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O Barroco A HISTORIOGRAFIA ANTIGA explicou o suposto baixo nivel da literatura alema do século XVII pelas devastagées materiais e espirituais da Guerra de Trinta Anos. Mas essa tese j4 ndo pode ser sustentada. Primeiro, porque a decadéncia comegou muito antes daquela guerra. Comecou propriamente com a morte de Lutero. Depois, néo se pode falar de baixo nivel quanto 4 literatura alem& da época barroca. Trata-se, ao contrario, de uma fase de realizagdes admiraveis, como nao houvera assim desde o fim da literatura medieval dos cavaleiros. E necessario rever os valores e as valorizages ¢ repensar os préprios termos. 2m vez de se verificar decadéncia literdria, verifica-se o fato de uma alta literatura, mas sem base popular. Num nivel extremamente baixo encontram-se naquela época a cultura e a lingua do povo, de modo que nao houve compreensio miitua ou comunicagao possivel entre os grupos letrados da sociedade e as camadas populares. No comego do século XVII, apresentou-se a primeira oportunidade de uma espécie de redengo da literatura alema, pelo contato com o teatro de Shakespeare, que na Inglaterra contemporanea agradava igualmente a aristocracia culta e os espectadores populares. Companhias de atores ingleses, em excursio pelo continente, também chegaram 4 Alemanha, representando versées abreviadas e simplificadas de pegas elisabetanas, sem indicar, aliés, os nomes dos autores. No inicio, representavam em Inglés, de modo que o piblico alemao entendia as pegas sé como pantomimas. Depois, atores itinerantes alemes entraram na sucessdo dos ingleses, confeccionando como podiam seus textos. Esses Engellaendische Komoedianten (atores ingleses) representaram na Alemanha do século XVII Hamlet, Otelo, Lear, Julius Cesar, Titus Andronicus e outras pegas de Shakespeare, sempre sem revelar 0 nome do autor, que ficou desconhecido. As versdes sao espécie de condensagées, restando apenas 0 esqueleto do enredo, acrescentando-se, porém, cenas rudes de arruagas e de palhagadas para assustar ou fazer 0 publico rir, Do texto shakespeariano nao fica nada. A lingua alema da época ainda nao é capaz de recebé-lo. Passarao mais outros cento e cinquenta anos até Shakespeare ser reconhecido na Alemanha. Teve sorte melhor a commedia dell'arte italiana, porque nessas comédias im provisadas o texto ndo tem grande importancia ou mesmo nenhuma. Em Viena, ent&o cidade de cultura meio latina, o teatro cémico italiano encontrou ressonancia. JOSEPH ANTON STRANITZKY (1676-1726) & 0 fundador do teatro popular vienense, ao qual estava destinado um grande futuro. O desregramento total da lingua alema pela invasdo dos dialetos e de expressées estrangeiras, pela irregularidade da gramatica, pela falta de regras prosédicas e métricas — tudo isso causado e agravado pela grosseria emocional e pobreza intelectual e manifesto até nos excessos grotescos da ortografia — tudo isso néo podia deixar de encher de vergonha os alemaes cultos que tinham a oportunidade de observar o nivel literario mais alto de outras nagGes: jovens aristocratas que fizeram a obrigatéria viagem de formagao (grand tour) a Italia & Franga, e futuros jurisconsultos que estudaram em Leiden ou em Bolonha. Voltando para casa, fundaram Sprachgeselischafien (sociedades linguisticas) para purificar a lingua alema, simplificar a ortografia, estabelecer regras sintaticas e métricas, traduzir ¢ imitar obras estrangeiras. Nasceu assim uma literatura social e regular, produto artificial do esforgo de grupos de aristocratas cultos e de juristas em alta posigao burocratica, também de alguns tedlogos protestantes ¢ cientistas. E a literatura do barroco alemao. Essa literatura tinha, no inicio, certos defeitos manifestos: formalismo quase juridico, grandiloquéncia, linguagem bombastica, preciosismo, dedicagao a ideias de uma ética mais estoica do que crista e ao absolutismo monarquico de direito divino, angistia religiosa até as fronteiras da histeria. Todos esses tragos caracteristicos revelaram-se, depois, incompativeis com o racionalismo e¢ classicismo do século XVIII, que apenas percebeu os defeitos, faltando-lhe o 6rgdo para a compreensao das qualidades. Por volta de 1720 foi imperiosamente necessario eliminar os residuos da literatura barroca, decadente ou ja desaparecida. E essa eliminagao ocorreu de forma tio metdédica e profunda que 0 barroco alemao caiu, por mais de dois séculos, no abismo de um desprezo total, em que ainda continua nos manuais didaticos e na opiniao dos semicultos. Mas, por volta de 1920, o barroco alem4o ressurgiu do seu tamulo, gragas aos esforgos de estudiosos como Cy sarz, Benjamin, Spoerri, Guenther Mueller ¢ outros: seja porque uma nova mentalidade tivesse aberto os olhos para uma revisio dos valores do passado; seja porque os especialistas em historiografia literdria alema desejavam eliminar o hiato do século XVII, que tornara impossivel a compreensio da dialética histérica. Mas é um fato que 0 exemplo daqueles estudiosos alemies se tornou contagioso: inspirou a redescoberta ou revalorizagao do Barroco na Inglaterra, Holanda, Espanha, Itdlia e, enfim, na cidadela do classicismo antibarroco, na Franga. Na propria Alemanha houve, certamente, casos de exagero, de supervalorizago de poetas barrocos. Mas também estd certo que se chegou a uma apreciagdo mais justa de um grande periodo da historia literdria, inj ustamente esquecido e desprezado. Os pensadores, escritores, poetas alemaes do século XVII eram aristocratas cultos, juristas, te6logos, formados em Universidades como Leiden onde dominava o estudo filolégico da Antiguidade greco-latina. Eram humanistas. J se chegou a dizer que reataram o movimento humanista, interrompido pela Reforma. Mas os modelos literarios agora eram outros. Traduziram-se e imitaram-se a epopeia de Tasso e o drama pastoril de Guarini, os sonetos espanhdis e italianos, Quevedo, 0 romance aristocratico francés de Calprenéde e Scudéry e o romance picaresco espanhol de AlemAn; e, mais de perto, a poesia religiosa e o teatro antiguisante dos holandeses, Hooft, Vondel, Camphuy sen. Em suma: a literatura europeia do Barroco. E, porém, digno de nota que nem Géngora, nem Donne ou Herbert, os “poetas metafisicos”, nem o teatro barroco dos Webster, Tourneur e Middleton e de Calderon entraram na Alemanha do século XVII. O “legislador” dessa literatura, apontando os modelos e formulando as regras, Martin OPITZ VON BOBERFELD (1597-1639), devia tornar-se, mais tarde, a vitima principal dos inimigos do Barroco: foi responsabilizado por tudo. Nao foi, certamente, um grande poeta nem um espirito de visio larga. Mas a literatura alema deve-Ihe o reatamento das relagdes com a Europa. Escreveu uns versos bons, sinceramente comoventes. E sua muito caluniada obra teérica, 0 Buch von der deutschen Poeterey (Livro da Poesia Alem4), teve logo o mérito de inspirar atividades literdrias a um poeta auténtico, PAUL FLEMING (1609-1640), autor de sonetos de casta paixdo erdtica e de um estoicismo viril que ainda hoje comove. Opitz e Fleming eram naturais da Silésia, assim como varios outros poetas barrocos, de uma geragdo posterior. E por isso que nos manuais didaticos aparece uma primeira e segunda “Escola silesiana”, termos cuja razio de ser desapareceu com a revalorizag’o e reinterpretacdo do barroco literario alemZo. hiato entre a “primeira” e a “segunda Escola silesiana” foi consequéncia da Guerra de Trinta Anos, na qual todas as poténcias do continente europeu se bateram em solo alemao sob pretexto de intervir na guerra religiosa entre os catélicos e os protestantes da Alemanha. Nunca outro pais foi submetido a tao cruele sistematica devastagdo, sendo a populacdo, em certas regides, reduzida a décima parte e sendo destruidos todos os valores materiais e morais. Foi a maior catéstrofe da histéria alema, da qual sobrou um pais paupérrimo, atrasado ¢ politicamente dividido em inimeros pequenos principados, governados no Norte por mesquinhos régulos luteranos e no Sul por relaxados prelados catélicos, enquanto nos poucos Estados maiores se estabeleceu o absolutismo & maneira francesa. O povo alemao submeteu-se, quase silencioso, a essa prova cuja primeira consequéncia foi a chamada “mentalidade barroca”. a “mentalidade barroca”, que é, alias, especi distingue-se do barroco latino (inclusive na Austria catélica) e do barroco protestante, inglés e holandés, pela estreiteza do ambiente empobrecido, pela brutalidade dos costumes e pela intima inseguranga religiosa. Cy sarz descreveu bem a dialética da psicologia dos homens do barroco alemao: usam a fantasia grotesca de palhagos e movimentam-se em solenes dangas de bailes da corte; submetem-se As torturas fisieas e morais da peniténcia e passam a vida engolindo volumes enormes de erudigio abstrusa nas bibliotecas; bebem até cair inconscientes ¢ passam as noites ao relento nos bivaques; so vitimas da guerra, das pilhagens, da peste, da queima de bruxas e feiticeiros, da histeria de epidemias pseudorreligiosas e de conspiragées dos diabélicos “secretarios” dos principes. Sentem-se tiranizados pela vida perigosa e insegura; querem dominar a vida pela forga: a religiao, o Estado, a guerra, o amor. Sio beatos, maquiavélicos, brutais ¢ lascivos ¢ so martires. O refigio € a religiio. No comego do século XVII, ainda n&o tinha terminado 0 processo da transformagao do credo luterano em ortodoxia formalistica, resumida em termos escolisticos. Quanto mais dificeis se tornaram os tempos, tanto mais intima se tornou a religiosidade. E 0 século em que foram escritos os maiores corais da Igreja luterana, esses hinos maravilhosos que todo mundo conhece como titulos, inspiragdo e coros das cantatas de Johann Sebastian Bach. Alguns corais séo anénimos, versdes espirituais de cangées populares, Outros so de autoria de tedlogos, de vigarios ou de principes luteranos. O maior dos hinégrafos protestantes ¢ PAUL GERHARDT (1607-1676): 0 Haupt voll Blut und Wunden (que & cantado na Paixdo de S40 Mateus) e Nun ruhen alle Waelder so expressdes de uma devogao cristocéntrica e de confianga serena na graga ¢ no perdao de Deus; escritas durante os horrores mais cruéis da Guerra de Trinta Anos. Apersonalidade monolitica e coerente de Gerhardt é capaz de manifestar- se em expressdes inequivocas, simples, até de sabor popular. Sua poesia nao tem trago, a ndo ser em certas metaforas exageradas, de estilo barroco. Esse estilo ¢ a expresso de almas dilaceradas pelos dilemas do Céu e da Terra, do perdao ¢ do pecado, da graga divina e da desgraga deste mundo. O grande poeta do barroco aleméo é ANDREAS GRYPHIUS (1616-1664). Nos seus sonetos, de rara perfeigdo da forma, refletem-se 0 desespero dos tempos de guerra, 0 desprezo desta vida va de ilusdes, a visio mistica da esperanga; 0 reflexo do icamente alema, ineéndio das aldeias e cidades ld no horizonte e a luz suave da arvore de Natal. O século XVII, téo rico em poesia na Europa inteira, ndo produziu nada de mais profundo ou mais comovente que os sonetos Abend (Noitinha), Gebut Jesu (Nascimento de Jesus), Es ist alles eitel (Tudo & vaidade), Thraenen des Vaterlands, Anno 1636 (Lagrimas da Patria, no Ano de 1636), Thraenen in Schwerer Krankheit (Lagrimas Durante uma Doenga Grave) ou as odes Verleugnung der Welt (Renegagao do Mundo) e Von der Eitelkeit der Welt (Da Vaidade do Mundo). A forma classica é a de Milton ¢ dos contem pordneos poctas holandeses; mas a religiosidade angustiada, As vezes quase histérica, é a dos Holy Sonnets de John Donne. No tempo em que a poesia barroca ainda esteve esquecida e desprezada, tampouco se prestou a devida atengdo ao teatro tragico de Gryphius. Sé se apreciavam suas comédias risticas, parcialmente em dialeto silesiano, antecipagées de cenas da vida do povo em pegas do silesiano Hauptmann, Mas desprezaram-se as tragédias de Gry phius, escritas em rigido estilo classicista a maneira das pegas do holandés Vondel; teriam sido apenas, pensava-se, exercicios eruditos para a leitura. Hoje sabemos que essas tragédias foram realmente representadas em Breslau (Wroclaw), capital da Silésia (na Pol6nia), © que so verdadeiras pegas de teatro, A forma é classicista, mas a substancia é barroca. Os didlogos rapidos e pungentes e a alternancia entre monélogos introspectivos e coros liricos, toda essa dialética das formas é expresso certa dos enredos e da psicologia dramatica: estio em oposig&o irredutivel tragicamente irreconciliével a soberbia dos tiranos e 0 estoicismo dos martires, suas vitimas; 0 maquiavelismo demoniaco dos conselheiros e a paciéncia cristi dos que advertem e preveem o desfecho terrivel. Papinianus, a tragédia do jurisconsulto romano que ndo quis defender o fratricidio do louco Imperador Caracalla ¢ Carolus Stuardus, a tragédia contemporanea do Rei da Inglaterra, decapitado pelos carrascos puritanos, so as obras-primas, talvez as tinicas auténticas tragédias politicas da literatura alema. Gry phius é uma das grandes ressurreigdes literarias do nosso século. Na parte catdlica da Alemanha representa Friedrich von SPEE (1591- 1635) a exuberante religiosidade barroca que, inspirada no dogma da Encarnagio, vivifica tempestuosamente toda a Natureza. Spee era Jesuita. A maior parte dos poetas da Companhia de Jesus preferia, porém, a lingua latina. Assim como 0 notivel poeta lirico Jacob Balde. E também todos os dramaturgos jesuitas, porque a Companhia cultivava a arte dramatica em seus colégios, para 0 exercicio da lingua e para a edificagdo dos alunos; 0 que nao excluiu representagées perante as cortes dos principes nas cidades. O teatro jesuitico em lingua latina, na Alemanha do século XVII, é muito rico. O maior dramaturgo € JAKOB BIDERMANN (1578-1639), em que vive algo do génio de Calderon. Sua tragédia religiosa Cenodoxus j4 foi reconquistada para o paleo moderno. Mas o maior poeta catélico do barroco alemao é Johannes SCHEFFLER (1624-1677), mais conhecido sob o pseudénimo de “Angelus Silesius”, com que assinou 0 volume Der cherubinische Wandersmann (O Caminhante Angélico). E verdadeiro brevidrio de uma mistica que, embora sinceramente cristé, se aproxima perigosamente da fronteira do panteismo. Os grandes acontecimentos histéricos da fé cristi, 0 nascimento em Belém, a morte no Gélgota, a ressurreigo da morte so, nos versos de Scheffler, acontecimentos supratemporais que sempre se repetem dentro da alma do crente. E no fim do livro Scheffler recomenda ao leitor que quer, porventura, “saber mais” — “transformar-se a si préprio em livro” e em “Wesen” (‘“no que &”). Sao disticos em alexandrinos regulares e rimados, de uma estupenda perfeigao formal, como se fossem provérbios versificados por um grande artista da palavra. Sao versos epigramaticos, pungentes pelas antiteses e por espirituosas “chaves de ouro” que fariam sorrir se ndo fosse tio grave 0 pensamento; outras vezes, abrindo com uma expresso final cuidadosamente escolhida vastas perspectivas deste mundo e visdes de um outro mundo. O passo para fora da ortodoxia, que Scheffler nao deu, foi dado por Quirinus KUHLMANN (1651-1689), mistico confuso ¢ heterodoxo, anunciando o fim do mundo, a aboligdo de todos os mandamentos morais ¢ desconhecidas exaltagées erdtico-religiosas; seu Kuehlpsalter & espécie de anti-Angelus Silesius. Em Moscou, onde fora pregar sua nova religido, Kuhlmann foi queimado vivo. A componente profana da poesia barroca ¢ brilhantemente representada por Kaspar STIELER (1632-1707), 0 primeiro dos poetas barrocos que foi redescoberto. Caracteriza-o 0 titulo de seu volume, Die geharnischte Venus (Vénus em Armadura): um guerreiro feroz e brutalmente devotado ao servigo das suas amadas faceis ¢ lascivas. O conhecedor da contempordnea “poesia metafisica” inglesa lembrar-se-a de Carew ¢ Lovelace. Mas Stieler é menos aristocratico, menos espirituoso e, com toda a sua brutalidade, mais humano. Uma versio mais requintada do erotismo barroco oferece Christian Hofmann von HOFMANNSWALDAU (1617-1673), que escolheu Ovidio e Marino para modelos; também traduziu o Pastor Fido de Guarini. Vestiu de admiraveis artes formais (mas também de metéforas loucamente exageradas) as expressdes de sua imaginagdo francamente obscena; mas, sendo homem barroco, também lamenta a vaidade deste mundo instével e a fuga das horas, em versos alados que se gravam na meméria e, s vezes, com acentos de sincera angustia religiosa. Foi, entre os poctas barrocos alemdes, o de maior sucesso no seu tempo; mas no século XVIII foi justamente ele anatematizado pelos racionalistas, como representante da exuberdncia “gongérica” e da indecéncia obscena. Amesma simbiose de poesia metafisica e imaginagao lasciva caracteriza os poemas e as tragédias de Daniel Casper von LOHENSTEIN (1635-1683), outro alvo preferido dos insultos dos criticos racionalistas do século seguinte. Em suas pegas opde © maquiavelismo politico 4 desenfreada paixdo sexual e ao estoicismo cristo (Agrippina, Sophonisbe), mas sem a dialética tragica e sem a profundidade religiosa de Gry phius. Hofmannswaldau e Lohenstein so, entre os poetas barrocos alemaes, os mais “gongéricos” no sentido antigo dessa palavra. Foram os mais elogiados em seu tempo; depois, enterrou-se com eles a poesia barroca inteira. Lohenstein também escreveu um volumoso romance pseudo-histérico, cheio de erudigéo abstrusa, cenas eréticas, maximas politicas e descrigdes pomposas (Arminius), imitagdo dos romances politico-pseudo-histéricos dos franceses contempordneos Calprenede ¢ Scudéry. Obras do mesmo estilo so os romances A Siria Aramena e A Octavia Romana do Duque ANTON ULRICH VON BRAUNSCHWEIG (1633-1714): obras hoje ilegiveis, mas ainda muito lidas no século XVIII e apreciadas como leitura didatica e preparago para a vida no “mundo dos grandes”. O reverso do Barroco é a Aspera critica moral dos costumes brutais ¢ da hipocrisia religiosa, Pode aparecer em forma barroca, como na prosa exuberante dos sermées do monge ABRAHAM A STA. CLARA (1644-1709), sermonista popular que joga admiravelmente com eloquéncia pomposa ¢ expressées drasticas do dialeto vienense; suas exortagdes contra os grandes pequenos vicios da época Ieem-se como didlogos de comédia. Mas a critica também se manifesta em formas sobriamente racionais, como nos epigramas de Friedrich von LOGAU (1604-1655), que castiga a imitagado de costumes estrangeiros, 0 fanatismo religioso a servigo de fins politicos ¢ a lascivia de episédios eréticos meramente imagindrios: um moralista do qual Lessing gostava, que o redescobriu; uma antecipagao da mentalidade razodvel do século XVIII. Mas é tipicamente barroco o satirico Michael MOSCHEROSCH (1601-1669): seus Gesichte Philanders von Sittewald (Visées de Philander de Sittewald) sao versio livre dos Suefios de Quevedo, terrivelmente intensificada pelas experiéncias horrorosas da Guerra de Trinta Anos. Essas experigneias informaram a Gnica grande obra em prosa do barroco alemao: 0 Abenteuerlicher Simplicius Simplicissimus (O Aventuroso Simplicio Sim plicissimo) de Johann Jakob GRIMMELSHAUSEN (1622-1676). Ea histéria, certamente em grande parte autobiografica, de um rapaz ingénuo que, como soldado © como aventureiro, passa por todas as brutalidades, crueldades e depravagées da grande guerra, por inimeros episédios de batalhas, escaramugas, fugas, pilhagens, raptos, orgias, bebedeiras, destruigdes, por inimeros episédios terriveis, humoristicos, repelentes, edificantes, ridiculos, fantisticos, cruéis, obscenos; enfim, ele encontra na solidao, a paz da alma. O romance é um grandioso ¢ completo panorama da época e da gente da época, um documento redigido com aquele naturalismo sincero e crasso que € 0 reverso das pompas € da mistica do Barroco: os anjos de El Greco e os bobos e andes de Velasquez, as santas de Reni e os ladrdes de Caravaggio, os deuses de Poussin e os camponeses dos Le Nain; a sintese, sé a atingiram Cervantes e Grimmelshausen. A forma da obra € a do romance picaresco espanhol, de Aleman e Quevedo. Mas nessas obras espanholas, a aventura & de individuos isolados que se esforgam para vencer a hostilidade da vida. Na obra alema, uma humanidade inteira luta desesperadamente contra desgragas invenciveis, mas apenas o individuo isolado se salva. No romance de Alemén, 0 naturalismo crasso é abrandado por interminaveis reflexes ascético-morais. Na obra de Grimmelshausen, nao; mas o fim & a conversio, um verdadeiro desengafo, tio tipicamente barroco. E & desfecho de uma evolugdo que estava do inicio predestinada para esse fim. Pois © Simplicissimus é um Bildungsroman (romance de formagio), esse género tipicamente alemAo, assim como foi o Parzival de Wolfram von Eschenbach e assim como 0 serao 0 Wilhelm Meister de Goethe, Veranico de Stifter, Henrique, o Verde de Keller, apenas infinitamente mais rico em realidade social: a unica obra realista entre todos aqueles. E até hoje uma leitura fascinante. E um dos grandes livros da literatura universal. Grimmelshausen é 0 maior, mas nao o tinico representante dos aspectos realistas do barroco alemao. Ao seu lado aparece o austriaco Johann BEER (1655-1700), que foi musico de profisséo. Suas obras, como “Die Teutschen Winternaechte” (As Noites de Inverno Alemas) e “Die kurzweikingen Sommertage” (Os Dias Divertidos de Verio), foram, depois de longo esquecimento total, redescobertas em 1932 por Richard Alewyn. A conhecida alegria de descobrir tesouros escondidos produzfatalmente_ uma supervalorizagao. Beer é hoje novamente famoso ¢ j4 foi reeditado. Mas nao é, absolutamente, um segundo Grimmelshausen, apenas um narrador divertido e interessante, sem profundidade. A grosseria selvagem dos costumes sobreviveu A guerra, sobretudo nos meios estudantis, abuso dos duelos e da bebida, combatividade estéril, desonestidade no jogo, orgias desenfreadas. Retratista dessa vida estudantil foi Christian REUTER (1665-1710), amenizando a grosseria pelo humorismo satirico, na comédia alegre de Frau Schlampampe e no romance picaresco A Viagem de Schelmuffsky. Produto desgragado daquela vida selvagem nas Universidades foi Johann Christian GUENTHER (1695-1723), 0 ultimo poeta do barroco alemAo, desperdigando a vida ¢ o talento em bebedeiras interminaveis e aventuras eréticas, tornando-se infiel 4 amada que, no entanto, amara com sinceridade, e a religido que nao conseguiu esquecer; e morreu cedo. Esse poéte maudit é um homem barroco com todas as suas contradigdes; mas a expressdo, em suas poesias de amor e nas suas cangées religiosas, ja é de um poeta moderno, quase de um pré-rom Antico, Eis a literatura do barroco alem&o esquecida ou caluniada durante dois séculos e hoje ressurgida das cinzas. Qual é 0 balango definitivo? Logau e Guenther, as duas expressdes menos tipicas, no foram realmente esquecidos: aquele, elogiado por Lessing; este, justamente apreciado por Goethe. Os romAnticos descobriram Scheffler, o Angelus Silesius, e Grimmelshausen, que desde entéo tém seus lugares garantidos no tableau da literatura universal. O moderno movimento pré-Barroco redescobriu ¢ exaltou o grande Gryphius ¢ reabilitou um pouco Lohenstein e Hofmannswaldau, Nao parece muita coisa, afinal de contas. Mas Gryphius ja valia a pena. E a redescoberta do barroco alemao levou, em seguida, a reabilitagaio de Géngorra, ¢ de Donne.

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