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Eis a Flor

Beatriz de Oliveira Paes

Slenes, Robert W. Na Senzala, uma Flor - esperanças e recordações na formação da família


escrava. 2ª edição, Campinas, SP: Unicamp, 2011.

Robert Wayne Slenes é um dos que podemos chamar de “brasilianistas” – estrangeiros


dedicados ao estudo do Brasil –, é norte-americano e professor colaborador do Departamento
de História da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). É especialista em História
Social do Brasil e da África no século XIX e, na obra que será resenhada a seguir, se debruça
sobre a vida do escravo africano no Sudeste do Brasil – mais especificamente, no Vale do
Paraíba cafeeiro e no Oeste Paulista.

No final da última década do século passado, Robert Slenes publicou o livro Na senzala, uma
flor – esperanças e recordações na formação da família escrava – um compilado de estudos
realizados por ele nos 30 anos anteriores acerca da escravidão no Brasil. Seus quatro capítulos
são constituídos por diferentes pesquisas que se inter-relacionam. Começou em 1976, em sua
tese de doutorado, ao discorrer sobre A demografia e a economia da escravidão no Brasil:
1850-1888 – que veio influenciar o segundo capítulo do livro – e teve papel fundamental na
sua argumentação, visto que realiza uma análise preponderantemente demográfica para a
história social que propõe.

Slenes, no livro, ataca, no âmago, a historiografia das décadas de 60 e 70 e, por isso, dedica o
seu primeiro capítulo a uma pequena retrospectiva de toda a historiografia acerca da família
escrava, não só brasileira, como a norte-americana – uma vez que essas sempre eram
relacionadas e comparadas, inclusive para afirmar que a escravidão no Brasil fora mais
“branda” e menos nociva do que a ocorrida no sul dos Estados Unidos. Já nos últimos dois
capítulos, o autor aborda sobre as questões político-religiosas dos centro-africanos, a fim de
mensurar os impactos em seus descendentes nas plantations do Sudeste do Brasil. Assim,
realiza um estudo quase que antropológico sobre a influência da cultura africana no cativo
brasileiro.

A ideia central do autor consiste em questionar a noção vigente de que a escravidão brasileira
era atrelada a uma “patologia” da família ou à inexistência dessa e ainda pretende mostrar
como o cativo viu, na instituição da família conjugal, nascer sua identidade contestatória,
fortemente ligada à sua cultura oriunda da África Central – lugar de origem da maioria dos
escravizados que vieram trabalhar no Sudeste. Essa identidade se manifestava na autonomia e
no alívio das pressões psicológicas que a escravidão empunha sobre o cativo, uma vez que a
herança cultural africana eram muito ligada ao lar e às praticas ritualísticas que nele ocorriam,
assim, a autonomia se dava no conforto da “casa”. Contudo, nem tudo eram flores: seu
argumento principal é, no fundo, de que não só existia sim a formação de famílias no seio da
senzala como também era estimulada pelos senhores como um meio de exercer “controle
social” sobre essa população. Portanto, Slenes defende que os cativos empregaram suas
organizações familiares em prol da obtenção de concessões dos senhores fazendeiros. Estes,
por sua vez, incentivavam a formação de famílias para evitar rebeliões. Sobretudo, Slenes tem
como ponto central os processos de luta de classes no núcleo do sistema escravista,
considerando os escravos como agentes históricos atuantes ao impossibilitar que os senhores
construíssem uma dominação implacável.

No que diz respeito aos preceitos teóricos do autor, é fácil identificá-lo como pactuante da
teoria marxista à maneira de E. P. Thompson, pois trata do aspecto da herança cultural
africana na construção de uma abordagem política da escravidão. Nessa acepção
thompsoniana, toma a história também como processual, em que os escravos teriam
promovido, a partir do século XIX, uma “introversão familiar”, sendo essa a criação das
instituições de família conjugal para a formação de solidariedade e identidades “rebeldes”
escravas. Logo, essa formação familiar seria um projeto coletivo e político para definição de
práticas que poderiam abalar o ritmo do escravismo brasileiro como um todo. Uma amostra
famosa desse abalo é a disseminação sistemática, a partir da segunda metade daquele século,
de alforrias, por exemplo.

Quanto à sustentação de seus argumentos, Robert Slenes, vai diretamente às fontes tanto de
cunho privado quanto público, tanto de fontes primárias quanto secundárias e tanto sobre o
Brasil quanto sobre a África. Pesquisa em inventários post-mortem, processos criminais,
censos e registros paroquiais – que muito acrescentaram à demografia da população escrava,
seu alicerce para a comprovação da existência da família cativa. Mas, principalmente, trabalha
em cima de relatos de viajantes estrangeiros porque, segundo ele, mesmo sendo dotados de
preconceitos, seus escritos fornecem informações valiosas nas entrelinhas, os quais o ajudam
a concluir sobre o regime de ocupação das senzalas para solteiros e casados. Inclusive, o
próprio título e a epígrafe do livro são constituídos a partir da discordância de Slenes com o
relato de Charles Riberyrolles sobre a lavoura fluminense: “Nos cubículos dos negros, jamais
vi uma flor: é que lá não existem nem esperanças nem recordações” (epígrafe). Essa frase
norteará toda a sua obra, pois toma como princípio de que é preciso contestá-la e divulgar sua
nova percepção sobre a família escrava – a de que o escravo via enorme benefício em casar-
se, pois muitas vezes ganhavam uma roça própria, separada dos solteiros e podiam, assim,
obter certa autonomia. É importante também salientar que o autor considera o casamento –
diferentemente de contemporâneos da escravidão – como uma união consensual entre dois
indivíduos, e não apenas a benção dada pela Igreja. Assim, mostra que muitas percepções
errôneas escritas por viajantes foram provocadas por um erro conceitual no imaginário da
época e, desta forma, julga a instituição do casamento a partir do olhar do escravo negro.

Além de registros escritos, o autor analisa pinturas e fotografias próprias do século XIX,
também originárias da observação de estrangeiros, concluindo, a partir delas, a forte
influência da cultura africana remanescente no escravo e que, muito provavelmente, nem os
próprios pintores e fotógrafos pareciam conscientes do significado daquilo que estavam dando
vida.

Assim, Slenes acaba, propositadamente, realizando um trabalho em uma escala espaço-


temporal reduzida, muito envolvido com o âmbito das fazendas, sobretudo, as cafeeiras, e
considera apenas o século XIX cronológico, até 1888. Ele é, assumidamente, um historiador
de micro-história. Ademais, seu estudo prioriza a análise de dados da cidade de Campinas que
era, conforme ele, “’paradigmática’, pois fornece condições ideais para a reconstituição
daquilo que era típico” (p. 101) no que tange a nupcialidade escrava no Sudeste.

Numa primeira vista, o processo metodológico de Slenes parece extremamente completo e


bem explorado pelo autor. Porém, o que falta a seu estudo talvez seja relacionar mais seus
dados, análises e conclusões com a conjuntura mais ampla em que o escravismo estava
inserido: a escala nacional e global. Infelizmente, apesar de tecer comentários e trabalhar
debruçado a dados do ano de 1850, pouco relaciona a questão da família escrava com a
abolição do tráfico negreiro. Além disso, faz afirmações fortes sobre o modus operandi da
vida escrava brasileira como um todo sem suficientemente ter explorado outras regiões que
não o Sudeste do Brasil. Todavia, não é um procedimento de todo negativo, uma vez que
Slenes participa de um movimento que ele próprio nomeia de “virada africanista”, ou seja, é
um dos primeiros estudiosos acerca do escravo americano que pensa e o considera dotado de
seu passado africano. Um erro muito comum anteriormente era enxergar o escravo apenas a
partir do momento em que adquire sua condição de escravo na América ou, no máximo,
quando está prestes a ingressar no navio negreiro. Em tempo, sua consideração abrangente da
identidade do escravo é louvável.

A posição dessa obra na historiografia tem um papel de ruptura com a que estava em vigência
até a década de 60 e 70, posto que Slenes faz parte de uma geração que se ocupou do
problema da família escrava, dando a ela “sinais de vida”. Contudo, não descarta a
importância da anterior em virtude de ser a responsável por enterrar a noção de uma
escravidão brasileira “branda” – em comparação com o escravismo sulista dos EUA –, mesmo
que essa seja imputada por “matar” a ideia de formação de famílias estáveis nos estudos
brasileiros. Nomes como Emília Viotti da Costa e Oracy Nogueira estão entre aqueles que
consideram o negro dotado de um caráter promíscuo quanto a sua sexualidade e, nesse
sentido, não teriam nenhum zelo de montar famílias conjugais. Em sequência, Gilberto Freyre
vai além desse pensamento e justifica a deturpação do comportamento escravo por ser
estimulada pelos senhores como uma política de domínio senhorial. E é justo isso que Robert
Slenes provará o contrário – com base em dados que comprovam a existência da família e o
significado desta para o escravo – ao longo de Na Senzala, uma flor.

Não é difícil notar a importância dessa obra no campo acadêmico visto que quebra postulados
que remontam desde a época coeva à escravidão até a década de 70, inclusive os escritos
advindos de nomes renomados das ciências sociais como Caio Prado Jr., Freyre e Florestan
Fernandes. Slenes contribui, nesse sentido, para relembrar de que a história é viva e merece
sempre ser revivida, reescrita, mas nunca repostulada. Nenhum fato, processo ou questão deve
ser tomado como verdade absoluta – mesmo que tenham sido trabalhados em pesquisas
consideradas metodologicamente ideais pela academia de ciências sociais.

Robert Slenes merece, então, enorme prestígio por resuscitar a “flor” nas senzalas. Seu livro
não deixa dúvidas em relação à relevância da presença do cônjuge e da vida mais particular e
privada que ganhavam os escravos a partir de suas núpcias. Sua argumentação é tão bem
construída ao ponto de ser quase impossível uma tentativa de contestação no tocante ao
movimento voluntário de nupcialidade protagonizado pela população cativa. Ele retira, por
muito, a visão racista do negro que, no geral, é enxergado como um libertino, sem pretensões
respeitáveis e sem perspectiva de vida adequada ao que o branco ocidental considera como
correta. Em suma, ao mostrar que já no negro cativo havia sim uma cultura familiar à sua
maneira e de acordo com seus preceitos africanos, contribui para a construção de uma visão
livre de preconceitos e, por isso, a obra Na Senzala, uma flor merece ser inserida no repertório
literário da sociedade brasileira como um todo e não permanecer escondida entre mãos
acadêmicas. Eis a flor.

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