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GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO

Senador ABDIAS NASCIMENTO

1998 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES


Deusa Ma'at
PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Gabinete do Senador Abdias Nascimento

Thoth

no 6 setembro/dezembro 1998

Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Thoth, Brasília, no 6, p. 1 – 136, set/dez 1998


Thoth

Informe de distribuição restrita do Senador Abdias Nascimento


6/1998
Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do Senador Abdias Nascimento. Coerente
com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações e debates sobre temas de
interesse à população afro-descendente, ressaltando-se que os temas emergentes dessa população interessam ao País como
um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância. Thoth quer o debate, a convergência de ideias, permitindo a
expressão das diversas correntes de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial
da revista.

Responsável: Abdias Nascimento

Editores: Elisa Larkin Nascimento


Carlos Alberto Medeiros
Theresa Martha de Sá Teixeira

Redatores: Celso Luiz Ramos de Medeiros


Éle Semog
Paulo Roberto dos Santos
Oswaldo Barbosa Silva
Computação: Honorato da Silva Soares Neto
Sandra Moura Lago
Teresa Emília Wall de Carvalho Viana
Revisão: Gilson Cintra
Carlos Alberto Medeiros
Impresso na Secretaria Especial de Editoração e Publicações
Diretor Executivo: Claudionor Moura Nunes
Capa: Theresa Martha de Sá Teixeira sobre desenho do deus Thoth do livro de Champollion – Le Panthéon Égyptien
Contracapa: deusa Ma’at do livro de E.A Wallis Budge – The Gods of the Egyptians.

Endereço para correspondência:


Revista Thoth
Gabinete do Senador Abdias Nascimento
Senado Federal – Anexo II – Gabinete 11
Brasília – DF – Brasil
CEP 70165-900

Thoth/ informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento / Abdias Nascimento


nº 6 (1998) – Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1998
Quadrimestral (setembro – outubro – novembro – dezembro)
V.; 25 cm

ISSN: 1415-0182

1. Negros, Brasil. I. Nascimento, Abdias.


CDD 301.45196081
SUMÁRIO
Apresentação ............................................................................................................... 11
Thoth ........................................................................................................................... 13

ATUAÇÃO PARLAMENTAR

Projetos de Lei

Crime do racismo ........................................................................................................ 21


Sanções contra o racismo ............................................................................................ 25
Ação compensatória .................................................................................................... 31
Ação civil pela dignidade dos grupos raciais, étnicos e religiosos ............................. 41
Emenda ao Projeto de Lei da Câmara no 25, de 1997, que trata do ensino religioso
nas escolas públicas de ensino fundamental ............................................................... 51
Projeto de Resolução no 126, de 1997 – Institui o Prêmio Cruz e Sousa .................... 55
Projeto de Lei no 234 de 1997 – Inscrição dos líderes da Conjuração Baiana de 1798
no Livro dos Heróis da Pátria .................................................................................... 69
Proposta de Emenda à Constituição no 38, de 1997 – Garantia às comunidades rema-
nescentes dos quilombos dos direitos assegurados às populações indígenas ............. 73

Pronunciamentos

Discurso em Homenagem a Zumbi dos Palmares ...................................................... 77


SANKOFA: MEMÓRIA E RESGATE

Dia Nacional da Consciência Negra, aniversário de Zumbi (Câmara dos Deputados) ..... 89
A luta afro-brasileira no Senado ................................................................................. 115
O gabinete do Senador

Da esquerda para a direita: Elisa Larkin Nascimento, co-editora de Thoth; Oswaldo Barbosa Silva, assessor téc-
nico; Éle Semog, secretário parlamentar, Theresa Martha de Sá Teixeira, chefe de gabinete; senador Abdias Nas-
cimento; Celso Luiz Ramos de Medeiros, assessor técnico; Paulo Roberto dos Santos, secretário parlamentar;
Carlos Alberto Medeiros, assessor técnico. Esses foram os competentes e dedicados colaboradores do senador
Abdias Nascimento durante o exercício do seu mandato. Eles também tornaram possível produzir esta revista.
Esta foto é um registro e uma homenagem que a eles presta A. N.
APRESENTAÇÃO

Na apresentação do primeiro número de Thoth, correspondente aos meses de janei-


ro a abril de 1997, situei esta revista no quadro de referência de uma imprensa negra ao
mesmo tempo “frágil e valente”, cuja história “se resume a uma peripécia de acidentes e
pobreza de recursos”, mas que, não obstante, “merece todo o nosso respeito e gratidão”
por ter desempenhado “um papel histórico fundamental em nossa luta coletiva por liber-
dade, respeito e cidadania”. Coerente com essa história e com esses princípios, Thoth
chega agora ao seu sexto e último número, encerrando-se juntamente com meu mandato
de Senador da República.
Não é este, contudo, um momento de lamentação ou melancolia. Pelo contrário.
Pelas páginas desta revista, os leitores puderam acompanhar minha trajetória nesta Casa
Legislativa, que procurei transformar em mais uma trincheira de nossa luta. Nos sete pro-
jetos de lei que apresentei, bem como nos quase sessenta discursos que proferi, procurei
refletir os anseios e aspirações dos afro-brasileiros, tal como expressos na plataforma
do movimento negro. Aperfeiçoar a legislação antidiscriminatória, ampliar os recursos
jurídicos das vítimas de ofensas raciais, enriquecer os currículos escolares com a história
dos africanos na África e na diáspora, estabelecer medidas compensatórias capazes de
garantir a igualdade de oportunidades – esses foram os temas em que busquei concentrar
minha atuação, na certeza de constituírem a espinha dorsal na solução da questão racial
em nosso País.
12 THOTH 6/ dezembro de 1998
Apresentação

Mas Thoth não foi apenas um registro de minha atuação parlamentar. Em suas pági-
nas, procuramos, minha equipe e eu, oferecer um amplo panorama da luta negra no Brasil
e na diáspora, abrindo espaço a uma gama de assuntos que abrangem desde a história
das civilizações africanas até as manifestações mais atuais da rebeldia negra. Pudemos,
assim, publicar uma variedade de textos de autores negros do passado, tanto quanto ma-
térias mais frescas, produto de nossos jovens militantes na arena intelectual. Creio termos
conseguido, desse modo, dar ao menos uma ideia da riqueza de um pensamento africano
que não tem se dobrado às imposições de seus poderosos adversários, nem tampouco se
deixado seduzir pelo canto da sereia de ideologias melífluas como a “democracia racial”.
Sei que tudo isso pode parecer um testamento, sobretudo por provir de um ativista
– um agitador, como gosto de me definir – com tanto tempo de existência e de dedicação à
causa. Essa não é, porém, minha intenção. Depois de todas essas décadas, já não sei viver
sem lutar. É o que continuarei fazendo, por meio de meus textos, de minha pintura, de
palestras e conferências em foros nacionais e internacionais, na pregação do evangelho da
libertação de nosso povo. É essa a missão que recebi dos orixás, e que pretendo continuar
cumprindo enquanto eles me derem força e lucidez.
Axé!
Brasília, dezembro de 1998
AN
Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em
1995, marcado pela Marcha contra o Racismo, pela Ci-
dadania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âm-
bito nacional e internacional em todo o País, verificamos
que a questão racial no Brasil atinge um novo estágio.
Setores da sociedade convencional reconhecem o caráter
discriminatório desta sociedade, e o debate passa a foca-
Thoth lizar as formas de ação para combater o racismo, ultra-
passando o patamar que marcou a elaboração da Cons-
tituição de 1988: a declaração de intenção do legislador
dá lugar à discussão de medidas concretas no sentido de
fazer valer tal intenção.
Nesse contexto é que o Senador Abdias Nasci-
mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Sena-
do Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy
Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve soli-
dário com a luta antirracista. O mandato do Senador Ab-
dias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla de
luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à ques-
tão racial, com base numa verdade que o movimento
negro vem afirmando há anos: a questão racial constitui-
-se numa questão nacional de urgente prioridade para a
construção da justiça social no Brasil, portanto merece-
dora da atenção redobrada do Congresso Nacional.
14 THOTH 6/ dezembro de 1998

Além de representar o veículo de comunicação


do mandato do Senador Abdias Nascimento com sua
comunidade e seu País, a revista Thoth surge como
fórum do pensamento afro-brasileiro, na sua íntima e
inexorável relação com aquele que se desenvolve no
restante do mundo. Seu conteúdo pretende refletir as
novas dimensões que a discussão e elaboração da ques-
tão racial vêm ganhando nesta nova etapa, inclusive o
aprofundamento da reflexão sobre as dimensões histó-
ricas e epistemológicas da nossa herança africana, para
além dos tradicionais parâmetros de samba, futebol e
culinária que caracterizam a fórmula simplista e pre-
conceituosa elaborada pelos arautos da chamada demo-
cracia racial.
Nesse sentido, cabe um esclarecimento do signi-
ficado do título da revista, que remete às origens dessa
herança civilizatória no antigo Egito, matriz primordial
da própria civilização ocidental da qual o Brasil sempre
se declara filho e herdeiro. Os avanços egípcios e as
conquistas africanas no campo do conhecimento huma-
no formam as bases da cultura greco-romana. Entretan-
to, as suas origens no Egito ficaram escamoteadas em
função da própria distorção racista que nega aos povos
africanos a capacidade de realização humana no campo
do conhecimento.
Nada mais apropriado para expressar a meta de
contribuir para a recuperação dessa herança africana
que a referência, no nome da revista, ao deus Tho-
th. Na tradição africana, o nome constitui mais que a
simples denominação: carrega dentro dele o poder de
implementar as ideias que simboliza. Thoth está entre
os primeiros deuses a surgir no contexto do desenvol-
vimento da filosofia religiosa egípcia: autoprocriado e
autoproduzido, ele é uno. Autor dos cálculos que re-
gem as relações entre o céu, as estrelas e a terra, Thoth
incorpora o conhecimento que faz mover o universo.
O inventor e deus de todas as artes e ciências, senhor
dos livros e escriba dos deuses, Thoth registra o co-
nhecimento divino para benefício do ser humano. So-
bretudo, é poderoso na sua fala; tem o conhecimento da
Thoth 15

linguagem divina. As palavras de Thoth têm o dom da


vida eterna; foi ele que ensinou a Ísis as palavras divinas
capazes de fazer reviver Osíris, após sua morte. Assim,
esperamos que a revista Thoth ajude a fazer reviver para
os afrodescendentes a grandeza da herança civilizatória
de seus antepassados, vilipendiada, distorcida e reduzida
ao ridículo ao longo de dois mil anos de esmagamento
discriminatório.
Tendo uma cabeça do íbis, pássaro que repre-
senta na grafia egípcia a figura do coração, Thoth era
cantado como coração de Ra, deus do sol (vida, força
e saúde). Na mitologia egípcia, o coração era o peso
a ser medido na contrabalança da vida do homem, no
momento de sua morte, medindo sua correspondência
em vida aos princípios morais e éticos de Ma’at, filoso-
fia prática de vida da civilização egípcia. Thoth assim
constitui-se no mestre da lei, tanto nos seus aspectos
físicos como morais.
A deusa Ma’at encarna essa filosofia de vida mo-
ral e ética, o caminho do direito e da verdade. Consti-
tuindo uma espécie de contraparte feminina de Thoth,
ela representa uma característica relevante da civiliza-
ção egípcia: a partilha do poder, tanto no plano espiritual
como material, entre a autoridade masculina e a femini-
na. Os faraós tinham o seu poder temporal complemen-
tado por um poder feminino exercido por soberanas e
sacerdotisas, assim seguindo o primordial e simbólico
exemplo de Osíris e Ísis. Sem ser compartilhado entre
feminino e masculino, entre homem e mulher, o poder
careceria de fecundidade, seria estéril.
Ma’at e Thoth acompanhavam o deus-sol Ra, na
sua embarcação, quando ele surgiu pela primeira vez
sobre as águas do abismo primordial de Nu. Era Ma’at
quem regulava o ritmo do movimento da embarcação de
Ra, ou seja, o seu ciclo de nascer e se pôr sobre o hori-
zonte, bem como sua trajetória diária do leste ao ociden-
te. Ela corporificava a justiça, premiando cada homem
com sua justa recompensa, e encarnava o mais alto con-
ceito da lei e da verdade dos egípcios.
16 THOTH 6/ dezembro de 1998

Como deus da sabedoria e inventor dos ritmos


cósmicos, Thoth dominava também a magia. Patrono
do aprendizado e das artes, a ele se creditavam muitas
invenções, inclusive a própria escrita, a geometria e
a astronomia, áreas do conhecimento que fundamen-
taram o florescimento da milenar civilização egípcia.
Entretanto, sem ser socializado, o conhecimento não
produz resultados concretos, pois ninguém sozinho
consegue colocá-lo em prática. Faz-se necessário um
agente de comunicação, e Thoth se responsabiliza tam-
bém por exercer esse papel. Passando sua sabedoria
para os seres humanos, como o passou para outros se-
res divinos, a exemplo de Ísis, Thoth amplia seu papel
no mundo espiritual e material, tornando-se ainda o elo
de transmissão do conhecimento e do segredo divino
entre um domínio e o outro. A invenção da escrita se
revela, então, como decorrência do papel de Thoth,
originador do conhecimento em si: formular uma nova
forma de transmissão desse conhecimento.
Os gregos denominavam Thoth de Hermes Tris-
megistus (Thoth, Três Vezes Grande), nome também
dado aos livros que registravam a sabedoria metafísica
herdada do antigo Egito, centrada na ideia da comuni-
dade entre todos os seres e objetos, e cuja autoria era
atribuída a Thoth¹. Assim, Thoth se identificava com
Hermes, mensageiro dos deuses gregos e aquele que
conduzia as almas a Hades. Hermes, para os gregos,
era o deus das estradas e dos viajantes, da sorte, do
comércio, da música e dos ladrões e trapaceiros. Os
romanos o chamaram de Mercúrio.
Tais atributos de Thoth e de Hermes nos re-
metem nitidamente à figura de Exu na cosmologia
africano-brasileira. Conhecido popularmente como
mensageiro dos deuses, Exu constitui o princípio dinâ-
mico que possibilita o fluxo e intercâmbio de energia
cósmica entre os domínios do mundo espiritual (orum)
e o mundo material (aiyê). Conhecedor das línguas hu-

1 Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme influência
sobre neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII
Thoth 17

manas e divinas, Exu é a comunicação em si, além de se


apresentar como o deus das estradas, da sorte, da brinca-
deira e da malandragem.
Os paralelos e as semelhanças entre Thoth, Her-
mes e Exu não se reduzem a identidades absolutas, mas
as linhas gerais de suas características apontam para
uma unidade básica de significação simbólica. Por isso,
nada mais adequado, tratando-se de uma revista Thoth
lançada no Brasil, que uma primeira invocação a Exu, de
acordo com a tradição religiosa afro-brasileira, que abre
todos os trabalhos espirituais com o padê, a oferenda a
Exu de uma prece digna de todo o peso milenar da arte
africana da oratória.
Thoth representa, junto com Ma’at, o conheci-
mento, a ciência e filosofia, a religiosidade e a ética na
mais antiga civilização africana. Assim, constituem re-
ferência básica para o resgate de uma tradição africana
escamoteada à população brasileira enquanto verdadeira
matriz de nossa civilização, e também para o resgate da
ética na política, questão emergente no Brasil de hoje.
Assumindo o nome Thoth, dentro da postura africana em
que o nome ultrapassa a denominação, esta revista tem
o objetivo de contribuir, de alguma forma, para os dois
resgates, afirmando ainda que o primeiro faz parte im-
prescindível do segundo.
Projeto de Lei do Senado no 52, de
Projetos de Lei 1997

Define os crimes de prática de racismo e


discriminação.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1o Considera-se crime de práti-


ca de racismo, para efeito desta lei, prati-
car tratamento distinto, em razão de etnia,
a pessoas ou grupos de pessoas.
Pena – reclusão, de dois a cinco
anos, e multa.
§ 1o Incorre na mesma pena quem
fabricar, comercializar, distribuir ou vei-
cular símbolos, emblemas, ornamentos,
distintivos ou propaganda que utilizem a
cruz suástica ou gamada, para fins de dis-
seminação da prática do nazismo.
22 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

§ 2o Também incorre na mesma situações discriminatórias históricas ou


pena quem induzir ou estimular, por in- passadas, ou quando existe uma relação
termédio da mídia, de aulas escolares, lógica necessária entre a característica
de livros e de outros meios, ideias, con- na qual se baseia a distinção e o propó-
ceitos ou imagens pejorativas em razão sito dessa distinção, ou ainda por previ-
de etnia ou cor da pele. são legal.
Art. 2o Considera-se discrimi- Art. 5o Esta lei entra em vigor na
nação, para efeito desta lei, o estabe- data de sua publicação.
lecimento de tratamento prejudicial a Art. 6o Revogam-se as disposi-
pessoas ou grupo de pessoas em razão ções em contrário, especialmente as
de sexo, orientação sexual, religião, Leis nos 7.716, de 1989, 8.081, de 1990,
idade, deficiência, procedência na- e 8.882,de 1994.
cional ou outra caracteristica similar.
Pena – reclusão, de dois a oito JUSTIFICAÇÃO
anos, e multa.
Embora goste de se autoprocla-
§ 1o As penas aumentam-se da
mar uma “democracia racial”, o Brasil
metade:
está longe de ser o paraíso das relações
I – se o crime pretende dificultar raciais que o discurso oficial ainda tei-
ou impedir o exercício de um direito ou ma em apresentar. Com efeito, pesqui-
garantia fundamental; sas quantitativas realizadas nas últimas
II – se o crime é praticado por décadas têm revelado uma realidade de
funcionário público no desempenho de desigualdade e discriminação pelo me-
sua função; nos tão grave quanto –e frequentemente
III – se o crime é praticado contra pior que – a de países como os Estados
menor de dezoito anos. Unidos e a África do Sul, reconhecidos
Art. 3o O art. 141, parágrafo úni- por todos como exemplos negativos
co, do Código Penal, passa a vigorar nesse campo das relações humanas.
com a seguinte redação: Dados estatísticos do IBGE – ofi-
“Art. 141. .................................... ciais, portanto – apontam uma enorme
distância entre os descendentes de afri-
.....................................................
canos (chamados “pretos” e “pardos”)
Parágrafo único. Se o crime é co- e aqueles considerados “brancos” em
metido mediante paga ou promessa de nosso País. A análise dos indicadores
recompensa ou em razão de preconceito sociais pertinentes, como expectativa de
de raça, cor, sexo, religião ou outro si- vida, mortalidade infantil, salários e es-
milar, aplica-se a pena em dobro.” colaridade, não apenas comprova a exis-
Art. 4o Não é crime a distinção re- tência desse fosso em nossa sociedade,
alizada com o propósito de implementar mas também aponta o racismo como o
uma ação compensatória em função de principal responsável por sua existência.
Projetos de Lei
Crime do racismo 23

No campo jurídico, por exemplo, Desse modo, a legislação brasileira


recentes pesquisas desnudam o tratamen- ainda não dispõe de uma definição geral
to diferenciado que policiais, delegados, para os crimes de racismo e discriminação,
juízes e promotores dispensam a brancos dependendo de uma enumeração casuísti-
e negros, pelo que estes últimos costumam ca de circunstâncias, em desacordo com a
ser presos em maior proporção, condena- boa técnica do Direito Penal; daí a inefi-
dos mais vezes e a penas mais longas, o que cácia da atual legislação nessa área. Este
explica ser desproporcionalmente maior projeto pretende criar essa definição legal,
sua presença nas estatísticas penitenciárias. tipificando tais crimes. As orientações bá-
As primeiras tentativas de criar sicas são, necessariamente, as constitucio-
uma legislação para coibir a prática da nais: primeiramente, porque esses crimes
discriminação racial datam da década de constituem a forma mais insidiosa de vio-
40. O principal resultado da I Conven- lação do princípio da liberdade (art. 5o, ca-
ção Nacional do Negro, realizada em put) e, depois, pelo futo de ser específica
São Paulo, em 1945, sob o patrocínio a condenação do racismo (art. 5o, XLII).
do Teatro Experimental do Negro, foi a Além de estabelecer os tipos genéricos
aprovação de uma proposta dessa natu- para racismo e discriminação, este projeto
reza, a qual acabaria sendo transforma- ainda determina circunstâncias agravantes
da, no ano seguinte, pelo Senador Ha- – por exemplo, se o agente é funcionário
milton Nogueira, da UDN, em proposta público.
à Assembleia Nacional Constituinte. Convenções internacionais de
Essa proposta definia o racismo e a dis- que o Brasil é signatário – como a Con-
criminação como crime de lesa-humani- venção Internacional pela Eliminação
dade, e foi rejeitada sob a alegação da da Discriminação Racial, das Nações
inexistência de um fato concreto que de- Unidas, e a Convenção 111 da Organi-
monstrasse a sua necessidade. Este aca- zação Internacional do Trabalho (OIT),
bou vindo com um incidente de grande também vinculada à ONU, que trata da
repercussão: a discriminação sofrida discriminação de raça e gênero no mer-
em um hotel de São Paulo pela famo- cado de trabalho – preveem a adoção de
sa coreógrafa afro-americana Katherine medidas destinadas a compensar a dis-
Dunham. O Deputado Afonso Arinos criminação historicamente sofrida por
aproveitou a oportunidade para propor determinados grupos de pessoas, como
a Lei no 1.390, de 1951, que ganhou o mulheres, negros e índios. Conhecidas
seu nome, distorcendo a natureza da pelo nome genérico de “ação afirmati-
proposta de 1945 ao definir o racismo va”, tais medidas têm sido adotadas por
como contravenção penal, e não como países tão diversos do ponto de vista
crime, e ao estabelecer penalidades ir- político, social, econômico e cultural
risórias para os infratores. Em que pese como Estados Unidos, Índia, Canadá,
às boas intenções de seus autores, a cha- Alemanha, Nigéria, Israel e Malásia,
mada Lei Caó (Lei no 7.716/89) também além das antigas Iugoslávia e União So-
não avançou nesse sentido. viética. Este projeto abre a possibilidade
24 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

de adotá-las no Brasil, colocando o país abre grandes espaços pelos quais esca-
em dia com as obrigações assumidas na pam os agentes do crime.
arena internacional. Sala das Sessões, 3 de abril de
Finalmente, o projeto amplia o 1997.
elenco de circunstâncias agravantes Senador ABDIAS NASCIMENTO.
genéricas do Código Penal para nele
incluir os preconceitos de raça, sexo e Publicado no Diário do Senado Federal de 9-4-97.
outros. Com essa sistemática, afasta-se
a necessidade de uma previsão casuísti- Situação atual do projeto: Comissão de Cons-
ca que, enumerando em detalhes as cir- tituição, Justiça e Cidadania do Senado, aguar-
dando parecer do relator, Senador Pedro Simon,
cunstâncias de prática da discriminação,
desde 17 de abril de 1997.
Projeto de Lei do Senado no 73, O Congresso Nacional decreta:
de 1997
Art. 1o Fica proibida a contra-
tação, sob qualquer modalidade, pela
Proíbe a contratação, pela
União, suas autarquias, fundações, em-
União, suas autarquias, fundações,
presas públicas e sociedades de econo-
empresas públicas e sociedades de mia mista, de pessoa física ou jurídica
economia mista, de pessoas físicas que, diretamente ou por associado,
ou jurídicas que tenham cometi- controlador, acionista majoritário ou
do atos ou omissões favoráveis a empresa coligada, notoriamente, tenha
regime ou ações de discrimina- contribuído, incentivado, participado
ção racial, crimes contra a ordem por ação ou omissão ou, de qualquer
econômica ou tributária, atos que forma, apoiado ou estimulado regime ou
visem ou possam levar à formação ações de discriminação racial, no Brasil
de monopólio ou à eliminação da ou no exterior.
concorrência e dano ambiental não § lo A comprovação dos atos de
reparado, e dá outras providências. que trata este artigo será feita, perante
o responsável pelo contratante, por do-
cumentação, fornecida por organismos
nacionais ou internacionais de reconhe-
cida reputação e idoneidade, e encami-
nhada por:
26 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

I – cidadão brasileiro; diretamente envolvidos, mesmo sob


II- associação ou entidade legal- outra situação jurídica, razão social ou
mente constituída e em funcionamento atividade, somente sendo vencível pela
regular há pelo menos um ano; demonstração da adoção, no caso de ato
ou omissão que não tenha sido de sua
III – partido político com repre-
responsabilidade direta, de medida efe-
sentação no Congresso Nacional;
tiva de superação ou reparação dos seus
IV – Ministério Público da União; efeitos e de punição dos responsáveis.
V – Mesas do Congresso Nacio- Art. 2o Fica proibida a contra-
nal, do Senado Federal, da Câmara dos tação, pela União e demais entidades
Deputados, de suas Comissões ou depu- definidas no artigo anterior, de pesso-
tado federal ou senador em exercício de as físicas ou jurídicas que tenham, di-
mandato eletivo. retamente ou por preposto, associados,
§ 2o A entrega de documento que controladores, acionistas majoritários
se presuma comprobatório dos atos de- ou empresas coligadas, cometido atos
finidos no caput deste artigo suspende, a que configurem crime contra a ordem
partir da identificação e confirmação da econômica ou tributária ou que visem
sua origem e da reputação e idoneidade ou possam levar à criação de monopólio
do órgão emissor, todos os procedimen- ou limitação da livre concorrência, nos
tos administrativos de contratação a par- termos da legislação brasileira.
tir da data de recebimento, devendo ser Parágrafo único. Aplica-se, no
instaurado procedimento administrativo caso deste artigo, no que couber, o pro-
para processamento e julgamento da ti- cedimento previsto no artigo anterior,
picidade da conduta, em face desta lei, subsistindo esta proibição pelo período
assegurados o contraditório e a ampla de vinte anos a contar da data do fato.
defesa.
Art. 3o Fica também proibida a
§ 3o Das decisões que suspen- contratação, pela União e demais enti-
dam os procedimentos administrativos dades definidas no art. 1o, das pessoas
de contratação e que julguem a pessoa físicas ou jurídicas e demais entidades
física ou jurídica incursa nos atos defi- previstas nesta lei que tenham cometi-
nidos nesta lei cabe recurso à instância do ato ou omissão de que tenha resul-
administrativa superior, sem efeito sus- tado dano ambiental grave, no Brasil
pensivo. ou no exterior, não completamente re-
§ 4o O descumprimento do pro- parado.
cedimento previsto neste artigo leva à § 1o Aplica-se, para os fins deste
nulidade do ato e à responsabilização artigo, o procedimento previsto no art.
administrativa, civil e criminal da auto- 1o desta lei, subsistindo a proibição pelo
ridade responsável. tempo necessário à completa reparação
§ 5o A proibição de que trata este ambiental ou, no caso da impossibilida-
artigo é definitiva, e persiste, contra os de de fazê-lo, de forma definitiva.
Projetos de Lei
Sanções contra o racismo 27

§ 2o A determinação da extensão e prática do racismo foi firmada como cri-


reparabilidade do dano ambiental ocorri- me inafiançável e imprescritível, sujeito
do no Brasil será feita pelo órgão federal à pena de reclusão (art. 5o, XLII), além
competente para assuntos documentação de permear outros tantos dispositivos
de organismo de reconhecida reputação e constitucionais.
idoneidade, sujeita, neste caso, à homo- As práticas desleais, predatórias
logação pelo órgão federal competente. ou ultrapassadas de gestão empresarial
Art. 4o As proibições previstas conhecem condenação expressa no ca-
nesta Lei são extensíveis a todas as mo- pítulo referente aos princípios gerais da
dalidades operacionais de desestatiza- atividade econômica, onde, como funda-
ção, se não concluídas, previstas pela mentais do País, despontam a livre ini-
Lei no 8.031, de 12 de abril de 1990, e ciativa, a justiça social, a livre concorrên-
alterações posteriores, inclusive as vei- cia, a defesa do consumidor e a defesa do
culadas por medida provisória. meio ambiente (art. 170). Também são
Art. 5o Esta lei entra em vigor na condenados o abuso do poder econômico
data de sua publicação. (art. 173, § 4o) que vise à dominação dos
Art. 6o Revogam-se as disposi- mercados, à eliminação da concorrência
ções em contrário. e ao aumento arbitrário dos lucros, além
de sujeitar a pessoa jurídica, sem prejuízo
JUSTIFICAÇÃO da responsabilidade individual dos seus
dirigentes, à responsabilização por atos
A Constituição Federal em vigor praticados contra a ordem econômica e
trouxe, no caudal de suas expressivas con- financeira e contra a economia popular
quistas, vigorosas disposições sobre o racis- (art. 173, § 5o). O art. 174 dá ao Estado
mo, sobre o exercício pernicioso da ativida- o poder de agente normativo e regulador
de empresarial e sobre o meio ambiente. da atividade econômica, fiscalizando e
incentivando para todo o setor e plane-
O racismo encontrou, na nos-
jando para o setor público.
sa Carta Política, a necessária resposta
à repulsa e condenações mundiais que Ao meio ambiente foi dedicado ca-
vinha e vem sofrendo. A dignidade da pítulo especial – o Capítulo VI do Título
pessoa humana, de que a discriminação VIII. Além de a atividade empresarial es-
racial é algoz, é preliminarmente erigida tar sujeita ao princípio da defesa do meio
como fundamento da República Federa- ambiente, conforme já demonstramos, é
tiva do Brasil (art. 1o, III); o combate ao assegurado a “todos” o direito ao meio
preconceito de origem, raça e cor é dado ambiente ecologicamente equilibrado,
como objetivo fundamental (art. 3o, IV); sendo imposto ao poder público e à coleti-
o racismo é repudiado na ordem inter- vidade o dever de defendê-lo e preservá-lo
nacional (art. 4o, VIII); as distinções “de para as presentes e futuras gerações.
qualquer natureza” são proibidas, pelo Nesse universo, a função estatal é
princípio da isonomia (art. 5o, caput); a relevante e indispensável.
28 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

Como o aparelho estatal, que tem de desrespeito aos princípios fundamen-


no topo a estrutura federal, é de certa tais que regem as relações comerciais e,
forma balizador das condutas das de- sobretudo, as relações entre os homens.
mais entidades políticas, como estados, Infelizmente, porém, são concretas as
Distrito Federal e municípios, incum- ameaças de que isso possa ocorrer no
bem à União as ações mais contunden- caso da CVRD.
tes e mais significativas da decisão go- Uma das empresas concorrentes
vernamental de cumprir e fazer cumprir na licitação da Companhia Vale do Rio
tais princípios constitucionais. Doce, e com grandes possibilidades de
Nessa linha é que estamos pro- vencê-la, dado o seu poderio, é a mul-
pondo o presente projeto de lei. Com tinacional Anglo American, com sede
ele, visamos a impedir a contratação, em Londres. Ocorre que essa empresa
pela União, suas autarquias, fundações, tem se tomado nos últimos anos, em ra-
empresas públicas e sociedades de eco- zão de sua atuação no campo político e
nomia mista, de pessoas físicas ou jurí- econômico, uma espécie de pária inter-
dicas, ou ligadas a elas, que tenham, em nacional. O principal motivo disso foi
sua atuação nacional ou internacional, seu apoio inconteste ao regime do apar-
ferido esses relevantes valores de nossa theid na África do Sul, desrespeitando
Constituição, por ação ou por omissão. o boicote internacional decretado pelas
Essa proibição é extensível, di-lo Nações Unidas e violando não somente
o art. 4o da proposição, a todos os mode- resoluções da ONU, mas também con-
los operacionais do programa de deses- venções internacionais de que o Brasil
tatização. E aqui pretendemos atingir, é signatário – e que por isso têm força
diretamente, determinada situação que de lei –, em especial a Convenção In-
poderá ocorrer no processo de privati- ternacional pela Eliminação da Discri-
zação da Companhia Vale do Rio Doce. minação Racial, das Nações Unidas, e a
A importância estratégica e o Convenção 111 da Organização Interna-
enorme patrimônio dessa empresa fa- cional do Trabalho, que trata da discri-
zem com que, no momento em que o minação no mercado de trabalho. Além
Governo se prepara para implementar disso, tal atuação também está em desa-
a sua privatização, olhares mais atentos cordo com diversas cláusulas de nossa
se detenham nesse processo, tendo em Constituição Federal, quais sejam os ar-
vista suas consequências não apenas no tigos que citamos acima.
plano político e econômico, mas tam- Longe de ser um ato meramente
bém do ponto de vista social. Afinal, se simbólico, o apoio da poderosa Anglo
a justificativa para a sua alienação se faz American e de outras empresas de mes-
sob a égide da modernização de nossas mo porte foi o que permitiu ao governo
estruturas produtivas, não faz sentido racista sul-africano uma sobrevida que,
que ela favoreça empresas ou grupos de outro modo, não seria possível. Pode-
internacionais com notória ficha corrida -se medir a consequência pelo número
Projetos de Lei
Sanções contra o racismo 29

de casos de assassinatos, torturas e ou- enfrentamento do racismo e do precon-


tras atrocidades sofridas pelos negros e ceito racial, bem como a possibilidade
opositores políticos naquele país duran- de estabelecer compensações para os
te os últimos anos de um regime que po- grupos historicamente discriminados, é
deria ter acabado muito antes, não fos- no mínimo um contrassenso permitir-
se a criminosa cumplicidade de grupos mos que se aposse de nossa estatal mais
que, como a Anglo American, sempre se lucrativa um grupo internacional que se
posicionaram em favor da manutenção comprometeu ativamente com o mais
da supremacia branca. execrado regime do mundo contempo-
Mas não se resumem a isso as res- râneo. Ao mesmo tempo, a condenação
trições a essa empresa. Além de apoiar o de que tal grupo foi objeto no mais alto
apartheid, a Anglo American é suspeita foro do comércio internacional é motivo
de ter colaborado com o governo sul- suficiente para tornar indesejável a sua
-africano na desestabilização política presença em nosso País.
dos países da chamada “linha de frente” Por tudo isso, permitimo-nos
– dentre eles, Angola e Moçambique –, confiar na aprovação do presente proje-
dando apoio financeiro à guerrilha con- to de lei neste Parlamento, uma forma
trarrevolucionária para a aquisição de ar- direta de assegurarmos respeito a fun-
mamentos e infraestrutura bélica. Como damentais princípios constitucionais e
não bastasse, a Anglo American foi con- humanos e indireta de expurgarmos da
siderada culpada, em diversos países, por atuação no Brasil uma empresa pode-
infringir a legislação antitruste, pratican- rosa que carrega a mancha indelével da
do o monopólio da produção e comércio atuação racista e contrária aos direitos
de ouro e diamantes. Por esse motivo, humanos.
seu principal dirigente, Nicholas Oppe- Sala das Sessões, 24 de abril de
nheimer, há muitos anos não pode pisar 1997.
em território norte-americano, sob pena
Senador ABDIAS NASCIMENTO.
de ser imediatamente preso.
Num momento em que a socieda- Publicado no Diário do Senado Federal de 24-4-97.
de brasileira começa a tomar consciên-
cia crescente de seus problemas sociais
Situação atual do projeto: Comissão de Assuntos
e raciais, inclusive discutindo a refor- Econômicos do Senado, com minuta de relatório
mulação de sua legislação, visando a favorável do relator, Senador Ney Suassuna, desde
tornar mais eficientes os mecanismos de 16-6-97, aguardando inclusão em pauta.
Projeto de Lei do Senado no 75, O Congresso Nacional decreta:
de 1997 Art. 1o Todos os órgãos da admi-
nistração pública direta e indireta, as
empresas públicas e as sociedades de
economia mista são obrigados a manter,
nos seus respectivos quadros de servi-
dores, 20% (vinte por cento) de homens
Dispõe sobre medidas de ação
negros e 20% (vinte por cento) de mu-
compensatória para a implementa-
lheres negras, em todos os postos de tra-
ção do princípio da isonomia social balho e de direção.
do negro.
§ 1o As entidades mencionadas
estão obrigadas a comprovar anualmen-
te, perante o órgão que responde pela
administração pública, as determina-
ções constantes do caput.
§ 2o A cada cinco anos, o órgão
citado no parágrafo anterior ou o Minis-
tério do Trabalho desenvolverão pesqui-
sa estatística, com vistas a comprovar
os resultados das medidas de ação com-
pensatória preconizadas.
32 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

§ 3o As entidades citadas no caput candidatos negros qualificados em esca-


estão obrigadas a executar programas de lões superiores profissionais.
aprendizagem, treinamento e aperfeiço- Parágrafo único. O órgão do Po-
amento técnico, com vistas a qualificar der Público encarregado de supervisio-
empregados negros para a promoção nar ou desenvolver os programas divul-
funcional. gará as atividades a serem executadas e
Art. 2o Toda empresa privada ou o material técnico produzido, bem como
estabelecimento de serviços são obriga- oferecerá vagas nos cursos por ele mi-
dos a executar medidas de ação compen- nistrados às entidades citadas no art. 1o
satória com vistas a atingir, no prazo de desta Lei e às empresas privadas.
cinco anos, a participação de ao menos Art. 5o O Poder Executivo inclui-
20% (vinte por cento) de homens negros rá na lei orçamentária anual recursos
e 20% (vinte por cento) de mulheres ne- necessários para o desenvolvimento de
gras em todos os níveis de seu quadro de estudos a respeito do ensino e do aper-
empregos e remunerações. feiçoamento técnico das medidas de
§ 1o As empresas e estabelecimen- ação compensatória.
tos mencionados comprovarão, anual- Art. 6o Serão destinadas a estu-
mente, junto ao Ministério do Trabalho, dantes negros 40% (quarenta por cento)
as medidas preconizadas no caput. das bolsas de estudo concedidas em to-
§ 2o As empresas e estabeleci- dos os níveis de ensino.
mentos que não cumprirem as medidas § 1o O Ministério das Relações
referidas no caput estão sujeitas a multa Exteriores reservará, no Instituto Rio
no valor de 20% da folha bruta mensal Branco, 20% (vinte por cento) das vagas
de salário. para candidatos negros e 20% (vinte por
§ 3o A cada cinco anos, o Minis- cento) para candidatas negras.
tério do Trabalho fará pesquisa estatísti- § 2o Os cursos de formação da
ca para avaliar a aplicação das medidas Marinha, Exército e Aeronáutica reser-
compensatórias de que trata o caput. varão 20% (vinte por cento) de suas va-
Art. 3o Assegura-se a preferência gas para candidatos negros e 20% (vinte
na admissão do candidato negro, sem- por cento) para candidatas negras.
pre que ele demonstrar idênticas quali- Art. 7o O Ministério da Educação
ficações profissionais às de candidato implementará medidas propostas por
branco. grupo de trabalho constituído para es-
Art. 4o O Ministério do Trabalho tudar modificações nos currículos esco-
e os organismos de treinamento de mão lares de todos os níveis de ensino, com
de obra estão obrigados à execução de vistas a:
programas de aprendizagem, treina- I – incorporar ao conteúdo dos
mento e aperfeiçoamento técnico para cursos de história brasileira o ensino das
negros, a fim de aumentar o número de contribuições positivas dos africanos e
Projetos de Lei
Ação compensatória 33

seus descendentes à civilização brasilei- § 3o O Ministério da Educação


ra, sua resistência contra a escravidão, e as secretarias estaduais e municipais
sua organização e ação nos quilombos de educação farão relatórios anuais pú-
e sua luta contra o racismo no período blicos, dando conta dos resultados da
pós-abolição; fiscalização efetuada com o fim de ve-
II – incorporar ao conteúdo dos rificar o cumprimento do disposto neste
cursos sobre história geral o ensino das artigo.
contribuições positivas das civilizações § 4o O Ministério da Educação
africanas, particularmente seus avanços e as reitorias das universidades públi-
tecnológicos e culturais antes da inva- cas incentivarão a criação e apoiarão o
são europeia do continente africano; funcionamento de centros de estudos
ou pesquisas africanos e afrobrasileiros,
III – incorporar ao conteúdo dos
como parte integrante da estrutura uni-
cursos optativos de estudos religiosos
versitária.
ensino dos conceitos espirituais, filosó-
ficos e epistemológicos das religiões de Art. 8o As forças policiais estão
origem africana; obrigadas a incluir nos currículos de
seus cursos e em seus programas de
IV – eliminar dos currículos e li-
treinamento conteúdos de orientação
vros escolares qualquer referência pre-
que visem a impedir qualquer compor-
conceituosa ou estereotipada ao negro;
tamento de discriminação étnica.
V – incorporar ao material de en-
Art. 9o A Fundação Instituto Bra-
sino primário e secundário a apresenta- sileiro de Geografia e Estatística está
ção gráfica da família negra, de maneira obrigada a incluir o quesito “cor” em
que a criança veja o negro e sua família todas as suas pesquisas, estatísticas e
retratados de maneira tão positiva quan- censos.
to a forma como são retratadas a criança
Art. 10. Esta lei entra em vigor na
branca e sua família;
data de sua publicação.
VI – incluir no ensino dos idio-
Art. 11. Revogam-se as disposi-
mas estrangeiros, em regime opcional,
ções em contrário.
as língua iorubá e kiswahili.
§ 1o O grupo de trabalho incluirá JUSTIFICAÇÃO
entre seus membros representantes das
organizações negras e intelectuais ne- Os africanos não vieram para o
gros dedicados ao estudo da matéria. Brasil livremente, como resultado de
§ 2o As modificações curricula- sua própria decisão. Vieram acorrenta-
res aprovadas aplicar-se-ão obrigatoria- dos, sob toda sorte de violências físicas
mente às escolas públicas e particulares, e morais.
a partir do ano letivo correspondente Eles e seus descendentes traba-
ao segundo ano civil após a publicação lharam por mais de quatro séculos cons-
desta lei. truindo este País. Não tiveram, no en-
34 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

tanto, a mínima compensação por esse “Art. 5o Todos são iguais perante
gigantesco trabalho. a lei, sem distinção de qualquer nature-
O escravo, no Brasil como em za, garantindo-se aos brasileiros e aos
toda a América onde a escravidão exis- estrangeiros residentes no país a invio-
tiu, foi vítima de toda espécie de atro- labilidade do direito [...] à igualdade
cidades, torturas e degradações, justifi- [...].”
cadas pela ideologia da supremacia do .....................................................
branco-europeu como uma necessidade. Esse princípio, no entanto, ainda
Necessidade de quem, perguntamos. não se constituiu num verdadeiro direito
Obviamente, não dos africanos e seus para o negro brasileiro, o qual continua
descendentes escravizados, que nunca discriminado em todos os aspectos de
foram indenizados pela espoliação do sua vida em nossa sociedade. Fazem-se
sangue e suor que verteram, cimentando necessárias, portanto, medidas concre-
a edificação do Brasil. Sem o esforço do tas para implementar o direito constitu-
seu trabalho, este País não existiria. cional da igualdade, garantida aos brasi-
leiros negros pela Constituição.
É tempo de a Nação brasileira sal-
dar essa dívida fundamental para com os O presente projeto de lei atinge
edificadores deste País. O princípio da apenas três dimensões da discriminação
isonomia na compensação do trabalho racial contra o negro no Brasil: as opor-
torna moral e juridicamente imperativa tunidades e a remuneração do trabalho,
a educação e o tratamento policial.
uma ação compensatória, da sociedade e
do Estado, destinada a indenizar, embo- Inúmeras pesquisas científicas,
ra tardiamente, o trabalho não remune- algumas patrocinadas e realizadas por
rado do negro escravizado e o trabalho órgãos internacionais, como a Organiza-
sub-remunerado do negro supostamente ção das Nações Unidas para a Educação,
libertado a 13 de maio de 1888. a Ciência e a Cultura – UNESCO, com-
provam a discriminação contra o negro
Rui Barbosa, que, na qualidade no mercado de trabalho. Em 1959, após
de Ministro da Fazenda da República, pesquisa feita no mercado de trabalho
ordenara a incineração dos documen- no Rio de Janeiro, a chefe de Coloca-
tos relativos ao tráfico escravo e à es- ção do Ministério do Trabalho, Sra Vera
cravidão, certa vez mencionou, roman- Neves, afirmou que “é o preconceito de
ticamente, que os escravos deviam ser cor que se encontra em primeiro lugar
indenizados. Entretanto nada fez para como fator de desemprego”. O mesmo
concretizar essa exigência da justiça e foi constatado em relação a Porto Ale-
da consciência cívica. gre, em pesquisa realizada pelo Sistema
A Constituição brasileira garan- Nacional de Emprego –SINE, do Minis-
te a inviolabilidade dos direitos enu- tério do Trabalho (O Jornal, 14-6-59).
merados no seu artigo 5o, cujo caput As estatísticas existentes confir-
assegura: mam o quadro inegável de desigual-
Projetos de Lei
Ação compensatória 35

dades raciais no mercado de trabalho, Os dados da Pesquisa Nacional


resultantes da discriminação. por Amostra de Domicílios _ PNAD, re-
Segundo a Pesquisa Nacional por alizada em 1976, pela Fundação Institu-
Amostra de Domicílios – PNAD, de to Brasileiro de Geografia e Estatística
1987, que pesquisou a cor da popula- - IBGE, mostram que:
ção, o negro (soma das categorias “pre- 1) as desigualdades de rendimen-
tos” e ‘’pardos’’) representa 42,8% da to entre brancos e negros aumentam à
população brasileira. Sabemos que tal proporção que o trabalbo exige mais
estatística representa uma porcentagem qualificação;
muito mais baixa do que a verdadeira 2) mesmo com maior nível de
participação do negro na nossa popu- instrução, a força de trabalho negra re-
lação, pois os entrevistados, conforme cebe menor remuneração;
denunciam os próprios técnicos em de-
3) mesmo dispondo de escolari-
mografia, tendem a negar sua condição
dade igual à do branco, o negro tende
de negros, classificando-se em outras
a preencher posições ocupacionais com
categorias, exatamente como resultado
rendimentos inferiores;
da intemalização do preconceito de cor.
Todavia, mesmo com esses números su- 4) os brancos detêm proporcio-
bestimados, é gritante a discriminação nalmente maior parcela de rendimento,
de que é objeto o negro. independentemente das categorias ocu-
pacionais em que estejam;
Em contraste com a sua partici-
pação acentuada na população, vejamos 5) mesmo nas categorias ocupa-
a participação do negro na força de tra- cionais em que os brancos representam
balho: entre aqueles que ganham mais parcela menor da força de trabalho, a
de 10 salários-mínimos, encontram-se proporção do rendimento alocada aos
apenas 12,4% de homens negros e, o brancos, como grupo, é superior à dos
que constitui um verdadeiro escândalo, negros;
somente 2,4% de mulheres negras. Isso 6) mesmo os 10% dos negros que
significa que o negro, representando mais ganham não chegam a perceber
42,8% da população brasileira e 41,9% 39% do que auferem os 10% mais bem
das pessoas economicamente ativas, re- pagos entre os brancos; o rendimento
cebe 5,6 vezes menos que os brancos médio destes é seis vezes maior do que
nos empregos mais bem remunerados. o rendimento médio dos negros que ga-
Por outro lado, dos negros inclu- nham mais. Ou seja, só como retórica
ídos entre as pessoas economicamente vazia pode-se falar em “classe média
ativas, 44,3% percebem até um salário negra” ou numa mitológica “burguesia
mínimo, enquanto os brancos situa- negra”.
dos nessa faixa de rendimento somam Sem dúvida, nada indica que a
27,0%. situação se tenha modificado desde a
36 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

publicação dos resultados da pesquisa Cremos que as medidas de ação


mencionada. compensatória e as formas de seu incen-
Na realidade, fica nítida a carac- tivo e obrigatoriedade estão definidas
terização da desigualdade de oportuni- no texto do Projeto de forma autoexpli-
dade e de remuneração do trabalho entre cativa.
negros e brancos no Brasil. Esse quadro Quadro semelhante ao constata-
de desigualdade não poderia existir se do no mercado de trabalho encontramos
se tivesse efetivado a implementação do no que diz respeito ao acesso do negro
direito à isonomia garantida pela Cons- à educação. De acordo com a Pnad de
tituição. O presente projeto de lei, por 1987, 13,1 % dos brancos carecem de
intermédio de seus artigos lo a 6o, visa à instrução ou possuem menos de um ano
aplicação desse princípio constitucional de escolaridade; entre os negros, a pro-
nas esferas da oportunidade e remune- porção é de 29,0%, ou seja, mais que o
ração do trabalho em relação ao negro. dobro. De outra parte, o número de ne-
gros com 12 anos ou mais de instrução
Seria absurdo, após quase um sé-
(1,5%) constitui 5,1 vezes menos o va-
culo durante o qual o negro permaneceu lor relativo de brancos (7,7%).
discriminado no mercado de trabalho,
Outra vez podemos constatar que
esperar que tal discriminação desapare-
tais diferenças não seriam sustentáveis
cesse espontaneamente. Faz-se impera-
caso vigorasse a igualdade racial asse-
tivo, então, o estabelecimento de metas
gurada pela Constituição. A concessão
legais e a obrigatoriedade de medidas
de bolsas compensatórias a estudantes
para implementá-las.
negros visa à correção de tais distor-
Baseado na porcentagem oficial ções, pela implementação do princípio
(embora inferior à que refletiria a rea- do direito à isonomia relativa ao aces-
lidade demográfica) da proporção de so à educação. Tal medida contribui-
negros na população global brasileira rá, igualmente, para conferir melhores
(42,8%, segundo a Pnad de 1987), o oportunidades de trabalho ao negro, em
projeto define como meta uma partici- decorrência da importância da educação
pação de 40% de negros em todos os para a qualificação do trabalhador.
níveis e escalões ocupacionais. Consta- O conteúdo da educação recebida
tando a elevada intensidade da discrimi- pelas crianças negras que têm oportuni-
nação contra a mulher negra no mercado dade de estudar representa outro aspecto
de trabalho, comprovada nas estatísticas da desigualdade racial anticonstitucional
e também em outros tipos de pesquisa, na esfera da educação. A criança branca
percebemos a necessidade de especi- estuda tendo por base um currículo em
ficar as metas relacionadas à força de que a história e a civilização européias,
trabalho negra feminina. Daí a especifi- criadas por seus antepassados, são rigo-
cidade de 20% para os homens negros e rosamente abordadas. Entretanto a civi-
20% para as mulheres negras. lização e a história dos povos africanos,
Projetos de Lei
Ação compensatória 37

dos quais descendem as crianças negras, a mentalidade policial ainda é marcada


estão ausentes do currículo escolar. A pela seguinte atitude: “Branco correndo
criança negra aprende apenas que seus é atleta; preto correndo é ladrão.” Os
avós foram escravos; as realizações tec- programas de orientação anti-racista
nológicas e culturais africanas, sobre- para policiais visam à eliminação dessa
tudo nos períodos anteriores à invasão desigualdade anticonstitucional.
e colonização européias da África, são Em resumo, as medidas de ação
omitidas. compensatória da escravidão e discrimi-
Omite-se, igualmente, qualquer nação estabelecidas pelo projeto de lei
referência à história da heróica luta dos proposto instituem maiores oportunida-
afrobrasileiros contra a escravidão e o des para o negro integrar, em proporção
racismo, tanto nos quilombos como por relativamente análoga à da participação
intermédio de outros meios de resistên- branca, as esferas da vida nacional das
cia. Comumente o negro é retratado de quais ele tem sido excluídos por tempo
forma pejorativa nos textos escolares, demasiadamente longo. Dessa forma, o
o que ocasiona efeitos psicológicos ne- presente projeto visa a contribuir para
gativos na criança negra, amplamente estabelecer, embora com bastante atra-
documentados. O mesmo quadro tende so, a justiça racial em nosso País, de
a encorajar, na criança branca, um sen- acordo com o espírito do artigo 5o da
timento de superioridade em relação ao Constituição.
negro. Fazem-se necessárias tais medi-
O artigo 7o deste projeto de lei das compensatórias em função da pró-
objetiva a correção dessa anomalia e a pria história e características específi-
implementação do direito à isonomia cas da sociedade brasileira, não sendo
assegurado pela Constituição. Da mes- necessária a referência a experiências
ma forma, tomando opcional, entre as exógenas. Desde o período imediata-
matérias de estudos religiosos, o ensi- mente pós-abolição da escravatura, o
no dos conceitos espirituais da religião negro livre reclama medidas antidiscri-
de origem africana, evita-se que a reli- minatórias no Brasil. Por intermédio da
gião da comunidade negra seja retratada imprensa negra (existente desde 1915,
como “animismo” ou conforme outras em São Paulo), da Frente Negra Brasi-
denominações pejorativas inferiorizan- leira (1929-1937, de âmbito nacional),
tes. da Convenção Nacional do Negro (São
É notória a desigualdade de tra- Paulo, 1946), do I Congresso do Negro
tamento entre negros e brancos pela Brasileiro (Rio, 1950), do Teatro Ex-
polícia. O negro é sempre o primeiro perimental do Negro (Rio e São Paulo,
suspeito. Muitas vezes, vai preso apenas 1944-68), do Movimento Negro Unifi-
por não ter documento em seu poder, o cado (desde 1978), do Ilê-Aiyê, Badauê,
que não ocorre, com a mesma freqüên- Malê Debalê e Olodum da Bahia con-
cia, relativamente aos brancos. Enfim, temporânea, do Instituto de Pesquisas
38 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

das Culturas Negras (IPCN) do Rio de IBGE. Esse fato traduz arbitrariedade
Janeiro, do Ipeafro de São Paulo e do no critério utilizado para se decidir se o
Rio de Janeiro, e de muitos outros movi- item cor deve constar ou não, deixando-
mentos, o negro vem exigindo, constan- -nos sem qualquer certeza da disponibi-
temente, que seja efetivado o compro- lidade de dados para a análise da exis-
misso constitucional que lhe assegura tência ou não da discriminação racial.
direitos iguais. No plano da ação das autoridades
Em 1946, a Declaração Final da públicas, a recente criação, pelo Gover-
Convenção Nacional do Negro enfatizou no Federal, do Programa Nacional de
a necessidade de medidas complemen- Direitos Humanos, do Grupo de Traba-
tares nas áreas da educação e economia, lho para a Eliminação da Discriminação
para que o negro pudesse realmente des- no Emprego e na Ocupação – GTEDEO
frutar de oportunidades iguais no cam- e do Grupo de Trabalho lnterministerial
po do trabalho e da sociedade em geral.
para Valorização da População Negra
Sem essas medidas complementares,
traz a inovação de levar a discussão de
uma legislação tratando meramente de
assuntos tão caros aos negros brasileiros
emprego não teria condições de efetivar,
para o interior do Estado. O primeiro
de fato, uma modificação significativa
possui entre suas metas a formulação de
no existente quadro de desigualdades no
políticas para a redução das desigualda-
mercado de trabalho.
des no Brasil. O Gtedeo e o grupo de va-
Para que se possa avaliar a imple-
lorização da população negra tratariam
mentação ou não do princípio do direito
de propor medidas compensatórias, des-
constitucional à isonomia racial, impõe-
tinadas aos negros brasileiros, nas áreas
-se a necessidade de dados estatísticos
de saúde, educação, mercado de traba-
diferenciados por categoria racial, o que
lho e meios de comunicação.
se tem convencionalmente chamado de
“quesito cor”, Nos censos demográficos Outro acontecimento de grande
brasileiros de 1872, 1890, 1940, 1950, relevância para a população negra foi
1980, no suplemento da Pnad de 1976 o seminário Multiculturalismo e Racis-
e na Pnad _ Cor da População de 1987, mo: o papel da Ação Afirmativa nos Es-
o quesito cor foi consignado. Trata-se, tados Democráticos Contemporâneos,
portanto, de uma prática bem enraiza- promovida pelo Ministério da Justiça.
da nas nossas tradições censitárias e de No discurso de abertura desse evento, o
pesquisa. Presidente Fernando Henrique Cardoso
Verifica-se, entretanto, a necessi- concitou seus participantes a usar a cria-
dade de se estabelecer a obrigatoriedade tividade para buscar soluções contra o
legal dessa prática, de forma sistemáti- preconceito e a discriminação raciais e
ca, pois nos censos de 1960 e 1970 e em afirmou expressamente ser necessário
algumas edições da Pnad o quesito cor “desmascarar” a forma como se pratica
não constou dos dados publicados pelo a discriminação racial no Brasil.
Projetos de Lei
Ação compensatória 39

Como se vê, as autoridades pú- Esperamos que o Congresso Nacional


blicas deste País estão conscientes do seja sensível a essa aspiração do negro
preconceito e da discriminação prati- por uma verdadeira democracia racial
cados contra os negros brasileiros e da no seio da Nação que ele, como nenhum
necessidade de medidas concretas para outro, tem o direito de afirmar que aju-
superá-los. dou a construir.
O presente projeto de lei traduz Sala das Sessões, 24 de abril de
os anseios de justiça e igualdade, numa 1997.
sociedade efetivamente democrática, de Senador ABDIAS NASCIMENTO.
milhões e milhões de brasileiros de ori-
Publicado no Diário do Senado Federal, de 25-4-97
gem africana, que se têm manifestado
por intermédio das várias organizações
Situação atual do projeto: Comissão de Constitui-
negras e afro-brasileiras. Há um farto ção, Justiça e Cidadania do Senado, com relatório
arquivo de pronunciamentos, manifes- favorável do relator, Senador Roberto Requião,
tos, declarações de princípios, cartas de desde 16-6-97. Lido o parecer do relator, a Comis-
reivindicações, em que se consigna a são decidiu, em 18-3-98, criar uma Subcomissão
composta pelos Senadores Roberto Requião, Je-
impaciência que aguilhoa o povo negro fferson Peres, Lucia Alcântara e Pedro Simon, sob
deste País, sequioso de justiça racial. a presidência deste último, para reexame do projeto.
Projeto de Lei do Senado no 114, O Congresso Nacional decreta:
de 1997 Art. 1o O Ministério Público pro-
moverá ação civil com o objetivo de im-
Dispõe sobre a ação civil des- por obrigação de fazer, ou de não fazer,
com as finalidades de:
tinada ao cumprimento da
obrigação de fazer ou de não fazer, I – evitar ou interromper atos da-
nosos à honra ou à dignidade de grupos
para a preservação da honra e
raciais, étnicos ou religiosos; e
dignidade de grupos raciais, étnicos
e religiosos. II – obter a reparação dos mes-
mos atos, quando não evitados.
Parágrafo único. Confere-se
legitimidade subsidiária, em caso de
omissão do Ministério Público, à socie-
dade civil que:
I – esteja constituída há pelo me-
nos um ano nos termos da lei civil; ou
II – inclua entre as suas finalida-
des institucionais a proteção ou defesa
dos interesses de grupos raciais, étnicos
ou religiosos;
42 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

§ 1o O Ministério Público, se não § 2o O valor da multa poderá ser


intervier no processo como parte, atuará elevado até ao triplo se, fixado pelo má-
obrigatoriamente como fiscal da lei. ximo, não se alterar o comportamento
§ 2o É facultado a outras socie- do réu.
dades civis ou associações, de mesma Art. 6o O juiz, ao examinar o mé-
natureza das legitimadas, habilitarem- rito, fixará o valor da reparação, consi-
-se como litisconsortes de qualquer das derada a extensão dos danos, desde que
partes. requerido na inicial da ação civil.
§ 3o Em caso de desistência ou Art. 7o Os créditos favoráveis ao
abandono da ação por sociedade ou as- autor, decorrentes de sucumbência, ex-
sociação legitimada, o Ministério Públi- cetuados os honorários advocatícios e
co a substituirá processualmente. de peritos, reverterão a fundo de defesa
e combate ao racismo, a ser criado pela
Art. 2o Convencendo-se o juiz da
Secretaria Nacional de Direitos Huma-
procedência da ação, concederá a ante-
nos.
cipação total ou parcial da tutela, antes
de ouvir a outra parte. Parágrafo Único. O fundo de de-
fesa e combate ao racismo será institu-
Art. 3o Qualquer pessoa poderá,
ído em até doze meses a contar da data
e o servidor público deverá, provocar a
de publicação desta lei.
iniciativa do Ministério Público, minis-
trando-lhe informações sobre os fatos Art. 8o Aplicam-se subsidiaria-
objeto da ação civil prevista nesta lei e mente ao disposto nesta lei o Código
indicando-lhe os respectivos elementos Penal, o Código de Processo Penal e a
Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985.
de convicção.
Art. 9o Esta lei entra em vigor na
Art. 4o Para instruir a petição
data de sua publicação.
iniciaI da ação civil, o autor poderá re-
querer às autoridades competentes as Art. 10. Revogam-se as disposi-
certidões e informações que julgar ne- ções em contrário.
cessárias, que lhe serão fornecidas no
JUSTIFICAÇÃO
prazo máximo de quinze dias.
Art. 5o Na ação civil que tenha por O preceito da dignidade huma-
objeto a obrigação de fazer ou de não fa- na define-se na exigência expressa por
zer, o juiz determinará o cumprimento Kant como princípio de máxima impe-
da prestação de atividade, ou da cessa- rativa: “Age de forma que trates a hu-
ção da atividade nociva, sob cominação manidade, tanto na tua pessoa como na
de multa diária, independentemente de pessoa de qualquer outro, sempre tam-
requerimento do autor. bém como um fim e nunca unicamente
§ 1o A multa será devida a partir como um meio”. Esse princípio de or-
do dia em que se configurar o descum- dem moral indica a condição humana
primento da determinação judicial. na relação de que todo homem possui
Projetos de Lei
Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 43

um valor não relativo como fim em si da população brasileira, de maioria ne-


mesmo, próprio, inerente: a dignidade. gra, são negados os direitos essenciais
O que se caracteriza substituível na re- à pessoa humana. O Direito é universal.
lação pressupõe sempre equivalência e Deve ser compreensível para todos os
traz em si de maneira permanente a no- homens, qual seja a raça, qual seja a cor,
ção de preço, não restritamente de valor. qual seja a condição social.
O que não permite qualquer equivalên- O Brasil é o maior país negro fora
cia é a dignidade, superior a tudo, pois da África. Entretanto, com os extremos
não dispõe o homem a obediência à lei bem desiguais, minoria muito próspera
que não seja instituída por ele próprio. de um lado e a grande maioria muito po-
Como forma desse princípio, dessa in- bre de outro, tantos em estado de com-
dependência, é a moralidade a condição pleta miséria, pondo o país na liderança
da dignidade do homem. Sendo a digni- em concentração de rendas, é o negro a
dade absoluta, cumpre ao homem esse maior vítima. Da moradia das favelas
valor moral, do que se conclui a relação para as ruas, aumentando dia a dia as mo-
silógica dignidade do homem – dignida- radas debaixo das pontes e dos viadutos.
de da lei – dignidade da sociedade, com O acesso às escolas é quase inevitavel-
respeito a todos os homens, independen- mente impossível, são proporcionalmen-
te de raça, cor, religião e outros. te raras as exceções. Sempre vítimas do
Na resposta preceitual a essa nor- preconceito e da discriminação racial,
ma, considera-se que a lei, assim insti- não se lhe permitindo a devida integra-
tuída, deverá obedecer a princípios de ção na sociedade. É a preexistência do
equidade social para o cometimento de racismo o fato gerador da divisão social
justiça, na relação mais ampla entre in- imposta ao negro brasileiro. Contudo, a
divíduo e sociedade, pertença ele a qual- legislação ainda peca pela precariedade
quer classe ou condição econômica. sobre a matéria, até mesmo carente da
No Brasil, o exemplo é totalmen- tipificação criminal da “prática do ra-
te diverso. O desequilíbrio na sociedade cismo”, definida na Carta Política como
em que vivemos nos revela uma socie- inafiançável e imprescritível.
dade desigual. De um lado, a extrema A Lei no 7.347, de 24 de julho
minoria próspera, como bem adverte de 1985, veio disciplinar a ação civil
Noam Chomsky em uma de suas obras pública como instrumento processual
sobre o injusto; de outro, a vasta maio- adequado para reprimir ou impedir da-
ria de extrema pobreza. Nesta última nos ao meio ambiente, ao consumidor, a
incluem-se os negros, discriminados bens e direitos de valor artístico, estéti-
na raça para, posteriormente e em con- co, histórico, turístico e paisagístico. O
seqüência, serem eles os discriminados preceito constante do art. 10 da referida
sociais. lei visou, pois, proteger os interesses di-
E nessa discriminação, que se- fusos da sociedade. A Constituição da
para da minoria próspera a maior parte República, no seu art. 129, inciso III,
44 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

estendeu essa proteção aos interesses tureza”. Inegável, portanto, a dispersão


difusos e coletivos, incluindo aí os bens e precariedade da legislação atual sobre
jurídicos a serem tutelados pelo Estado, a matéria, a qual exige imediato aperfei-
quando existente o dano praticado con- çoamento para uma aplicação eficaz.
tra a integridade física ou moral de al- O presente projeto destina-se à
guém, em ofensa ao direito, decorrente instituição de ação civil que pode ser
de preconceito e discriminação racial. instaurada pelo Ministério Público ou
Três meses após promulgada a por entidades da sociedade civil orga-
atual Constituição da República, surge nizada com as finalidades de evitar ou
a Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, interromper atos danosos à honra ou
de autoria do Deputado Carlos Alberto dignidade de grupos raciais, étnicos ou
Caó, que prevê punição para “os crimes religiosos, e de obter a reparação de tais
resultantes de preconceitos de raça ou de atos, quando não seja possível evitá-
cor”, mas tão-somente no que se refere a -los. Objetiva, assim, dotar os grupos
recusa ou impedimentos de acesso a ser- em questão de um instrumento ágil e
viços, locais públicos e privados, a em- eficaz que lhes possibilite enfrentar as
pregos e transportes. A Lei no 8081, de manifestações de racismo e discrimina-
21 de setembro de 1990, que teve como ção que, infelizmente, ocorrem em nos-
autor o então deputado Ibsen Pinheiro, sa sociedade em vergonhosa proporção.
acrescentou o art. 20 à Lei no 7.716/89, Sala das Sessões, 17 de junho de
mas o ato discriminatório ou precon- 1997
ceituoso ali definido só se configura se Senador ABDIAS NASCIMENTO.
cometido “pelos meios de comunicação
social ou por publicação de qualquer na- Publicado no Diário do Senado Federal de 18-6-97.
Projetos de Lei
Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 45

Parecer no 505, de 1998 legais existentes. Pondera, nesse senti-


do, que:
Da Comissão de Constituição, “A Lei no 7.347, de 24 de julho
Justiça e Cidadania sobre o Projeto de de 1985, veio disciplinar a ação civil
Lei do Senado no 114, de 1997, de auto- pública como instrumento processual
ria do Senador Abdias Nascimento, que adequado para reprimir ou impedir da-
“dispõe sobre a ação civil destinada ao nos ao meio ambiente, ao consumidor, a
cumprimento da obrigação de fazer ou de bens e direitos de valor artístico, estéti-
não fazer, para a preservação da honra e co, histórico, turístico e paisagístico. O
dignidade de grupos raciais, étnicos e re- preceito constante do art. 1o da referida
ligiosos”. lei visou, pois, proteger os interesses
Relator: Senador Josaphat Marinho difusos da sociedade. A Constituição
da República, no seu art. 129, inciso m,
Relatório estendeu esta proteção aos interesses di-
fusos e coletivos, incluindo aí os bens
1. Submete-se a esta Comissão, jurídicos a serem tutelados pelo Estado,
para decisão terminativa, o PLS no 114, quando existente o dano praticado con-
de 1997, que “dispõe sobre a ação civil tra a integridade fisica ou moral de al-
destinada ao cumprimento da obrigação guém, em ofensa ao direito, decorrente
de fazer ou de não fazer, para a preser- de preconceito e discriminação racial.
vação da honra e dignidade de grupos Três meses após promulgada a
raciais, étnicos e religiosos”. atual Constituição da República, surge
2. Destina-se, portanto, à institui- a lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989,
ção de ação civil que pode ser instaurada de autoria do Deputado Carlos Alberto
pelo Ministério Público ou por entida- Caó, e prevê punição para “os crimes re-
des de sociedade civil organizada com sultantes de preconceitos de raça ou de
as finalidades de evitar ou interromper cor”, mas tão-somente no que se refere
atos danosos à honra ou dignidade de a recusa ou impedimentos de acesso a
grupos raciais, étnicos ou religiosos, e serviços, locais públicos a privados, a
de obter a reparação de tais atos, quan- empregos e transportes. A Lei no 8 .081,
do não seja possível evitá-los. Objetiva, de 21 de setembro de 1990, autor o ex-
assim, “dotar os grupos em questão de -Deputado Ibsen Pinheiro, acrescentou
um instrumento ágil e eficaz que lhes o art. 20 à Lei no 7.716/89, mas o ato
possibilite enfrentar as manifestações discriminatório ou preconceituoso ali
de racismo e discriminação que, infeliz- definido só se configura se cometido
mente, ocorrem em nossa sociedade em “pelos meios de comunicação social ou
vergonhosa proporção”. por publicação de qualquer natureza.
3. Justifica a necessidade da pro- “Inegável, portanto, a dispersão e preca-
posta para suprir lacunas dos diplomas riedade da legislação atual sobre a ma-
46 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

téria, a qual exige imediato aperfeiçoa- para tanto, sugestões apresentadas pela
mento para uma aplicação eficaz”. Associação Nacional dos Procuradores
4. Para tal fim, o art. lo do proje- da República, subscritas pela Subprocu-
to confere privativamente ao Ministério radora-Geral da República, Dra Ela Cas-
Público a iniciativa para a proposição da tilho, Presidente da ANPR.
ação civil cabível, e defere, no seu pará- 9. Com efeito, há que se afastar a
grafo único, legitimidade subsidiária, para restrição configurada no art. 1o da propo-
o mesmo propósito, à sociedade civil que sição original, segundo a qual a iniciativa
preencha os requisitos enumerados nos in- cabe privativamente ao Ministério Pú-
cisos I e II do parágrafo único daquele ar- blico. É a regra, neste tipo de legislação,
tigo. O § 2º faculta outras sociedades civis que a iniciativa seja concorrente e não
ou associações e habilitarem-se como li- sucessiva. Propõe-se, para tanto, emenda
tisconsortes de qualquer das partes. O § 3o modificativa ao caput desse artigo.
prevê a substituição processual, em caso
10. Há que se afastar, também, a
de desistência ou abandono da ação, por
restrição segundo a qual o ingresso da
sociedade ou associação legitimada pelo
ação subordina-se a eventual inação do
Ministério Público.
Ministério Público, propondo-se, para
5. Prevê, nos demais artigos, nor- tanto, emenda modificativa ao parágra-
mas processuais a serem atendidas pela
fo único do art. 1o, que se transforma no
ação civil pública. Estipula, no art. 5o,
caput do artigo seguinte (art. 2o), para
a cominação de penalidade diária, inde-
conformá-lo à aludida regra da iniciati-
pendentemente de requerimento do autor.
va concorrente.
6. O art. 7o remete à criação do
11. Também o § 3o do art. 1o, deve
fundo de defesa e combate ao racismo à
ser ajustado a esta regra. Modifica-se a
Secretaria Nacional de Direitos Huma-
expressão “substituirá processualmen-
nos, no prazo de 12 meses a contar da
data da publicação da presente lei. te”, pois, sendo a competência concor-
rente, “o Ministério Público ou outro
7. Já o art. 8o faz aplicar, subsidia-
legitimado assumirá a titularidade ati-
riamente ao disposto na lei, o “Código
va.” Amplia-se essa possibilidade, pois
Penal, o Código de Processo Penal e a
se afasta a restrição de somente o Mi-
Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985”.
nistério Público poder dar seguimento à
É o relatório. ação, no caso de desistência ou abando-
no por parte do autor original.
Discussão
A norma constitucional (art. 129,
8. A proposta examinada é com- §1º) diz quanto às funções institucionais
patível com os novos parâmetros cons- do Ministério Público que:
titucionais em vigor. Entretanto, algu- § 1o A legitimação do Ministério
mas modificações ou reparos devem para as ações civis previstas neste arti-
ser feitos ao texto proposto. Acatamos, go não impede a de terceiros, nas mes-
Projetos de Lei
Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 47

mas hipóteses, segundo o disposto nesta “Art. 2o A ação principal e a cau-


Constituição e na lei. telar poderão ser propostas pelo Minis-
12. Propõe-se, ainda, modifica- tério Público ou sociedade civil, caben-
ção do art. 7o do projeto, pois tal como do a esta quando:
está redigido, o artigo remete à criação I – esteia constituída há pelo me-
do fundo de defesa e combate ao racis- nos um ano nos termos da lei civil; ou
mo à Secretaria Nacional de Direitos
II – inclua entre as suas finalida-
Humanos, quando estes podem apenas
des institucionais a proteção ou defesa
ser criados através de lei.
dos interesses de grupos raciais, étnicos
13. Por ser tratar de ação civil, há ou religiosos.
que se ajustar o art. 8o à legislação apro-
priada, aplicável subsidiariamente. Às § 1o O Ministério Público, se não
ações civis aplicam-se os dispositivos intervier no processo como parte, atuará
da lei civil e processo civil e não a lei obrigatoriamente como fiscal da lei.
penal e o processo penal, como consta § 2o É facultado a outras socie-
da relação original. dades civis ou associações, da mesma
natureza das legitimadas, habilitarem-se
Voto como litisconsortes de qualquer das par-
tes.
14. Nessas condições, votamos
pela aprovação do PLS no 114, de 1997, Emenda no 3 _ CCJ
que, em verdade complementa a Lei no
.716, de 5-1-89 e a de no 8.081, de 21-9- Dê-se ao § 3o do art. I o (renume-
90, com as seguintes emendas: rado para art. 2o) a seguinte redação:

Emenda no 1 _ CCJ Art. 1o .....................................


§ 3o Em caso de desistência ou
Dê-se ao caput do art. 1o a seguin- abandono da ação por sociedade ou as-
te redação: sociação legitimada, o Ministério Públi-
“Art. 1o É cabível ação civil tendo co ou outro legitimado assumirá a titu-
por objeto impor obrigação de fazer, ou laridade ativa.
não fazer, com a finalidade de:
Emenda no 4 _ CCJ
...................................................”

Emenda no 2 _ CCJ Dê-se ao art. 7o do projeto a se-


guinte redação:
Dê-se ao parágrafo único do art. “Art. 7o Havendo condenação em
o
1 a seguinte redação, transformando-o dinheiro, a indenização pelo dano rever-
em caput do artigo subsequente (art. 2o), terá a um fundo de defesa e combate ao
renumerando-se os demais artigos: racismo, a ser instituído no prazo de um
48 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

ano a contar da data da publicação desta Art. 2o A ação principal e a caute-


lei”. lar poderão ser propostas pelo Ministé-
rio Público ou sociedade civil, cabendo
Emenda no 5 _ CCJ a esta quando:
I – esteja constituída há pelo
Dê-se ao art. 8o do projeto a se- menos um ano nos termos da lei ci-
guinte redação: vil; ou
“Art. 8o Aplicam-se, subsidiaria- II – inclua entre as suas finalida-
mente ao disposto nesta lei, o Código des institucionais a proteção ou defesa
Civil, o Código de Processo Civil e a dos interesses de grupos raciais, étnicos
Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985.” ou religiosos.
Sala das Comissões, 20 de maio § 1o O Ministério Público, se não
de 1998 – Bernado Cabral – Presiden- intervier no processo como parte, atuará
te – José Fogaça – Relator – Josaphat obrigatoriamente como fiscal da lei.
Marinho – Arlindo Porto – Leomar § 2o É facultado a outras socie-
Quintanilha – Levy Dias – Jefferson dades civis ou associações, da mesma
Péres – José E. Dutra – Antonio Car- natureza das legitimadas, habilitarem-
los Valadares – Romeu Tuma – Djal- -se como litisconsortes de qualquer das
ma Bessa – Lúcio Alcântara. partes.
§ 3o Em caso de desistência ou
TEXTO FINAL APROVADO PELA abandono da ação por sociedade ou as-
CCJ, AO PROJETO DE LEI DO SE- sociação legitimada, o Ministério Públi-
NADO No 114, DE 1997 co ou outro legitimado assumirá a titu-
laridade ativa.
Dispõe sobre a ação civil destinada ao
Art. 3o Convencendo-se o juiz da
cumprimento da obrigação de fazer procedência da ação, concederá a ante-
ou de não fazer, para a preservação cipação total ou parcial da tutela, antes
da honra e dignidade de grupos ra- de ouvir a outra parte.
ciais, étnicos e religiosos.
Art. 4o Qualquer pessoa poderá,
O Congresso Nacional decreta: e o servidor público deverá, provocar a
iniciativa do Ministério Público, minis-
Art. 1o É cabível ação civil tendo trando-lhe informações sobre os fatos
por objeto impor obrigação de fazer, ou objeto da ação civil prevista nesta lei e
não fazer, com a finalidade de: indicando-lhe os respectivos elementos
I – evitar ou interromper atos da- de convicção.
nosos à honra ou à dignidade de grupos Art. 5o Para instruir a petição in
raciais, étnicos ou religiosos; e icial da ação civil, o autor poderá
II – obter a reparação dos mes- requerer às autoridades competentes as
mos atos, quando não evitados. certidões e informações que julgar ne-
Projetos de Lei
Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 49

cessárias, que lhe serão fornecidas no dente da Comissão de Constituição, Jus-


prazo máximo de quinze dias. tiça e Cidadania.
Art. 6 o Na ação civil que tenha
por objeto a obrigação de fazer ou de OF. No 291/1998/CCJ
não fazer, o juiz determinará o cum-
primento da prestação de atividade, Brasília, 20 de maio de 1998
ou da cessação da atividade nociva,
sob cominação de multa diária, inde-
pendentemente de requerimento do Senhor Presidente,
autor.
§ 1o A multa será devida a partir Nos termos regimentais, comu-
do dia em que se configurar descumpri- nico a V. Exa que em reunião realizada
mento da determinação judicial. nesta data esta Comissão deliberou pela
aprovação, com as emendas de nos I a
§ 2o O valor da multa poderá ser 5 CCJ, do Projeto de Lei do Senado no
elevado até ao triplo se, fixado pelo má- 114, de 1997, que “Dispõe sobre a Ação
ximo, não se alterar o comportamento Civil destinada ao cumprimento da obri-
do réu. gação de fazer ou de não fazer, para a
Art. 7o O juiz, ao examinar o mé- preservação da honra e dignidade de
rito, fixará o valor da reparação, consi- grupos raciais, étnicos e religiosos”.
derada a extensão dos danos, desde que Cordialmente, – Senador Bernar-
requerido na inicial da ação civil. do Cabral, Presidente da Comissão de
Art. 8o Havendo condenação em Constituição, Justiça e Cidadania.
dinheiro, a indenização pelo dano rever-
terá a um fundo de defesa e combate ao Situação atual do projeto: tendo sido considerado
aprovado definitivamente pelo Senado em 13-10-
racismo, a ser instituído no prazo de um
98, foi encaminhado à Câmara dos Deputados,
ano a contar da data da publicação desta onde recebeu o número PLno 4.800/98. Em 10-11-
lei. 98 foi apresentado à Mesa da Câmara requerimen-
to solicitando urgência para tramitação do projeto,
Parágrafo único. O fundo de de-
assinado pelos líderes de todos os partidos. A pe-
fesa e combate ao racismo será ins- dido da liderança do Governo, o requerimento foi
tituído em até doze meses a contar da retirado da pauta do Plenário . O projeto depende
data de publicação desta Lei. de pareceres das Comissões de: Defesa do Consu-
midor, Meio Ambiente e Minorias e Constituição e
Art. 9o Aplicam-se, subsidiaria- Justiça e de Redação.
mente ao disposto nesta Lei, o Código
Civil, o Código de Processo Civil e a
Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985.
Art. 10. Esta lei entra em vigor na
data de sua publicação.
Sala da Comissão, 20 de maio de
1998._ Senador Bernardo Cabral, Presi-
Emenda ao Projeto de Lei da Câ- EMENDA No I _ PLEN
mara no 25, de 1997
Do Senador ABDIAS NASCIMENTO

Dá nova redação ao art. 33 Altere-se a redação do art. 1o do Projeto


da Lei no 9.394, de 20-12-96 que de Lei da Câmara no 25, de 1997, para
estabelece as diretrizes e bases da se dar aos parágrafos 1o e 2o do art. 33
educação nacional da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de
1996, a seguinte redação:

“Parágrafo único. Os sistemas de


ensino estabelecerão:
I – os objetivos do ensino religio-
so e seus respectivos conteúdos progra-
máticos;
II – as normas para a habilitação e
admissão dos professores;
III – a regulamentação dos proce-
dimentos para a definição dos objetivos
e conteúdos previstos no inciso I deste
parágrafo, incluindo sempre mecanis-
mos para se ouvir as diferentes denomi-
nações religiosas.”
52 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

JUSTIFICAÇÃO Tal fato nos parece um indica-


dor seguro de que seria desnecessária
Tanto o parágrafo 1o quanto o a constituição de uma entidade civil
parágrafo 2o do artigo 33, como estão permanente, quando comissões tempo-
redigidos no Projeto da Câmara, falam rárias regulamentadas e criadas pelos
em “definição dos conteúdos do ensino próprios sistemas de ensino oferecem
religioso”. maior flexibilidade e mais facilidade
Trata-se, portanto, de um deslize para o diálogo e o trabalho conjunto das
que pode passar despercebido por quem denominações religiosas, além de se en-
não é especialista em Educação, mas quadrarem dentro do espírito descentra-
que salta aos olhos dos pedagogos, pois, lizador da LDB.
de acordo com a moderna Pedagogia e Além disso, a redação do Projeto
as Ciências da Educação, em primeiro dá a entender que haveria apenas uma
lugar, devem ser definidos os objetivos
entidade civil para todo o território na-
educacionais, ou seja, os comportamen-
cional, a qual deveria ser ouvida por
tos que devem ser adquiridos, mudados
quaisquer sistemas de ensino, federal,
ou reafirmados pelo educando. Só então
estadual ou municipal, que fossem regu-
é que se selecionam os conteúdos pro-
lamentar a matéria, o que dificultaria as
gramáticos pois estes são meios para as
decisões, sobrecarregaria a citada enti-
mudanças comportamentais.
dade e inviabilizaria a imediata regula-
Consideramos, portanto, que de-
mentação da matéria pelos sistemas de
vem ser definidos, primeiro os fins que
ensino.
se tem em vista, para, só então, tratar
dos meios para se atingi-los, o que justi- Analisando-se esta matéria pelo
fica a aprovação desta Emenda. lado constitucional, acreditamos que a
aprovação da redação dada pelo Projeto
Quando ao parágrafo segundo
temos outra observação, pois ele man- poderia gerar questionamentos no Poder
da os sistemas de ensino ouvirem “en- Judiciário, pois a obrigatoriedade das
tidade civil, constituída pelas diferentes instituições e grupos religiosos de cria-
denominações religiosas”. rem uma entidade civil para represen-
tá-los pode ser interpretada como uma
A prática da criação, em algumas
intromissão indevida no Estado na vida
unidades da Federação, de Comissões,
formadas com a participação de repre- das instituições privadas.
sentantes das diferentes denominações Os dois parágrafos referem-se
religiosas, para opinarem em relação a a incumbências que são estabelecidas
assuntos relacionados com o ensino re- como responsabilidades dos sistemas de
ligioso, tem sido uma experiência posi- ensino, e, portanto, as regras da boa téc-
tiva pois todas elas cumpriram bem suas nica legislativa aconselham uma agluti-
funções. nação dos dois dispositivos.
Projetos de Lei
Ensino religioso nas escolas públicas 53

Assim sendo, justifica-se a apro-


vação desta Emenda Aglutinativa e de
Redação.
Sala das Sessões, 8 de julho de
1997.
Senador ABDIAS NASCIMENTO.

Publicado no Diário do Senado Federal, de 9-7-97


Projeto de Resolução no 126, de O Congresso Nacional resolve:
1997
Art. 1o Fica instituído o Prêmio
Institui o Prêmio Cruz e Sou- Cruz e Sousa, destinado a agraciar au-
tores de trabalhos alusivos à comemo-
sa e dá outras providências.
ração do centenário de morte do poeta
brasileiro, a ser celebrado em março de
O projeto foi aprovado no 1998.
Senado na sessão de 10 de dezem- Art. 2o Para proceder à apreciação
bro de 1997, na Câmara dos Depu- dos trabalhos concorrentes será consti-
tados, na sessão de 22 de janeiro de tuído um Conselho a ser integrado por
1998 e promulgado em 29 de janei- cinco membros do Congresso Nacional
ro de 1998, por meio da Resolução e por seu Presidente que, por sua vez,
no 1, de 1998-CN. fará a indicação desses parlamentares,
logo após a aprovação deste Projeto de
Resolução.
Parágrafo único. A prerrogativa
da escolha do Presidente do Conselho
caberá aos seus próprios membros, que
o elegerão entre seus integrantes.
56 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

Art. 3o O teor do Prêmio Cruz e O início da carreira literária desse


Sousa, bem como o formato, as regras e filho de escravos negros, quando ainda
os critérios que presidirão à elaboração vivia em Santa Catarina, foi pontuada
dos trabalhos concorrentes, serão suge- por páginas sentimentais e textos de
ridos pelo Conselho à Mesa Diretora do cunho libertário,já que toda a sua obra
Congresso Nacional e publicamente di- foi profundamente marcada pela luta
vulgados. contra a escravidão e o preconceito ra-
Art. 4o Os trabalhos concorrentes cial.
deverão ser encaminhados à Mesa Di- Eventos de sua biografia, além
retora do Congresso Nacional até o dia do fato de ser negro, justificam a ado-
19 de março de 1998, dia consagrado ao ção dessa bandeira de luta. Houve, in-
centenário de morte do escritor Cruz e clusive, um momento em que o precon-
Sousa. ceito o impediu de assumir o cargo de
promotor, em Laguna, para o qual fora
Art. 5o O Prêmio será conferido
nomeado.
em sessão do Congresso Nacional espe-
cialmente convocada para este fim, a se Foi após a sua mudança para o
realizar até o mês de junho seguinte. Rio de Janeiro, em 1890, que Cruz e
Sousa integrou o primeiro grupo sim-
Art. 6o A Diretoria Geral ofere- bolista brasileiro, do qual se tomou
cerá apoio administrativo ao funciona- expoente maior. Foi a partir de sua
mento do Conselho. obra poética, segundo juízo dos mais
Art. 7o Esta resolução entra em importantes historiadores da literatura
vigor na data de sua publicação. brasileira, que se renovou a expressão
poética em língua portuguesa, com a
JUSTIFICAÇÃO incorporação de um código verbal pra-
ticamente novo.
Em boa hora vem o Congresso É intenção precípua da presente
Nacional, por via legislativa, prestar proposta, dirigida, principalmente, para
justa homenagem àquele que constitui as novas gerações, nessa quadra em que
um dos marcos da literatura e da cultura a juventude mostra-se carente de parâ-
brasileiras: o poeta Cruz e Sousa. metros cívicos e culturais: o resgate da
Nascido em 24 de novembro de figura e da postura exemplar de Cruz e
1861, na cidade de Desterro, atual Flo- Sousa.
rianópolis, em Santa Catarina, Cruz e Permitimo-nos lembrar, ain-
Sousa viveu boa parte de sua vida no da, a dívida que a sociedade brasileira
Rio de Janeiro, onde produziu a parce- contraiu com aqueles que abraçaram a
la mais importante de sua extensa obra. bandeira de luta em favor dos espolia-
Minado pela tuberculose, morreu preco- dos e excluídos, particularmente dos
cemente, aos 36 anos, em Juiz de Fora, sumariamente discriminados por moti-
Minas Gerais, em 19 de março de 1898. vos raciais. Nesse panorama, destaca-
Projetos de Lei
Prêmio Cruz e Sousa 57

-se Cruz e Sousa. Nas palavras de Alceu É, portanto, esse grande nome,
Amoroso Lima, a grandiosidade de sua merecedor de nossa reverência, que o
obra chamou a atenção para “esse hu- presente projeto de resolução pretende
homenagear. É para a meritória iniciati-
milde filho de uma raça que, até então,
va que encarecemos o acolhimento pe-
não produzira nenhuma figura marcante los ilustres pares.
nas nossas letras”.
Sala das Sessões, 25 de setembro
Nesse final de século, em que as
de 1997.
reivindicações dos movimentos negros
têm redundado em consideráveis avan- Senador ABDIAS NASCIMENTO
ços sociais, é importante trazer à baila Senador ESPERIDIÃO AMIN.
a figura de Cruz e Sousa, o homem e a
Publicado no Diário do Senado Federal, de 26-9-97
obra.
Parecer no 778, de 1997 Da Comissão de Educação, sobre o Pro-
jeto de Resolução do Senado no 126, de
1997.

1. Relatório

O Projeto de Resolução no 126, de


1997, apresentado pelos senhores Sena-
dores Abdias Nascimento e Esperidião
Amin, institui o Prêmio Cruz e Sousa
destinado a agraciar trabalhos alusivos
à comemoração do centenário da morte
do poeta brasileiro, que será celebrado
em março de 1998.
O projeto em tela prevê a cons-
tituição de um Conselho que se in-
cumbirá da apreciação e seleção dos
trabalhos, bem como da definição do
formato, das regras e dos critérios que
60 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

nortearão a apresentação dos concor- muita batalha, seu próprio espaço


rentes, devendo contar com ampla di- na sociedade e nas letras brasileiras,
vulgação pública. conforme atestam passagens de sua
biografia. Essa luta foi traduzida em
O art. 4o do presente projeto fixa
páginas que refletem seu espírito li-
a data de 19 de março de 1998, cente-
bertário e sua competente combativi-
nário da morte do escritor Cruz e Sou-
dade.
sa, como prazo para a apresentação dos
trabalhos à Mesa Diretora do Congresso Por tais méritos, o poeta já se faz
Nacional. merecedor da importante homenagem
proposta pelo Projeto em análise.
A láurea será conferida em sessão
do Congresso Nacional convocada es- No entanto, a relevância dessa
pecialmente para este fim até junho de iniciativa reside, de igual modo, no
1998, conforme dispõe o art. 5o. imperativo de os poderes constituídos
tomarem a dianteira no processo de
O projeto estipula, ainda, que a resgate das figuras importantes da nos-
Diretoria-Geral do Senado Federal ofe- sa história e da nossa tradição política,
recerá suporte administrativo ao traba- para que possam ocupar o seu lugar
lho do Conselho. de referência da sociedade brasileira,
Em exame na Comissão de Edu- particularmente para as gerações mais
cação do Senado Federal, o projeto jovens.
não recebeu emendas no prazo regi- Um país define sua identidade
mental. quando se reconhece em suas desta-
cadas figuras históricas, que, no de-
2. Análise sempenho de diferentes atividades,
contribuíram para a consolidação dos
É bastante oportuna a iniciativa princípios democráticos. Trazer à luz
do Congresso Nacional de se adian- o exemplo das referidas figuras é uma
tar às comemorações do centenário prática que merece inteiro respaldo,
de morte daquele que foi o maior dos pois é por seu intermédio que pode-
nossos poetas simbolistas. Além de sua mos exercer plenamente a nossa cida-
importante obra literária -assim reco- dania. O presente projeto cumpre esse·
nhecida por destacados historiadores propósito.
da literatura brasileira-, merece desta-
3. Voto
que sua trajetória de engajamento con-
tra as perversas consequências do pre-
Nesse sentido, por considerar-
conceito racial.
mos que a meritória proposta em exa-
Filho de escravos, como bem me se encontra em perfeita consonân-
informa a justificação do Projeto, cia com os ditames constitucionais,
Cruz e Sousa teve que buscar, com além de não apresentar óbices de na-
Projetos de Lei
Prêmio Cruz e Sousa 61

tureza jurídica, pronunciamo-nos favo-


ravelmente à aprovação do Projeto de
Resolução no 126, de 1997.
Senador OTONIEL MACHADO
Relator.

Publicado no Diário do Senado Federal, de 28·11-97


Parecer no 779, de 1997 Da Comissão Diretora, sobre o Proje-
to de Resolução do Senado no 126, de
1997.

1. Relatório

Vem ao exame desta Comissão


Diretora o Projeto de Resolução do Se-
nado no 126 de 1997, CN, de autoria dos
nobres Senadores Abdias Nascimento e
Espiridião Amin, instituindo o Prêmio
Cruz e Sousa, destinado a agraciar au-
tores de trabalhos alusivos à comemora-
ção do centenário da morte desse gran-
de poeta simbolista, que transcorrerá no
mês de março de 1998.
O projeto estabelece:
64 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

I – que o Presidente do Congres- 2. Parecer


so Nacional indicará cinco parlamenta-
res para compor um Conselho, ao qual A proposta sob exame se inse-
incumbirá: re nas comemorações do centenário da
morte do grande poeta simbolista brasi-
a) eleger seu Presidente;
leiro João de Cruz e Sousa.
b) apreciar os trabalhos concorren- Nascido em 24 de novembro de
tes; 1861, filho de escravos, Cruz e Sousa,
sofrendo toda espécie de preconceitos,
c) sugerir à Mesa Diretora do Con-
conseguiu sobrepujar as dificuldades
gresso, para divulgação pública, o
econômicas e sociais que marcaram sua
teor do Prêmio, bem como o forma-
vida e conquistar, por meio de seu ta-
to, as regras e os critérios que pre-
lento e de sua brilhante criação literária,
sidirão a elaboração dos trabalhos
um lugar de destaque no panteão dos
concorrentes;
grandes escritores brasileiros de todos
II – que os trabalhos deverão os tempos.
ser encaminhados à Mesa Diretora Infelizmente, homenagear os
do Congresso até o dia 19 de março grandes vultos de nosso passado históri-
de 1998, data em que se comemora o
co e cultural é um costume que não tem
centenário da morte do escritor Cruz
sido cultivado com a intensidade que a
e Sousa.
nossa nacionalidade merece. Tanto mais
III – que o prêmio será conferi- no caso de Cruz e Sousa, representante
do em sessão do Congresso Nacional de uma raça submetida a uma das mais
especialmente convocada para este odiosas e indignas discriminações que
fim, a se realizar até o mês de junho o ser humano já pôde perpetrar contra
seguinte; seus semelhantes.

Por isso tudo, a iniciativa de


IV – que a Diretoria-Geral ofere-
resgatar a memória de Cruz e Sousa,
cerá o apoio administrativo necessário
na oportunidade do centenário de sua
ao funcionamento do Conselho.
morte, mediante a instituição do prê-
O projeto foi submetido à Comis- mio proposto, só pode merecer todo o
são de Educação que, considerando-o, nosso apoio, pois irá redundar, certa-
além de meritório, jurídico e constitu- mente, em lições de civismo e digni-
cional, manifestou-se favoravelmente à dade, de que sua vida e sua obra estão
sua aprovação. repletas, erigindo-se em exemplo a
ser perenizado na lembrança de nosso
É o relatório. povo.
Projetos de Lei
Prêmio Cruz e Sousa 65

Assim sendo, não hesitamos em A obra de Cruz e Sousa


propor a aprovação do presente projeto imensamente repousa
de resolução, que homenageia de forma em “Tropas e fantasias’.
merecida esta figura ímpar de nossas le-
Em “Missal” e “Evocações “,
tras nacionais. Pois:
“Broquéis “, “Faróis “, Emoções
O resgate da memória, de um mundo de poesias.
da vida, da trajetória
Acato o requerimento
do vate catarinense
e lhe dou deferimento
é gesto para ser louvado
por seu aspecto legal.
é mérito para o Senado
Será um belo concurso
é honra que nos pertence.
e vai ter muito discurso
O poeta simbolista
na sua terra natal.
integra pequena lista
de poetas geniais. Os autores, na verdade,
Tem uma história bonita. revelam identidade
é triste, mas não evita que cada história projeta.
belezas sentimentais. Abdias pela raça.
E Amin por ter graça
Era filho de um escravo, de ser da mesma praça
mas, preto e pobre, foi bravo onde nasceu o poeta.
ante tudo que sofreu.
Casou com Gavita Rosa, O meu voto é favorável
que morreu tuberculosa, a essa justa medida.
como o poeta morreu. Que nosso plenário acate
essa homenagem ao vate
Sua esposa enlouqueceu que vai servir de resgate
depois que um filho morreu duma história e duma vida.
e um outro morreu depois.
Senador RONALDO CUNHA LIMA
E a morte, não satisfeita, Relator
ainda ficou na espreita
e em breve levou os dois. Publicado no Diário do Senado Federal, de 28-11-97
Ato do Congresso Nacional Faço saber que o Congresso Na-
cional aprovou, e eu, Antonio Carlos
Magalhães, Presidente do Senado Fe-
Promulga a Resolução no 1, de deral, nos termos do parágrafo único do
1998-CN, que institui o art. 52 do Regimento Comum, promul-
Prêmio Cruz e Sousa go a seguinte

RESOLUÇÃO

No 1, DE 1998-CN

Institui o Prêmio Cruz e Sousa e


dá outras providências,

O Congresso Nacional resolve:


Art, 1o É instituído o Prêmio Cruz
e Sousa, destinado a agraciar autores de
trabalhos alusivos à comemoração do
centenário de morte do poeta brasileiro,
a ser celebrado em março de 1998,
68 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

Art. 2o Para proceder à apreciação ço de 1998, dia consagrado ao centená-


dos trabalhos concorrentes será consti- rio de morte do escritor Cruz e Sousa.
tuído um Conselho a ser integrado por Art. 5o O Prêmio será conferido
cinco membros do Congresso Nacional em sessão do Congresso Nacional espe-
e por seu Presidente que, por sua vez, cialmente convocada para este fim, a se
fará a indicação desses parlamentares, realizar até o mês de junho seguinte.
logo após a aprovação desta Resolução. Art. 6o A Diretoria-Geral do Se-
nado Federal oferecerá o apoio adminis-
Parágrafo único. A prerrogativa
trativo ao funcionamento do Conselho.
da escolha do Presidente do Conselho
caberá aos seus próprios membros, que Art. 7o As despesas decorrentes
da aplicação desta Resolução correrão à
o elegerão entre seus integrantes.
conta do orçamento do Senado Federal.
Art. 3o O teor do Prêmio Cruz e
Art. 8o Esta resolução entra em
Sousa, bem como o formato, as regras e
vigor na data de sua publicação.
os critérios que presidirão a elaboração
dos trabalhos concorrentes, serão suge- Senado Federal, 29 de janeiro de 1998
ridos pelo Conselho à Mesa do Congres-
Senador ANTONIO CARLOS MAGALHÃES
so Nacional e publicamente divulgados.
Presidente do Senado Federal.
Art. 4o Os trabalhos concorrentes
deverão ser encaminhados à Mesa do
Congresso Nacional até o dia 19 de mar- Publicado no Diário Oficial da União, de 30-1-98
Projeto de Lei do Senado no O CONGRESSO NACIONAL
234, de 1997 decreta:

Inscreve os nomes de João de Deus Nasci- Art. 1o Em memória aos duzen-


mento, Manuel Faustino dos Santos Lira, tos anos da Conjuração Baiana de 1798,
Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas serão inscritos no “Livro dos Heróis da
Torres, líderes da Conjuração Baiana de Pátria”, que se encontra no Panteão da
1798, no “Livro dos, Heróis da Pátria”. Liberdade e da Democracia, os nomes de
seus líderes: João de Deus Nascimento,
Manuel Faustino dos Santos Lira, Luís
Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas
Torres.

Art. 2o Esta lei entra em vigor na


data de sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO

A Conjuração Baiana, conhecida


como revolta dos Alfaiates, ocorrida na
Bahia, em 1798, e um dos mais impor-
tantes movimentos sociais de contesta-
ção do Brasil Colônia contra a Metró-
pole, padece de um esquecimento que
merece reparação.
70 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

A história oficial tem dedicado rios baianos, todos mulatos e pardos,


muito de seu tempo e empenho no senti- lutaram pela emancipação dos escra-
do de esclarecer e difundir a relevância vos, perseguindo o ideal de instalação
da Inconfidência Mineira, acontecida de um governo competente que não
nove anos antes, em Minas Gerais, e fizesse distinção de raça entre os ci-
perpetuada graças à justa magnitude que dadãos.
tem sido conferida à figura de seu líder
máximo, Joaquim José da Silva Xavier, Sentenciados com a pena de mor-
o Tiradentes. te, os líderes João de Deus Nascimento,
Manuel Faustino dos Santos Lira, Luís
Há, no entanto, uma caracterís-
tica que precisa ser resgatada e que Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas
é fundamental para a compreensão, Torres foram executados e tiveram seus
tanto daquele período, quanto do pa- corpos esquartejados. Como Tiradentes,
pel desempenhado pela Conjuração foram marcados para o sacrifício, como
Baiana na história brasileira. Em Mi- forma de aplacar a fúria da Coroa por-
nas, o movimento revolucionário foi tuguesa, e demonstraram a bravura dos
eminentemente político e conduzido mártires.
por intelectuais, sacerdotes e abonados A intenção da presente iniciativa,
proprietários de terras. Na Bahia, ao portanto, reside, sobretudo, no resgate
contrário, a insurreição assumiu um ca- desses humildes heróis brasileiros, que,
ráter social e foi liderada por gente do
tanto quanto Tiradentes, simbolizam o
povo, como alfaiates e soldados, todos
espírito republicano. Mais que isso, ma-
mulatos e pobres, sem nenhuma perso-
terializam a luta contra o preconceito
nagem de destacada situação na escala
racial e o lançamento das bases de uma
social.
sociedade democrática. Uma das suas
Contudo, tanto a Inconfidência
proclamações, divulgada em plena re-
Mineira quanto a Conjuração Baiana
volução, declarava: “Quer o povo que
foram movimentos que contribuíram
todos os membros militares de linha,
de modo definitivo para a liberdade do
milícia e ordenanças, homens brancos,
País, abrindo caminho para o grito da
Independência e os primeiros passos da pardos e pretos concorram para a liber-
República. dade popular.”
Revolução articulada nas ruas A inscrição dos líderes da Conju-
entre escravos e libertos, soldados e ração Baiana no “Livro dos Heróis da
artífices, operários e agricultores, o Pátria”, permanentemente depositado
movimento baiano teve o objetivo de no Panteão da Liberdade e da Democra-
propiciar aos homens do povo acesso cia, promove o justo resgate, para a cena
aos postos de trabalho que lhes eram brasileira, de um importante episódio da
negados por mero preconceito de cor. história nacional, no momento em que
Em última instância, os revolucioná- ele completa duzentos anos.
Projetos de Lei
Conjuração Baiana 71

Nesse sentido, considerando sua


oportunidade, esperamos a acolhida do
presente Projeto de Lei pelos ilustres
pares.

Sala das Sessões, 23 de outubro de 1997.

Senador ABDIAS NASCIMENTO

Publicado no Diário do Senado Federal, de 24-10-97

Situação atual do projeto: Comissão de Educação


do Senado com minuta de relatório favorável do
relator, Senador Lúcio Alcântara, desde 26-11-97,
aguardando inclusão em pauta.
Proposta de Emenda à Constituição As Mesas da Câmara dos Deputa-
no 38, de 1997 dos e do Senado Federal, nos termos do
art. 60 da Constituição Federal, promul-
gam a seguinte emenda ao texto consti-
Altera os arts. 49, 129 e 176 e tucional:
acrescenta o art. 233 ao Capítulo Art. 1o O inciso XVI do art. 49
VIII do Título VIII da Constituição da Constituição Federal passa a vigorar
Federal, para garantir às comunida com a seguinte redação:
des remanescentes dos quilombos os “Art.49 ........................................
direitos assegurados às populações
XVI – autorizar, em terras indí-
indígenas.
genas ou ocupadas pelos remanescentes
dos quilombos, a exploração e o apro-
veitamento de recursos hídricos e a pes-
quisa e lavra de riquezas minerais.”
Art. 2o O inciso V do art. 129 da
Constituição Federal passa a vigorar
com a seguinte redação:
“Art. 129......................................
V – defender judicialmente os di-
reitos e interesses das populações indí-
genas e das comunidades remanescentes
dos quilombos.”
74 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

Art. 3o O § 1o do art. 176 da Cons- propriedade definitiva das terras ocupa-


tituição Federal passa a vigorar com a das pelos remanescentes das comunida-
seguinte redação: des dos quilombos e determinou que o
“Art. 176...................................... Estado emitisse os títulos respectivos.
§ Io A pesquisa e a lavra de re- Em obediência às determinações
cursos minerais e o aproveitamento dos da Lei Maior, o Instituto Nacional de
potenciais a que se refere o caput deste Colonização e Reforma Agrária (IN-
artigo somente poderão ser efetuados CRA) outorgou, em 1995, títulos de pro-
mediante autorização ou concessão da priedade a três comunidades localizadas
União, no interesse nacional, por brasi- no Pará. Nesse mesmo Estado, estão em
leiros ou empresa constituída sob as leis curso levantamentos para a titulação de
mais cinco áreas destinadas a herdeiros
brasileiras e que tenha sua sede e admi-
dos quilombos.
nistração no País, na forma da lei, que
estabelecerá as condições específicas Em São Paulo e no Maranhão,
quando essas atividades se desenvolve- realizam-se a identificação e o levan-
rem em faixa de fronteira, terras indíge- tamento fundiário de comunidades re-
nas ou terras ocupadas pelas comunida- manescentes, com vistas à concessão de
des remanescentes dos quilombos.” títulos de propriedade.
Art. 4o O Capítulo VIII do Título Além disso, organismos gover-
VIII da Constituição Federal passa a de- namentais vêm desenvolvendo progra-
nominar-se “Dos Índios e Das Comuni- mas voltados para essas comunidades
dades Remanescentes dos Quilombos”. negras, com o fim de lhes garantir a
exploração agronômica do território, de
Art. 5o Adicione-se ao Capítulo forma compatível com a preservação de
VlII, Título VIII da Constituição Fede- sua identidade cultural.
ral o art. 233, com a seguinte redação,
Entretanto, passados quase dez
renumerando-se os arts. subsequentes:
anos do ordenamento constitucional,
“Art. 233. Aplicam-se às comu- pouco se fez para efetivar os direitos ter-
nidades remanescentes dos quilombos ritoriais reconhecidos aos mais de 600
que ocupam suas terras tradicionais as grupos remanescentes dos quilombos,
disposições constantes dos arts. 231 e existentes em dezessete estados brasi-
232.” leiros. Ademais, os inúmeros conflitos
Art. 6o Esta emenda entra em vi- entre comunidades quilombolas e fa-
gor na data de sua publicação. zendeiros, grileiros, madeireiros e mine-
radoras retratam a dimensão dos riscos
que ameaçam aquelas comunidades, os
JUSTIFICAÇÃO
quais poderão impedir a consecução dos
A Constituição Federal de 1988, direitos outorgados pela Lei Magna.
no artigo 68 do Ato das Disposições Observe-se, a propósito, que às
Constitucionais Transitórias, concedeu a garantias constitucionais conferidas aos
Proposta de emenda à Constituição
Garantia às comunidades remanescentes dos quilombos
dos direitos assegurados às populações indígenas
75

remanescentes dos quilombos não se se- direitos dos remanescentes da resistência


guiu, como no caso das populações indí- heróica dos quilombos brasileiros.
genas, a declaração de nulidade dos atos
Sala das Sessões, 24 de outubro de
que tenham por objeto a ocupação, o do-
1997.
mínio ou a posse de suas terras. Assim, o
decurso do tempo, em razão do não cum- Senadores ABDIAS NASCIMENTO
primento imediato da Carta Magna, é alia- (1o Signatário) (PDT-RJ) – Emília Fernan-
do daqueles que obstam a efetivação dos des – Joel de Hollanda – Waldeck Ornelas
direitos assegurados aos quilombolas. – Romero Jucá – João França – João Ro-
A presente Proposta de Emenda à cha – Esperidião Amin – Roberto Requião
Constituição tem o objetivo de impedir – Benedita da Silva – Gerson Camata –
que se concretizem os obstáculos apos- Nabor Júnior – Eduardo Suplicy – Júnia
tos à efetivação das garantias constitu- Marise – Roberto Freire – Antonio Carlos
cionais conferidas às comunidades re- Valadares – Sebastião Rocha – Jonas Pi-
manescentes dos quilombos. Com essa nheiro – Ademir Andrade – Epitácio
finalidade, propomos estender às cita- Cafeteira – Pedro Simon – José Alves
das comunidades os direitos concedidos – Ramez Tebet – Osmar Dias – Elcio Al-
aos índios, bem como assegurar-lhes as varez – Frencelino Pereira – Levy Dias –
cautelas prescritas pela Lei Maior no Lauro Campos – José Eduardo Dutra.
tratamento das questões que envolvem
as populações indígenas, com vistas à Publicado no Diário do Senado Federal, de 25-10-97
sua preservação física e cultural.
Estamos convencidos de que os
Situação atual do projeto: Comissão de Constitui-
membros das Casas que compõem o ção, Justiça e Cidadania do Senado, aguardando
Congresso Nacional serão sensíveis à parecer do relator, Senador Lúcio Alcântara, desde
necessidade de garantir efetivamente os 11-3-98.
Discurso proferido em 18 de novembro
de 1998

Homenagem a Zumbi dos Palmares


Pronunciamentos Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

Tomado de emoção e orgulho cívi-


co, assumo hoje esta tribuna para prestar
minha homenagem ao maior herói da luta
pela justiça e a liberdade neste País. Ao ho-
mem cuja trajetória de coragem, determi-
nação e sacrifício o transformou no para-
digma de todos os brasileiros que, embora
compondo a imensa legião dos excluídos,
dos discriminados, dos destituídos, não
obstante se recusam a assumir o papel de
inferiores a eles destinado por uma elite
parasitária e insensível. Refiro-me ao gran-
78 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

de Zumbi dos Palmares, líder de uma mão ou graças ao relato de fascinados


comunidade guerreira que se constituiu cronistas árabes, de seus reinos e im-
no mais dignificante exemplo da luta périos, de cidades fabulosas em que se
contra a escravidão imposta aos africa- vendiam livros a peso de ouro e sal, de
nos nas Américas. reis poderosos comandando exércitos
20 de novembro é o Dia da Cons- irresistíveis. Gana, Mali, Songhai, Ka-
ciência Negra. Minha consciência evoca nem-Bomu – nomes que despertavam
minha infância e juventude – e lá se vão curiosidade, cobiça e medo. Os mesmos
tantas décadas. A educorada História sentimentos experimentados, nos pri-
do Brasil que se ensinava nas escolas mórdios da história, pelos hebreus e pe-
los gregos, cujo imenso débito secular-
nem sequer mencionava a epopeia de
mente acumulado em seu contato com a
Palmares, limitando-se a descrever os
civilização africana do Egito jamais se
quilombos como “valhacouto de negros
poderá quitar, pois que nele se incluem
fugidos”, na expressão até hoje registra-
os próprios fundamentos científicos, fi-
da em nosso mais importante dicionário.
losóficos e religiosos da civilização oci-
Privava-se, desse modo, as crianças bra-
dental. O fato de tudo isso parecer hoje
sileiras, de todas as cores e origens, de
fantasioso e irreal demonstra o sucesso
conhecer não apenas a figura heróica de
desse infame empreendimento. Mas,
Zumbi, mas toda a saga de crueldade e como já se disse, não é possível enganar
revolta, suplício e redenção, sofrimento todo mundo o tempo todo.
e bravura que se desenrolou nos quase
A redução de africanos à con-
quatro séculos de escravidão negra no
dição de escravos e sua maciça trans-
Brasil. Contribuiu-se, desse modo e de-
ferência forçada para o Novo Mundo
cisivamente, na construção do mito da
constitui terreno fértil para os falsários
docilidade dos negros, supostamente
da história, travestidos de cientistas e
conformados – e quem sabe até agra-
abrigados sob pomposos títulos aca-
decidos – ante a dominação europeia,
dêmicos. Ainda ontem, era comum
exercida em nome da civilização e do
encontrar, em nossos livros didáticos,
cristianismo.
referências a uma suposta “docilidade”
Na verdade, a falsificação da his- dos africanos, que teriam aceito quase
tória do Brasil fazia parte, como conti- passivamente a escravidão. Se isso fosse
nua fazendo, de um processo mais am- verdade, como seria possível explicar os
plo de perversão intelectual, iniciado em cruéis instrumentos de tortura emprega-
fins do século XVIII, com o propósito dos pelos escravagistas para garantir tal
de justificar a escravização de africa- “docilidade”? Na verdade, a história da
nos e a transformação de seu continente presença africana no Brasil é uma histó-
numa colcha de retalhos a ser pilhada e ria marcada, de maneira indelével, pela
saqueada pelos cúpidos interesses eu- resistência ao escravismo, manifesta de
ropeus. Até então, a Europa conhecia a todas as formas possíveis: desde o suicí-
história da África. Sabia, em primeira dio e o infanticídio – pessoas matavam
Pronunciamentos
Homenagem a Zumbi dos Palmares 79

os filhos para que estes não crescessem do provocou calafrios na elite fundiária
como escravos –, passando pela pura e que governava a Colônia. Seus piores
simples fuga, até a revolta organizada pesadelos se haviam concretizado.
contra todo um sistema. Quase todas Para apreendermos plenamente o
essas formas de resistência ocorreram que isso significava, é necessário enten-
onde quer que tenha havido africanos der o que representava a escravidão na
escravizados. Uma delas, porém, teve vida da Colônia. Não se tratava da es-
no Brasil os seus exemplos mais bri- cravidão do mundo antigo, a que todos
lhantes. Refiro-me à resistência organi- os povos um dia se viram submetidos.
zada, da qual os quilombos constituem A nova escravidão, introduzida com o
a mais relevante manifestação em todo mercantilismo, constituía a base, o es-
o continente.
teio de todo um modo de produção que
Reza a história que os primeiros se estava implantando no Novo Mun-
africanos chegaram ao Brasil já nas do. Desse modo, toda a economia de
décadas iniciais da colonização portu- Pernambuco – como, de resto, de toda
guesa, trazidos para as lavouras de cana a Colônia – dependia da exploração da
de açúcar que começavam a pontilhar mão de obra africana. Isso, se por um
o litoral, desde São Vicente (atual São lado produzia grande fausto e riqueza,
Paulo) até o Recife. Não se está falan- ao mesmo tempo sustentava um sistema
do, evidentemente, dos muitos africanos profundamente desigual e injusto, em
que faziam parte das tripulações dos que essa mesma riqueza se concentrava
navios exploradores europeus, tampou-
nas mãos de pouquíssimos, enquanto até
co daqueles que, segundo nos mostram
mesmo os brancos pobres sobreviviam
numerosos registros arqueológicos, esti-
em meio à fome e à miséria. Afinal, a
veram na futura América muito antes de
região sequer produzia alimentos para
Colombo. Falamos somente dos que fo-
sua população, apenas cana de açúcar
ram arrancados à força de sua terra natal
para atender à demanda externa. Os ri-
e trazidos para uma terra estranha, sob o
cos não se importavam com isso, uma
jugo do crudelíssimo imperialismo por-
vez que consumiam alimentos importa-
tuguês. É significativo, portanto, que já
dos de Portugal e de outras colônias. O
em princípios do século XVI um desta-
camento do Exército colonial português descaso que manifestavam quanto à sor-
tenha descoberto na região que chama- te de seus compatriotas – para não falar
ram de Palmares, na Serra da Barriga, dos africanos, aos quais sequer reconhe-
interior da Capitania de Pernambuco, ciam a humanidade – ficaria marcado na
área que hoje pertence ao Estado de Ala- mentalidade das elites brasileiras, que
goas, um agrupamento organizado de desde então se acostumaram a desprezar
negros fugidos da escravidão. Tão orga- os excluídos de qualquer origem.
nizado que conseguiu derrotar os solda- Ao primeiro contato militar com
dos portugueses, obrigados a fugir para Palmares, seguiram-se dezenas de ou-
salvar a pele. O relato por estes produzi- tros. Mais de 30, assinalam os registros
80 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

históricos, em cerca de 90 anos. Na Embora forçada pelas circunstân-


maioria deles, os portugueses foram re- cias a viver num clima de guerra cons-
chaçados. Como explicar essa resistên- tante, a sociedade palmarina, segundo
cia dos palmarinos, senão reconhecendo os parcos relatos disponíveis, era carac-
a extraordinária capacidade de organi- terizada por uma convivência extraordi-
zação militar de seu povo? Sua tática nariamente democrática para os padrões
era a mesma dos resistentes de todos os da época – em especial, quando se con-
tempos: a guerrilha. Fugir antes da che- sidera o autoritarismo exacerbado e a
gada de seus perseguidores, embrenhar- violência institucional que marcavam a
vida na Colônia. Prova disso é a atração
-se no mato e emboscá-los, para depois
que Palmares exercia não apenas sobre
desaparecer na selva. Quando necessá-
negros, mas também sobre índios e até
rio, todos eram mobilizados, inclusive
sobre brancos, estes últimos refugiados
as mulheres, cuja “ferocidade” provoca-
dos maus tratos e da fome a eles reser-
va surpresa entre os portugueses, acos- vados pelo sistema colonial. Registra-se
tumados a relegar suas mulheres às tare- que, no seu apogeu, Palmares podia ser
fas domésticas. descrita como uma sociedade multirra-
Foi assim, em meio a uma guer- cial em que os não negros representa-
ra constante, enfrentando portugueses e vam cerca de 20 por cento da população.
holandeses – que chegaram a celebrar Não consta que fossem desprezados ou
uma trégua apenas para poderem ter discriminados.
melhor condição de derrotá-los –, que O crescimento do que viria a ser
os palmarinos conseguiram prosperar conhecido como a República de Pal-
e expandir seu território, dividido entre mares e a aparente impossibilidade de
os diferentes “mocambos” que o consti- derrotá-Ia militarmente acabou levan-
tuíam. O pouco que se sabe sobre esse do o Governador Pedro de Almeida,
povo guerreiro indica que vivia uma em 1678, a propor um pacto com os
vida simples, mas digna. Muito melhor, palmarinos, então liderados por Ganga
com toda a certeza, do que a maioria dos Zumba, conhecido como o “mestre dos
súditos portugueses. A agricultura, pra- mestre, da guerra”. Aceitando a paz com
ticada com as técnicas milenarmente co- os brancos, Ganga Zumba receberia o
nhecidas na África, que incluíam a rota- posto de oficial do Exército português.
Em contrapartida, ele e seus homens se
ção de culturas, produzia uma fartura de
comprometeriam a caçar pessoalmente
legumes, verduras e frutas, muitas vezes
os escravos fugidos e entregá-los aos
comercializados com fazendeiros vizi-
antigos donos. O “sim” de Ganga Zum-
nhos – o que motivou a promulgação de ba ao governador português provocou
um decreto proibindo esse comércio. uma divisão irreconciliável no quilom-
Lembremo-nos de que Palmares bo. Muitos guerreiros consideraram seu
não praticava a monocultura de expor- gesto uma traição, à frente deles um
tação... jovem de nome Zumbi. Ganga Zumba
Pronunciamentos
Homenagem a Zumbi dos Palmares 81

acabaria morrendo por envenenamento, forma de dobrar Zumbi: derrotando-


outra técnica milenarmente desenvolvi- -o militarmente. E só um homem seria
da em solo africano e transplantada para capaz de fazê-lo. O governador enviou
as Américas, onde haveria de fazer mui- seus emissários em busca do paulista
tas vítimas entre os senhores de escra- Domingos Jorge Velho.
vos e suas famílias. Em nossos livros de história, os
Zumbi viera à luz em Palmares, bandeirantes são apresentados como
no ano de 1655, logo após a expulsão figuras respeitáveis, de longas barbas,
dos holandeses de Pernambuco. Cap- em trajes vistosos, botas de cano alto, a
turado, ainda bebê, por uma expedição quem devemos a expansão do território
enviada pelo Governador Francisco brasileiro para muito além dos limites
Barreto, fora entregue ao padre Antônio definidos pelo Tratado de Tordesilhas.
Melo, na vila de Porto Calvo, que servia Apenas parte disso é verdade. Com efei-
de base de operações contra o quilom- to, os bandeirantes eram uma gente rude
bo. Desde cedo, o menino, batizado de e sanguinária, cuja menção não evocava
Francisco, revelara dotes de grande in- admiração e respeito, mas sim temor e
teligência. Aprendeu a ler e a escrever, desprezo. Sujos, descalços e cobertos de
e se tomou coroinha, privilégios quase andrajos, dedicavam-se à ignóbil ativi-
inatingíveis para alguém de sua origem dade de “prear” – que significa caçar –
– ainda mais se considerarmos que qua- índios e negros fugidos da escravidão.
se todos os senhores de escravos eram Filhos de homens portugueses e mulhe-
analfabetos. Tudo isso, porém, não foi res indígenas, e portanto mamelucos,
suficiente para lhe comprar a alma. Po- cumpriam fielmente o papel de sabujos
de-se imaginar a surpresa do benevolen- do colonialismo português. Modelos,
te padre Melo quando Francisco, aos 15 portanto, do tipo de miscigenação mais
anos, atendendo aos apelos mais fortes tarde apresentado como o ideal de uma
de seu coração africano, fugiu de Porto suposta civilização luso-tropical.
Calvo em demanda de Palmares. Morria Domingos Jorge Velho era, tal-
Francisco e nascia Zumbi. vez, o mais acabado protótipo dessa es-
Com a morte de Ganga Zumba, o pécie de lixo humano. O mais indicado,
jovem Zumbi se viu guindado à posição portanto, para a difícil tarefa de derrotar
de líder do quilombo. Foi nessa condi- Zumbi. Aceita a empreitada, não perdeu
ção que, em 1670, recebeu do novo Go- tempo. Enquanto reunia o maior exérci-
vernador da Capitania, Aires de Sousa to que o Brasil já conhecera, constituído
e Castro, a mesma oferta antes feita a principalmente de mamelucos, tratou de
Ganga Zumba: “perdão” e liberdade, montar uma infraestrutura bélica formi-
para ele e para os seus. Em troca, a trai- dável para a época, graças aos recursos
ção à causa. Vendo sua oferta peremp- disponibilizados por um governo que
toriamente recusada, o governador foi sabia estar jogando uma cartada decisi-
obrigado a reconhecer que só havia uma va. Ainda, os quilombolas, confirmando
82 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

sua tradição guerreira, souberam vender vieram a ser conhecidas como Revoltas
caro a derrota. Foram necessárias mui- dos Malês, assim como motivou a cha-
tas investidas, e algumas derrotas, para mada Revolta dos Búzios, ou Conjura-
que o exército de Domingos Jorge Velho ção Baiana, movimento popular, a ferro
conseguisse penetrar no quilombo do e fogo reprimido, que – diferentemente
Macaco, maior e mais importante mo- da Conjuração Mineira – associava as
cambo, impregnando o solo da serra de bandeiras da independência e da aboli-
sangue africano. Era setembro de 1694. ção da escravatura.
Zumbi, contudo, não fora captu- Hoje, 303 anos transcorridos des-
rado. Junto com um punhado de seus de o assassinato de Zumbi, os descen-
homens, embrenhara-se no mato, em dentes de africanos no Brasil continu-
refúgio seguro, buscando recobrar as am subjugados por um sistema que os
forças, reorganizar-se e contra-atacar. oprime, humilha e exclui. Ainda esta
E talvez conseguisse fazê-lo, não fosse semana, a Folha de São Paulo publica-
um capricho da sorte. Um ano depois, va reportagem, baseada em dados do
em setembro de 1695, o mulato Antônio IBGE, mostrando, entre outros índices
Soares, que chefiava um destacamento de desigualdade racial, que a mortalida-
de Zumbi, foi capturado e, submetido às de infantil é muito maior para negros do
mais cruéis torturas, obrigado a trair seu que para brancos no Brasil. Isso, infe-
chefe, escondido numa garganta próxi- lizmente, apenas reitera e quantifica as
ma à cachoeira do rio Paraíbas, na Serra denúncias do Movimento Negro – en-
dos Dois Irmãos. A brava resistência foi grossadas nos últimos anos pelos mais
inútil diante de um inimigo muito su- renomados organismos internacionais,
perior em número e armas. A 20 de no- como a ONU e a OEA – que apontam
vembro de 1695, Zumbi dos Palmares este País como um dos campeões do
foi decapitado e esquartejado, num ri- racismo e da discriminação em nível
tual sangrento característico da civiliza- mundial. Muito longe, como se vê, da
ção que os portugueses implantaram nos fantasiosa imagem, construída durante
trópicos, cujas memórias se reavivam a décadas por ideólogos oficiais – todos
cada chacina policial de nossos dias. brancos –, que pintavam o Brasil nas
A derrota de Palmares não foi, cores triunfalistas de uma “democracia
porém, o fim dos quilombos, que se racial”.
multiplicaram como cogumelos por to- O trabalho de denúncia e cons-
das as regiões do Brasil, onde quer que cientização realizado pelo Movimento
houvesse negros em número suficiente Negro tem tido eco neste Congresso,
para se organizar e lutar por sua liber- graças à atuação de uns poucos parla-
dade. O mesmo espírito dos quilombos mentares negros – dentre os quais tenho
esteve presente também nas várias in- a honra de me incluir – cuja atuação re-
surreições ocorridas na Bahia, lidera- vela seu compromisso com a causa de
das por africanos de origem nagô, que Zumbi. No meu caso, trata-se esse de
Pronunciamentos
Homenagem a Zumbi dos Palmares 83

um compromisso assumido ainda nas perto do fim desse mandato, considero


primeiras décadas deste século, e que ter cumprido minha missão. Conquanto
se transformaria na verdadeira bússola não tenha conseguido romper definiti-
que tem orientado, desde então, toda a vamente as barreiras que se interpõem
minha existência. Em função dele, par- ao avanço dos afro-brasileiros na mais
ticipei, nos anos 30, da gloriosa Frente alta Casa Legislativa do País, pude com
Negra Brasileira, maior e mais impor- certeza abrir caminhos, dobrar intran-
tante organização afro-brasileira deste sigências, esclarecer incompreensões e
século. Foi também ele que me orientou multiplicar alianças para a causa negra,
na criação, em 1944, do Teatro Experi- facilitando a tarefa de meus companhei-
mental do Negro, que buscava o resgate ros e sucessores.
do legado africano no Brasil, montando Foi nessa visão que apresentei,
peças de conscientização e organizando logo após assumir definitivamente a
eventos históricos como a Convenção vaga deixada no Senado com o faleci-
Nacional do Negro, em 1945, e o I Con- mento do saudoso Darcy Ribeiro, minha
gresso Afro-Brasileiro, ern 1950. primeira iniciativa nesta Casa, o Pro-
Obrigado a deixar o País, em jeto de Lei do Senado no 52, de 1997,
1968, devido à perseguição movida pelo que definia e tipificava a prática do
regime militar, pude constatar, em mais racismo e da discriminação e punia os
de uma década de exílio nos Estados crimes dela resultantes. O objetivo era
Unidos e na África, o quanto prosse- substituir a Lei no 7.716, que havia re-
guiam válidas aquelas ideias que sem- gulamentado o princípio constitucional
pre me haviam norteado. Assim, se o da Carta de 1988, definindo o crime de
exílio me enriqueceu no contato direto racismo como inafiançável e imprescri-
com novas teorias e estratégias da luta tível. Nesse caso, não fui movido, como
negra, em plano internacional, também imaginaram alguns, pelo motivo fútil de
me serviu para reafirmar a certeza do ver meu nome associado a algum ins-
papel preponderante a ser desempenha- trumento legal, mas sincera intenção de
do, nesse contexto, pelo povo e a cultura aperfeiçoar uma legislação cujas defici-
afro-brasileiros. ências podem ser dolorosamente consta-
Ao assumir pela primeira vez tadas, na prática, por quem a ela recorre.
uma cadeira neste Senado, substituindo O projeto está aguardando parecer do
o Senador Darcy Ribeiro, então convo- relator, mas espero que, no pior dos ca-
cado pelo Governador Leonel Brizola a sos, possa ser útil a futuros legisladores
conduzir o pioneiro Programa de Edu- interessados no assunto.
cação Especial no Rio de Janeiro, pro- O Projeto de Lei do Senado que
punha-me cumprir meu mandato “com apresentei a seguir, o de no 75, de 1997
honradez e dignidade, lutando pelas – e que, oficialmente, ainda tramita nes-
causas do meu povo afro-brasileiro, que ta Casa –, visa promover e valorizar a
são as causas da nossa Nação”. Hoje, população afro-brasileira, por meio do
84 THOTH 6/ dezembro de 1998
Atuação Parlamentar

que chamo de “ação compensatória” – pósito específico de examinar o projeto


medidas destinadas a compensar a dis- e propor uma alternativa. Até o momen-
criminação historicamente sofrida pelos to, contudo, essa subcomissão tem sido
descendentes de africanos neste País, a atropelada, primeiro pelo calendário
exemplo do que se tem feito em países eleitoral, depois pela pesada pauta das
tão diversos, do ponto de vista políti- reformas e do ajuste fiscal, razões pelas
co, social, econômico e cultural, como quais não concluiu seu trabalho.
Estados Unidos, Índia, Israel, Canadá, Preocupado com a precariedade
Nigéria, Malásia, Alemanha e África do de acesso dos afro-brasileiros aos ins-
Sul, sem esquecer as antigas Iugoslávia trumentos de defesa legal, apresentei
e União Soviética. Trata-se este de um o Projeto de Lei do Senado no 114, de
tema que tem sido muito discutido nos 1997, que tem como propósito facilitar
últimos tempos, mas, em geral, por pes- o recurso à chamada ação civil pública,
soas desinformadas ou comprometidas a qual, atualmente, só pode ser inicia-
– embora nunca o declarem – com os
da pelo Ministério Público. Por esse
interesses do status quo. Fundamental-
projeto, indivíduos ou entidades da so-
mente, o objetivo desse projeto de lei é
ciedade civil organizada também po-
implementar o princípio constitucional
derão instaurar ação civil pública com
da isonomia, aplicando-o nas áreas do
as finalidades de evitar ou interromper
mercado de trabalho e da educação. De
atos danosos à honra ou dignidade de
que maneira? Obrigando as empresas
grupos étnicos ou religiosos, e de ob-
públicas e privadas a reservarem 20 por
ter a reparação de tais atos, quando não
cento das vagas em seus quadros funcio-
seja possível evitá-los. Dessa maneira,
nais para homens negros e 20 por cento
pretende-se dotar esses grupos de um
para mulheres negras; reservando para
instrumento ágil e eficaz que lhes pos-
alunos negros 40 por cento das bolsas
sibilite enfrentar as manifestações de
de estudo em todos os níveis escolares;
racismo e discriminação, quer sejam de
e alterando os currículos escolares, em
todos os graus, para que estes incorpo- caráter individual ou coletivo. Outro as-
rem explicitamente as contribuições dos pecto importante desse projeto de lei é a
africanos e seus descendentes em termos criação de um fundo de defesa e comba-
de história, ciência, cultura e religião, te ao racismo, sustentado pelas indeni-
eliminando ao mesmo tempo as refe- zações a que possam fazer jus os autores
rências preconceituosas e estereotipa- das ações, a ser instituído, até 12 meses
das aos negros nos livros didáticos, bem após a aprovação e publicação dessa lei.
como sua invisibilização. As discussões Aprovado em caráter terminativo pela
suscitadas com a apresentação desse Comissão de Constituição e Justiça do
projeto de lei na Comissão de Consti- Senado, esse projeto de lei tramita agora
tuição e Justiça desta Casa motivaram o na Câmara dos Deputados.
ilustre Senador Pedro Simon a propor a O último dos projetos de lei que
criação de uma subcomissão com o pro- apresentei no Senado foi o de no 234,
Pronunciamentos
Homenagem a Zumbi dos Palmares 85

de 1997, que inscreve – ao lado de Tira- Sousa de Monografia, que acabou apro-
dentes e Zumbi – os nomes de João de vado. Tratava-se, aqui, de homenagear
Deus do Nascimento, Manuel Faustino aquele que muitos consideram um dos
dos Santos Lira, Luís Gonzaga das Vir- maiores nomes da poesia simbolista
gens e Lucas Dantas Torres, líderes da universal, cuja biografia constitui um
Conjuração Baiana de 1798, no “Livro exemplo do gênio e da determinação
dos Heróis da Pátria”. Revolução articu- dos afro-brasileiros em sua luta contra
lada nas ruas, entre escravos e libertos, o preconceito e a discriminação. Insti-
soldados e artífices, o movimento baia- tuído nas categorias geral e estudante,
no de 1798 teve o objetivo de propiciar o Prêmio Cruz e Sousa de Monografia
aos homens do povo acesso aos postos obteve pleno êxito, atraindo uma parti-
de trabalho que lhes eram negados por cipação numerosa e qualificada.
mero preconceito de cor. Em última Ao apresentar essas iniciativas
instância, os revolucionários baianos
no Senado, não tive a pretensão de ser
lutaram pela emancipação dos escravos,
original, nem me travesti com as rou-
perseguindo o ideal da instalação de
pagens de um iluminado. Ao contrário,
um governo que não fizesse distinção
nelas utilizei o acúmulo de experiên-
de raça entre os cidadãos. Sentencia-
cias pessoais e coletivas propiciado por
dos com a pena de morte, os líderes do
uma militância de quase sete décadas
movimento foram executados e tiveram
em que tive a oportunidade de travar
seus corpos esquartejados. Como Tira-
contato com as pessoas e as obras de
dentes, e também como Zumbi, foram
grande parte dos intelectuais e ativistas
marcados para o sacrifício, como forma
da causa negra na África e na Diáspo-
de aplacar a fúria da Coroa portuguesa,
ra. Prefiro, desse modo, ser considerado
e demonstraram a bravura dos mártires.
O propósito dessa iniciativa é, pois, re- um veículo, um cavalo dos nossos ori-
parar uma imensa injustiça histórica, xás na tarefa de manter acesa a chama e
promovendo o justo resgate, para a cena com ela iluminar novos caminhos para
brasileira, de um importante episódio da a redenção de nosso povo. Assim, neste
história nacional, no justo momento em momento em que se aproxima o fim de
que ele comemora 200 anos. Com pare- meu mandato, quero deixar registrada a
cer favorável do ilustre Senador Lúcio prestação de contas deste filho de Zum-
Alcântara, esse projeto de lei ainda tra- bi, na certeza de ter envidado o melhor
mita nesta Casa. de meus esforços e concentrado o que
me resta de energias no propósito de
Além dos supracitados projetos
concretizar os generosos ideais de nosso
de lei, apresentei em parceria com o ilus-
herói maior.
tre Senador Esperidião Amin, Projeto de
Resolução instituindo o Prêmio Cruz e Axé, Zumbi!
Pronunciamento feito na Câmara
dos Deputados, Sessão de 13 de no-
vembro de 1985.
Dia Nacional da Senhor Presidente,
Consciência Negra, Senhores Deputados,

aniversário de Estamos a uma semana do próxi-


mo Dia Nacional da Consciência Negra,
Zumbi 20 de novembro, aniversário da morte
do herói e mártir nacional afro-brasi-
leiro Zumbi dos Palmares. E para essa
data está marcado um acontecimento
de suma importância para a comunida-
de afro-brasileira. O Presidente Sarney
assinará decreto de tombamento da Ser-
ra da Barriga, Estado de Alagoas, local
onde se fundou a primeira nação livre
criada em todo este continente após a
agressão colonizadora da Europa, a Re-
pública dos Palmares. Agregando popu-
lações de vários quilombos, Palmares
90 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

contava com mais de 30 mil habitantes, retrocesso, conforme o destino que se


que resistiram durante um século, de dê ao espaço histórico recuperado pelo
1595 a 1696, à guerra colonial de Por- tombamento. Pois o compromisso do
tugal, Holanda e do Brasil. Zumbi, o Memorial Zumbi é o de criar um
último de seus reis eleitos, tombou na polo de cultura de libertação do povo
luta armada e constitui hoje um símbolo afro-brasileiro, ou seja, um local onde a
vivo da luta pela emancipação do povo comunidade possa fortalecer sua cons-
negro, ciência e identidade histórica, cultural e
Senhores deputados, o tomba- artística de coletividade negra com suas
mento da Serra da Barriga representa raízes e personalidade própria. Tal ob-
uma vitória da comunidade negra, pois jetivo requer a mobilização de recursos
é uma aspiração para a qual está mobi- humanos, materiais e financeiros que
lizada desde o final da década passada, não podem ser desviados para a constru-
quando foi idealizado o Memorial Zum- ção faraônica de atração turística inaces-
bi. Essa organização, pioneira na his- sível aos verdadeiros herdeiros daquele
tória brasileira, congrega entidades do patrimônio. Não podemos correr o risco
Movimento Negro Nacional e órgãos de mais um aspecto da cultura negra ser
oficiais como a Fundação Pró-Memória. distorcido, folclorizado ou reduzido à
Quero aqui registrar minha homenagem condição de mercadoria, objeto de uma
a todos os responsáveis pela criação e exploração comercial cujos beneficiá-
consolidação do Memorial Zumbi e às rios não pertençam à nossa comunidade
organizações e indivíduos que o inte- nem cultivem qualquer respeito a ela.
gram. Especificamente, evoco o caboclo Os maliciosos oponentes da nossa
guerreiro Olympio Serra, o Exu mineiro luta virão, naturalmente, nos interpelar
Dr. Carlos Moura e com um slogan já tradicional: “Mas nós
o historiador Joel Rufino dos somos brasileiros, não negros, e esse é
Santos. A persistência e dedicação des- um patrimônio nacional.” Concluindo
tes têm possibilitado o êxito do nosso esse raciocínio, nos rotularão de racistas
projeto, sobretudo nesse particular do às avessas. Ora, o País está repleto de
tombamento. museus, igrejas, locais históricos e mo-
Devo dizer ao mesmo tempo, que numentos celebrando os feitos e heróis
o tombamento da Serra da Barriga sig- portugueses, que nem por isso deixam
nifica apenas o começo, e não o fim, da de constituir-se em patrimônio nacional.
nossa responsabilidade para com a po- Por que então negar à história e cultu-
pulação afro-brasileira no que tange ao ras negras seu conteúdo africano, para
Memorial Zumbi. O que importa não é o proclamá-las apenas e exclusivamente
tombamento em si, embora este consti- “brasileiras”?
tua importante conquista histórica. Para Senhores deputados, foi iniciativa
a comunidade negra, o resultado desse da população afro-brasileira a criação do
ato poderá significar um avanço ou um Dia Nacional da Consciência Negra a 20
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 91

de novembro, data que realmente é um a Zumbi, eu recordava o destemor com


símbolo da luta de libertação do nosso que Vossa Excelência tem agido nesta
povo. Cumprindo meu compromisso de Casa em favor da raça negra. Todos os
levar adiante as lutas da comunidade ne- brasileiros hão de reconhecer que esta
gra no Congresso Nacional, apresentei Nação foi embalada, criada, alimentada,
um projeto, já aprovado por esta Casa, sustentada, amamentada pelos negros.
declarando esse dia feriado nacional. Se- Eles empurraram esta Nação para fren-
ria uma grande alegria ver assinado no te, ao lado daqueles outros integrantes
mesmo dia 20 esse projeto, tornado-o lei da raça branca e também, já agora, da
e configurando mais uma vitória do Mo- amarela, formando-se aqui uma civili-
vimento Negro Nacional. Infelizmente, o zação esplêndida, símbolo e exemplo
projeto ainda espera votação no Senado, para todas as outras. Vossa Excelência
onde tenho certeza de que será aprovado, há de ficar com seu nome marcado, por-
concretizando simbolicamente o com- que a obra que se há de inaugurar e ins-
promisso deste Congresso com a demo- taurar dentro em breve tem o dedo forte
cracia em todas as suas dimensões. e firme de Vossa Excelência.
Concedo o aparte ao nobre depu-
tado Celso Peçanha. O SENHOR ABDIAS NASCI-
MENTO – Agradeço a Vossa Excelên-
O SENHOR CELSO PEÇANHA cia o testemunho que dá neste instante
– Nobre Deputado Abdias Nascimento, da luta que vimos sustentando há mais
estou ouvindo com muita atenção o dis- de 60 anos pela recuperação e pelo res-
curso de Vossa Excelência sobre o as- gate da dignidade e da plena indepen-
sunto que tem, por várias vezes, versado dência do povo negro num Brasil real-
da tribuna desta Casa. Não há como ne- mente igualitário, democrata e justo.
gar, Vossa Excelência tem sido um dos
Continuo, Sr. Presidente.
líderes mais destemidos na campanha
que visa apontar à civilização brasileira Considero a realização desse
os valores do negro ao longo da sua his- sonho, que é o tombamento da Serra
tória, o serviço que ele prestou ao País, e da Barriga, como também outras con-
no combate – verberando com todo ardor quistas da comunidade negra, inclusi-
a segregação racial que procura afastar ve a criação da Assessoria para Assun-
os homens de cor da nossa comunidade. tos Afro-Brasil eiros do Ministério da
Não só desta tribuna, mas também em Cultura, frutos de uma prática e teoria
conferências, no Brasil ou no exterior. de luta afro-brasileira que denomi-
Vossa Excelência se tem revelado um no de quilombismo e que vem sendo
bravo lutador, que a história há de regis- articulada durante toda a história do
trar como dos mais arrojados. Hoje, pela negro no Brasil. Nada mais oportuno,
manhã, quando telegrafava ao presiden- então, do que expor para meus ilustres
te da comissão responsável pela reali- colegas desta Casa as bases teóricas
zação do tombamento em homenagem dessa filosofia de organização social e
92 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

política. Como parte deste pronuncia- tronco familiar africano. A não ser em
mento, lerei um texto sobre o assunto, função de recente interesse do expan-
que elaborei por ocasião do Segundo sionismo industrial manipulado pela
Congresso de Cultura Negra das Amé- elite econômica, o Brasil, como nor-
ricas, realizado no Panamá em 1980, ma tradicional, ignorou o continente
e publicado no Brasil no meu livro O africano. Voltou suas costas à África
quilombismo: documentos de uma mi- logo que não conseguiu mais burlar a
litância pan-africana (Petrópolis: Vo- proibição do comércio de carne afri-
zes, 1980). cana imposta pela Inglaterra, por volta
de 1850. A imigração massiva de eu-
ropeus, subsidiada pelos cofres públi-
O QUILOMBISMO: UMA
cos, ocorrida daquela data em diante,
ALTERNATIVA POLÍTICA AFRO-
fundamentou-se não só na intenção das
-BRASILEIRA
classes dominantes em tornar a popu-
lação do País cada vez mais branca,
Memória: a antiguidade do sa- como também no propósito de erradi-
ber negro-africano car da mente e do afeto dos descen-
dentes de escravos a imagem da África
como lembrança positiva de nação, de
É urgente a necessidade de o ne- pátria, de terra nativa. Por isso, no sis-
gro brasileiro recuperar sua memória, tema educativo brasileiro, nunca houve
sistematicamente agredida pela estrutu- qualquer disciplina ensinando apreço,
ra de dominação ocidental-europeia há interesse ou respeito às culturas, ar-
quase 500 anos. Um processo análogo tes, línguas, religiões, sistemas políti-
se registra com a história dos africanos cos, econômicos ou sociais de origem
no continente e de seus descendentes es- africana. E o próprio contato direto
palhados pelas Américas. do afro-brasileiro com seus irmãos no
A memória dos afro-brasileiros, continente e na diáspora foi continua-
ao contrário do que afirmam certos his- mente impedido ou dificultado entre
toriadores convencionais de visão curta outros obstáculos, pela negação de
e superficial entendimento, não se ini- meios econômicos que lhe permitissem
cia com o tráfico negreiro nem nos pri- viajar para fora do País. Entretanto ne-
mórdios da escravização dos africanos nhum empecilho teve o poder de obli-
no século XV. Em nosso País, a elite terar completamente de nosso espírito e
dominante sempre desenvolveu esfor- da nossa lembrança a presença viva da
ços para evitar ou impedir que o negro mãe África.
brasileiro, após a chamada abolição da As estratégias e os expedientes
escravatura (1888), pudesse identifi- utilizados contra a memória do negro
car-se e ativamente assumir suas raízes africano ultimamente vêm sofrendo
étnicas, históricas e culturais, com essa profunda erosão e irreparável descré-
operação tentando seccioná-Io do seu dito. Esse fato se deve à dedicação e
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 93

competência de alguns africanos preo- Considero oportuno fazer algu-


cupados com a destituição que a nação mas considerações, ainda que breves, a
negro africana tem sofrido de parte da respeito de certos trechos da obra funda-
civilização capitalista euro norte ame- mental de Cheikh Anta Diop, principal-
ricana. Esse grupo de africanos, a um mente a seu livro The African origin of
tempo estudiosos, cientistas, filósofos civilization (J 974), versão em inglês de
e criadores de arte e literatura, engloba seleções de Nations negres et culture e
personalidades do continente e da diás- Anteriorité des civilisations negres, ori-
pora africana. Quero mencionar alguns ginalmente publicados em francês. Seja
desses nomes: Cheikh Anta Diop, do dito de início que o volume apresenta
Senegal; Chancellor Williams, Molefi uma confrontação radical e um desa-
K. Asante, Shawna Maglangbayan Mo- fio irrespondível ao mundo acadêmico
ore, Haki Madhubuti e Maulana Ron ocidental e à sua arrogância intelectual,
Karenga, dos Estados Unidos; George desonestidade científica e carência ética
no tratamento dispensado aos povos, ci-
M. James, da Guiana; Yosef BenJochan-
vilizações e culturas da África. Diop é
nan, da Etiópia; Théophi le Obenga, do
químico, diretor do laboratório de radio-
Congo-Brazzaville; Wole Soyinka, OJa
carbono do IFAN (Instituto Fundamen-
Balogun e Wande Abimbola, da Nigéria
tal da África Negra), em Dacar, além
– todos estão produzindo obras funda-
de egiptólogo, historiador, linguista e
mentais para a África contemporânea e antropólogo. Utilizando-se dos recursos
futura. Atuando em campos diferentes e científicos ocidentais, esse sábio está
sob perspectivas diversas, o esforço des- resgatando a significação e os valores
ses eminentes irmãos africanos se funde das antigas civilizações erigidas pelos
e se canaliza rumo à exorcização das negros africanos, há longo tempo obnu-
falsidades, distorções e negações que biladas pelas manipulações, falsidades,
há tanto tempo se vêm tecendo em tor- distorções e roubos dos chamados cien-
no da África com o intuito de velar e/ou tistas ocidentais. São os bens de cultura
apagar a memória do saber, do conheci- criados pelos nossos antepassados no
mento científico e filosófico, enfim, das Egito antigo. Esses egípcios eram ne-
realizações dos povos de origem negro gros, e não um povo de origem branca
africana. A memória do negro brasilei- ou vermelho escura, conforme estudio-
ro é parte e partícipe nesse gigantesco sos europeus do século XIX proclama-
esforço de reconstrução de um passado vam com ênfase tão mentirosa quanto
ao qual todos os afro-brasileiros estão interessada. Eis como a esse respeito se
ligados. Ter um passado é ter uma con- manifesta Diop:
sequente responsabilidade nos destinos Os egípcios antigos foram
e no futuro da nação negro africana, negros. O fruto moral da sua civili-
mesmo enquanto preservando a nossa zação está para ser contado entre os
condição de edificadores deste País e de bens do mundo negro. Em vez de se
cidadãos genuínos do Brasil. apresentar à história como um de-
94 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

vedor insolvente, esse mundo negro logos ocidentais. Ele demonstra que,
é o próprio iniciador da civilização após a campanha militar de Bonaparte
“ocidental” ostentada hoje dian- no Egito, em 1799, e a decifração dos
te dos nossos olhos. A matemática hieróglifos da Pedra Rosetta por Cham-
pitagórica, a teoria dos quatro ele- pollion, o jovem, em 1822, os egiptó-
mentos de Tales de Mileto, o ma- logos se desarticularam atônitos diante
terialismo epicureano, o idealismo da grandiosidade das descobertas reve-
platônico, o judaísmo, o islamismo ladas.
e a ciência moderna estão enraiza-
dos na cosmogonia e nas ciências Eles geralmente a reconhece-
egípcias. Só temos de meditar sobre ram como a mais antiga civilização,
Osíris, o deus redentor, que se sa- a que tinha engendrado todas as
outras. Mas o imperialismo sendo
crifica, morre e é ressuscitado, uma
o que é, se tornou crescentemente
figura essencialmente identificável
“inadmissível” continuar aceitando
a Cristo.
a teoria evidente até então: de um
(1974:XIV) Egito negro. O nascimento da egip-
As afirmações de Diop se ba- tologia foi assim marcado pela ne-
seiam em rigorosa pesquisa, derruindo cessidade de destruir a memória de
as estruturas supostamente definitivas um Egito negro, a qualquer custo,
do conhecimento “universal” a respeito em todas as mentes. Daí em diante,
da antiguidade egípcia e grega. Gostem o denominador comum de todas as
ou não gostem, os ocidentais têm de tra- teses dos egiptólogos, sua relação
gar verdades como esta: íntima e profunda afinidade, pode
ser caracterizado como uma ten-
(...) quatro séculos antes da tativa desesperada de refutar essa
publicação de A mentalidade pri- opinião [de um Egito negro]. Quase
mitiva, de Levy-Bruhl, a África ne- todos os egiptólogos enfatizaram
gra muçulmana comentava a lógica sua falsidade como uma questão
formal de Aristóteles (a qual ele fechada.
plagiou do Egito negro) e era espe-
(1974: 45)
cialista em dialética.
( Diop 1963:212) A pretensão eurocentrista nesse
episódio se expõe de corpo inteiro: os
E, não esqueçamos, isso aconte- egiptólogos prosseguiram obstinada-
cia quase 500 anos antes do nascimento mente no vão esforço de provar “cien-
de Hegel ou Marx... tificamente” uma origem branca para a
Diop revolve toda a mistificação antiga civilização do Egito negro. Por
que transformou um Egito fundamen- mais precária que fosse a base dessas
talmente negro em país branco, por teorias nos fatos históricos, elas eram
artes da magia europeia dos egiptó- aceitas pelo mundo “civilizado” como
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 95

uma pedra fundamental do supremacis- dos no esforço de atender uma carên-


mo branco. cia requerida pela edificação de uma
Quanto a Diop, compassivo e sociedade viável.
humano diante do feroz dogmatismo Há um pormenor que interessa
desses egiptólogos ocidentais, de- particularmente à memória do negro
monstrou paciência e gentileza expli- brasileiro: aquele ern que Diop men-
cando-Ihes que ele, Diop, não alegava ciona as relações do antigo Egito com
nenhuma superioridade racial ou qual- a África negra, especificamente com
quer gênio especificamente negro na- o povo iorubá. Parece que tais rela-
quela constatação científica de que a
ções foram tão íntimas a ponto de se
civilização do Egito antigo fora erigi-
poder “considerar como um fato his-
da e governada por um povo negro. O
tórico a possessão conjunta do mes-
sucesso devia-se a fatores históricos,
mo habitat primitivo pelos iorubás e
explicou-lhes Diop, devia-se a con-
dições mesológicas (clima, recursos egípcios”. Diop levanta a hipótese de
naturais etc.), somadas a outros ele- que a latinização de Hórus, filho de
mentos não raciais. Mesmo tendo-se Osíris e Ísis, tenha resultado no ape-
expandido, por toda a África negra, lativo Orixá. Seguindo essa pista de
do centro e do oeste do continente, estudo comparativo em linguística e
a civilização egípcia, ao embate de outras disciplinas, Diop cita J. Olumi-
outras influências e diversa situação de Lucas, The religion of lhe Yorubas,
histórica, entrou num processo de de- o qual traça os laços egípcios do seu
sintegração francamente retrocessivo. povo iorubá, concluindo que tudo leva
O importante é conhecermos alguns à verificação do seguinte: a) uma simi-
daqueles fatores que contribuíram laridade ou identidade de linguagem;
para a edificação da civilização egíp- b) uma similaridade ou identidade de
cia, dentre os quais Diop enumera es- crenças religiosas; c) uma similarida-
tes: resultados de acidente geográfico de ou identidade de ideias e práticas
que condicionou o desenvolvimento religiosas; d) uma sobrevivência de
político-social dos povos que viviam costumes, lugares, nomes de pessoas,
às margens do vale do Nilo; as inun- objetos etc. (Diop, 1974: 184; Lucas,
dações que forçavam providências 1978: 18).
coletivas de defesa e sobrevivência,
situação que favorecia a unidade e ex- Meu objetivo aqui é apenas cha-
cluía o egoísmo individual ou pessoal. mar a atenção para essa significativa
Nesse contexto, surgiu a necessidade dimensão da antiguidade da memória
de uma autoridade central coordena- afro-brasileira. Será tarefa para os pes-
dora da vida e das atividades em co- quisadores africanos e afro-brasileiros
mum. A invenção da geometria nasceu do futuro complementar os detalhes
da necessidade da divisão geográfica, desse ponto fundamental de nossa his-
e todos os demais avanços foram obti- tória.
96 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

Memória: A Afro-América pré- de uma rebelião negra (1981), Elisa


-colombiana Larkin Nascimento também assinala o
desenvolvimento dessas investigações.
Entretanto não é só no Egito an- Ela sugere a relação entre as esculturas
tigo ou na África Ocidental que encon- de San Agustín e Tierradentro, na Co-
tramos os antecedentes históricos do lômbia, assim como outros símbolos,
afro-brasileiro. Existe outra dimensão traços, técnicas artísticas e funerárias,
de nossa memória na presença de afri- caracteres somáticos africanos em obras
canos em várias partes das Américas plásticas de cerca de 600 anos antes de
muito antes da chegada de Colombo. Cristo com a sua contraparte egípcia e
E não se deve considerar esse um fenô- africano-ocidental. Tais comparações
meno passageiro e superficial; trata-se podem ser observadas a respeito da cul-
de uma presença profunda que deixou tura taína, da Colômbia, e das civiliza-
raízes e marcas indeléveis no rosto de ções inca, do Peru, Bolívia e Equador,
várias culturas pré-colombianas. Diver- e tolteca, olmeca, asteca e maia do Mé-
sos historiadores e pesquisadores têm-se xico.
referido a esse fenômeno. Entre outros, Além do extraordinário processo
citemos para ilustrar o historiador me- de retratar faces e figuras em cerâmica
xicano Orozco y Berra, que em 1862 já e esculturas, essas civilizações compar-
mencionava a relação íntima, no mundo tilham também técnicas de mumifica-
antigo, que os mexicanos cultivavam ção, tradições funerárias, engenharia e
com os africanos, visitantes e imigran- construção de pirâmides, temas míticos
tes. (1880: 109). e artísticos, símbolos como exemplifi-
Atualmente, a contribuição mais ca a serpente emplumada, identidades
importante nesse sentido é a de Ivan linguísticas incontáveis. Todos esses
Van Sertima, cujo livro They came be- elementos compõem um eloquente e vi-
fore Columbus (1976) registra a defi- sível testemunho do ativo intercâmbio
nitiva contribuição africana às culturas que existiu entre a América e as civiliza-
pré-colombianas das Américas, princi- ções africanas da época. Mas, conforme
palmente no México. Outros autores, nos adverte Elisa Nascimento, assinalar
tais como Leo Wainer (1922), Nicolas a presença pré-colombiana dos africa-
Leon, J. A. Jairazbboy (1974), Lopes nos nas Américas de nenhuma forma
de Gomara (1954), Alexander Von Wu- subestima as enormes capacidades de
thenau (1975), Dr. Andrezej Wiercinski desenho e engenharia dos povos origi-
(in Sertima 1976), cada qual em sua nais americanos, que foram os autores
especialidade e época respectivas, têm e construtores das formidáveis cidades
contribuído para a recomposição da pre- pré-colombianas (1981: 139).
sença dos africanos nas Américas antes Esse intercâmbio afro-americano
de Colombo. Em seu livro Pan-aifrica- estabeleceu uma relação ampla e legí-
nismo na América do Sul: emergência tima entre povos africanos e povos in-
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 97

dígenas americanos que pré-data, com deste País. A despeito dessa realidade
uma anterioridade de vários séculos, o histórica, entretanto, os africanos e seus
tráfico negreiro estabelecido pelos euro- descendentes nunca foram e não são tra-
peus. A base histórica para a solidarie- tados como iguais pelos segmentos mi-
dade entre os povos originais de ambos noritários brancos que complementam o
os continentes foi muito mais profunda quadro demográfico nacional e que têm
e autêntica do que tem sido geralmente mantido a exclusividade do poder, do
reconhecido. Assim sendo, se o quilom- bem estar e da renda nacional.
bismo busca no presente o futuro, e atua Porções significativas da popu-
por um mundo melhor para os africanos lação brasileira de origem europeia co-
nas Américas, ele reconhece e proclama meçaram a chegar ao Brasil nos fins do
que sua luta não pode separar-se da li- século passado como imigrantes pobres
bertação dos povos indígenas destas ter- e necessitados. Imediatamente, passa-
ras, que foram e são igualmente vítimas ram a desfrutar de privilégios que a so-
do racismo e da destruição desumana ciedade dominante, essencialmente ra-
introduzida pelos europeus. cista, lhes concedeu como parceiros de
raça e do supremacismo eurocentrista.
Consciência negra e sentimento
Tais imigrantes não demostraram nem
quilombista
escrúpulo nem dificuldades em assumir
os preconceitos raciais vigentes aqui e
Numa perspectiva mais restrita, a
na Europa contra o negro africano, se
memória do negro brasileiro atinge uma
beneficiando deles e preenchendo as
etapa histórica decisiva no período es-
vagas no mercado de trabalho que se
cravocrata iniciado de forma sistemática
negavam aos ex-escravos e seus descen-
por volta de 1500, logo após a chamada
“descoberta” do território e o início da dentes. Estes foram literalmente expul-
colonização do País. Excetuando os ín- sos do sistema de trabalho “livre” e da
dios, progressivamente exterminados, o estrutura de produção à medida que se
africano escravizado foi o primeiro e o aproximava a data “abolicionista” de 13
único trabalhador, durante três séculos de maio de 1888.
e meio, a erguer as estruturas econômi- Levando-se em conta a condição
cas deste gigante chamado Brasil. Creio atual do negro à margem do sistema em-
ser dispensável evocar neste instante o pregatício ou degradado no semi-empre-
chão regado pelo suor do africano, os go e no subemprego; tendo-se em vista
canaviais, os algodoais, a mineração a segregação residencial urbana que lhe
de ouro, diamante e prata, os cafezais é imposta pelo duplo motivo de raça e
e todos os demais elementos formado- pobreza, destinando-lhe como áreas de
res da economia nacional, nutridos do moradia os guetos de várias denomina-
sangue martirizado do escravo. Longe ções: favelas, mocambos, porões, ala-
de ser um arrivista ou um corpo estra- gados, invasões, vilas e/ou conjuntos
nho, o negro é o próprio corpo e alma populares ou “residenciais”; conside-
98 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

rando-se a permanente brutalidade po- estruturava-se em formas associativas


licial e as prisões arbitrárias motivadas que tanto podiam estar localizadas no
pelo fato de ser negro, compreende-se seio de florestas de difícil acesso, o que
por que todo afro-brasileiro consciente facilitava sua defesa e organização eco-
não tem a menor esperança de que uma nômico-social própria, como também
mudança progressista possa ocorrer es- assumiam modelos de organização per-
pontaneamente em benefício da comu- mitidos ou tolerados pela classe domi-
nidade afro-brasileira. De modo geral, nante, frequentemente com ostensivas
ao redor de 95% da população favelada finalidades religiosas (católicas), recre-
do País é de origem africana. Detalhe ativas, beneficentes, esportivas, cultu-
que caracteriza uma irrefutável segrega- rais ou de auxílio mútuo. Não importam
ção racial de fato. Isso no que concerne as aparências e os objetivos declarados:
à população negra urbana. No entanto fundamentalmente, todas elas preenche-
cumpre ressaltar que é nas zonas ru- ram uma importante função social para
rais que a maioria dos descendentes de a comunidade negra, desempenhando
escravos ainda vegeta uma existência um papel relevante na sustentação da
parasitária e trágica no seu total desam- continuidade africana. Genuínos focos
paro. Pode-se dizer que não vivem uma de resistência física e cultural. Objeti-
vida de seres humanos. vamente, essa rede de associações, ir-
Esse é o esboço imperfeito de mandades, confrarias, clubes, grêmios,
uma situação mais grave, a qual tem terreiros, centros, tendas, afoxés, esco-
sido realidade em todo o decorrer de las de samba, gafieiras foram e são os
nossa história. Dessa realidade é que quilombos “legalizados” pela sociedade
nasce a necessidade urgente de assegu- dominante. Do outro lado da lei se er-
rar a própria existência do negro como gueram e se erguem os quilombos radi-
ser humano. Os quilombos resultaram calmente confrontadores e desafiadores
dessa exigência vital dos africanos es- da opressão sistemática praticada pelas
cravizados, de resgatar sua liberdade e elites no poder. Mas os quilombos “le-
dignidade, fugindo ao cativeiro e orga- galizados” e os fora da Iei formam uma
nizando sociedades livres no território unidade, uma única afirmação humana,
brasileiro. A multiplicação dos quilom- étnica, cultural, a um tempo integrando
bos no espaço e no tempo fez deles um uma prática de libertação e assumindo
autêntico movimento sociopolítico e o comando da própria história. A esse
econômico amplo e permanente. Apa- complexo de situações e significações, a
rentemente acidental e esporádico no essa práxis afro-brasileira de resistência
começo, rapidamente transformou-se à opressão e de autoafirmação política,
de improvisação de emergência em me- eu denomino de quilombismo.
tódica e constante vivência das massas Importante é destacar que essa
africanas que se recusavam à submissão, tradição de luta quilombista existiu e
à exploração, à humilhação e à violência existe através de todas as Américas.
do sistema escravista. O quilombismo Desde as primeiras décadas de 1500,
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 99

africanos livres recusaram-se a se sub- Discriminação Racial assim registra seu


meter aos horrores da escravização conceito quilombola ao definir o Dia da
européia, e formaram compactas co- Consciência Negra, em manifesto públi-
munidades que desataram contínuas e co de 1978:
vitoriosas lutas armadas contra os co-
lonizadores, isso durante séculos. No Nós, negros brasileiros, or-
México, por exemplo, essas sociedades gulhosos por descendermos de
africanas livres se chamaram cimarro- Zumbi, líder da República Negra
nes; em Cuba e Colômbia seu nome foi dos Palmares, que existiu no Es-
palenques; na Venezuela denominavam- tado de Alagoas, de 1595 a 1695,
-se cumbes; na Jamaica e Estados Uni- desafiando o domínio português e
dos, sociedades maroons (Moura 1977; até holandês, nos reunimos hoje,
Price 1973). Pesquisando a história des- após 283 anos, para declarar a todo
sas comunidades africanas livres nas o povo brasileiro nossa verdadeira
Américas, bem como suas bases cultu- e efetiva data: 20 de novembro, Dia
rais, econômicas, políticas e sociais, os Nacional da Consciência Negra!
afro-americanos de todo o hemisfério Dia da morte do grande líder negro
consolidarão sua herança de solidarie- nacional, Zumbi, responsável pela
dade e luta comum. O quilombismo e primeira e única tentativa brasilei-
seus vários equivalentes em todas as ra de estabelecer uma sociedade
Américas -cimarronismo, palenquismo, democrática, ou seja, livre, e em
cumbismo, maroonismo significam hoje que todos -negros, índios e brancos
uma alternativa internacional para a or- -realizaram um grande avanço polí-
ganização política popular das massas tico, econômico e social. Tentativa
negras. esta que sempre esteve presente em
A constatação fácil do enorme todos os quilombos.
número de organizações afro-brasileiras
que se intitularam no passado e se in- A continuidade dessa consciência
titulam no presente de quilombo e/ou de luta político-social estende-se por
Palmares testemunha quanto o exem- todos os Estados onde existe significa-
plo quilombista significa como valor tiva população de origem ~,liicana. O
dinãmico na estratégia e na tática de modelo qt,ilombista vem atuando como
sobrevivência e progresso das coletivi- idéiaforça, energia que inspira mode-
dades de origem africana. Com efeito, o los de organização dinâmica desde o
quilombismo tem-se revelado um fator século XV. Nessa dinâmica repleta de
capaz de mobilizar disciplinadamente heroísmo, o quilombismo se mantém
as massas negras devido ao seu profun- em constante atualização, atendendo
do apelo psicossocial, cujas raízes estão às exigências do tempo histórico e às
entranhadas na história, na cultura, no situações do meio geográfico. A essas
sangue e na vivência dos afrobrasileiros. circunstâncias se devem as diferenças
O Movimento Negro Unificado contra a nas formas superficiais das organiza-
100 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

ções quilombistas. No essencial todos la que fundou e presidiu, no rumo dos


os quilombos se igualaram. Foram, e interesses mais legítimos do povo afro-
são, nas palavras da historiadora Beatriz -brasileiro. No livro que ele e Isnard es-
Nascimento, “um local onde a liberdade creveram, há trechos como este:
era praticada, onde os laços étnicos e an-
cestrais eram revigorados”. Essa mulher Quilombo - Grêmio Recreativo
negra estudiosa do nosso passado afmna Arte Negra ( ... ) nasceu da ne-
ter o quilombo exercido “um papel fun- cessidade de se preservar toda
damental na consciência histórica dos a influência do afro na cultura
negros” (1979: 17-17). brasileira. Pretendemos chamar
Percebe-se o ideal quilombista a atenção do povo brasileiro para
difuso, porém consistente e perseve- as raízes da arte negra brasileira.
rante, permeando todos os níveis da ( ...) A posição do Quilombo é
vida negra, infiltrando-se até os mais principalmente contrária à impor-
íntimos refolhos da personalidade afro- tação de produtos culturais pron-
-brasileira. Um ideal forte e denso que tos e acabados produzidos no ex-
normalmente perman~cereprimido pe- terior. (1978:87-8)
las estruturas dominantes; outras vezes
Nesse último trecho, os autores
ele é sublimado por meio dos vários
tocam num ponto básico do quilom-
mecanismos de defesa fornecidos pelo
bismo: o caráter nacionalista do movi-
inconsciente individual ou coletivo.
mento. Nacionalismo aqui não deve ser
Mas também acontece que o negro se
confundido com xenofobismo. Sendo o
apropria às vezes d(‘o mecanismos que
a sociedade dominante maliciosamente quilombismo uma luta anti-imperialis-
lhe concedeu com o propósito oculto de ta, ele se articula ao pan-africanismo e
assim melhor controlá-lo. Nessa rever- sustenta uma radicaI solidariedade com
são do alvo, o negro utiliza habilmente todos os povos em luta contra a explora-
esses propósitos não confessados de do- ção, a opressão, o racismo e as desigual-
mesticação, transformando-os numa es- dades moti vadas em função de raça,
pécie de bumerangue étnico. Nesse tipo cor, religião, sexo ou ideologia. O na-
de estratégia, Candeia, o compositor de cionalismo negro é universalista e inter-
sambas e negro inteligente dedicado à nacionalista, conseqüentemente ele vê
redenção do seu povo, nos deixou um a luta de libertação de todos os povos,
exemplo ilustre. Ele organizou a Escola respeitando suas respectivas culturas
de Samba Quilombo, nos subúrbios do nacionais e integridade política, Como
Rio de Janeiro, obedecendo a um pro- um imperativo da libertação mundial.
fundo senso do valor político-social do Uniformidade sem rosto em nome da
samba. Esse importante membro da fa- “unidade” ou da “solidariedade”, condi-
mília quilombista faleceu recentemente, cionada ao ditado de qualquer modelo
mas, até o instante derradeiro, manteve político-social do Ocidente, não está na
uma lúcida visão dos objetivos da esco- linha de interesse das lutas de libertação
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 101

dos povos oprimidos. O quilombismo, Ainda podemos encontrar centenas,


como filosofia nacionalista, nos ensina milhares desses negros que vivem uma
que a luta de qualquer e todos os povos existência ambígua. Não pelo fato de
deve enraizar-se na sua própria identida- possuírem o sangue do branco opressor,
de cultural e experiência histórica. mas porque, internalizando como positi-
Num folheto intitulado 90 anos va a ideologia do embranquecimento (o
de abolição, publicado pela Escola de branco é superior e o negro inferior), se
Samba Quilombo, Candeia registra: distanciam das realidades do seu povo
e se prestam ao papel de auxiliares das
“Foi através do Quilombo, forças repressivas do supremacismo
e não do movimento abolicio- branco. E tanto ontem quanto hoje os
nista, que se desenvolveu a luta serviços que se prestam à repressão se
dos negros contra a escravatura. traduzem em lucro social e lucro pe-
(1978:7)” cuniário. Em nossos dias não devemos
permitir que nos dividam em categorias
A luta contra os escravocratas pigmentocráticas adversas de negros,
ainda não terminou e o movimento mulatos, morenos, trigueiros, crioulos
quilombista está longe de haver esgo- etc., divisão concebida para enfraquecer
tado seu papel histórico. O sentido do nossa identidade fundamentaI de afro-
quilombismo está tão vivo hoje quanto -brasileiros, isto é, de negros africanos
no passado, pois a situação de penúria e na diáspora.
destituição das camadas negras continua Neste Brasil tão vasto, existem
inalterada, ou com mínimas alterações inúmeras comunidades negras vivendo
de superfície. Mais uma transcrição de isoladas, que denominamos de quilom-
Candeia: bos contemporâneos. Desligadas do flu-
xo da vida do País, muitas delas mantêm
“Os quilombos eram vio- estilos e hábitos de existência africana,
lentamente reprimidos, não só ou quase. Em alguns casos, ainda se
pela força do governo, mas tam- utilizando do idioma original trazido da
bém por indivíduos interessados África, estropiado, porém assim mes-
no lucro que teriam devolvendo mo uma linguagem africana mantida e
os fugitivos a seus donos. Esses conservada na espécie de quilombismo
especialistas em caçar escravos em que vivem. Ocasionalmente, essas
fugidos ganharam o nome de comunidades ganham notícias externas
triste memória: capitão do mato. na grande imprensa, como aconteceu à
(1978:5)“ com unidade do Cafundó, situada nas
imediações do salto de Pirapora, no Es-
A citação do capitão do mato é tado de São Paulo. Os membros dessa
pertinente e oportuna: em geral, foram comunidade herdaram uma fazenda de
eles mulatos, isto é, negros de pele cla- grande extensão deixada pelo antigo se-
ra, assimilados pela classe dominante. nhor. Nas últimas décadas, as terras do
102 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

Cafundó começaram a ser invadidas por Registre-se que, depois que o


latifundiários das vizinhanças. Obvia- Ipeafro iniciou sua pesquisa, em 1981,
mente brancos, esses latifundiários de tomamos conhecimento de outras pes-
mentalidade escravocrata não podem quisas documentando a mesma realida-
aceitar que um grupo de descendentes de. Entre os exemplos estão os trabalhos
de africanos possua uma propriedade incentivados pelo Departamento de Ci-
imobiliária e estão determinados a des- ências Sociais da USP, por meio do pro-
truir o Cafundó, avançando criminosa- fessor João Baptista Borges Pereira, pu-
mente em suas terras. blicados nos livros Negros de cedro, de
Mari de Nasaré Baiocchi (Ática, 1983),
O caso do Cafundó é ilustrativo
e Caipiras negros no vale do ribeira, de
da situação genérica dessas comunida-
Renato S. Queiroz (USP, 1983).
des, constantemente ameaçadas pela
violência dos poderosos que cobiçam O avanço de latifundiários e de
suas terras. O Instituto de Pesquisas e especuladores de imóveis nas terras da
Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) gente negra está pedindo uma inves-
está engajado numa pesquisa investi- tigação mais ampla e profunda. É um
gando essa realidade. Na qualidade de fenômeno frequente tanto nas zonas
diretor do Ipeafro e professor respon- rurais quanto nas zonas urbanas. Vale a
sável pela execução da pesquisa, tive pena transcrever a esse respeito trechos
de uma nota estampada em Veja, seção
oportunidade de visitar várias dessas
“Cidades”, 10 de dezembro de 1975,
comunidades negras, e de constatar a
pág. 52:
existência de muitas outras espalhadas
pelo País afora. Citando apenas alguns Desde sua remota aparição
exemplos, evocamos nossas visitas a Ja- em Salvador, há quase dois sécu-
caraí dos Pretos, Cajueiros e Bom Jesus los, os terreiros do candomblé fo-
no Maranhão; o quilombo do Marmelo ram sempre fustigados por severas
em Goiás; Droga e São Mateus no Es- restrições policiais. E, pelo menos
pírito Santo; Campinho, Município de nos últimos vinte anos, o cerco
Parati, Rio de Janeiro. À medida que movido pela polícia foi sensivel-
desenvolvíamos a pesquisa, foram sur- mente fortalecido por um podero-
gindo notícias de outros quilombos, em so aliado _ a expansão imobiliária,
quase todos os Estados e Territórios do que se estendeu às áreas distantes
Brasil. O número enorme de exemplos do centro da cidade onde resso-
aumentou tanto o universo de pesquisa avam os atabaques. Mais ainda,
que o Ipeafro se encontrou sem os meios em nenhum momento a Prefeitu-
adequados para cobri-lo suficientemen- ra esboçou barricadas legais para
te. Entretanto a revista Afrodiáspora, proteger esse reduto da cultura
editada pelo Instituto, vai dedicar um afro-brasileira _ embora a capital
número aos resultados desse começo de baiana arrecadasse gordas divisas
pesquisa. com a exploração do turismo fo-
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 103

mentado pela magia dos orixás. se pensa, porque houve época em


(...) E nunca se soube da aplicação que o negro tinha representativi-
de sanções para os inescrupulosos dade e uma força econômica.
proprietários de terrenos vizinhos
às casas de culto, que se apossam Temos aqui uma pequena amostra
impunemente de áreas dos ter- do cerco de destituições levantado pela
reiros. Foi assim que, em poucos sociedade dominante em torno do des-
anos, a Sociedade Beneficente cendente de africanos. À destituição das
São José do Engenho Velho, ou terras do negro, seguem-se o desempre-
terreiro da Casa Branca, acabou go, a fome, o genocídio. Não escapam
perdendo metade de sua antiga à destruição implacável nem mesmo
área de 7.500 metros quadrados. as instituições religiosas seculares, as
Mais infeliz ainda, a Sociedade quais de uma hora para outra veem seu
São Bartolomeu do Engenho Ve- espaço sagrado invadido e usurpado por
lho da Federação, ou Candomblé representantes das elites dominantes.
de Bogum, assiste impotente à
veloz redução do terreno sagrado Quilombismo: um conceito
onde se ergue a mítica ‘árvore de científico-histórico-social
Azaudonou’ _ trazida da África há
150 anos e periodicamente agre- Conscientes da extensão e pro-
dida por um vizinho que insiste fundidade dos problemas que têm de
em podar seus galhos mais fron- enfrentar diariamente, os negros sabem
dosos. que a sua oposição ao que aí está vigente
não se esgota com pequenas reivindica-
Com todo fundamento nesses an- ções de caráter empregatício ou de direi-
tecedentes, o cineasta Rubem Confete tos civis, no âmbito da dominante socie-
denunciou numa mesa-redonda patroci- dade capitalista-burguesa e sua classe
nada pelo Pasquim (14-9-79, p.4): média organizada. Terão de derrocar
todas as componentes do sistema social
Quanto foi roubado dos ne- existente, inclusive a sua intelligentsia,
gros! Conheço cinco famílias que responsável pela cobertura ideológica
perderam todas suas terras para o da opressão do afro-brasileiro por meio
Governo e para a Igreja Católica. da teorização, seja de sua inferioridade
Jurandir Santos Melo era pro- biossocial, da miscigenação sutilmente
prietário das terras desde o atual compulsória ou do mito da “democra-
aeroporto de Salvador até a cida- cia racial”. Essa “inteligência”, aliada a
de. Hoje é um simples motorista, mentores europeus e norte-americanos,
vivendo de pequenos cachês. A fabricou uma “ciência” histórica ou hu-
família de Ofélia Pttman possuía mana que ajudou a massacrar e explorar
toda a parte que hoje é o Macken- os africanos e seus descendentes, justi-
zie. A coisa foi mais séria do que ficando esse crime por meio de sua de-
104 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

sumanização. Prova-se dessa forma que as suas mentiras, a sua ideologia de su-
a ciência europeia e/ou euro-brasileira premacismo europeu, a lavagem cere-
não é apropriada para o povo negro. bral com que pretendia roubar a nossa
Uma ciência histórica que não serve às humanidade, a nossa identidade, a nos-
necessidades históricas do povo ao qual sa dignidade, liberdade e autoestima.
se refere nega-se a si mesma. Proclamando a falência da colonização
Como poderiam as chamadas mental eurocentrista, celebramos o ad-
ciências humanas (etnologia, econo- vento da libertação quilombista.
mia, história, antropologia, sociologia,
Nós, os negros brasileiros, te-
psicologia etc) nascidas, cultivadas e
mos como projeto coletivo a ereção de
definidas por e para povos e contextos
uma sociedade fundada na justiça, na
socioeconômicos diferentes, prestar útil
igualdade e no respeito a todos os seres
colaboração ao povo negro-africano,
em sua realização existencial, em seus humanos; uma sociedade fundada na li-
problemas, aspirações e projetos? Se- berdade, cuja natureza intrínseca torne
ria a ciência social elaborada na Euro- impossível a exploração e o racismo.
pa ou nos Estados Unidos tão universal Uma democracia autêntica, erigida pe-
em sua aplicação? A raça negra conhe- los destituídos e deserdados deste País.
ce na própria carne a falaciosidade do Não nos interessa a restauração de for-
“universalismo” e da “isenção” dessa mas caducas de instituições políticas,
“ciência” eurocentrista. Aliás, a ideia de sociais e econômicas; isso serviria uni-
uma ciência histórica pura e universal camente para procrastinar o advento
está ultrapassada, até mesmo nos círcu- de nossa emancipação total, que exige
los científicos responsáveis europeus ou a transformação radical das estruturas
norte-americanos. O conhecimento de vigentes. Não nos interessa a proposta
que os negros necessitam é aquele capaz de uma adaptação aos moldes da socie-
de ajudá-los a formular teoricamente _ dade capitalista e de classes. Confiamos
de forma sistemática e consistente _ sua na idoneidade mental do povo negro e
experiência de cinco séculos de opres-
acreditamos na reinvenção de nós mes-
são, resistência e luta criativa. Haverá
mos e de nossa história. Reinvenção
erros e equívocos inevitáveis em nossa
de um caminho afro-brasileiro de vida
busca de sistematização dos nossos va-
fundado em sua experiência histórica,
lores, em nosso esforço de autodefini-
ção e autogoverno rumo aos caminhos na utilização do conhecimento crítico e
do futuro. Não importa. Durante séculos inventivo de nossas próprias instituições
temos carregado o peso dos crimes e dos socioeconômicas, golpeadas pelo colo-
erros do eurocentrismo “científico”, os nialismo e o racismo. Enfim, reconstruir
seus dogmas impostos sobre nós como no presente uma sociedade dirigida ao
marcas ígneas da verdade definitiva. futuro, mas levando em conta aquilo
Agora devolvemos ao obstinado seg- que ainda for útil e positivo no acervo
mento “branco” da sociedade brasileira do nosso passado.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 105

Um instrumento conceitual ope- interação social propõe e assegura a rea-


rativo se coloca, pois, na pauta das ne- lização completa do ser humano. Nessa
cessidades imediatas da gente negra dinâmica, todos os fatores e elementos
brasileira. Ele não deve e não pode ser básicos da economia são de proprieda-
o fruto de uma maquinação cerebral ar- de e uso coletivos. Disso resulta que o
bitrária, falsa e abstrata. Nem tampouco trabalho não se define como uma forma
pode ser um elenco de princípios impor- de castigo, opressão ou exploração; ele
tados, elaborados a partir de contextos é primariamente uma forma de liberta-
e de realidades diferentes. A cristaliza- ção humana da qual todo cidadão des-
ção dos nossos conceitos, definições e fruta como um direito e uma obrigação
princípios deve exprimir a vivência de social.
cultura da coletividade negra. Só assim
Os quilombolas dos séculos XVI,
estaremos incorporando nossa integri-
XVII, XVIII e XIX nos legaram um pa-
dade de ser total, em nosso tempo histó-
trimônio de prática quilombista. Cum-
rico, enriquecendo e aumentando nossa
pre aos negros contemporâneos manter
capacidade de luta.
e ampliar essa cultura afro-brasileira
Onde poderemos encontrar essa de resistência e de afirmação da nossa
vivência de cultura coletiva? Nos qui- verdade. Um método de análise social,
lombos. Quilombo não significa escravo
compreensão e definição de uma experi-
fugido, conforme nos ensinam as defini-
ência concreta, o quilombismo expressa
ções convencionais. Significa reunião
uma teoria científica inextricavelmente
fraterna e livre; encontro em solidarie-
fundida à nossa prática histórica.
dade, convivência, comunhão existen-
cial. A sociedade quilomba ou quilom- Condenada a sobreviver cercada
bista representa uma etapa avançada no e permeada pela hostilidade oculta ou
progresso humano e sociopolítico em mascarada das classes dominantes, a so-
termos de igualitarismo econômico. Os ciedade afro-brasileira é o fundamento
precedentes históricos conhecidos con- ético do quilombismo. O quilombismo
firmam essa afirmação. Como sistema tem seu ponto focal e seu pivô no ser
econômico, o quilombismo tem sido a humano, como ator e sujeito, dentro de
adequação, ao meio brasileiro, do comu- uma visão de mundo em que a ciência
nitarismo e/ ou ujamaaísmo da tradição constitui apenas uma entre outras vias
africana. Em tal sistema, as relações de de conhecimento.
produção diferem basicamente daquelas
prevalecentes na economia espoliativa ABC do quilombismo
de degradação social do trabalho, fun-
dada na razão do lucro a qualquer custo, Na trajetória histórica que esque-
principalmente no lucro obtido com o matizamos nestas páginas, o quilom-
suor e o sangue do africano escraviza- bismo tem-nos fornecido várias lições.
do. O quilombismo articula os diversos Tentaremos resumi-las num ABC fun-
níveis da vida comunitária e na dialética damental que nos ensina que:
106 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

a) Afro-brasileiro é o termo que c) Comunalismo africano, a


devemos adotar para evitar a exploração exemplo do Ujamaa exposto pelo gran-
das diferenças de cor, feita com o intuito de líder Julius Nyerere, da Tanzânia, é
de dividir a população negra em cate- um elemento inspirador do quilombis-
gorias como “mulato”, “cafuso”, “mo- mo. Não devemos aceitar certas defini-
reno”, “escurinho” e assim por diante. ções “científicas” sobre o comunalismo
Esses eufemismos, sempre valorizando africano e o ujamaaísmo como formas
o que está mais próximo do ideal racista arcaicas e obsoletas de organização so-
da beleza, isto é, o modelo louro euro- cioeconômica. Refletindo a arrogância
eurocentrista, essa posição implicita-
peu, só servem para confundir nossa co-
mente nega às instituições nascidas da
munidade, que precisa de unidade para
realidade histórica africana sua capa-
enfrentar o racismo que discrimina tanto
cidade intrínseca de desenvolvimento
o mulato quanto o mais retinto.
autônomo relativo de progresso e atu-
Autoritarismo de quase 500 anos alização. Assim, essa teoria endossa o
já basta. Não podemos, não devemos e pressuposto de que a ocupação colonial
não queremos tolerá-lo por mais tempo. da África determinasse o desapareci-
Uma das práticas básicas desse autori- mento dos valores e instituições africa-
tarismo é o desrespeito brutal da polí- nas, marcando o ponto de partida do seu
cia às famílias negras. Toda sorte de “desenvolvimento”, isto é, de sua oci-
arbitrariedade policial aciona as batidas dentalização. Na perspectiva da arro-
que a polícia faz rotineiramente para gância mencionada, as formas de vida
manter aterrorizada e desmoralizada a africanas são vistas como não dinâmi-
comunidade afro-brasileira. Assim, fica cas, quietistas e imobilizadas diante da
confirmada para os próprios negros sua história. Tal visão petrificada da África
condição de impotência: são incapazes e suas culturas não passa de uma ficção.
até mesmo de defender suas famílias e O quilombismo se propõe resgatar o
sentido de organização socioeconômi-
os membros de sua comunidade. Trata-
ca concebida para servir e enriquecer
-se de manter os afro-brasileiros num
a existência humana, organização que
estado de permanente frustração e hu-
existiu na Áfríca e veio para o Brasil
milhação.
com os africanos escravizados. A socie-
b) Banto denomina-se um povo dade brasileira contemporânea pode be-
ao qual pertenceram os primeiros afri- neficiar-se com o modelo quilombista,
canos escravizados que vieram para o uma alternativa nacional que se oferece
Brasil, procedentes de países que hoje em substituição ao desumano sistema
se chamam Angola, Congo, Zaire, Mo- do capitalismo selvagem.
çambique e outros. Foram os bantos Cuidar de organizar nossa luta
os primeiros quilombolas a confrontar por nós mesmos é um imperativo de
em terras brasileiras o poder militar do nossa sobrevivência como povo. Deve-
branco escravizador. mos, por isso, ser muito criteriosos ao
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 107

fazer alianças com outras forças políti- g) Garantir à nossa gente o seu
cas. Toda aliança deve obedecer a um lugar na hierarquia de poder e decisão,
propósito tático ou estratégico, e o ne- mantendo sua integridade etnocultural,
gro precisa ter poder de decisão, a fim é a motivação básica do quilombismo.
de não permitir que nosso povo seja ma- h) Humilhados que fomos e so-
nipulado por interesses estranhos à sua mos todos nós, negro-africanos, com
causa própria. todos eles devemos manter íntimo con-
d) Devemos ampliar sempre nossa tato e relação. Assim também com as
frente de luta, tendo em vista: 1. o obje- organizações africanas independentes,
tivo de longo alcance da transformação tanto da diáspora quanto do continente,
radicaI das estruturas socioeconômicas desenvolvendo instrumentos de aliança
e culturais da sociedade brasileira; 2. os e solidariedade. Ao mesmo tempo, de-
alvos táticos imediatos. Nessa categoria senvolver relações estreitas com a ONU
se incluem ampla campanha de registro e seus órgãos engajados no combate ao
do analfabeto para votar e a anistia aos racismo.
prisioneiros políticos negros. Desde a i) Infalível como um fenômeno
proclamação da República, em 1889, da natureza será a perseguição do poder
tem-se negado o direito de voto ao anal- branco ao quilombismo. Está na lógica
fabeto como meio de excluir o negro inflexível do racismo brasileiro jamais
do processo político do País. Agora que permitir a existência de qualquer movi-
finalmente se estabeleceu esse direito, mento político-libertário dos negros, a
precisamos organizar nossa gente para força popular majoritária.
votar. Os prisioneiros políticos negros j) Jamais as organizações polí-
são maliciosamente fichados pela polí- ticas afro-brasileiras devem permitir o
cia como desocupados, vadios, malan- acesso a brancos ou negros não quilom-
dros, marginais, e seus lares frequente- bistas a posição de poder e com autori-
mente invadidos. Uma vez fichados na dade para obstruir a ação ou influenciar
polícia, esses cidadãos afro-brasileiros os posicionamentos teóricos e práticos
ficam à mercê de toda e qualquer arbi- em face da luta.
trariedade policial. k) Kimbundo, língua do povo ban-
e) Ewe ou Gêge, povo africano to, chegou ao Brasil com os escravos de
de Gana, Togo e Daomé (Benim), de Angola, Congo e Zaire, principalmente.
onde vieram milhões de africanos es- Essa língua exerceu notável influência
cravizados para o Brasil. Os Ewes são sobre o português falado no País.
parte do nosso povo e de nossa herança l) Livrar o Brasil dessa industria-
afro-brasileira. lização artificial, tipo “milagre econô-
f) Formar os quadros do quilom- mico”, está nas metas do quilombismo.
bismo é fundamental, isso significando Nesse esquema o negro é explorado ao
a mobilização e a organização do povo mesmo tempo pelo capitalista e pela
negro. classe trabalhadora “qualificada”. O ne-
108 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

gro como trabalhador “desqualificado” gantes, aos maliciosos, aos apressados


é duplamente vítima: da raça (branca) de julgamento: o vocábulo raça, no sen-
e da classe (trabalhadora “qualifica- tido aqui empregado, define-se em ter-
da” e burguesia de qualquer raça). O mos de história e cultura, e não de pure-
quilombismo propõe para o Brasil um za biológica, que nunca existiu.)
conhecimento científico e técnico que n) Nada de mais confusões: se no
possibilite uma genuína industrializa- Brasil efetivamente houvesse igualdade
ção, dinamizando um novo avanço da de tratamento, de oportunidades concre-
autonomia nacional. O quilombismo tas, de respeito, de poder político e eco-
condena a entrega da nossa reserva nômico; se o encontro entre pessoas de
mineral e da nossa economia às cor- raças diferentes ocorresse espontanea-
porações monopolistas internacionais; mente e livre da pressão do status socio-
porém tampouco defende os interesses econômico do branco; se não houvesse
de uma elite nacional. O negro-africano outros condicionamentos repressivos,
foi o primeiro e o principal artífice da embora sutis, de caráter moral, estético,
formação econômica do País: a riqueza religioso etc., então, sim, a miscigena-
nacional pertence a ele e a todo o povo ção seria um acontecimento positivo,
brasileiro que a produz. capaz de enriquecer a sociedade brasi-
m) Miscigenação é uma balela leira, a cultura e a humanidade.
da “democracia racial”, a maior mentira o) Obstar o ensinamento e a prá-
nacional do Brasil. A miscigenação e a tica genocidas do supremacismo branco
política imigratória proibindo a radica- é o fator substantivo do quilombismo.
ção de africanos no Brasil foram pro-
movidas como meio de embranquecer p) Poder quilombista quer dizer:
o povo brasileiro, eliminando dele o a raça negra no poder. Os descendentes
elemento negro (inferior) para atender de africanos somam a maioria de nossa
ao critério racista de “preservar” a as- população. Portanto, o poder negro será
cendência europeia, tida como superior. um poder essencialmente democráti-
A miscigenação nunca se deu massiva- co. (Reitero mais uma vez a advertên-
mente à base do intercasamento, e sim cia aos intrigantes, aos maliciosos, aos
da exploração sexual da mulher negra. ignorantes, aos racistas: neste texto a
O intercasamento foi promovido na me- palavra raça tem uma acepção histórico-
dida em que existe socialmente como -cultural. Raça biologicamente pura não
fruto de uma compulsão social racista existe e nunca existiu.)
de “melhorar a raça”, isto é, torná-Ia q) Quebrar a eficácia de certos
mais branca, numa nítida expressão de slogans que atravessam a história de
cultura racista. A miscigenação, ou mis- nossa luta contra o racismo é um dever
tura de raças, quando ocorre espontane- do quilombista. Entre esses slogans está
amente, e não como imposição social de aquele dizendo que a única luta legíti-
valores racistas, é dos mais louváveis ma é a de todo o proletariado, de todo
fenômenos humanos. (Aviso aos intri- o povo ou de todos os oprimidos. Os
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 109

privilégios raciais vêm sendo conferi- nhecido na história dos seres humanos.
dos ao branco em detrimento do negro O racismo é a primeira contradição que
desde o mundo antigo. A luta “única” o negro enfrenta na moderna sociedade
ou “unida” que pregam não consegue industrial multiétnica. A essa contradi-
ocultar o desprezo que nos votam, não ção se juntam outras, como a de classe
respeitando nossa identidade nem a es- e de sexo.
pecificidade da nossa luta e da opressão s) Swahili é uma língua de origem
que nos atinge. banto, influenciada por outros idiomas,
r) Raça: acreditamos que todos especialmente o árabe. Atualmente é fa-
os seres humanos pertencem à mesma lada por mais de 20 milhões de africa-
espécie. Para o quilombismo, raça sig- nos da Tanzânia, do Quênia, de Uganda,
nifica um grupo humano que possui em do Burundi, do Zaire etc. O swahili tem
comum não somente algumas caracte- sido escolhido em várias reuniões in-
rísticas somáticas, mas sobretudo um ternacionais de professores e escritores
complexo de fatores históricos, cultu- como a língua franca internacional afri-
rais e ambientais. cana, meio de transcender as barreiras
Tanto a aparência física como os coloniais criadas pelo uso do francês, do
traços psicológicos, de personalidade, inglês, do português, do espanhol, entre
de caráter e emotividade sofrem a influ- os povos africanos. Os afro-brasileiros
ência da cultura, da sociedade, da gené- necessitam aprender o swahili com ur-
tica, do meio geográfico e da história, gência.
que se somam e se complementam. O
t) Todo negro ou mulato (afro-
cruzamento de grupos raciais diferentes
-brasileiro) que aceita a “democracia
e/ou de pessoas de identidades raciais
diversas está na linha dos mais legítimos racial” como uma realidade e consi-
e nobres interesses de sobrevivência da dera positiva a miscigenação na forma
espécie humana. vigente, isto é, uma compulsão social
branqueadora ditada pela sociedade do-
Racismo: é a crença na inerente
minante, está traindo a si mesmo e se
superioridade de uma raça sobre outra.
considerando inferior.
Tal superioridade é concebida em ter-
mos biológicos e na dimensão psico- u) Unanimidade é algo impos-
-sócio-cultural. Esse é um aspecto nor- sível na dinâmica social e política. Por
malmente negligenciado ou omitido nas isso não devemos perder tempo e ener-
definições tradicionais do racismo, que gia com as críticas vindas de fora do
focalizam a cor epidérmica. A elabora- movimento quilombista. A dialética do
ção teórico-científica produzida pela nosso progresso aconselha que desen-
cultura europeia justificando a escravi- volvamos uma construtiva autocrítica
zação, desumanização e inferiorização para ampliar nossa consciência quilom-
dos povos africanos constitui um nível bista rumo ao objetivo final: a ascensão
de racismo depravado e cruel jamais co- do povo afro-brasileiro ao poder
110 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

v) Vadiagem, contravenção se- Alguns princípios e propósitos do qui-


gundo nosso Código Penal. Desde o sé- lombismo
culo passado, essa configuração visa a
1. O quilombismo é um movi-
impor um estado de terror permanente
mento político dos negros brasileiros,
sobre as famílias negras. Sem emprego
visando à implantação de um Estado
e muitas vezes sem moradia, o negro
Nacional Quilombista, inspirado no
está automaticamente sujeito a ser en-
modelo da República dos Palmares, no
quadrado, mesmo sem cometer nenhum
século XVI, e em outros quilombos que
ato criminoso. A polícia invade os lares
existiram e existem. Dessa forma, o qui-
e violenta as comunidades negras im-
lombismo representa uma proposta de
punemente, amparada nesse dispositivo
organização política e social inspirada
legal. É uma prioridade do quilombismo
na experiência histórica afro-brasileira.
revogá-lo imediatamente.
Não se trata, conforme o entendimento
w) Voto ao analfabeto, nega- equívoco de algumas pessoas, de um
do durante toda a nossa história, agora separatismo do negro brasileiro. Apenas
constitui uma conquista do povo brasi- advoga-se o poder político realmente
leiro. Organizar nossa gente para exer- democrático, que implica a presença da
cer esse direito e votar constitui uma maioria afro-brasileira em todos os ní-
tarefa urgente do quilombismo. veis desse poder.
x) Xingar não basta. Precisamos 2. O Estado Nacional Quilombis-
é mobilizar a gente negra, mantendo a ta tem sua base numa sociedade livre,
luta antiga energicamente, sem descan- justa e soberana. O igualitário democrá-
so e sem pausa, contra as destituições, a tico quilombista é compreendido no to-
humilhação e a pobreza. Até que ponto cante a raça, economia, sexo, sociedade,
vamos continuar assistindo impotentes à religião, política, justiça, educação, cul-
nossa própria exterminação pela fome, tura, enfim, em todas as expressões da
moléstia, assassínio policial e miséria vida em sociedade. O mesmo igualita-
dos nossos irmãos e irmãs afro-brasilei- rismo se aplica a todos os níveis de po-
ros, principalmente das crianças negras der e de instituições públicas e privadas.
deste País? 3. A finalidade básica do Esta-
y) Yornba (nagô) somos também do Nacional Quilombista é promover
em nossa africanidade brasileira. Os a felicidade do ser humano. O quilom-
yornbas são parte fundamental do nos- bismo acredita numa economia de base
so povo, da nossa cultura, da religião comunitário-cooperativista nos setores
afro-brasileira, de nossa luta e de nosso de produção, distribuição e divisão da
futuro. riqueza nacional.
z) Zumbi: o fundador do quilom- 4. O quilombismo considera a
bismo, o zênite desta hora histórica, zê- terra uma propriedade nacional de uso
nite deste povo afro-brasileiro. coletivo. As fábricas e outras instala-
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 111

ções industriais, os bens e instrumentos procurará estimular todas as potencia-


de produção, da mesma forma que a ter- lidades do ser humano à sua plena rea-
ra, são de propriedade e uso coletivo da lização. Combater o embrutecimento e
sociedade. Os trabalhadores rurais ou a apatia forçada, impostos pela miséria,
camponeses trabalham a terra e são di- pela mecanização da existência e pela
rigentes das instituições agropecuárias. burocratização das relações humanas
Os operários de modo geral são os úni- e sociais, é um ponto fundamental da
cos responsáveis pela orientação e ge- política quilombista. As artes em geral
rência de suas respectivas unidades de ocuparão um espaço básico no sistema
produção. educativo e no contexto de atividades
5. No quilombismo, o trabalho sociais da coletividade quilombola.
é um direito e uma obrigação social; 9. No quilombismo, não haverá
os trabalhadores, que criam a riqueza religiões cultas e religiões populares,
agrícola e industrial da sociedade, são isto é, as religiões das elites endossadas
os únicos donos do produto do seu tra- como verdadeiras, e as religiões do povo
balho. desprezadas e ridicularizadas. Da mes-
6. A criança negra tem sido a ma forma, não existirá “cultura erudita”
vítima predileta e indefesa da miséria e “cultura popular”, uma elevada e outra
material e moral imposta à comunidade folc1orizada e menosprezada. Todas as
afro-brasileira. Por isso, ela constitui a religiões merecem as mesmas garantias
preocupação urgente e prioritária do de culto, e toda manifestação cultural
quilombismo. Cuidado pré-natal, ampa- merece igual respeito e tratamento pelas
ro à maternidade, creches, alimentação autoridades públicas.
adequada, moradia higiênica e huma- 10. O Estado Quilombista proí-
na são alguns dos itens relacionados à be a existência de um aparato burocrá-
criança negra dentro do programa de tico estatal que perturbe ou interfira na
ação do movimento quilombista. mobilidade vertical das massas em sua
7. A educação e o ensino em to- relação e comunicação direta com os
dos os graus _ elementar, médio e su- dirigentes. Nessa relação dialética dos
perior _ serão completamente gratuitos membros da sociedade com as suas ins-
e abertos, sem distinção, a todos os tituições repousa o sentido progressista
membros da sociedade quilombista. A e dinâmico do quilombismo.
história da África, suas culturas, civili- 11. A proposta quilom-
zações, sistemas político-econômicos e bista é fundamentalmente anti-
artes terão um lugar eminente nos currí- -racista,anticapitalista, antilatifundiária
culos escolares. Criar uma universidade e antineocolonialista.
afro-brasileira é uma necessidade para a 12. Em todos os órgãos de poder
realização do programa quilombista. do Estado Quilombista _ legislativo,
8. Visando o quilombismo à fun- executivo e judiciário _, a metade dos
dação de uma sociedade criativa, ele cargos eletivos, de confiança ou nome-
112 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

ados deverá ser ocupada por mulheres, o trabalho do Comitê para a Eliminação
como norma constitucional. O mesmo da Discriminação Racial, órgão das Na-
se aplica a todo e qualquer setor ou ins- ções Unidas.
tituição privada ou de serviço público.
13. O quilombismo considera a Semana da Memória Afro-Brasileira
transformação das relações de produção
e da sociedade de modo geral, por meios Em 1980, ao formular a proposta
não violentos e democráticos, uma via política do quilombismo, e no intuito de
possível. atender à urgente necessidade do negro
de recuperar sua memória histórica, su-
14. É matéria urgente para o qui-
geri à comunidade negra a instituição de
lombismo a organização de uma insti- uma Semana da Memória Afro-Brasilei-
tuição econômico-financeira em moldes ra. Nela seriam focalizados os fatos his-
cooperativos, capaz de assegurar a ma- tóricos que tiveram como protagonistas
nutenção e a expansão da luta quilom- os 300 milhões de africanos retirados,
bista a salvo das interferências contro- sob violência hedionda, de suas terras e
ladoras do paternalismo ou das pressões trazidos acorrentados para o continente
do poder econômico. das Américas. Por intermédio dessas ce-
15. Basicamente, o quilombismo lebrações anuais, a comunidade negra
é um defensor da existência humana e não só honraria os seus antepassados
como tal ele se coloca contra a poluição como reforçaria a sua própria coesão e
ambiental e favorece todas as formas de identidade, transmitindo às novas gera-
melhoramento do meio ambiente que ções um exemplo de amor à nossa histó-
possam assegurar uma vida saudável ria e uma percepção mais clara do papel
para as crianças, os adultos, os animais, fundamental desempenhado pelos es-
as criaturas do mar, as plantas, as selvas, cravos africanos na construção do nosso
as pedras e todas as manifestações da País. A Semana da Memória Afro-Brasi-
natureza. leira infundiria aos jovens um merecido
16. O Brasil é signatário da Con- autorrespeito coletivo, substituindo o
venção Internacional para a Eliminação sentimento de vergonha e frustração que
de Todas as Formas de Discriminação a sociedade dominante instila na cons-
Racial, adotada pela Assembleia Geral ciência dos negros como única herança
das Nações Unidas em 1965. No sentido deixada por seus ancestrais.
de cooperar para a concretização de ob- Segundo a proposta feita em
jetivos tão elevados e generosos, e ten- 1980, a Semana deve aliar aos aspectos
do em vista o art. 9o, parágrafos 1o e 2o celebrativos o exercício de uma cons-
da referida Convenção, o quilombismo tante pesquisa, crítica e reflexão sobre
con1ribuirá para a pesquisa e a elabora- o passado e o presente da população de
ção de um relatório bianual, abrangendo origem africana no Brasil. Isso contri-
todos os fatos relativos à discriminação buirá para ampliar e fortalecer o quilom-
racial ocorridos no País, afim de auxiliar bismo em sua filosofia teórica e prática.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 113

A Semana implica também um estímulo existir organização afro-brasileira ou


tanto às organizações negras recreativas escola interessada na Semana, as famí-
ou beneficentes quanto às de caráter lias negras deverão preencher a função
cultural, social ou político, igualadas no de seus realizadores.
interesse básico de melhorar o destino A proposta original, publicada no
da família afro-brasileira. Todas elas se livro O quilombismo (1980), especifica
inserem na perspectiva quilombista que para a realização da Semana um calen-
estamos sistematizando. dário começando no dia 14 de novem-
Essa Semana deve ser um exer- bro e culminando no dia 20, Dia Nacio-
cício de emancipação, nunca uma co- nal da Consciência Negra. Hoje tenho a
memoração convencional, estática e grande satisfação de constatar que, em
retórica, propondo unicamente a evoca- quase todo o País, existem programa-
ção de fatos, datas, nomes e coisas do ções da mesma natureza dessa Semana,
passado. Estudar os feitos dos antepas- em torno exatamente do dia 20 de no-
sados deverá estimular a imaginação e vembro, Dia Nacional da Consciência
a ação transformadora do presente, ao Negra. Considero esse fato uma vitória
contrário da contemplação saudosista da luta quilombista desenvolvida pela
do pretérito, insinuando ou cultivando a coletividade afro-brasileira durante as
autoflagelação coletiva. últimas décadas. A sociedade dominan-
Resgatar a nossa memória sig- te não pode mais ignorar a importância
nifica resgatarmos a nós mesmos das desse dia, ao redor do qual a comunida-
armadilhas da negação e do esqueci- de negra se está esforçando para pôr em
mento: significa estarmos reafirmando prática uma celebração de sua experiên-
a nossa presença ativa na história pan- cia no passado e de sua movimentação
-africana e na realidade universal dos no presente. Essas comemorações em
seres humanos. muitos casos são realizadas com o apoio
A Semana deve ser promovida, de secretarias estaduais ou municipais
ainda segundo a proposta original, por de cultura e/ou de educação, dentro do
organização negra. Entretanto ela po- contexto democrático da chamada Nova
derá também ser realizada por escolas República, fato que ilustra o êxito que
públicas ou privadas com interesse no o movimento negro alcançou na impo-
progresso cívico da comunidade afro- sição do Dia Nacional da Consciência
-brasileira. Nesse caso, levando-se em Negra como fato cultural nacional. Um
conta que de modo geral as escolas não exemplo é o Projeto Zumbi dos Palma-
são dirigidas por negros, os afro-brasi- res, da Secretaria de Educação e Cultura
leiros presentes devem estar bem alertas do Município do Rio de Janeiro, engaja-
para impedir que os fatos históricos e os do no desenvolvimento de um trabalho
sucessos da vida negra sejam manipu- pioneiro dentro dos propósitos dessa Se-
lados ou distorcidos, seja por malícia, mana de Memória. Na serra da Barriga,
ignorância ou negligência. Onde não no dia 20 de novembro deste ano, cele-
114 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

braremos mais uma vez o Dia Nacional Brasil. Axé, Brasil. Axé, Zumbi! (Pal-
da Consciência Negra, no próprio local mas.)
de sua origem histórica, com a feliz di-
mensão adicional de seu histórico tom- Sala das Sessões, 13 de novembro de
bamento como Patrimônio Nacional do 1985.
Pronunciamento feito no Senado Fe-
deral, Sessão de 14 de novembro de
A luta afro- 1991.

-brasileira no Senhor Presidente,


Senado Senhores Senadores,
Senhores Embaixadores,
Senhores Representantes Diplomá-
ticos,
Meus companheiros e companhei-
ras do Movimento Negro,

Senhores e Senhoras:

Sob a proteção de Olorum e de


nossos orixás, a esta tribuna não ascen-
de, neste momento, apenas um senador
do Partido Democrático Trabalhista, re-
presentante do Estado do Rio de Janeiro,
nem tampouco o economista ou o teatró-
logo, antes entregador de doces que sua
mãe fazia, ou o faxineiro que estudava à
noite, nem o professor universitário e ar-
tista plástico, autor de obras sociológicas
116 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

e políticas, que lecionou e trabalhou nos saudosa mãe Georgina Ferreira do Nas-
Estados Unidos e na África, ainda que cimento, digna de todo o alto rigor da
exilado e perseguido. Ocupa esta tribu- tradição africana relativa à figura mater-
na um afro-brasileiro, um homem co- na. Foi ela quem me iniciou no trabalho
mum, consciente de sua origem africana como entregador de doces e me mostrou
e que jamais abdicou dos seus direitos o caminho do estudo como instrumento
de cidadão brasileiro. de defesa intransigente da justiça para
Fala aqui, Senhor Presidente, todos. Meu pai, José Ferreira Nasci-
um sobrevivente do maior holocausto mento, sapateiro de Franca, cujos filhos
já vivido por um povo na História da andavam descalços, ensinou-nos a ho-
Humanidade: mais de 200 milhões de nestidade e a humildade como virtudes
assassinatos entre os portos de embar- de autoestima, ao mesmo tempo em que
que na África, os porões dos navios ne- cultivava na música a doçura de uma
greiros e as Américas. São quinhentos vida simples, difícil e dura, mas trans-
anos de escravidão no Brasil, escravi- bordante de carinho e calor humano.
dão que ainda perdura nas formas ver-
Tributo a Doutel de Andrade
gonhosas da opressão, da humilhação
e da discriminação racial. Estão ouvin-
No contexto desta tradicional
do, senhores senadores, um filho desse
evocação dos ancestrais, presto ainda
povo heróico construtor de civilizações
uma homenagem muito especial à figu-
milenares, que veio acorrentado para as
ra singular, inteiriça e honrada do depu-
terras “recém-descobertas” das Améri-
tado e líder do PDT na Câmara Federal,
cas. E é em nome dele que estou aqui
Doutel de Andrade, que há pouco nos
neste momento. Evoco aqueles que me deixou. Cofundador e líder do antigo
antecederam nesta luta que me traz hoje PTB, foi o infatigável e precioso colabo-
a esta tribuna: na pessoa de Zumbi dos rador do Governador Leonel Brizola na
Palmares, rendo minhas homenagens a construção do nosso PDT, desde os tem-
todos os africanos e afro-brasileiros que pos do exílio. Na presidência nacional
batalham e batalharam por amor a seu do Partido, foi Doutel um dos grandes
povo e ao Brasil, seguindo a longa tra- responsáveis no fazer do PDT o legíti-
dição africana que remonta à linha das mo representante do socialismo demo-
rainhas-mães e guerreiras Kentake da crático do Brasil, integrante também do
antiga Núbia, Yaa Asaantewa de Gana mais avançado fórum político do mundo
e Nzinga de Angola, chegando ao Bra- contemporâneo, a Internacional Socia-
sil nas pessoas de Dandara, Aqualtune e lista. Quando faleceu, na condição de
Luísa Mahin. Axé Babá! primeiro suplente de senador, nos dei-
Em segundo lugar, mais que um xou um vazio impreenchível com a per-
tributo, uma incontida palavra de sauda- da de sua personalidade magnética e do
de e de respeito aos meus pais, ambos fi- brilho de sua aguda inteligência. Hoje,
lhos de africanos escravizados. À minha aqui, deveria estar esse político e figura
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 117

humana cuja grandeza e generosidade inteligências privilegiadas do mundo de


se completavam. Sem dúvida, a voz de hoje. Afastou-se do Senado para auxiliar
Doutel, mais do que a minha, merecia a o Governador Leonel Brizola no prosse-
honra de ser ouvida desta tribuna. guimento da implantação da nova esco-
Permita-me agora, Sr. Presidente, la pública, o Centro Integrado de Educa-
registrar meus agradecimentos tanto a ção Pública, programa interrompido, na
V. Exa, Senador Mauro Benevides, dig- incúria e na incompetência, pelo último
no presidente desta Casa, assim como governo do Rio de Janeiro. Se é gran-
aos ilustres senadores que me saudaram de a minha responsabilidade ao assumir
por ocasião da minha investidura como esta cadeira, maior é o meu entusiasmo
Senador da República: Mauricio Cor- ao enfrentar este desafio.
rêa, eminente líder do meu partido nesta
Casa; o combativo Eduardo Mattara- “Democracia racial”: uma impostura
zzo Suplicy, cuja companhia me honra cívico-sociológica
desde minha passagem pela Câmara
dos Deputados; Divaldo Suruagy, que, Chego, Senhor Presidente, a esta
ainda Governador do seu Estado, já me mais alta instância do Parlamento do
recebia no Palácio dos Martírios junto meu País sem execrar uma só palavra,
com meus companheiros quilombo las sem extirpar um só gesto, sem aban-
do Memorial Zumbi; João Calmon, cuja donar por um instante a luta a que me
luta em prol da educação foi inesquecí- entreguei desde a infância que não tive.
vel quando, também, me acompanhava Para chegar até aqui, tive de superar
no desempenho do mandato de depu-
muitas barreiras, algumas até crimino-
tado federal, e Chagas Rodrigues, que
samente urdidas e praticadas. Parece
demonstrou compreender o significado
um fato inédito: muitos já me saudaram
profundamente democrático do nosso
como o primeiro senador negro na his-
engajamento na luta pelos direitos hu-
tória da política brasileira. Será essa a
manos dos afro-brasileiros _ compre-
verdade?
ensão esta ainda bastante escassa no
meio da elite política nacional. Aos que Talvez seja o primeiro, sim, a
tão generosamente me recepcionaram, assumir orgulhosamente sua etnia, sua
quero corresponder com um desempe- cultura e religião, suas origens africa-
nho eficaz, honesto e desassombrado, nas e, sobretudo, a luta coletiva do povo
na linha dos libertadores africanos que africano em nosso País. E nela prosse-
me têm inspirado, através desses setenta guir, repetindo nesta Casa a vanguar-
anos em que tenho empunhado a espada da que desempenhou no seu mandato,
justiceira, O agadá de Ogum. também inédito, de deputado afro-bra-
Senhor Presidente e Senhores sileiro, comprometido com as causas do
Senadores, chego ao Senado para subs- povo negro, destacando-as como causas
tituir Darcy Ribeiro, uma das poucas que são do povo e da Nação brasileira.
118 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

Por ser inédito, Senhor Presi- eficaz instrumento de poder, dissimular


dente, o fato também é surpreenden- o racismo sob o emblema da pobreza,
te e assustador, pois, num país onde a marginalizando milhões de patrícios e
grande maioria da população descende tentando encobrir mais um complicador
de africanos, não constitui um escânda- nas contradições de um país rico e endi-
lo que somente agora, 165 anos após a vidado, grande e faminto, belo e doente,
organização das instituições legislativas que quer ser europeu a todo custo.
nacionais, um homem de ascendência
africana, consciente e orgulhoso dessa A “mancha negra” no Senado
condição, representando os anseios des-
sa imensa população, chegue ao Senado Esta compulsão patológica de ser
Federal? branca e europeia está plenamente retra-
tada na elite política do nosso País.
A resposta a essa pergunta destrói
o mito da mentirosa e demagógica “de- Após uma viagem pela história
mocracia racial brasileira”, filão que as desta Casa, um olhar perquiridor sobre
elites usaram e continuam usando para as origens raciais dos milhares de bra-
negar a existência do racismo entre nós, sileiros que ocuparam estas cadeiras no
alegando como fator determinante da Império e na República, consegui con-
baixa condição social e econômica dos cluir que, antes de mim, mais de duas
dezenas de filhos de africanos – aí inclu-
afro-brasileiros apenas o relativo subde-
ídos pretos, mulatos, pardos, filhos de
senvolvimento da nossa economia eoo o
primeira e segunda geração – cumpri-
fato de eles serem maioria entre os po-
ram mandatos no Senado. Tive de usar
bres e miseráveis. Negam essas elites o
de uma sagacidade de pesquisador à
fato de nossa origem africana constituir
beira da astúcia, indo a dezenas de fon-
invisível e resistente barreira à nossa
tes, cruzando vários dados, cotejando
mobilidade social, econômica e política.
muitas informações, para chegar a esse
Neste país majoritariamente africano,
número. Isso porque aqueles 22 sena-
quantos negros estão nas universidades,
dores não assumiram etnicamente a sua
nos altos cargos públicos dos Três Pode- condição de afro-brasileiros, muito me-
res, no Itamaraty, nas altas patentes das nos as causas da negritude. Por um pro-
Forças Armadas? Qual a percentagem cesso de autorrejeição da própria iden-
de afro-brasileiros que recebem salá- tidade, omitiram-na em seus currículos
rio digno para sustentar suas famílias? e assentamentos no Senado. Biógrafos
Quantos estão nos cargos de decisão po- e historiadores, seguindo a tradição de
lítica ou econômica, nos Tribunais Su- se manter uma “conveniência social”
periores da Justiça brasileira? – na verdade, expressão de um racis-
Tem sido uma perversidade útil mo envergonhado – tentaram mascarar
às elites dirigentes deste País ignorar a identidades, driblar genealogias, omitir
questão racial, a discriminação não co- ascendências, dissimular traços e carac-
dificada. Trata-se de uma estratégia, um terísticas étnicas de muitos parlamenta-
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 119

res que passaram por esta Casa. Retra- bens semoventes, considerando-a uma
tistas, pintores e fotógrafos, por ordem “doutrina absurda e execrável”.
dos senadores ou de seus familiares, ou O carioca Francisco Otaviano de
mesmo por moto-próprio, falsificaram, Almeida Rosa, escritor, poeta e diplo-
europeizaram fisionomias, criaram ca- mata, foram abolicionista militante, in-
beleiras, procurando esconder o “estig- fluindo decisivamente na aprovação dos
ma” africano dos retratados, da mesma projetos de Lei do Ventre Livre, dos Se-
forma que outros fizeram aos papas afri- xagenários e da Lei Áurea. Foi cogno-
canos São Vitor I, Miltíades e Gelásio I, minado “A Pena de Ouro” da imprensa
e aos inúmeros faraós do Egito antigo. brasileira.
Para fazer jus aos senadores Outros senadores afro-brasileiros
afro-brasileiros que me antecederam, daquela época mostraram-se ambíguos
é preciso destacar aqueles que, mesmo ou francamente contrários à abolição. É
escondendo a sua identidade de origem, o caso do baiano Zacarias de Góis e Vas-
lutaram pelo fim do abominável regi- concelos, por exemplo. Foi presidente
me de escravidão no Brasil. O primei- de várias províncias, diversas vezes mi-
ro dos senadores de sangue africano, nistro de Estado, presidente do Gabine-
por exemplo, foi o baiano Francisco Gê te do Império, deputado e senador pelo
Acaiaba de Montezuma, Visconde de Partido Liberal por 13 anos. Embora
Jequitinhonha, constituinte de 1823 e negro e abolicionista, por questão mera-
senador por 19 anos. Um dos primeiros mente partidária, ele combateu o projeto
parlamentares a condenar a importação da Lei do Ventre Livre.
de africanos escravizados, ele propôs o Francisco Glicério Cerqueira
fim do tráfico negreiro, independente Leite, grande tribuno e propagandista
das convenções diplomáticas em vigor, da República, foi o único paulista pre-
sendo um precursor da propaganda abo- sente na conspiração da manhã de 15 de
licionista. novembro. Senador durante 13 anos, foi
capaz, num ato de vergonhosa indigni-
Por sua vez, o carioca Francisco
dade cívica durante a Convenção de Itu,
Sales Torres Homem, médico, diploma- de declarar, referindo-se à crescente,
ta e advogado, conselheiro e ministro da campanha abolicionista: “Nosso objeti-
Coroa, presidente do Banco do Brasil, vo é fundar a República, fato político,
deputado e senador por seis anos, era não libertar os escravos, fato social”.
filho de uma quitandeira negra. Desta
tribuna, Torres Homem condenou a es- Os evadidos da “Bodorrada”
cravidão como sistema desumano, inju-
rídico e anticristão. Durante a discussão O baiano João Maurício Wander-
da Lei do Ventre Livre, demoliu a argu- ley, Barão de Cotegipe, além de pre-
mentação dos escravagistas sobre a pro- sidir o Banco do Brasil e o Conselho
priedade dos africanos na condição de de Ministros, foi senador por 33 anos,
120 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

presidindo o Senado durante três deles. Deputados, senadores


Mesmo sendo negro, foi o maior escra- Gentis-homens, viadores,
vocrata que o Parlamento conheceu,
Belas damas emproadas,
lutando tenazmente contra a abolição e
procurando retardá-la ao máximo. In- De nobreza empantufadas,
sistiu até a sanção da Lei Áurea na in- Repimpados principotes,
denização aos senhores escravocratas, Orgulhosos fidalgotes,
defendendo projeto de sua autoria para Frades, bispos, cardeais,
essa finalidade. Ficou nos Anais da His-
Fanfarrões imperiais.
tória o episódio em que a princesa lhe
comunicou que iria realizar a abolição e (...................................)
quis saber a sua opinião. Cotegipe indi-
cou a porta dizendo: “A mim só me resta Entre brava “militância”
isto”; continuou, apontando para a barra Fulge e brilha alta “bodança”!
da baía de Guanabara: “E a Vossa Alteza Guardas, cabos, forriéis,
aquilo”. No dia 14 de maio de 1888, a Brigadeiros, coronéis,
princesa provocou-o: “Então, ganhei ou
Destemidos generais,
não ganhei a partida?” Cotegipe retru-
cou: “Ganhou, mas perdeu a Coroa”. Rui Capitães de mar e guerra,
Barbosa o chamou de “mulato envergo- - tudo marra, tudo berra –
nhado”. Quando chefiou o gabinete, os (...................................)
abolicionistas o identificavam como “o
circassiano de lusco-fusco”, “o desertor Haja paz, haja alegria
da Rainha Pomaré, que supõe filiar-se à Folgue e brinque a bodaria;
Teutônia, azular o sangue e jaspear a tez
Cesse, pois, a matinada,
alugando-se aos senhores de seus pais
como algoz de seus parentes”. Porque tudo é ‘bodorrada’!”
Para figuras tipo Barão de Co- Outros afro-brasileiros chegaram
tegipe, o satírico poeta e tribuno aboli-
ao Senado no tempo do Império, como
cionista Luís Gama escreveu sua imor-
o goiano Manuel de Assis Mascarenhas,
tal “Bodorrada”, da qual não resisto a
magistrado e diplomata, que foi sena-
transcrever estes versos:
dor por 17 anos no Segundo Reinado.
“Se negro sou ou sou bode Já a República teve vários que, além de
senadores, exerceram o cargo de chefe
Pouco importa. O que isto pode?
da Nação, caso de Manoel Victorino
Aqui nesta boa terra, Pereira, médico e professor baiano que
Marram todos, tudo berra; governou seu Estado e, Vice-Presidente,
Nobres condes e duquesas substituiu Prudente de Morais no seu
impedimento de 1894. O próprio Pro-
Ricas damas e marquesas, clamador da República, o Marechal ala-
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 121

goano Deodoro da Fonseca, era filho de ve com “um homem simples, de tez pig-
uma afro-brasileira, Rosa da Fonseca. mentada”. Um terceiro fala do “menino
O paulista Francisco de Paula pobre do Morro do Coco”. Certa vez,
Rodrigues Alves, promotor público, três Senhor Presidente, planejei escrever
vezes governador de São Paulo, ministro um livro sobre os grandes africanos que
da República e conselheiro do Império, ajudaram a construir este País e procurei
duas vezes eleito presidente da Repú- um descendente de Nilo Peçanha. Re-
blica, não cumpriu o segundo mandato sultado: fui repreendido por esse mem-
por motivo de doença. Foi eleito três ve- bro da família, que não admitia sequer
a mestiçagem do “menino do Morro do
zes senador da República e esteve nes-
Coco”, considerando tal versão uma in-
ta Casa por seis anos. Os biógrafos de
fâmia.
Rodrigues Alves se penduram na nacio-
nalidade portuguesa, “minhota”, do seu A atitude desse familiar de Nilo
pai, para ignorar sua negritude, à qual se não é de estranhar, quando considera-
referem eufemisticamente como “more- mos que ele viveu uma época, não tão
nice”, legado de sua mãe afro-brasileira, remota, em que a intelectualidade e a
Isabel Perpétua, conhecida como “Nhá liderança política do País cultivavam
Bela”. uma preocupação constante, beirando a
histeria, com a suposta inferioridade da
Severino dos Santos Vieira, pro- nossa população “mestiça”, tingida pela
motor público, deputado, ministro de “mancha negra” do sangue africano “in-
Estado, foi outro senador de ascendên- fectado”. Após a abolição, horrorizados
cia africana no início da República. Re- com o espectro da maioria africana que
presentou a Bahia nesta Casa por nove naquele momento ganhava, juridica-
anos. mente, a cidadania, trataram de cassar o
voto desse segmento por meio da restri-
O embranquecimento “científico” ção do analfabetismo e de embranquecer
o País, “limpar o sangue”. A população
O fluminense Nilo Procópio Pe- brasileira precisava “fortalecer-se com a
çanha, Deputado Constituinte em 1890 ajuda dos valores mais altos das raças
e Deputado Federal, governou o Estado europeias”, segundo Arthur de Gobi-
do Rio de Janeiro por dois períodos e neau. Desde Sylvio Romero e Oliveira
recebeu três mandatos de senador. Foi Vianna até Joaquim Nabuco, todos con-
vice-presidente da República e, com o cordavam em que a massiva imigração
falecimento de Afonso Pena, assumiu europeia e a política da mestiçagem so-
a presidência, sendo o quarto cidadão a cialmente compulsória iriam, na expres-
fazê-lo sem se assumir afro-brasileiro. são deste último, “contribuir para elevar
Brígido Tinoco, numa literária e afetu- o teor ariano do nosso sangue”. José Ve-
osa biografia, saúda o seu nascimento ríssimo exultou: “A mistura de raças é
com a constatação: “moreninho como o facilitada pela prevalência do elemento
pai”. Outro perfilador de Nilo o descre- superior. Por isso mesmo, mais cedo ou
122 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

mais tarde, ela vai eliminar a raça negra Outro baiano de sangue africano
daqui”. João Pandiá Calógeras declara- foi senador na década de sessenta: An-
va por volta de 1930: “A mancha negra tonio Balbino de Carvalho Filho, gover-
tende a desaparecer num tempo relati- nador da Bahia, ministro de Estado. O
vamente curto em virtude do influxo da cearense Valdon Varjão assumiu uma
imigração branca em que a herança de vaga no Senado por Mato Grosso na le-
Cam se dissolve”. A maior preocupação gislatura de 1975 a 1983, devendo ainda
era o tempo que levaria para eliminar de ser mencionados outros dois cearenses
nosso meio o elemento africano: cem afro-brasileiros no Senado: Manuel do
anos, duzentos, trezentos? O delegado Nascimento Fernandes Távora e seu
brasileiro ao Congresso Universal de filho Virgílio Távora. A médica baiana
Raças declarou em Londres, em 1911, Laélia Angra Contreiras de Alcântara
que até o final deste século lograríamos representou o Estado do Acre nesta Casa
acabar de uma vez com o sangue infec- por mais de três anos a partir de 1982.
tado.
Felizmente, o 21o senador afro-
A teoria da inferioridade africana -brasileiro desta leitura étnico-política
“cientificamente comprovada” perme-
que faço da história desta Câmara ainda
ava as bases da formação política das
está entre nós: trata-se do meu compa-
nossas elites a tal ponto que, em 1934,
nheiro de bancada, o baiano Nelson de
lideradas por Miguel Couto, entre ou-
Sousa Carneiro, dono de uma profícua
tros, inseriram no artigo 138, alínea b da
atuação parlamentar na vida política e
Constituição, aTeoria Europeia da Euge-
jurídica brasileira, com lugar nesta Casa
nia: a engenharia biológica objetivando
há cerca de vinte anos.
eliminar os tipos genéticos indesejáveis,
que foi levada às últimas consequências Seria leviano, Senhor Presidente,
na Alemanha daquela época. afirmar que nas veias do mineiro Tan-
Nesse contexto, não chega a sur- credo de Almeida Neves corria também
preender a atitude dos políticos que o nobre sangue africano? Creio que não,
escondiam sua ascendência africana, levando em consideração seus traços fi-
a exemplo do mineiro Fernando Melo sionômicos, assim como de muitos de
Viana, governador do seu Estado e seus familiares, conforme testemunha
vice-presidente da República, senador seu primo Dom Lucas Moreira Neves,
e presidente da Assembleia Nacional cardeal primaz do Brasil, arcebispo da
Constituinte de 1946. Os irmãos João Bahia, amigo íntimo de Sua Santidade
e Otávio Mangabeira, ambos senadores o Papa João Paulo lI. O idealizador da
nessa época, bem como o fluminense Nova República, sonho tragicamente
Mozart Brasileiro Pereira do Lago, re- frustrado com a sua morte, esteve por
presentante do Distrito Federal nesta três anos no Senado, antes de ser eleito
Casa de 1951 a 1955, também não fo- Governador de Minas Gerais e depois
gem à regra. Presidente da República.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 123

O “apartheid” à moda brasileira em média, 35 por cento do que ganha o


branco por trabalho equivalente, e que
Outro pesquisador mais arguto e 23 por cento das mulheres afro-brasilei-
competente do que eu mergulharia na ras chefes de família ganham menos da
História e concluiria com maior segu- metade de um salário mínimo. Primei-
rança por descobrir outros afro-brasilei- ro a ser despedido e último a ser pro-
ros na vida do Senado brasileiro. Outros movido no emprego, o afro-brasileiro e
senadores, meus pares, poderão se pro- sua família passam a habitar as ruas dos
clamar descendentes da África, contra- nossos grandes centros urbanos, trans-
riando a indicação de que eu seja o pri- formados em mendigos ou párias.
meiro ou o 23o afro-brasileiro a chegar a O Brasil condena o apartheid e se
esta Casa. A indagação apenas provoca solidariza com Nelson Mandela na sua
a consciência de cada um de nós sobre incomparável luta contra o racismo. Que
o trabalho que o Poder Legislativo bra- dizer, então, da Baixada Fluminense,
sileiro tem desenvolvido em favor da que ultrapassa qualquer township sul-
maioria da população brasileira, que é -africana como império da miséria, das
pobre e africana de raiz. altas taxas de mortalidade infantil, das
Não quero julgar ninguém, mas é epidemias de doenças evitáveis, inclusi-
meu dever como homem público denun- ve a lepra; império sobretudo da violên-
ciar a hipocrisia desse genocídio enrai- cia cotidiana e da fome? A esmagadora
zado no racismo encoberto, que faz da maioria de sua população é negra, como
população afro-brasileira a maior vítima é o caso de qualquer favela, palafita ou
da miséria que assola o País. A comuni- “cabeça-de-porco” neste País.
dade negra assiste diariamente ao assas- Se a Baixada e seus pares nos cen-
sinato de seus filhos diante de uma estru- tros urbanos se comparam às townships,
tura de poder público omissa, corrupta e o campo pode ser chamado o grande
criminosa. A Anistia Internacional afir- “bantustão” do Brasil. Concentrada nas
ma serem de ascendência africana oi- regiões mais pobres, a população afro-
tenta por cento das vítimas desse quadro -brasileira sofre desproporcionalmente
de massacre da infância que escandaliza a miséria, a fome, a violência, o corone-
o mundo. A esterilização das mulheres lismo e o regime de trabalho escravo e
brasileiras, consequência de uma políti- semiescravo que ainda vigoram no meio
ca racista, comprovadamente concebida rural do nosso País.
no Conselho de Segurança Nacional dos A concentração da população ne-
Estados Unidos, atinge principalmente gra nesses bolsões de miséria caracteriza
as mulheres negras, as mais indefesas. O uma segregação racial no Brasil que só
arrocho salarial que submete e avilta os difere do apartheid pela falta de defini-
trabalhadores torna-se outro instrumen- ção jurídica. Ultimamente, as estruturas
to de genocídio quando consideramos do poder sul-africano vêm descobrindo,
que o trabalhador afro-brasileiro ganha, como já o fizeram os norte-americanos,
124 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

a não necessidade de leis para esse fim, Na campanha abolicionista, afora


quando a sociedade racista se incumbe os milhões de vidas que anonimamen-
de segregar informalmente. Entretanto, te se imoloram pela liberdade, dezenas
os negros sul-africanos têm uma vanta- foram os líderes, além de José do Patro-
gem enorme sobre nós afro-brasileiros: cínio: o genial André Rebouças; Fran-
o mundo lhes reconhece o direito de lu- cisco Nascimento, o “Dragão do Mar”
tar. No Brasil, pelo contrário, até esse de Fortaleza, Ceará; o talento e a cora-
direito nos negam, postulando a hipócri- gem do supremo tribuno da Liberdade,
ta tese da democracia racial. Luís Gama, precursor da negritude entre
nós. “O escravo que mata o seu senhor
Uma luta que vem de longe pratica um legítimo ato de autodefe-
sa”, anunciou Luís Gama num tribunal
Apesar disso, senhores senado- de São Paulo. Tendo nascido livre, foi
res, o afro-brasileiro nunca deixou de vendido como escravo pelo próprio pai;
lutar pelos seus direitos. Desde a fun- pela sua indomável vocação, Luís Gama
dação do Brasil, a história testemunha libertou mais de quinhentos irmãos de
a proliferação dos quilombos, universos sua raça.
da luta anticolonialista para onde acor-
Já neste século, na Revolta da
riam não apenas africanos escravizados,
Chibata, a figura ímpar do gaúcho João
como também brancos e índios que so-
Cândido, o “Almirante Negro”, liderou
friam das injustiças e dos crimes perpe-
a revolta dos marinheiros e peregrinou,
trados pela barbárie ibérico-europeia e
brasileira. Além da famosa República pelo resto de sua vida, injustiçado e dis-
dos Palmares, liderada por Zumbi, hou- criminado pela História oficial.
ve inúmeros outros quilombos. Lembre- A consciência de luta afro-brasi-
mos apenas alguns: o de Ambrósio na leira se afirmou durante a primeira me-
Comarca do Rio das Mortes, em Minas tade do nosso século, por meio de uma
Gerais; o de Alcobaça, no Pará, chefia- ativa imprensa negra, sobretudo em São
do por Felipa Maria Aranha, líder femi- Paulo. Arauto de uma luta por justiça,
nista do século XIX; Quariterê em Mato essa imprensa testemunhou entre outros
Grosso, liderado por Teresa do Quarite- feitos a Frente Negra Brasileira da dé-
rê; Jabaquara em Santos, São Paulo, um cada de trinta, liderada por José Correia
dos maiores e mais duradouros. Leite, diretor do periódico Clarim da
Os afro-brasileiros também foram Alvorada.
mártires e heróis de outros movimentos Em 1938, eu e outros compa-
de libertação, na Revolta do Equador, nheiros organizamos o Congresso Afro-
na Cabanagem do Pará, no levante dos -Campineiro, em Campinas, São Paulo,
Malês e na Revolta dos Farrapos no Rio evento em que, ao contrário de outros re-
Grande do Sul, na Sabinada na Bahia, alizados por estudiosos sinceros, porém
na Revolta do Quebra-Quilos da Paraí- equivocados, fomos os afro-brasileiros
ba, em Canudos, na Guerra do Paraguai. sujeitos e não temários, protagonistas
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 125

e não objetos de estudo, discutindo os Algumas conquistas do Movi-


nossos próprios problemas e destinos. mento Negro se refletem no texto da
Em 1944, nasceu o Teatro Experi- atual Constituição, com a criminaliza-
mental do Negro, que, além de lutar por ção do racismo e a proteção das terras
nossos direitos cívicos e humanos, bus- remanescentes de quilombos. Quero as-
cava o resgate do legado cultural afri- sinalar aqui, Senhor Presidente, a minha
cano no Brasil. Organizamos, além de profunda preocupação com o cumpri-
uma intensa atuação artística protago- mento desse dispositivo constitucional,
nizada por afro-brasileiros, vários con- pois tenho notícias de que os quilombos
gressos e convenções, inclusive o I Con- contemporâneos continuam tendo suas
gresso do Negro Brasileiro em 1950. A terras ameaçadas.
Convenção Nacional do Negro, realiza- Hoje, no Estado do Pará, a multi-
da em São Paulo em 1945, propôs, pela nacional Alcoa e outras empresas estão
primeira vez, a tipificação do racismo talvez obtendo o aval do governo local
como crime na Constituinte de 1946, para ocupar as terras das comunidades
por meio de emenda do senador Hamil- africanas do Município de Oriximiná,
ton Nogueira. Em 1955, realizamos um minando ou mesmo destruindo as bases
concurso de artes plásticas imaginado de sua vida comunitária. Pretendo fazer
por Guerreiro Ramos sobre o tema do o possível, Senhor Presidente, para que
Cristo Negro e um dos jurados foi o meu o dispositivo constitucional seja respei-
amigo e ilustre arcebispo emérito de tado e cumprido.
O1inda e Recife, Dom Hélder Câmara.
Brizola e o PDT: cumplicidade com
Em 1968, fundamos, no Rio, o Museu
nossa luta
de Arte Negra, inaugurado com uma ex-
posição no Museu da Imagem e do Som.
Nesse contexto, não posso deixar
Na década dos setenta, surge um de mencionar a liderança política de-
movimento afro-brasileiro que cresce e sempenhada pelo Governador Leonel
conquista cada vez mais o seu espaço. Brizola no engajamento a esta causa.
Foi ele o responsável pela instauração Primeiro líder político de destaque na-
do Dia Nacional da Consciência Negra a cional a encampá-la como prioridade de
20 de novembro, aniversário do martírio sua atuação, o governador se demons-
de Zumbi dos Palmares. E dele surgiu, trou verdadeiramente afro-brasileiro,
com a nossa participação, o Memorial pois não é somente a cor da pele que de-
Zumbi, organização que reúne entidades fine um militante da nossa causa, e sim a
de todo o País, visando o resgate da ser- sua consciência e a sua ação. Seu cons-
ra da Barriga. Conseguimos em 1988 o tante e firme empenho nesta luta cul-
tombamento do sítio histórico da Repú- minou na recente criação da Secretaria
blica de Palmares, centro de peregrina- Extraordinária de Defesa e Promoção
ção não apenas para os brasileiros, mas das Populações Afro-Brasileiras do Go-
para os africanos do mundo inteiro. verno do Rio de Janeiro, hoje encabe-
126 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

çada por uma competente mulher afro- Logo após a minha investi-
-brasileira, a professora Vanda Maria de dura como senador, tive a honra de
Souza Ferreira. participar da comitiva presidencial
O PDT também foi a primei- que visitou quatro países africanos.
ra agremiação política a inserir como O empenho do Presidente Fernando
prioridade programática a causa afro- Collor no sentido de integrar à comi-
-brasileira e a inaugurar um órgão es- tiva um representante da comunidade
tatutário dedicado especificamente a afro-brasileira, embora parlamentar
essa questão, liderado e organizado da oposição, demonstrou uma sensi-
pelos próprios afro-brasileiros filiados bilidade inédita nas classes dirigen-
ao partido. E nas últimas eleições o tes deste país para com os africanos
PDT elegeu, para orgulho da Nação, dentro e fora do Brasil. Nesta condi-
dois governadores de Estado assumi- ção de oposicionista, estou muito à
damente afro-brasileiros e engajados vontade para testemunhar o acerto do
à nossa causa: Alceu Collares, no Rio Governo brasileiro no decorrer dessa
Grande do Sul, e Albuíno Azeredo, no viagem.O Presidente Collor demons-
Espírito Santo. trou sincero propósito de cooperar
com Angola, Zimbábue, Moçambique
Brasil e África e Namíbia, num clima de efetiva ami-
zade, boa vontade e respeito mútuos.
Na qualidade de deputado fede- Durante o diálogo com os estadistas
ral e membro da Comissão de Relações africanos, houve momentos em que
Exteriores, dediquei grande parte do a rigidez do protocolo se quebrou, a
meu mandato ao esforço de inserir na exemplo do instante quando o Presi-
política externa do Brasil um posicio- dente de Angola, o excelentíssimo se-
namento mais adequado nas relações nhor José Eduardo dos Santos, expôs,
com a África. Lutei pelo rompimento num longo e franco relato, a situação
de relações com regime de apartheid e histórico-social do país. A tônica das
pelo reconhecimento da SWAPO e do palavras trocadas foi surpreendente,
Congresso Nacional Africano como le- pois contrariava a tradição de sober-
gítimos representantes do sofrido povo bia e superioridade diplomática que o
da Namíbia e da África do Sul. Hoje Itamaraty, com sua postura europei-
me dá enorme satisfação constatar que zada, mantinha como praxe no trato
a Namíbia conquistou, afinal, a sua in- com as naçôes africanas, cujas lutas
dependência do jugo colonial, elegendo de independência mereceram apenas
a SWAPO para o primeiro governo do um simbólico e muito tardio apoio
mais novo país africano. A imposição de brasileiro de solidariedade nos fóruns
algumas sanções à África do Sul, embo- internacionais. Eu mesmo, Senhor
ra não atingisse o âmbito essencial das Presidente, na condição de exilado
relações econômicas com o apartheid, político, perseguido pela nefanda dita-
também representou uma vitória parcial. dura militar, em minhas participações
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 127

em congressos e colóquios do mundo África: raiz do Brasil


africano, sofri infames agressões des-
sa diplomacia racista e intolerante. Sr. Presidente, Srs. Senadores, a
Daí minha satisfação em poder lou- referência à África é fundamental para
var desta tribuna o chefe do Governo o Brasil não apenas no âmbito das re-
e o ministro das Relações Exteriores, lações exteriores. Muito mais profundo
Francisco Rezek, bem como os minis- é o nosso vínculo interno com a África,
tros das Casas Civil e Militar e todos pois o Brasil tem a segunda maior po-
os membros da comitiva, pela manei- pulação negra do mundo. E para deixar
ra como se conduziram nos encontros claro reafirmo, como já o fiz em outras
de trabalho com os governos daqueles ocasiões: ser negro não é uma questão
países africanos. epidérmica. A cor da pele, em todos os
Constatei um clima de autentici- seus variados matizes, funciona apenas
dade, honestidade e igualdade no tra- como distintivo da nossa origem afri-
tamento dispensado aos chefes de Es- cana. Mulato, cafuso, negro, escurinho,
tado daqueles países, todos líderes das fusco, moreno: todos os eufemismos
lutas da independência de suas nações. convergem para essa identidade que as
Homens da envergadura de um Robert elites dominantes no Brasil sempre qui-
Mugabe, o combativo e gracioso Pre- seram renegar. Quando somos barrados
sidente do Zimbábue; o inteligente e no emprego ou encaminhados para o
enérgico Joaquim Chissano, de Moçam- elevador de serviço, não apenas a cor da
bique; o jovial Sam Nujoma, Presidente pele provoca a discriminação, mas so-
da Namíbia; e o já mencionado e sereno bretudo a identidade africana anunciada
Presidente José Eduardo dos Santos, de pela cor.
Angola. Seria impossível relatar todos
os fatos e passos dessa viagem de seis A afirmação da nossa origem
dias à África, mas vale destacar alguns. africana não implica nenhuma rejeição
Em Angola, houve o acerto para a rea- à nossa identidade racional brasileira,
lização da Quinta Sessão da Comissão pela simples razão de que a identidade
Angolano-Brasileira em 1992, o bom nacional brasileira também é africana.
andamento do projeto de construção da Apenas ocorre que, lembrando o caso
hidrelétrica de Capanda por empresas de muitos afro-brasileiros pálidos que
brasileira, angolana e soviética; e a assi- internalizam os preconceitos antiafrica-
natura de um protocolo de intenções na nos, o segmento dominante se recusa a
área do desenvolvimento educacional e assumir sua própria face. As elites mi-
assistência à infância, prevendo asses- noritárias, ao definir a participação do
soria técnica para a construção de CIAC africano no contexto da Nação brasilei-
em Angola. Nos outros países, também ra, costumam falar da “contribuição” ou
foram gestionados acordos nas áreas da “infiltração” do negro a um todo que,
de transportes e de cooperação técnica, implicitamente, lhe é estranho. Falam
científica, cultural e econômica. de “reminiscência” ou da “sobrevivên-
128 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

cia de traços” de uma cultura africana somos os herdeiros de uma civilização


supostamente alheia à brasileira... Tais africana que deu à luz o chamado mun-
eufemismos não conseguem tapar o Sol do ocidental. Poucos sabem, porque o
com a peneira. A verdade é que profun- fato foi escamoteado, distorcido e falsi-
das e amplas dimensões africanas per- ficado durante séculos, que a tão decan-
meiam a nossa cultura e a nossa história tada civilização greco-romana tem suas
e constituem a base integral definidora origens no Egito antigo, um país negro
da identidade nacional brasileira. africano, e que a civilização egípcia, por
A Abolição da Escravatura pouco sua vez, nasceu do coração da África, na
ou nada fez para nos devolver a cidada- região onde hoje se localizam Uganda,
nia que nos foi usurpada, junto com a Etiópia, Sudão e Quênia. E não esta-
nossa própria condição humana, quando mos falando aqui de cantigas e danças
nos arrancaram das nossas terras e nos folclóricas. Estamos evocando a origem
submeteram ao mais hediondo regime africana da ciência matemática, da geo-
escravocrata conhecido pelo ser huma- metria, da engenharia e da arquitetura;
no. Pelo contrário: as condições de vida do sistema filosófico, dos mistérios, dos
dos afro-brasileiros após a Lei Áurea, mitos e dos deuses; das teorias da maté-
na prática, representaram uma segunda ria de Aristóteles, Anaxágoras e Anaxi-
cassação de nossa cidadania. mandro; dos pensamentos creditados a
Platão, Demócrito e Xenófanes. Todos
O Movimento Negro vem afir- beberam nas fontes do conhecimento
mando, há anos, a questão racial como egípcio africano. Estamos nos refe-
uma questão nacional, um “problema” rindo aos conhecimentos e práticas da
não só nosso, mas sobretudo das elites medicina existentes dois milênios antes
dominantes deste País. Enquanto não se de Hipócrates, tido como pai da medi-
tratar de recompor a plenitude da cida- cina. Verdadeiro pai da medicina seria
dania dessa grande parcela de sua popu- Athothis, filho do primeiro faraó egíp-
lação, o Brasil permanecerá fragmen- cio, ou Irnhotep, que desenvolviam os
tado, como uma família que perdeu ou conceitos e a prática de anatomia, far-
afastou para sempre mais da metade de macología, diagnose, oftalmologia, as-
seus integrantes. sepsia, hemostasia, cirurgia, vacinação,
O cerne da questão está na iden- ginecologia e assim por diante, desde
tidade nacional. Mencionei no início 3000 a.C.
deste pronunciamento os senadores Não é esta a hora de enumerar
afro-brasileiros apenas para ilustrar esse todas as grandezas das civilizações afri-
fato. Enquanto o Brasil não assumir a canas, os avançados estados políticos
rica beleza de sua identidade africana, a como Mali, Zimbábue, Gana e Songhay,
maioria de sua população ficará alijada com suas grandes concentrações urba-
do conjunto nacional. nas, centros de conhecimento tecno-
Poucos brasileiros sabem que lógico e filosófico da África na época
pelo lado africano, o lado da senzala, medieval. Basta assinalar que, não fosse
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 129

o holocausto da invasão europeia, esse O SR. ABDIAS DO NASCI-


desenvolvimento africano autóctone te- MENTO – Com muito prazer.
ria seguido o seu curso natural. O SR. MAURÍCIO CORRÊA –
É essa herança africana que o Sou muito ligado à poesia do Senador
Brasil precisa conhecer e assumir: a dig- Aureo Mello, porque S. Exa é um clássi-
nidade e o protagonismo do ser humano co, é um romântico na poesia. E o gran-
africano. Essa verdade nos foi negada de poeta brasileiro Castro Alves, que
durante cinco séculos de mentiras, frau- retratou com absoluta precisão a causa
des e falsificações do eurocentrismo que negra no Brasil, escreveu aquele belo
se arrogava como arauto de uma suposta poema, “A Cruz da estrada”. E ele inicia
ciência. Para recuperar sua própria iden- dizendo – citarei apenas duas estrofes,
tidade nacional e resgatar a dívida que tentarei lembrar-me delas:
tem para com seus cidadãos de origem
africana, urge à Nação brasileira mer- “Caminheiro que passa pela estrada,
gulhar nas dimensões mais profundas Seguindo pelo rumo do sertão,
dessa herança civilizatória. Essas ver- Quando vires a cruz abandonada,
dades têm que ser ensinadas nas nossas Deixa-a dormir em paz na solidão.
escolas, nos CIACs e nos CIEPs, para Que vale o ramo de alecrim cheiroso
restituir ao contingente majoritário da
Que lhe atiras nos braços ao passar?
nossa gente o seu autorrespeito, a sua
autoestima e a sua dignidade, fontes do Vai espantar o bando buliçoso
protagonismo e da realização humana. Das borboletas que lá vão pousar.”
Sr. Presidente, Srs. Senadores, o
É o retrato mais evidente, mais
meu trabalho parlamentar nesta Casa
puro do tratamento desumano com que
dará sequência àquele iniciado em 1983
o negro teve a sua sorte traçada no Bra-
na Câmara dos Deputados. Se sou ou
sil. E eu me recordo aqui, Senador Ab-
não o primeiro senador afro-brasileiro, dias Nascimento, das lições que hauri
pouco importa. Importa, sim, que eu nesse extraordinário livro, nesse clássi-
possa cumprir este mandato com hon- co da literatura, da sociologia brasileira,
radez e dignidade, lutando pelas causas que é Casa grande e senzala, do ines-
do meu povo afro-brasileiro, que são as quecível e saudoso Gilberto Freyre, em
causas da nossa Nação. que ele menciona as origens da civiliza-
Axé! ção brasileira, da cultura brasileira, da
nossa etnia, e diz que pelos sete séculos
Apartes de domínio mouro, em Portugal, na ver-
dade quase todos nós que temos origens
O SR. MAURÍCIO CORRÊA – na península Ibérica trazemos o sangue
Senador Abdias do Nascimento, V. Exa africano nas veias. E eu, como um filho
me concede um aparte? de português, seguramente sou descen-
130 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

dente da raça brava dos africanos. E as- que, na verdade, supera – e V. Exa sa-
sim um grande contingente do povo bra- lientou isso muito bem – até a existente
sileiro, quer pela miscigenação causada na África do Sul, porque lá eles podem
aqui pelos elementos de interligação, falar – hoje bem mais -, graças aos sacri-
como também pela própria natureza da fícios de muitos mártires, que morreram,
chegada, da origem dos portugueses no graças, inclusive, à bravura, à altivez, ao
Brasil. Quero dizer que V. Exa constrói denodado espírito de Nelson Mandela.
um extraordinário monumento com o V. Exa traça, repito, um excelente dis-
seu pronunciamento, traçando um qua- curso, inaugura a sua participação nesta
dro realíssimo de como o negro é trata- Casa de uma forma brilhante. Assim, é
do no Brasil. Se buscarmos as origens com grande orgulho, como integrante
da Abolição da Escravatura, nós temos do PDT, que ouço o discurso de V. Exa
que tecer um quadro de vergonha para neste instante. Há pouco tempo, estan-
todos nós, porque, na verdade, e V. Exa do com o nosso líder, Leonel Brizola,
combate, a Lei Áurea foi um aviltamen- aqui em Brasília, conversávamos sobre
to até da questão com que se tratou, com a diplomacia africana junto ao Governo
que se versou a causa negra no Brasil. brasileiro. É uma das mais excelentes,
E o primeiro ato de reconhecimento de- pelo primor da sua inteligência, pela
correu do sangue do negro que correu, cultura que esses embaixadores têm no
que jorrou na batalha do Paraguai. Os Brasil. E cito aqui, não querendo ser in-
negros que vieram do Paraguai tiveram justo com os outros, a presença do nosso
o direito de ser libertos, o que foi um querido embaixador Romão, expressão
absurdo, não só porque se o reconheceu de cultura e de sapiência que representa
apenas pelo seu sacrifício, como não se Angola em nosso País. V. Exa portanto,
lhe deu a devida atenção. Na verdade, o Senador Abdias do Nascimento, faz,
Império foi extremamente injusto com no Senado, um extraordinário discurso
a causa negra. Joaquim Nabuco, que foi que faz com que todos nós, do PDT, nos
o grande construtor, o grande paladino, orgulhemos da sua presença em nosso
um homem da aristocracia pernambuca- partido. V. Exa é um intelectual e um ho-
na, foi, na verdade, um baluarte da causa
mem que já sofreu na carne a experiên-
negra. É dele aquele velho pensamento
cia do exílio, V. Exa é um bravo. É com
que V. Exa conhece: “Não basta libertar
muita alegria que, neste instante, digo a
os escravos, é necessário acabar com a
V. Exa que todos nós do PDT nos orgu-
causa da escravatura”. O que V. Exa tra-
lhamos da presença desse negro, desse
ça no seu discurso é exatamente a repro-
negro paulista, que fez nome no Brasil
dução desse ditado, desse aforisma ver-
inteiro e no mundo, que é Abdias do
dadeiro que trouxe à cultura brasileira a
Nascimento. Meus cumprimentos.
sapiência, a altivez de Joaquim Nabuco.
Vossa Excelência falou nos bolsões de O SR. ABDIAS DO NASCI-
miséria, onde a presença negra é domi- MENTO – Muito obrigado, Senador
nadora. Portanto, há uma segregação Maurício Corrêa.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 131

Agradeço sobretudo a menção ao Anais, e como marco da sua luta, não


nosso querido embaixador de Angola, apenas a assertividade do combate pela
Francisco Romão, que também esteve libertação do povo negro e de todos os
nessa viagem à África conosco, com o descendentes de escravos neste País,
Presidente Collor. Além de embaixador, mas, em especial, para o nosso conheci-
S. Exa é um participante assíduo de to- mento, a história desse povo, mostrando
dos os eventos da comunidade negra no a importância dos quilombos e da luta
Brasil. E ele não é embaixador apenas de pessoas como Zumbi dos Palmares.
em Brasília, ele corre o Brasil inteiro V. Exa mostra a condição dos negros e
para dialogar e conhecer a realidade do dos descendentes de escravos que, pou-
nosso povo. co mais de 100 anos após a Abolição,
Somente queria lembrar ao Se- continuam a sofrer as consequências
nador Mauricio Corrêa que tenho uma daquele regime, em função de não ter
grande admiração por Joaquim Nabuco, a sociedade brasileira, desde então, to-
mas também uma restrição, porque, no mado as providências necessárias para
final do seu pensamento, ele desejava o reverter as consequências de mais de
três séculos de escravidão. V. Exa teve
desaparecimento da raça negra no Bra-
a oportunidade não apenas de fazer um
sil. Combatia a abolição, mas também
histórico de todos aqueles que, em es-
queria que o Brasil se tornasse branco.
pecial no Senado, tiveram ascendência
Ele também renegava a participação do
negra, um trabalho importante para o
sangue negro na composição da nacio-
nosso conhecimento, mas também de
nalidade brasileira. É com grande dor
relatar a viagem que o Presidente Fer-
que digo isso, porque admiro muito a
nando Collor de Mello fez a Angola, à
sua ação parlamentar e, sobretudo, a sua
Namíbia, enfim, a alguns países afri-
ação jornalística. Mas, a bem da verda-
canos, recentemente. Quero registrar
de, é preciso que se registre esse lado
que, embora crítico do Governo Collor,
negativo da enorme figura do Sr. Joa-
avaliei como importante a iniciativa do
quim Nabuco. Muito obrigado.
presidente brasileiro em ir à África, por-
O SR. EDUARDO SUPLICY – que a tendência de viagens de chefes
Permite-me V. Exa um aparte? de Estado, inclusive do Presidente Fer-
nando Collor, vinha sendo mais para os
O SR. ABDIAS DO NASCI-
países do Primeiro Mundo. Considero
MENTO – Com muita honra, nobre se-
necessário que tenhamos uma interação
nador Eduardo Suplicy.
com povos da América Latina, da Áfri-
O SR. EDUARDO SUPLICY – ca e da Ásia no mínimo tão importante
Nobre Senador Abdias do Nascimento, quanto aquela que desenvolvemos com
cumprimento-o por mais este pronun- os povos do Primeiro Mundo. Seria tão
ciamento que V. Exa traz à sua história, importante dialogar com chefes de Es-
primeiro na Câmara dos Deputados e tado dos Estados Unidos, da França e
depois no Senado Federal, inserindo nos da Inglaterra quanto com os Presidentes
132 THOTH 6/ dezembro de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

de Angola, de Moçambique, da Namí- -Presidente da Tanzânia Mwalimu Ju-


bia e de outros países, bem como com lius Nyerere, que falou insistentemente
os nossos países-irmãos da América da qualificação do nosso País para lide-
Latina. Na medida em que V. Exa teve rar o movimento que S. Exa preside nas
a oportunidade – bem fez o Presidente Nações Unidas, o movimento Sul-Sul.
em convidá-lo, como representante do Mas parece-me que o Brasil ainda esta-
povo afro-brasileiro no Senado, a parti- va reticente, sonhando com o Primeiro
cipar de sua comitiva – de ir à África, Mundo. No entanto, no discurso que
certamente está V. Exa em condições de preferiu nesses países africanos, o Pre-
externar ao Presidente medidas que se sidente Fernando Collor demonstrava
fazem necessárias, hoje, para libertar de estar mudando de direção. As palavras
fato os negros pobres nas favelas, nas de S. Exa foram realmente as de quem
prisões, nas Febem, nas Funabem, nas desejava assumir esse papel, essa lide-
palafitas, nos mocambos, nas áreas ru- rança que está vazia.
rais, onde muitos negros trabalham em O SR. CID SABÓIA DE CAR-
condições não muito distantes daquelas VALHO – V. Exa me permite um aparte?
que existiam ao tempo da escravidão.
Infelizmente, prezado Senador Abdias O SR. ABDIAS DO NASCI-
do Nascimento, o tipo de política econô- MENTO – Pois não, nobre Senador.
mica que caracterizou o Governo Collor O SR. CID SABÓIA DE CAR-
nos últimos 20 meses não foi consisten- VALHO – Vou apartear antes do Se-
te com o objetivo de libertar o povo ne- nador Divaldo Suruagy, que já havia
gro, bem como toda a população pobre, solicitado um aparte a V. Exa, e ambos
da sua condição de miséria. Acredito falaremos pelo PMDB.
que V. Exa está em condições de apre- O SR. PRESIDENTE (Meira Fi-
sentar, com muita força, proposições no lho) – Queria em nome da Mesa chamar
sentido da libertação dos trabalhadores a atenção dos Senhores Senadores que o
em condição de extrema pobreza, hoje, tempo reservado para o Senador Abdias
no Brasil. E eu estarei apoiando V. Exa do Nascimento já foi esgotado. A Mesa
nessa luta. Muito obrigado. o ouve com imenso prazer e até recebe
O SR. ABDIAS DO NASCI- de S. Exa uma aula preciosa. Insisto,
MENTO – Muito obrigado, Senador porém,junto aos Senadores para que se-
Eduardo Suplicy. Não disse no meu jam breves nos seus apartes.
discurso, mas gostaria que ficasse regis- O SR. CID SABÓIA DE CAR-
trado que realmente assisti a intenções. VALHO – Senhor Presidente, tentarei
Estamos aguardando os atos concretos, seguir ao mérito do apelo de V. Exa,
a implementação dos resultados dessas muito embora a motivação seja con-
primeiras conversações. trária ao que nos pede. Quero dizer ao
Também gostaria de sublinhar Senador Abdias do Nascimento que o
que há poucos meses passou aqui o ex- programa do nosso partido, o PMDB,
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 133

é tipicamente antirracista. Quero dizer prio legislador claudicou. Na verdade, o


mais ainda, que o nosso partido, nos tra- racismo sempre foi um fato, sempre foi
balhos da Assembleia Nacional Cons- um acontecimento moral, sempre foi um
tituinte, lutou muito pelos dispositivos acontecimento ético, esteve sempre so-
constitucionais que tornam crime o ra- cialmente embutido no comportamento
cismo no Brasil. Até esperei de V. Exa brasileiro, e isso V. Exa tem toda razão
um louvor à Assembleia Nacional Cons- em condenar. O que eu quero dizer a V.
tituinte e uma nota magna para a atual Exa, em nome do PMDB, é que essas
Carta vigente no Brasil. Na verdade, teses antirracistas triunfaram no Bra-
nós do PMDB não costumamos olhar sil. Resta agora uma outra vitória, mais
a cor da pele, não costumamos distin- ampla e mais difícil: tirar o racismo dos
guir ninguém pelo tipo físico, pelo tipo costumes, tirar o racismo do dia a dia,
racial, e sim pelas posições de honesti- não permitir que as pessoas distingam
dade, de honradez, pela ideologia, pela as outras pelas condições físicas, pelas
defesa democrática e por esses princí- condições raciais. Isso é que é realmente
pios que tanto marcaram a trajétória do deplorável. Acompanhei com entusias-
PMDB na defesa de todas essas teses mo o discurso de V. Exa. Apenas quero
que se fizeram vitoriosas ao longo dos dizer que eu não o distinguiria jamais
últimos anos, principalmente depois da como um senador negro, o primeiro se-
eleição do falecido Presidente Tancre- nador afro. Isso não é importante. Eu só
do de Almeida Neves. Quero dizer a V. me apercebi, hoje, de alguma coisa nova
Exa que ouvi a sua palavra com muito sobre o Senador Nelson Carneiro por-
carinho e muito respeito. Sou um dos que V. Exa falou. Eu nunca notei a cor da
que acompanham a história do Brasil. pele do Senador Nelson Carneiro, nunca
Acostumado à luta abolicionista, somos observei isso. O que observei foi o seu
daqueles que admiram muito o poeta talento, a sua conduta, a sua honestida-
Castro Alves, aqui citado de modo tão de, o seu trabalho profícuo em defesa da
notório e tão sentimental pelo Senador mulher brasileira. O que sei é que S. Exa
Maurício Corrêa. Não sei se V. Exa ci- teve um grande irmão, Edson Carneiro,
tou Tobias Barreto, mas conhecemos mestre da cultura de que fala Exa. Es-
a nobreza desse grande brasileiro, que perava, também do nobre Senador uma
poderia perfeitamente constar do elenco referência a um ex-colega nosso: Afon-
organizado por V. Exa. Acompanhamos so Arinos de Mello Franco; esperava
a trajetória de Nabuco, conhecemos a de V. Exa uma consideração sobre a Lei
sua correspondência, a sua biografia, Afonso Arinos. Até critico V. Exa nesse
notadamente um livro escrito por sua mister, porque, talvez, tenha abordado o
própria filha. Sabemos de como, no en- lado acre da questão. Mas a Lei Afonso
tanto, o racismo triunfou o Brasil, mais Arinos foi algo notável na história da le-
como fato do que praticamente como gislação brasileira, lei essa que teve uma
um ideário, não como a lei somente, aplicação extraordinária. Aqui, convive-
porque houve momento em que o pró- mos com aquele grande cidadão, que nos
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Sankofa: Memória e Resgate

deixa uma notável saudade. Sabíamos 1945, foi quem, pela primeira vez, pro-
do seu ideário que o levou à propositura pôs uma lei desse tipo. Na Constituinte
daquele projeto que se transformou em de 1946, a matéria não foi aprovada e
lei. Por isso, nos associamos aos cuida- continuamos lutando, até que Afonso
dos de V. Exa, à sua luta e, inclusive, a Arinos apresentou um outro projeto de
essa valorização sociológica da cultura lei.
afro-brasileira. Como ela é bela; como Quero reiterar a boa vontade do
ela é interessante; como é importante Projeto de Lei Afonso Arinos, embora
estudar, não apenas outros aspectos cul- tenha sido equivocado, porque em nada
turais, mas até aquele aspecto meio so- ajudou o negro a se defender contra o
cial, meio religioso, que é o candomblé. racismo. Foi uma lei que virou até uma
E tantos assuntos que levaram V. Exa à arma contra os próprios negros, pela for-
utilização de determinadas palavras que ma como foi feita, exigindo que o agres-
me entusiasmaram, porque pensei que sor declarasse explicitamente que estava
V. Exa teria outras mais para nos dizer discriminando por uma questão racial; a
nesse longo e interessante discurso que lei tomou-se inócua, pois sabemos que
nos trouxe hoje ao Senado Federal. O no Brasil ninguém tem coragem de dizer
PMDB abraça V. Exa; considera suas que é racista, que realmente discrimina
palavras da maior importância e só faz por questão racial. A lei não funcionou;
esse reparo, para que ele se some ao mé- e algumas vezes, até, fez com que de ví-
rito da sua palavra. Salve o velho Afon- tima o negro passasse a ser agressor; de
so Arinos, que tanto lutou, como V. Exa, vítima passava a ser o réu da própria lei.
e salve a Constituição brasileira, que foi Quer dizer, houve uma lei de aparente
a grande vitória da consciência nacional controle social da questão, mas real-
contra o racismo. Obrigado a V. Exa. mente não a resolveu.
O SR. ABDIAS DO NASCI- Naturalmente, a lei é fruto daquela
MENTO – Ilustre Senador aparteante, época. Compreendo perfeitamente. Era
sinto-me muito honrado com o aparte muito difícil fazer uma lei bem explícita
de V. Exa. Mas, ao mesmo tempo, gos- como é agora essa emenda à Constitui-
taria também de fazer certos reparos. V. ção que V. Exa, com muito acerto, diz
Exa, por exemplo, se refere à Lei Afonso que o PMDB apoiou. E foi isso mes-
Arinos, que, na verdade, é outra usurpa- mo. Essa emenda – sim – tem eficácia
ção das coisas do negro. Aqui no Brasil, porque não tem esse escape. Mas a Lei
quando algo dá certo e é bom, não foi Afonso Arinos não tinha como ser apli-
mais o negro quem fez, foram os bran- cada, porque era muito ambígua.
cos que fizeram. A Lei Afonso Arinos é De qualquer maneira, agradeço
uma delas. a sua declaração de que o PMDB apoia
Não sei se V. Exa prestou atenção esse tipo de proposição, porque vamos
ao meu discurso. A Convenção Nacio- ter muitas aqui, inclusive, essa de ação
nal do Negro em São Paulo, reunida em compensatória.
Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi
Abdias Nascimento 135

Vemos que o negro tem uma des- O Sr. Divaldo Suruagy _ Senador
vantagem de 500 anos. Como se pode Abdias do Nascimento, V. Exa, em seu
falar aqui em igualdade de oportunidade discurso traçou a saga da raça negra no
se as classes dominantes têm todas as Brasil, saga da qual V. Exa é mn dos lí-
vantagens e o negro tem todas as des- deres mais expressivos. V. Exa fez razão
vantagens? Como é que ele pode com- maior da sua vida a luta pela correção
petir em nível de igualdade? desses desníveis sociais tão injustos
Tem que haver uma lei que resta- dentro da nossa sociedade. Daí a minha
beleça de forma indireta, sobretudo por alegria em verificar que o discurso de
meio da educação, esse handicap, essa estréia de V. Exa da tribuna da Câmara
Alta do Brasil é coerente com todo o seu
desvantagem que o negro sofre em rela-
passado, com todos os seus princípios,
ção aos outros segmentos da sociedade.
coerente com todos os seus conceitos. V.
O SR. CID SABÓIA DE CARVA- Exa dignifica não apenas a raça negra no
LHO – O que V. Exa acaba de citar, além Senado da República; V. Exa dignifica a
de ter a parte do sentimento, do ressen- inteligência brasileira nesta Casa.
timento, da mágoa, muito naturais, tem
O SR. ABDIAS DO NASCI-
uma grande razão sócio-política. V. Exa
MENTO – Muito obrigado. Para encer-
coloca muito bem essa questão, porque
rar, Senhor Presidente, agradeço a pre-
essa diferença social não foi natural da sença...
sociedade, foi uma diferença imposta ra-
cialmente pelo poder econômico. V. Exa O SR. ANTÔNIO MARIZ – Per-
tem razão nessa observação. Parabéns. mite-me V. Exa um aparte?

O SR. ABDIAS DO NASCI- O SR. ABDIAS DO NASCI-


MENTO – Senador Cid Sabóia de Car- MENTO – Com muita honra.
valho, digo mais a V. Exa: um povo que O SR. ANTÔNIO MARIZ –
não sinta essa mágoa, que não sinta essa Quero também solidarizar-me com V.
indignação, já perdeu a sua humanida- Exa pelo discurso que pronuncia nesta
de, porque é exatamente a nossa huma- tarde e que se reveste de grande impor-
nidade, que nos faz indignados contra as tância na luta da população afro-brasi-
injustiças. E queremos corrigir apenas leira por seus direitos. Na verdade, na
as injustiças! Não queremos privilégios, sua busca pela afirmação da cidadania,
queremos igualdade de fato. É o que no embate constante para dar substância
pretendemos. aos formalismos das leis, à proclamação
de direitos constitucionais, a luta dos
O SR. DIVALDO SURUAGY –
afro-brasileiros confunde-se com a luta
Permite-me V. Exa um aparte?
do próprio povo deste País, do qual se
O SR. ABDIAS DO NASCI- constitui na maioria. Num país estigma-
MENTO – Com muito prazer, concedo tizado pela desigualdade que condena à
o aparte a V. Exa. maioria de sua população à pobreza, aos
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salários subumanos, ao desemprego, o Martin Mbarga e ministro conselheiro


discurso de V. Exa é um brado de pro- Ambroise Mvogo; ao conselheiro Abdel
testo. É uma afirmação de compromisso Aziz Dawoud, do Egito; ao embaixador
com a raça que V. Exa assume com justo do Senegal, El Hadji Diouf; à professo-
orgulho e é também um instrumento de ra Glória Moura, representando o adido
luta do próprio povo: a luta pela justiça,
cultural brasileiro em Cabo Yerde, Dr.
pela igualdade, pelo exercício efetivo
Carlos Moura; à professora Benedita
dos direitos consagrados na Constitui-
ção. Por isso, congratulo-me com V. Exa Damasceno, representando a Fundação
e trago-lhe essa solidariedade. Cultural Palmares.
Muito obrigado a todos os ami-
O SR. ABDIAS DO NASCI-
gos que aqui compareceram e agradeço
MENTO – Muito obrigado, Senador
Antônio Mariz. Senhor Presidente, que- muito àqueles que me apartearam, pois
ro agradecer pela presença aos repre- muito me honraram com a colaboração
sentantes diplomáticos da África, aos que deram ao meu discurso. Muito obri-
senhores embaixadores da China, Shen gado!
YunAo; de Angola, Francisco Romão de (Muito bem! Palmas.)
Oliveira e Silva; dos Camarões, Nguele
AFRO ESTANDARTE
Acrílico s/ tela - 80 x 150 cm, de Abdias Nascimento, Rio de Janeiro, 1993

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