas destas ter- e necessitados. Imediatamente, passa-
ras, que foram e são igualmente vítimas ram a desfrutar de privilégios que a so-
do racismo e da destruição desumana ciedade dominante, essencialmente ra-
introduzida pelos europeus. cista, lhes concedeu como parceiros de
raça e do supremacismo eurocentrista.
Consciência negra e sentimento
Tais imigrantes não demostraram nem
quilombista
escrúpulo nem dificuldades em assumir
os preconceitos raciais vigentes aqui e
Numa perspectiva mais restrita, a
na Europa contra o negro africano, se
memória do negro brasileiro atinge uma
beneficiando deles e preenchendo as
etapa histórica decisiva no período es-
vagas no mercado de trabalho que se
cravocrata iniciado de forma sistemática
negavam aos ex-escravos e seus descen-
por volta de 1500, logo após a chamada
“descoberta” do território e o início da dentes. Estes foram literalmente expul-
colonização do País. Excetuando os ín- sos do sistema de trabalho “livre” e da
dios, progressivamente exterminados, o estrutura de produção à medida que se
africano escravizado foi o primeiro e o aproximava a data “abolicionista” de 13
único trabalhador, durante três séculos de maio de 1888.
e meio, a erguer as estruturas econômi- Levando-se em conta a condição
cas deste gigante chamado Brasil. Creio atual do negro à margem do sistema em-
ser dispensável evocar neste instante o pregatício ou degradado no semi-empre-
chão regado pelo suor do africano, os go e no subemprego; tendo-se em vista
canaviais, os algodoais, a mineração a segregação residencial urbana que lhe
de ouro, diamante e prata, os cafezais é imposta pelo duplo motivo de raça e
e todos os demais elementos formado- pobreza, destinando-lhe como áreas de
res da economia nacional, nutridos do moradia os guetos de várias denomina-
sangue martirizado do escravo. Longe ções: favelas, mocambos, porões, ala-
de ser um arrivista ou um corpo estra- gados, invasões, vilas e/ou conjuntos
nho, o negro é o próprio corpo e alma populares ou “residenciais”; conside-
98 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
sumanização. Prova-se dessa forma que as suas mentiras, a sua ideologia de su-
a ciência europeia e/ou euro-brasileira premacismo europeu, a lavagem cere-
não é apropriada para o povo negro. bral com que pretendia roubar a nossa
Uma ciência histórica que não serve às humanidade, a nossa identidade, a nos-
necessidades históricas do povo ao qual sa dignidade, liberdade e autoestima.
se refere nega-se a si mesma. Proclamando a falência da colonização
Como poderiam as chamadas mental eurocentrista, celebramos o ad-
ciências humanas (etnologia, econo- vento da libertação quilombista.
mia, história, antropologia, sociologia,
Nós, os negros brasileiros, te-
psicologia etc) nascidas, cultivadas e
mos como projeto coletivo a ereção de
definidas por e para povos e contextos
uma sociedade fundada na justiça, na
socioeconômicos diferentes, prestar útil
igualdade e no respeito a todos os seres
colaboração ao povo negro-africano,
em sua realização existencial, em seus humanos; uma sociedade fundada na li-
problemas, aspirações e projetos? Se- berdade, cuja natureza intrínseca torne
ria a ciência social elaborada na Euro- impossível a exploração e o racismo.
pa ou nos Estados Unidos tão universal Uma democracia autêntica, erigida pe-
em sua aplicação? A raça negra conhe- los destituídos e deserdados deste País.
ce na própria carne a falaciosidade do Não nos interessa a restauração de for-
“universalismo” e da “isenção” dessa mas caducas de instituições políticas,
“ciência” eurocentrista. Aliás, a ideia de sociais e econômicas; isso serviria uni-
uma ciência histórica pura e universal camente para procrastinar o advento
está ultrapassada, até mesmo nos círcu- de nossa emancipação total, que exige
los científicos responsáveis europeus ou a transformação radical das estruturas
norte-americanos. O conhecimento de vigentes. Não nos interessa a proposta
que os negros necessitam é aquele capaz de uma adaptação aos moldes da socie-
de ajudá-los a formular teoricamente _ dade capitalista e de classes. Confiamos
de forma sistemática e consistente _ sua na idoneidade mental do povo negro e
experiência de cinco séculos de opres-
acreditamos na reinvenção de nós mes-
são, resistência e luta criativa. Haverá
mos e de nossa história. Reinvenção
erros e equívocos inevitáveis em nossa
de um caminho afro-brasileiro de vida
busca de sistematização dos nossos va-
fundado em sua experiência histórica,
lores, em nosso esforço de autodefini-
ção e autogoverno rumo aos caminhos na utilização do conhecimento crítico e
do futuro. Não importa. Durante séculos inventivo de nossas próprias instituições
temos carregado o peso dos crimes e dos socioeconômicas, golpeadas pelo colo-
erros do eurocentrismo “científico”, os nialismo e o racismo. Enfim, reconstruir
seus dogmas impostos sobre nós como no presente uma sociedade dirigida ao
marcas ígneas da verdade definitiva. futuro, mas levando em conta aquilo
Agora devolvemos ao obstinado seg- que ainda for útil e positivo no acervo
mento “branco” da sociedade brasileira do nosso passado.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 105
fazer alianças com outras forças políti- g) Garantir à nossa gente o seu
cas. Toda aliança deve obedecer a um lugar na hierarquia de poder e decisão,
propósito tático ou estratégico, e o ne- mantendo sua integridade etnocultural,
gro precisa ter poder de decisão, a fim é a motivação básica do quilombismo.
de não permitir que nosso povo seja ma- h) Humilhados que fomos e so-
nipulado por interesses estranhos à sua mos todos nós, negro-africanos, com
causa própria. todos eles devemos manter íntimo con-
d) Devemos ampliar sempre nossa tato e relação. Assim também com as
frente de luta, tendo em vista: 1. o obje- organizações africanas independentes,
tivo de longo alcance da transformação tanto da diáspora quanto do continente,
radicaI das estruturas socioeconômicas desenvolvendo instrumentos de aliança
e culturais da sociedade brasileira; 2. os e solidariedade. Ao mesmo tempo, de-
alvos táticos imediatos. Nessa categoria senvolver relações estreitas com a ONU
se incluem ampla campanha de registro e seus órgãos engajados no combate ao
do analfabeto para votar e a anistia aos racismo.
prisioneiros políticos negros. Desde a i) Infalível como um fenômeno
proclamação da República, em 1889, da natureza será a perseguição do poder
tem-se negado o direito de voto ao anal- branco ao quilombismo. Está na lógica
fabeto como meio de excluir o negro inflexível do racismo brasileiro jamais
do processo político do País. Agora que permitir a existência de qualquer movi-
finalmente se estabeleceu esse direito, mento político-libertário dos negros, a
precisamos organizar nossa gente para força popular majoritária.
votar. Os prisioneiros políticos negros j) Jamais as organizações polí-
são maliciosamente fichados pela polí- ticas afro-brasileiras devem permitir o
cia como desocupados, vadios, malan- acesso a brancos ou negros não quilom-
dros, marginais, e seus lares frequente- bistas a posição de poder e com autori-
mente invadidos. Uma vez fichados na dade para obstruir a ação ou influenciar
polícia, esses cidadãos afro-brasileiros os posicionamentos teóricos e práticos
ficam à mercê de toda e qualquer arbi- em face da luta.
trariedade policial. k) Kimbundo, língua do povo ban-
e) Ewe ou Gêge, povo africano to, chegou ao Brasil com os escravos de
de Gana, Togo e Daomé (Benim), de Angola, Congo e Zaire, principalmente.
onde vieram milhões de africanos es- Essa língua exerceu notável influência
cravizados para o Brasil. Os Ewes são sobre o português falado no País.
parte do nosso povo e de nossa herança l) Livrar o Brasil dessa industria-
afro-brasileira. lização artificial, tipo “milagre econô-
f) Formar os quadros do quilom- mico”, está nas metas do quilombismo.
bismo é fundamental, isso significando Nesse esquema o negro é explorado ao
a mobilização e a organização do povo mesmo tempo pelo capitalista e pela
negro. classe trabalhadora “qualificada”. O ne-
108 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
privilégios raciais vêm sendo conferi- nhecido na história dos seres humanos.
dos ao branco em detrimento do negro O racismo é a primeira contradição que
desde o mundo antigo. A luta “única” o negro enfrenta na moderna sociedade
ou “unida” que pregam não consegue industrial multiétnica. A essa contradi-
ocultar o desprezo que nos votam, não ção se juntam outras, como a de classe
respeitando nossa identidade nem a es- e de sexo.
pecificidade da nossa luta e da opressão s) Swahili é uma língua de origem
que nos atinge. banto, influenciada por outros idiomas,
r) Raça: acreditamos que todos especialmente o árabe. Atualmente é fa-
os seres humanos pertencem à mesma lada por mais de 20 milhões de africa-
espécie. Para o quilombismo, raça sig- nos da Tanzânia, do Quênia, de Uganda,
nifica um grupo humano que possui em do Burundi, do Zaire etc. O swahili tem
comum não somente algumas caracte- sido escolhido em várias reuniões in-
rísticas somáticas, mas sobretudo um ternacionais de professores e escritores
complexo de fatores históricos, cultu- como a língua franca internacional afri-
rais e ambientais. cana, meio de transcender as barreiras
Tanto a aparência física como os coloniais criadas pelo uso do francês, do
traços psicológicos, de personalidade, inglês, do português, do espanhol, entre
de caráter e emotividade sofrem a influ- os povos africanos. Os afro-brasileiros
ência da cultura, da sociedade, da gené- necessitam aprender o swahili com ur-
tica, do meio geográfico e da história, gência.
que se somam e se complementam. O
t) Todo negro ou mulato (afro-
cruzamento de grupos raciais diferentes
-brasileiro) que aceita a “democracia
e/ou de pessoas de identidades raciais
diversas está na linha dos mais legítimos racial” como uma realidade e consi-
e nobres interesses de sobrevivência da dera positiva a miscigenação na forma
espécie humana. vigente, isto é, uma compulsão social
branqueadora ditada pela sociedade do-
Racismo: é a crença na inerente
minante, está traindo a si mesmo e se
superioridade de uma raça sobre outra.
considerando inferior.
Tal superioridade é concebida em ter-
mos biológicos e na dimensão psico- u) Unanimidade é algo impos-
-sócio-cultural. Esse é um aspecto nor- sível na dinâmica social e política. Por
malmente negligenciado ou omitido nas isso não devemos perder tempo e ener-
definições tradicionais do racismo, que gia com as críticas vindas de fora do
focalizam a cor epidérmica. A elabora- movimento quilombista. A dialética do
ção teórico-científica produzida pela nosso progresso aconselha que desen-
cultura europeia justificando a escravi- volvamos uma construtiva autocrítica
zação, desumanização e inferiorização para ampliar nossa consciência quilom-
dos povos africanos constitui um nível bista rumo ao objetivo final: a ascensão
de racismo depravado e cruel jamais co- do povo afro-brasileiro ao poder
110 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
ados deverá ser ocupada por mulheres, o trabalho do Comitê para a Eliminação
como norma constitucional. O mesmo da Discriminação Racial, órgão das Na-
se aplica a todo e qualquer setor ou ins- ções Unidas.
tituição privada ou de serviço público.
13. O quilombismo considera a Semana da Memória Afro-Brasileira
transformação das relações de produção
e da sociedade de modo geral, por meios Em 1980, ao formular a proposta
não violentos e democráticos, uma via política do quilombismo, e no intuito de
possível. atender à urgente necessidade do negro
de recuperar sua memória histórica, su-
14. É matéria urgente para o qui-
geri à comunidade negra a instituição de
lombismo a organização de uma insti- uma Semana da Memória Afro-Brasilei-
tuição econômico-financeira em moldes ra. Nela seriam focalizados os fatos his-
cooperativos, capaz de assegurar a ma- tóricos que tiveram como protagonistas
nutenção e a expansão da luta quilom- os 300 milhões de africanos retirados,
bista a salvo das interferências contro- sob violência hedionda, de suas terras e
ladoras do paternalismo ou das pressões trazidos acorrentados para o continente
do poder econômico. das Américas. Por intermédio dessas ce-
15. Basicamente, o quilombismo lebrações anuais, a comunidade negra
é um defensor da existência humana e não só honraria os seus antepassados
como tal ele se coloca contra a poluição como reforçaria a sua própria coesão e
ambiental e favorece todas as formas de identidade, transmitindo às novas gera-
melhoramento do meio ambiente que ções um exemplo de amor à nossa histó-
possam assegurar uma vida saudável ria e uma percepção mais clara do papel
para as crianças, os adultos, os animais, fundamental desempenhado pelos es-
as criaturas do mar, as plantas, as selvas, cravos africanos na construção do nosso
as pedras e todas as manifestações da País. A Semana da Memória Afro-Brasi-
natureza. leira infundiria aos jovens um merecido
16. O Brasil é signatário da Con- autorrespeito coletivo, substituindo o
venção Internacional para a Eliminação sentimento de vergonha e frustração que
de Todas as Formas de Discriminação a sociedade dominante instila na cons-
Racial, adotada pela Assembleia Geral ciência dos negros como única herança
das Nações Unidas em 1965. No sentido deixada por seus ancestrais.
de cooperar para a concretização de ob- Segundo a proposta feita em
jetivos tão elevados e generosos, e ten- 1980, a Semana deve aliar aos aspectos
do em vista o art. 9o, parágrafos 1o e 2o celebrativos o exercício de uma cons-
da referida Convenção, o quilombismo tante pesquisa, crítica e reflexão sobre
con1ribuirá para a pesquisa e a elabora- o passado e o presente da população de
ção de um relatório bianual, abrangendo origem africana no Brasil. Isso contri-
todos os fatos relativos à discriminação buirá para ampliar e fortalecer o quilom-
racial ocorridos no País, afim de auxiliar bismo em sua filosofia teórica e prática.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 113
braremos mais uma vez o Dia Nacional Brasil. Axé, Brasil. Axé, Zumbi! (Pal-
da Consciência Negra, no próprio local mas.)
de sua origem histórica, com a feliz di-
mensão adicional de seu histórico tom- Sala das Sessões, 13 de novembro de
bamento como Patrimônio Nacional do 1985.
Pronunciamento feito no Senado Fe-
deral, Sessão de 14 de novembro de
A luta afro- 1991.
Senhores e Senhoras:
e políticas, que lecionou e trabalhou nos saudosa mãe Georgina Ferreira do Nas-
Estados Unidos e na África, ainda que cimento, digna de todo o alto rigor da
exilado e perseguido. Ocupa esta tribu- tradição africana relativa à figura mater-
na um afro-brasileiro, um homem co- na. Foi ela quem me iniciou no trabalho
mum, consciente de sua origem africana como entregador de doces e me mostrou
e que jamais abdicou dos seus direitos o caminho do estudo como instrumento
de cidadão brasileiro. de defesa intransigente da justiça para
Fala aqui, Senhor Presidente, todos. Meu pai, José Ferreira Nasci-
um sobrevivente do maior holocausto mento, sapateiro de Franca, cujos filhos
já vivido por um povo na História da andavam descalços, ensinou-nos a ho-
Humanidade: mais de 200 milhões de nestidade e a humildade como virtudes
assassinatos entre os portos de embar- de autoestima, ao mesmo tempo em que
que na África, os porões dos navios ne- cultivava na música a doçura de uma
greiros e as Américas. São quinhentos vida simples, difícil e dura, mas trans-
anos de escravidão no Brasil, escravi- bordante de carinho e calor humano.
dão que ainda perdura nas formas ver-
Tributo a Doutel de Andrade
gonhosas da opressão, da humilhação
e da discriminação racial. Estão ouvin-
No contexto desta tradicional
do, senhores senadores, um filho desse
evocação dos ancestrais, presto ainda
povo heróico construtor de civilizações
uma homenagem muito especial à figu-
milenares, que veio acorrentado para as
ra singular, inteiriça e honrada do depu-
terras “recém-descobertas” das Améri-
tado e líder do PDT na Câmara Federal,
cas. E é em nome dele que estou aqui
Doutel de Andrade, que há pouco nos
neste momento. Evoco aqueles que me deixou. Cofundador e líder do antigo
antecederam nesta luta que me traz hoje PTB, foi o infatigável e precioso colabo-
a esta tribuna: na pessoa de Zumbi dos rador do Governador Leonel Brizola na
Palmares, rendo minhas homenagens a construção do nosso PDT, desde os tem-
todos os africanos e afro-brasileiros que pos do exílio. Na presidência nacional
batalham e batalharam por amor a seu do Partido, foi Doutel um dos grandes
povo e ao Brasil, seguindo a longa tra- responsáveis no fazer do PDT o legíti-
dição africana que remonta à linha das mo representante do socialismo demo-
rainhas-mães e guerreiras Kentake da crático do Brasil, integrante também do
antiga Núbia, Yaa Asaantewa de Gana mais avançado fórum político do mundo
e Nzinga de Angola, chegando ao Bra- contemporâneo, a Internacional Socia-
sil nas pessoas de Dandara, Aqualtune e lista. Quando faleceu, na condição de
Luísa Mahin. Axé Babá! primeiro suplente de senador, nos dei-
Em segundo lugar, mais que um xou um vazio impreenchível com a per-
tributo, uma incontida palavra de sauda- da de sua personalidade magnética e do
de e de respeito aos meus pais, ambos fi- brilho de sua aguda inteligência. Hoje,
lhos de africanos escravizados. À minha aqui, deveria estar esse político e figura
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 117
res que passaram por esta Casa. Retra- bens semoventes, considerando-a uma
tistas, pintores e fotógrafos, por ordem “doutrina absurda e execrável”.
dos senadores ou de seus familiares, ou O carioca Francisco Otaviano de
mesmo por moto-próprio, falsificaram, Almeida Rosa, escritor, poeta e diplo-
europeizaram fisionomias, criaram ca- mata, foram abolicionista militante, in-
beleiras, procurando esconder o “estig- fluindo decisivamente na aprovação dos
ma” africano dos retratados, da mesma projetos de Lei do Ventre Livre, dos Se-
forma que outros fizeram aos papas afri- xagenários e da Lei Áurea. Foi cogno-
canos São Vitor I, Miltíades e Gelásio I, minado “A Pena de Ouro” da imprensa
e aos inúmeros faraós do Egito antigo. brasileira.
Para fazer jus aos senadores Outros senadores afro-brasileiros
afro-brasileiros que me antecederam, daquela época mostraram-se ambíguos
é preciso destacar aqueles que, mesmo ou francamente contrários à abolição. É
escondendo a sua identidade de origem, o caso do baiano Zacarias de Góis e Vas-
lutaram pelo fim do abominável regi- concelos, por exemplo. Foi presidente
me de escravidão no Brasil. O primei- de várias províncias, diversas vezes mi-
ro dos senadores de sangue africano, nistro de Estado, presidente do Gabine-
por exemplo, foi o baiano Francisco Gê te do Império, deputado e senador pelo
Acaiaba de Montezuma, Visconde de Partido Liberal por 13 anos. Embora
Jequitinhonha, constituinte de 1823 e negro e abolicionista, por questão mera-
senador por 19 anos. Um dos primeiros mente partidária, ele combateu o projeto
parlamentares a condenar a importação da Lei do Ventre Livre.
de africanos escravizados, ele propôs o Francisco Glicério Cerqueira
fim do tráfico negreiro, independente Leite, grande tribuno e propagandista
das convenções diplomáticas em vigor, da República, foi o único paulista pre-
sendo um precursor da propaganda abo- sente na conspiração da manhã de 15 de
licionista. novembro. Senador durante 13 anos, foi
capaz, num ato de vergonhosa indigni-
Por sua vez, o carioca Francisco
dade cívica durante a Convenção de Itu,
Sales Torres Homem, médico, diploma- de declarar, referindo-se à crescente,
ta e advogado, conselheiro e ministro da campanha abolicionista: “Nosso objeti-
Coroa, presidente do Banco do Brasil, vo é fundar a República, fato político,
deputado e senador por seis anos, era não libertar os escravos, fato social”.
filho de uma quitandeira negra. Desta
tribuna, Torres Homem condenou a es- Os evadidos da “Bodorrada”
cravidão como sistema desumano, inju-
rídico e anticristão. Durante a discussão O baiano João Maurício Wander-
da Lei do Ventre Livre, demoliu a argu- ley, Barão de Cotegipe, além de pre-
mentação dos escravagistas sobre a pro- sidir o Banco do Brasil e o Conselho
priedade dos africanos na condição de de Ministros, foi senador por 33 anos,
120 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
goano Deodoro da Fonseca, era filho de ve com “um homem simples, de tez pig-
uma afro-brasileira, Rosa da Fonseca. mentada”. Um terceiro fala do “menino
O paulista Francisco de Paula pobre do Morro do Coco”. Certa vez,
Rodrigues Alves, promotor público, três Senhor Presidente, planejei escrever
vezes governador de São Paulo, ministro um livro sobre os grandes africanos que
da República e conselheiro do Império, ajudaram a construir este País e procurei
duas vezes eleito presidente da Repú- um descendente de Nilo Peçanha. Re-
blica, não cumpriu o segundo mandato sultado: fui repreendido por esse mem-
por motivo de doença. Foi eleito três ve- bro da família, que não admitia sequer
a mestiçagem do “menino do Morro do
zes senador da República e esteve nes-
Coco”, considerando tal versão uma in-
ta Casa por seis anos. Os biógrafos de
fâmia.
Rodrigues Alves se penduram na nacio-
nalidade portuguesa, “minhota”, do seu A atitude desse familiar de Nilo
pai, para ignorar sua negritude, à qual se não é de estranhar, quando considera-
referem eufemisticamente como “more- mos que ele viveu uma época, não tão
nice”, legado de sua mãe afro-brasileira, remota, em que a intelectualidade e a
Isabel Perpétua, conhecida como “Nhá liderança política do País cultivavam
Bela”. uma preocupação constante, beirando a
histeria, com a suposta inferioridade da
Severino dos Santos Vieira, pro- nossa população “mestiça”, tingida pela
motor público, deputado, ministro de “mancha negra” do sangue africano “in-
Estado, foi outro senador de ascendên- fectado”. Após a abolição, horrorizados
cia africana no início da República. Re- com o espectro da maioria africana que
presentou a Bahia nesta Casa por nove naquele momento ganhava, juridica-
anos. mente, a cidadania, trataram de cassar o
voto desse segmento por meio da restri-
O embranquecimento “científico” ção do analfabetismo e de embranquecer
o País, “limpar o sangue”. A população
O fluminense Nilo Procópio Pe- brasileira precisava “fortalecer-se com a
çanha, Deputado Constituinte em 1890 ajuda dos valores mais altos das raças
e Deputado Federal, governou o Estado europeias”, segundo Arthur de Gobi-
do Rio de Janeiro por dois períodos e neau. Desde Sylvio Romero e Oliveira
recebeu três mandatos de senador. Foi Vianna até Joaquim Nabuco, todos con-
vice-presidente da República e, com o cordavam em que a massiva imigração
falecimento de Afonso Pena, assumiu europeia e a política da mestiçagem so-
a presidência, sendo o quarto cidadão a cialmente compulsória iriam, na expres-
fazê-lo sem se assumir afro-brasileiro. são deste último, “contribuir para elevar
Brígido Tinoco, numa literária e afetu- o teor ariano do nosso sangue”. José Ve-
osa biografia, saúda o seu nascimento ríssimo exultou: “A mistura de raças é
com a constatação: “moreninho como o facilitada pela prevalência do elemento
pai”. Outro perfilador de Nilo o descre- superior. Por isso mesmo, mais cedo ou
122 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
mais tarde, ela vai eliminar a raça negra Outro baiano de sangue africano
daqui”. João Pandiá Calógeras declara- foi senador na década de sessenta: An-
va por volta de 1930: “A mancha negra tonio Balbino de Carvalho Filho, gover-
tende a desaparecer num tempo relati- nador da Bahia, ministro de Estado. O
vamente curto em virtude do influxo da cearense Valdon Varjão assumiu uma
imigração branca em que a herança de vaga no Senado por Mato Grosso na le-
Cam se dissolve”. A maior preocupação gislatura de 1975 a 1983, devendo ainda
era o tempo que levaria para eliminar de ser mencionados outros dois cearenses
nosso meio o elemento africano: cem afro-brasileiros no Senado: Manuel do
anos, duzentos, trezentos? O delegado Nascimento Fernandes Távora e seu
brasileiro ao Congresso Universal de filho Virgílio Távora. A médica baiana
Raças declarou em Londres, em 1911, Laélia Angra Contreiras de Alcântara
que até o final deste século lograríamos representou o Estado do Acre nesta Casa
acabar de uma vez com o sangue infec- por mais de três anos a partir de 1982.
tado.
Felizmente, o 21o senador afro-
A teoria da inferioridade africana -brasileiro desta leitura étnico-política
“cientificamente comprovada” perme-
que faço da história desta Câmara ainda
ava as bases da formação política das
está entre nós: trata-se do meu compa-
nossas elites a tal ponto que, em 1934,
nheiro de bancada, o baiano Nelson de
lideradas por Miguel Couto, entre ou-
Sousa Carneiro, dono de uma profícua
tros, inseriram no artigo 138, alínea b da
atuação parlamentar na vida política e
Constituição, aTeoria Europeia da Euge-
jurídica brasileira, com lugar nesta Casa
nia: a engenharia biológica objetivando
há cerca de vinte anos.
eliminar os tipos genéticos indesejáveis,
que foi levada às últimas consequências Seria leviano, Senhor Presidente,
na Alemanha daquela época. afirmar que nas veias do mineiro Tan-
Nesse contexto, não chega a sur- credo de Almeida Neves corria também
preender a atitude dos políticos que o nobre sangue africano? Creio que não,
escondiam sua ascendência africana, levando em consideração seus traços fi-
a exemplo do mineiro Fernando Melo sionômicos, assim como de muitos de
Viana, governador do seu Estado e seus familiares, conforme testemunha
vice-presidente da República, senador seu primo Dom Lucas Moreira Neves,
e presidente da Assembleia Nacional cardeal primaz do Brasil, arcebispo da
Constituinte de 1946. Os irmãos João Bahia, amigo íntimo de Sua Santidade
e Otávio Mangabeira, ambos senadores o Papa João Paulo lI. O idealizador da
nessa época, bem como o fluminense Nova República, sonho tragicamente
Mozart Brasileiro Pereira do Lago, re- frustrado com a sua morte, esteve por
presentante do Distrito Federal nesta três anos no Senado, antes de ser eleito
Casa de 1951 a 1955, também não fo- Governador de Minas Gerais e depois
gem à regra. Presidente da República.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 123
çada por uma competente mulher afro- Logo após a minha investi-
-brasileira, a professora Vanda Maria de dura como senador, tive a honra de
Souza Ferreira. participar da comitiva presidencial
O PDT também foi a primei- que visitou quatro países africanos.
ra agremiação política a inserir como O empenho do Presidente Fernando
prioridade programática a causa afro- Collor no sentido de integrar à comi-
-brasileira e a inaugurar um órgão es- tiva um representante da comunidade
tatutário dedicado especificamente a afro-brasileira, embora parlamentar
essa questão, liderado e organizado da oposição, demonstrou uma sensi-
pelos próprios afro-brasileiros filiados bilidade inédita nas classes dirigen-
ao partido. E nas últimas eleições o tes deste país para com os africanos
PDT elegeu, para orgulho da Nação, dentro e fora do Brasil. Nesta condi-
dois governadores de Estado assumi- ção de oposicionista, estou muito à
damente afro-brasileiros e engajados vontade para testemunhar o acerto do
à nossa causa: Alceu Collares, no Rio Governo brasileiro no decorrer dessa
Grande do Sul, e Albuíno Azeredo, no viagem.O Presidente Collor demons-
Espírito Santo. trou sincero propósito de cooperar
com Angola, Zimbábue, Moçambique
Brasil e África e Namíbia, num clima de efetiva ami-
zade, boa vontade e respeito mútuos.
Na qualidade de deputado fede- Durante o diálogo com os estadistas
ral e membro da Comissão de Relações africanos, houve momentos em que
Exteriores, dediquei grande parte do a rigidez do protocolo se quebrou, a
meu mandato ao esforço de inserir na exemplo do instante quando o Presi-
política externa do Brasil um posicio- dente de Angola, o excelentíssimo se-
namento mais adequado nas relações nhor José Eduardo dos Santos, expôs,
com a África. Lutei pelo rompimento num longo e franco relato, a situação
de relações com regime de apartheid e histórico-social do país. A tônica das
pelo reconhecimento da SWAPO e do palavras trocadas foi surpreendente,
Congresso Nacional Africano como le- pois contrariava a tradição de sober-
gítimos representantes do sofrido povo bia e superioridade diplomática que o
da Namíbia e da África do Sul. Hoje Itamaraty, com sua postura europei-
me dá enorme satisfação constatar que zada, mantinha como praxe no trato
a Namíbia conquistou, afinal, a sua in- com as naçôes africanas, cujas lutas
dependência do jugo colonial, elegendo de independência mereceram apenas
a SWAPO para o primeiro governo do um simbólico e muito tardio apoio
mais novo país africano. A imposição de brasileiro de solidariedade nos fóruns
algumas sanções à África do Sul, embo- internacionais. Eu mesmo, Senhor
ra não atingisse o âmbito essencial das Presidente, na condição de exilado
relações econômicas com o apartheid, político, perseguido pela nefanda dita-
também representou uma vitória parcial. dura militar, em minhas participações
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dente da raça brava dos africanos. E as- que, na verdade, supera – e V. Exa sa-
sim um grande contingente do povo bra- lientou isso muito bem – até a existente
sileiro, quer pela miscigenação causada na África do Sul, porque lá eles podem
aqui pelos elementos de interligação, falar – hoje bem mais -, graças aos sacri-
como também pela própria natureza da fícios de muitos mártires, que morreram,
chegada, da origem dos portugueses no graças, inclusive, à bravura, à altivez, ao
Brasil. Quero dizer que V. Exa constrói denodado espírito de Nelson Mandela.
um extraordinário monumento com o V. Exa traça, repito, um excelente dis-
seu pronunciamento, traçando um qua- curso, inaugura a sua participação nesta
dro realíssimo de como o negro é trata- Casa de uma forma brilhante. Assim, é
do no Brasil. Se buscarmos as origens com grande orgulho, como integrante
da Abolição da Escravatura, nós temos do PDT, que ouço o discurso de V. Exa
que tecer um quadro de vergonha para neste instante. Há pouco tempo, estan-
todos nós, porque, na verdade, e V. Exa do com o nosso líder, Leonel Brizola,
combate, a Lei Áurea foi um aviltamen- aqui em Brasília, conversávamos sobre
to até da questão com que se tratou, com a diplomacia africana junto ao Governo
que se versou a causa negra no Brasil. brasileiro. É uma das mais excelentes,
E o primeiro ato de reconhecimento de- pelo primor da sua inteligência, pela
correu do sangue do negro que correu, cultura que esses embaixadores têm no
que jorrou na batalha do Paraguai. Os Brasil. E cito aqui, não querendo ser in-
negros que vieram do Paraguai tiveram justo com os outros, a presença do nosso
o direito de ser libertos, o que foi um querido embaixador Romão, expressão
absurdo, não só porque se o reconheceu de cultura e de sapiência que representa
apenas pelo seu sacrifício, como não se Angola em nosso País. V. Exa portanto,
lhe deu a devida atenção. Na verdade, o Senador Abdias do Nascimento, faz,
Império foi extremamente injusto com no Senado, um extraordinário discurso
a causa negra. Joaquim Nabuco, que foi que faz com que todos nós, do PDT, nos
o grande construtor, o grande paladino, orgulhemos da sua presença em nosso
um homem da aristocracia pernambuca- partido. V. Exa é um intelectual e um ho-
na, foi, na verdade, um baluarte da causa
mem que já sofreu na carne a experiên-
negra. É dele aquele velho pensamento
cia do exílio, V. Exa é um bravo. É com
que V. Exa conhece: “Não basta libertar
muita alegria que, neste instante, digo a
os escravos, é necessário acabar com a
V. Exa que todos nós do PDT nos orgu-
causa da escravatura”. O que V. Exa tra-
lhamos da presença desse negro, desse
ça no seu discurso é exatamente a repro-
negro paulista, que fez nome no Brasil
dução desse ditado, desse aforisma ver-
inteiro e no mundo, que é Abdias do
dadeiro que trouxe à cultura brasileira a
Nascimento. Meus cumprimentos.
sapiência, a altivez de Joaquim Nabuco.
Vossa Excelência falou nos bolsões de O SR. ABDIAS DO NASCI-
miséria, onde a presença negra é domi- MENTO – Muito obrigado, Senador
nadora. Portanto, há uma segregação Maurício Corrêa.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
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deixa uma notável saudade. Sabíamos 1945, foi quem, pela primeira vez, pro-
do seu ideário que o levou à propositura pôs uma lei desse tipo. Na Constituinte
daquele projeto que se transformou em de 1946, a matéria não foi aprovada e
lei. Por isso, nos associamos aos cuida- continuamos lutando, até que Afonso
dos de V. Exa, à sua luta e, inclusive, a Arinos apresentou um outro projeto de
essa valorização sociológica da cultura lei.
afro-brasileira. Como ela é bela; como Quero reiterar a boa vontade do
ela é interessante; como é importante Projeto de Lei Afonso Arinos, embora
estudar, não apenas outros aspectos cul- tenha sido equivocado, porque em nada
turais, mas até aquele aspecto meio so- ajudou o negro a se defender contra o
cial, meio religioso, que é o candomblé. racismo. Foi uma lei que virou até uma
E tantos assuntos que levaram V. Exa à arma contra os próprios negros, pela for-
utilização de determinadas palavras que ma como foi feita, exigindo que o agres-
me entusiasmaram, porque pensei que sor declarasse explicitamente que estava
V. Exa teria outras mais para nos dizer discriminando por uma questão racial; a
nesse longo e interessante discurso que lei tomou-se inócua, pois sabemos que
nos trouxe hoje ao Senado Federal. O no Brasil ninguém tem coragem de dizer
PMDB abraça V. Exa; considera suas que é racista, que realmente discrimina
palavras da maior importância e só faz por questão racial. A lei não funcionou;
esse reparo, para que ele se some ao mé- e algumas vezes, até, fez com que de ví-
rito da sua palavra. Salve o velho Afon- tima o negro passasse a ser agressor; de
so Arinos, que tanto lutou, como V. Exa, vítima passava a ser o réu da própria lei.
e salve a Constituição brasileira, que foi Quer dizer, houve uma lei de aparente
a grande vitória da consciência nacional controle social da questão, mas real-
contra o racismo. Obrigado a V. Exa. mente não a resolveu.
O SR. ABDIAS DO NASCI- Naturalmente, a lei é fruto daquela
MENTO – Ilustre Senador aparteante, época. Compreendo perfeitamente. Era
sinto-me muito honrado com o aparte muito difícil fazer uma lei bem explícita
de V. Exa. Mas, ao mesmo tempo, gos- como é agora essa emenda à Constitui-
taria também de fazer certos reparos. V. ção que V. Exa, com muito acerto, diz
Exa, por exemplo, se refere à Lei Afonso que o PMDB apoiou. E foi isso mes-
Arinos, que, na verdade, é outra usurpa- mo. Essa emenda – sim – tem eficácia
ção das coisas do negro. Aqui no Brasil, porque não tem esse escape. Mas a Lei
quando algo dá certo e é bom, não foi Afonso Arinos não tinha como ser apli-
mais o negro quem fez, foram os bran- cada, porque era muito ambígua.
cos que fizeram. A Lei Afonso Arinos é De qualquer maneira, agradeço
uma delas. a sua declaração de que o PMDB apoia
Não sei se V. Exa prestou atenção esse tipo de proposição, porque vamos
ao meu discurso. A Convenção Nacio- ter muitas aqui, inclusive, essa de ação
nal do Negro em São Paulo, reunida em compensatória.
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Vemos que o negro tem uma des- O Sr. Divaldo Suruagy _ Senador
vantagem de 500 anos. Como se pode Abdias do Nascimento, V. Exa, em seu
falar aqui em igualdade de oportunidade discurso traçou a saga da raça negra no
se as classes dominantes têm todas as Brasil, saga da qual V. Exa é mn dos lí-
vantagens e o negro tem todas as des- deres mais expressivos. V. Exa fez razão
vantagens? Como é que ele pode com- maior da sua vida a luta pela correção
petir em nível de igualdade? desses desníveis sociais tão injustos
Tem que haver uma lei que resta- dentro da nossa sociedade. Daí a minha
beleça de forma indireta, sobretudo por alegria em verificar que o discurso de
meio da educação, esse handicap, essa estréia de V. Exa da tribuna da Câmara
Alta do Brasil é coerente com todo o seu
desvantagem que o negro sofre em rela-
passado, com todos os seus princípios,
ção aos outros segmentos da sociedade.
coerente com todos os seus conceitos. V.
O SR. CID SABÓIA DE CARVA- Exa dignifica não apenas a raça negra no
LHO – O que V. Exa acaba de citar, além Senado da República; V. Exa dignifica a
de ter a parte do sentimento, do ressen- inteligência brasileira nesta Casa.
timento, da mágoa, muito naturais, tem
O SR. ABDIAS DO NASCI-
uma grande razão sócio-política. V. Exa
MENTO – Muito obrigado. Para encer-
coloca muito bem essa questão, porque
rar, Senhor Presidente, agradeço a pre-
essa diferença social não foi natural da sença...
sociedade, foi uma diferença imposta ra-
cialmente pelo poder econômico. V. Exa O SR. ANTÔNIO MARIZ – Per-
tem razão nessa observação. Parabéns. mite-me V. Exa um aparte?