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De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

DE GBE A IORUBÁ: OS PRETOS MINAS


NO RIO DE JANEIRO, SÉCULOS XVIII–XX

Juliana Barreto Farias*


Mariza de Carvalho Soares**

Resumo
Ao longo dos séculos de vigência da escravidão, a cidade do Rio de Janeiro reu-
niu um grande número de escravos africanos de diferentes procedências. A do-
cumentação demonstra a recorrente referência aos chamados “minas”, que co-
meçam a ser regularmente registrados no final do século XVII na Bahia e, nos
primeiros anos do século XVIII, no Rio de Janeiro. Nosso objetivo, neste artigo,
é justamente mapear a diversidade da composição linguística e étnica dos africa-
nos designados “minas” na cidade do Rio de Janeiro ao longo dos séculos XVIII e
XIX, chegando mesmo a princípios do século XX, e avaliando assim em que me-
dida, nos limites das fontes disponíveis, esses critérios podem ser considerados.
Palavras-chave: Rio de Janeiro; Africanos; Minas; Escravidão; Etnicida-
de; Língua.

Abstract
FROM GBE TO IORUBÁ: MINA PEOPLE IN RIO DE JANEIRO
The city of Rio de Janeiro concentrated one of the largest African born slave po-
pulation in the Americas. Despite the majority of West Central African slaves the
West African slave population was also significant in the city. The so called Mina
slaves, most of them embarked in the ports of the Bight of Benin. This chapter
demonstrates the diversity of the linguistic and ethnic composition of Mina peo-
ple in the city of Rio during the era of the Atlantic slave trade and beyond, consi-
dering the remaining Mina population in the city until the 1930s.
Key words: Rio de Janeiro; Africans; Minas; Slavery; Ethnicity; Languistic.

Não há como falar dos africanos minas na rentes portos de desembarque ao longo da
cidade do Rio de Janeiro sem pensar o con- costa brasileira. Mesmo se deixadas de lado
junto do comércio atlântico de escravos e a as áreas de menor destaque, Rio de Janeiro
distribuição dos africanos segundo os dife- e Salvador constituíram os dois principais

* Juliana Barreto Farias é professora-adjunta dos Cursos de Licenciatura em História e Bacharelado em


Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB)-BA
e do Mestrado em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da UNEB-Campus 1. E-mail:
julianafarias@unilab.edu.br.
** Mariza de Carvalho Soares é professora do Programa de Pós-graduação em História da UFF, pesquisado-
ra do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ e curadora da coleção africana do Setor
de Etnologia e Etnografia da instituição. E-mail: marizacsoares@gmail.com

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segmentos dessas rotas e os maiores pon- escravos e mesmo a escravidão, os chamados


tos de dispersão de cativos para o interior “minas” ainda eram reconhecidos na cidade
do Brasil durante toda a vigência do tráfico do Rio, chegando a última geração de africa-
atlântico de escravos. nos vindos da Costa da Mina às primeiras dé-
Na cidade do Rio de Janeiro, onde os afri- cadas do século XX.2
canos da costa centro ocidental eram majori- De modo ainda exploratório a inten-
tários, eles se apresentavam em grupos dis- ção deste artigo é mapear a diversidade da
tintos, entre eles os mais conhecidos foram composição linguística e étnica dos africa-
os congos, os cabindas, os angolas, os ben- nos designados “minas” na cidade do Rio de
guelas, os cassanges, entre outros. Já os afri- Janeiro ao longo dos séculos XVIII e XIX,
canos da costa ocidental, minoritários, se re- chegando mesmo a princípios do século XX,
uniram sob a designação mais geral “mina”. e avaliando assim em que medida, nos limi-
Na Bahia, o oposto acontece: os africanos da tes das fontes disponíveis, esses critérios po-
costa ocidental, em maioria, aparecem sob dem ser considerados.
diferentes designações (nagôs, jejes, haus-
sás, bornus, etc), enquanto os da costa centro Os pretos minas no Rio de
ocidental têm identificações mais genéricas Janeiro
(angolas e benguelas são os mais menciona-
A recorrência da designação “mina” dá a
dos). Isso indica que grupos maiores buscam
esse segmento da população escrava a falsa
estratégias de diferenciação, enquanto os
ideia de uma continuidade e semelhança na
menores tendem a se unir para fazer frente
identificação dos escravos assim classifica-
às dificuldades impostas pela presença dos
dos. Retomando o argumento apresentado
grupos majoritários. Este era exatamente o
acima, investigamos a chamada nação mina
caso dos minas no Rio de Janeiro que, mes-
para além desta designação genérica, iden-
mo demograficamente minoritários, tinham
tificando a variedade étnica e linguística do
grande visibilidade na cidade.
contingente escravo aí contido e traçando
Tal constatação não elimina a urgência de
as rotas de deslocamento dessa população,
pesquisas que trabalhem com maior atenção
desde os prováveis territórios de onde saí-
os três séculos da escravidão africana bus-
ram até seu reassentamento na cidade do
cando as particularidades de cada período e
Rio de Janeiro.3
situação. A cidade do Rio de Janeiro reuniu
No Brasil de um modo geral, e no Rio de
ao longo dos séculos de vigência da escravi-
Janeiro em particular, os escravos identi-
dão um grande número de escravos africanos
ficados como mina foram embarcados nos
de diferentes procedências. A documentação
portos da Baía do Benim, ao longo do lito-
demonstra a recorrente referência aos cha-
ral que hoje corresponde a três países: Togo,
mados “minas”, que começam a ser regular-
Benim e Nigéria. Mas os locais de onde eles
mente registrados no final do século XVII na
2 Para a última referência a um “mina” na histo-
Bahia e, nos primeiros anos do século XVIII,
riografia da cidade ver: FARIAS, 2005, p. 265-
no Rio de Janeiro.1 Já no final do oitocentos, 291. Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, fi-
bem depois de extinto o comércio atlântico de lho de pais “minas”, Assumano – até pelo menos
a década de 1930 – ainda era identificado como
1 Sobre os minas na cidade do Rio de Janeiro, “mina” na cidade do Rio.
ver: SOARES, 2000a; SOARES, 2007; GOMES; 3 Para uma abordagem mais detalhada sobre na-
SOARES, 2001; FARIAS; GOMES; SOARES, ções e grupos de procedência, ver: SOARES,
2005; FARIA, 2004; FARIAS, 2015. 2004.

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efetivamente provinham eram bem diferen- nas, por exemplo, a documentação do século
tes em termos de geografia, grupos étnicos, XVIII informa que esses africanos falavam a
línguas, culturas, meio ambiente em que vi- “língua geral da Mina”, que ao que tudo in-
viam, práticas econômicas e formas de or- dica corresponde a uma mistura de línguas
ganização política. Eram no seu conjunto gbe e ioruba, cuja composição está longe
povos diversos que foram escravizados em de ser decifrada pelos linguistas.4 Entre os
diferentes momentos de suas histórias em membros dessa irmandade, existiam mahis,
função da demanda do comércio atlântico daomeanos e também pelo menos um irmão
de escravos. Pode-se hoje afirmar que a “na- vindo de Dassa, uma pequena localidade já
ção mina” engloba indivíduos que pertence- dentro do território mahi, mas constituída
ram a diferentes povos e que, dentre eles, os por uma população procedente da área ioru-
mais numerosos foram os conhecidos como bá que manteve o uso da língua iorubá em
de línguas do grupo gbe (entre eles o fon e seu novo território. Portanto, são infinitas as
o mahi são as já reconhecidas) e do iorubá. possibilidades de rearranjos dos dois lados
Entretanto, nem sempre essa presença foi do Atlântico que dificultam e limitam a aná-
equilibrada e, embora esse seja um cálculo lise linguística como referência para a identi-
difícil de ser feito pela análise da documen- ficação da procedência dos escravos.
tação disponível, é possível estimar que os O mesmo se pode dizer para a questão
escravos procedentes de regiões onde predo- da identidade étnica. Nessa mesma irman-
minaram as línguas gbe foram mais nume- dade alguns membros se identificam como
rosos no século XVIII, enquanto os escravos “couras” (ou couranos) e “cabus”. Nenhuma
vindos de áreas de língua iorubá começaram dessas designações é conhecida na histo-
a ser importados em maior número a par- riografia africanista, o que traz problemas
tir do final do século XVIII e se tornariam para sua localização. Entretanto, não resta
maioria ao longo do século XIX. qualquer dúvida que no Brasil eles se identi-
O uso do mapeamento linguístico para ficavam como tal, fazendo explícita referên-
identificação da procedência dos escravos cia a uma “terra” coura e cabu, nos mesmos
é um recurso usual na historiografia africa- moldes em que outros grupos se referiam às
nista e, por consequência, também na histo- suas terras (SOARES, 2004). Desse modo,
riografia da diáspora. Contudo, esse método também a questão da identificação étnica se
traz uma série de problemas, na medida em apresenta como um problema.
que, em toda a área do entorno da Baía do O que temos então a nosso dispor para
Benim, essas línguas apareciam misturadas, avançar no esforço de identificar a popula-
muitas vezes em decorrência de desloca- ção escrava africana residente na cidade do
mentos, casamentos interétnicos, etc. Assim, Rio de Janeiro são dados relativos às nações
torna-se impossível estabelecer uma equiva- às quais diziam pertencer (no caso, a nação
lência entre língua, cultura e grupo étnico. mina), às terras onde situam seu ponto de
Esse problema se agrava na identificação da partida (quando conseguimos obter essas
população escrava no Rio de Janeiro, já que informações) e à seus vínculos de ancestrali-
as formas de organização dos africanos na ci- dade (terra dos mahi, dos couras, dos cobus,
dade nem sempre seguiam tal critério. Na Ir- dos daomeanos, dos haussa, etc). Entretan-
mandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, 4 Sobre o letramento e o uso da língua geral da
composta por uma maioria de africanos mi- mina nesta irmandade, ver: SOARES, 2000 b.

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to, é importante deixar claro que essas et- na cidade do Rio de Janeiro, tirando provei-
nias não são transportadas para as Améri- to de uma identidade comum alargada que
cas. Indivíduos podem continuar se identifi- veio a ser conhecida como “mina”.
cando assim porque fazem referência a uma Ao longo do século XVIII, a documenta-
vivência passada e a uma consciência de que ção indica uma predominância de escravos
tal etnia existia e por isso podiam se referir egressos das áreas de línguas pertencentes
a ela, mas o grupo ao qual se diziam per- ao tronco gbe (fon, ewe, mahi, entre outras).
tencer podia estar longe, do outro lado do Já no século XIX, cresce progressivamen-
Atlântico. Trata-se daquilo que o antropólo- te a presença de escravos vindos das áreas
go Johannes Fabian chama de coetaneida- de predominância da língua ioruba. O que
de (“coevalness”), ou seja, a consciência de acontece nesse processo de substituição é
uma existência no mesmo tempo, mas não que, quando esses novos escravos de língua
no mesmo lugar (FABIAN, 2013). No Rio de iorubá começaram a chegar em maior nú-
Janeiro, o mahi era mina. A identidade mina mero à cidade, especialmente a partir da dé-
apontava para um esforço de construção de cada de 1830, adotaram a terminologia mina
uma forma de identificação que reunia um já existente para os demais africanos da cos-
conjunto de desgarrados, ou melhor, dester- ta ocidental, não reivindicando, pelo menos
rados em arranjos precários e provisórios. de modo exclusivo, a identidade nagô, como
Em resumo, o uso do termo “mina” en- aconteceu na cidade de Salvador, onde os
cobria várias modalidades de diversidade e africanos da Costa da Mina até então igual-
resultava de uma estratégia bem estabeleci- mente do tronco gbe eram majoritários.
da para melhor gerir no interior do grupo a De todo modo, as primeiras investigações
nova forma de organização. O presente texto sobre os escravos mina no Rio de Janeiro se-
mostra que, ao longo do tempo, houve uma guiram na contramão dos estudos sobre a es-
variação de predominâncias linguísticas, ét- cravidão e o comércio de escravos na cidade
nicas, e que o que todos tinham em comum do Rio de Janeiro onde, ao longo de toda a vi-
era a procedência da Costa da Mina. Assim gência do sistema escravista, predominaram
sendo, cada um desses indivíduos pertenceu os escravos vindos da costa centro ocidental
(angolas, benguelas, cabindas e congos). Nos
no passado a um grupo étnico, alguns deles
últimos anos, até mesmo de modo despropor-
podiam estar novamente reunidos na cidade
cional do ponto de vista demográfico, cresceu
do Rio de Janeiro, mas o que tinham como
o interesse pelos minas e a historiografia da
perspectiva era a organização de grupos
cidade hoje carece de trabalhos sobre os es-
identitários baseados num passado étnico;
cravos africanos que compuseram a grande
num multilinguismo a que já estavam habi-
maioria da população cativa urbana vindas
tuados em seus territórios ancestrais; e, por
de outras partes da África, especialmente da
fim, na possibilidade de constituir uma nova
costa centro ocidental.
identidade calcada na procedência comum
(Costa da Mina) que lhes foi atribuída pela
A questão da etnicidade na
situação de escravização. Mas, em meio a
essa designação genérica, muitas particula-
diáspora
ridades foram preservadas e são fundamen- No início do século XVII, a população da ci-
tais para uma adequada compreensão do dade do Rio de Janeiro girava em torno de
modo como esses africanos se organizaram 3.850 pessoas: 750 portugueses, 100 africa-

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nos e 3.000 índios e mestiços. A epidemia de incluía 222 escravos. Os africanos ali identi-
1613 teria afetado gravemente a população ficados por sua procedência aparecem em 14
indígena, levando a uma demanda crescente crianças nascidas na freguesia, cujas mães
de mão de obra africana (CARVALHO, 1994, eram africanas: dez delas eram ditas “de Gui-
p. 32; ARAÚJO, 1948, p. 239-241). Em 1699, né”, três “mina” e uma “fula”. O volume lista
Portugal abriu o comércio entre o Brasil e a ainda o batismo de uma criança mina e de
Costa da Mina, que passou a ser feito através outros sete africanos adultos: quatro mulhe-
de licenças de viagem. Essa rota já era usual res minas, dois homens minas e uma mulher
para a Bahia desde a década de 1670 e, a loango.5 São, ao todo, dez minas num total
partir de então, começavam a ser autorizada de 222 escravos. O importante a ser destaca-
também a viagens a partir do Rio de Janeiro. do aqui é que, muito provavelmente, a com-
Baseado em relatos de época, o histo- posição étnica e linguística desse pequeno
riador Patrick Manning demonstrou que a contingente era semelhante ao encontrado
maioria dos escravos embarcados nos portos por Manning no México. O que nos leva a
da Baía do Benim levados para o México nos reconhecer os minas do Rio de Janeiro tam-
primeiros anos do século XVIII era proce- bém como prováveis procedentes das áreas
dente de áreas de predominância de uso das de população de línguas Gbe, o que – grosso
línguas Gbe. Manning contou 15 Aja (língua modo – correspondia aos territórios do rei-
Aja/Gbe), 6 Calabar (porto de embarque na no do Daomé e seu entorno, onde à época se
Baía de Biafra), 12 Fon (língua Fon/Gbe), desenrolavam constantes conflitos armados
7 Allada (cidade com população de línguas decorrentes da expansão do Daomé em dire-
Gbe), 7 Ouidah (reino/porto com população ção ao litoral, justamente para ampliar sua
de língua predominantemente Gbe), 7 Popo capacidade de articular o comércio de escra-
(reino/porto com população de língua pre- vos com os europeus (LAW, 1991).
dominantemente Gbe) e 1 Oyo (cidade com Nas décadas seguintes, aumentou o de-
população de língua predominantemente sembarque de escravos da Costa da Mina na
iorubá). Excluídos os seis escravos vindos de cidade do Rio de Janeiro, tornando-se então
Calabar e um único indicado como de Oyo, mais fácil reconhecê-los. Dados mais consis-
todos os demais fazem alguma referência às tentes sobre a presença de escravos vindos
línguas gbe e aos territórios e portos desses do entorno da Baía do Benim para o Rio de
povos no entorno da Baía do Benim, onde Janeiro foram encontrados na documenta-
essas populações viviam e onde os escra- ção relativa às irmandades católicas, em es-
vos dessas procedências eram embarcados pecial a Irmandade de Santo Elesbão e San-
(MANNING, 1979, p. 125-129). ta Efigênia, fundada em 1740 por africanos
Tal constatação ajuda a pensar a compo- minas. Essa confraria reunia africanos de
sição da população mina na cidade do Rio várias procedências, excluídos aqueles vin-
de Janeiro e no Recôncavo da Guanabara no dos de Angola, já então reunidos na Irman-
mesmo período. Nos primeiros anos do sé- dade de Nossa Senhora do Rosário. Assim
culo XVIII, cativos identificados como mina sendo, compunham a direção da Irmandade
ainda eram raros na documentação da cida- de Santo Elesbão e Santa Efigenia africanos
de e de seus arredores. A primeira referência oriundos da Costa da Mina, de Cabo Verde,
encontrada até agora foi a de um livro de ba- 5 A transcrição na íntegra do referido livro de ba-
tismo de escravos de Irajá (1704-1708), que tismo encontra-se em: PINTO, 1988, p. 129-173.

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São Tomé e Moçambique. Considerando 1751, a cidade tinha apenas duas freguesias
que seriam necessários de dez a vinte anos (Sé e Candelária). Entre 1718 e 1733, a Sé re-
para um cativo africano se alforriar e jun- gistrou o batismo de 1.074 escravos minas,
tar algum patrimônio de modo a arcar com todos adultos, provavelmente com mais de
o custo da construção de uma igreja, cujas 12 anos.8 Entre eles, estava Pedro Mina, de-
obras se iniciaram em 1746, pode-se estimar pois Pedro Costa, o primeiro rei mina elei-
que os membros do grupo fundador devem to na irmandade de Santo Elesbão. Nada se
ter começado a chegar por volta da década sabe sobre sua vida pregressa, mas por al-
de 1720. Sem mencionar outras guerras me- gum motivo foi comprado e batizado pelo
nos conhecidas, esta foi justamente a épo- então Desembargador Ouvidor Geral do Rio
ca dos maiores conflitos na Costa da Mina, de Janeiro, Manoel da Costa Mimozo. Pedro
quando o reino do Daomé invadiu Allada é citado em dois documentos importantes,
(1724) e Ouidah (1727). Dessa forma, mais seu batismo e também um relato da irman-
uma vez é possível estimar que os escravos dade de Santo Elesbão e Santa Efigênia.9
ditos “minas” que se estabeleceram no en- A documentação dessa irmandade per-
torno da Baía de Guanabara entre 1720 e mite uma identificação mais precisa da
1750 fossem em sua maioria egressos desses composição étnica dos membros da irman-
conflitos. Fica em aberto a identificação de dade vindos da Costa da Mina.10 Haviam en-
alguns subgrupos minas que não só apare- tre eles homens e mulheres procedentes de
cem na documentação do Brasil como de diferentes localidades. Entre os territórios
(por eles chamados “terras”) mencionados
outras partes das Américas, como México,
estão a terra dos maquis (mais conhecidos
entre os quais os já mencionados já cobus e
como Mahi), assim como indivíduos vindos
couras.6
de Savalu, Dassa, Za e Agonli. Todas essas
O reconhecimento dos escravos oriundos
localidades ficavam em territórios ocupados
da Costa da Mina na documentação da ci-
por populações majoritariamente de línguas
dade do Rio de Janeiro e de seu entorno re-
gbe, embora em alguns casos, como Dassa,
sulta do fato de que esses escravos não eram
também sejam encontrados falantes de io-
batizados antes do embarque, sendo neces-
sário que os proprietários o fizessem após 8 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Ja-
neiro. Livros de batismo de escravos da Fregue-
a compra.7 Os registros de batismo desses sia da Sé, 1718-1726 e 1726-1733.
cativos que chegavam aqui adultos e pagãos 9 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Ja-
gerou uma considerável série de assentos neiro. Livros de batismo de escravos da Fregue-
sia da Sé, 1726-1733, setembro de 1727, fl 38;
preciosos para o estudo da composição da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, "Regra
população mina da cidade. O primeiro livro ou estatutos pormodo de hûm dialogo onde,
sedá notiçias das Caridades e Sufragaçoens das
de batismo de escravos disponível para a ci-
Almas que uzam osprettos Minnas, comseus
dade do Rio de Janeiro data de 1718, corres- Nancionaes no Estado do Brazil, expecialmente
pondendo aos cativos da freguesia da Sé. Até no Rio de Janeiro, por onde se hao de regerem
egôvernarem fora detodo oabuzo gentilico e su-
6 Uma hipótese sobre esses grupos – que ainda persticiozo; composto por Françîsco Alvês de
carece de pesquisa complementar – foi apresen- Souza pretto enatural do Reino de Makim, hûm
tada em SOARES, 2007. dos mais exçelentes e potentados daqûela ôriun-
7 O batismo de escravos já regulamentado pelas da Costa da Minna”. fl. 22.
Ordenações Filipinas (1603) foi mais bem de- 10 Para efeitos do presente texto estamos deixan-
talhado em seus objetivos e responsabilidades do de lado os membros da irmandade de outras
pelas Constituições Primeira do Arcebispado da procedências, como os oriundos de Cabo Verde,
Bahia em 1707. Ver: SOARES, 2011. São Tomé e Moçambique.

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ruba. Um caso ainda não esclarecido é dos desembarcada na cidade. Em 1816, esse
escravos identificados na documentação comércio “desapareceria”, e, a partir de
como “ionnos” (ou “ayonous”, como aparece então, os minas encontrados na cidade
na literatura francesa), provavelmente rela- eram quase todos provenientes do tráfico
cionados a Oyó e de língua iorubá. Restam interno, notadamente da Bahia. De outro
também não reconhecidos no interior da lado, em trabalho que ainda aparece como
irmandade, como os já mencionados cobus a principal referência para boa parte das
e couras. O importante no reconhecimento análises, Mary Karasch avalia que, entre
dessas designações é perceber que a identi- 1800 e 1843, dos mais de 600 mil africanos
dade Mina era extremamente operante na que aportaram no Rio de Janeiro, apenas
cidade, mas que, no seu interior, as pessoas 1,5% era de originários da costa ocidental
se diferenciavam e se agregavam de modo (KARASCH, 2000, p. 67).
bastante flexível ao longo do tempo. Além Dados mais recentes compulsados pelo
disso, os falantes de línguas Gbe ou ioruba projeto The trans-atlantic slave trade
são os mais conhecidos, mas certamente apontam, para o período de 1801 a 1825,
não os únicos. De acordo com a variação da 175.200 iorubás desembarcando na Bahia
oferta de escravos na Costa da Mina, a com- e apenas 1.000 no Rio de Janeiro. Já entre
posição do grupo Mina na cidade do Rio de os anos de 1826 e 1850, 116.200 ficaram na
Janeiro podia variar, e indiscutivelmente foi capital baiana e 28.400 seguiram para o Rio
sendo alterada ao longo do tempo. (ELTIS, 2004, p. 30-31). Certamente, nes-
A documentação da Irmandade de Santa te último grupo estavam tanto os escravos
Efigenia permitiu um melhor entendimen- destinados ao Vale do Paraíba e ao Sul em
to da composição étnica dos africanos mi- geral, como aqueles chegados ilegalmente –
nas na cidade do Rio de Janeiro em meados depois do fim do tráfico – e recolhidos pela
do século XVIII. O que se dirá dos demais Comissão Mista.11 Se pelo menos 10% deles
africanos da cidade na mesma época e em tiverem permanecido na cidade, sua presen-
outros momentos da história do comércio ça já seria bem significativa (SOARES, 2007,
atlântico de escravos? Quem eram efetiva- p. 18-19). A esses se juntavam ainda os es-
mente aquelas pessoas chamadas angolas, cravos que aportavam na Corte como par-
benguelas e cabindas na cidade do Rio de te do “êxodo mina” que partiu de Salvador
Janeiro? De onde vinham? Que vida deixa- após a revolta dos malês, em 1835. Quinze
ram para trás e o que fizeram para recons- anos depois do levante, os minas perfaziam,
truir na cidade do Rio de Janeiro uma nova conforme as análises do historiador Thomas
forma de viver e conviver com seu passado e Holloway, 17% dos cativos africanos e 8,9%
sua nova situação de escravidão? da população geral do Rio.12
11 Sobre os africanos livres no Rio de Janeiro, es-
De nagôs a minas pecialmente minas, capturados após o fim do
tráfico transatlântico de escravos em 1831, ver:
Segundo o historiador Manolo Florentino, MANIGONIAN, 2000.
12 Embora o chamado êxodo mina ainda careça
entre os anos de 1795 e 1811, os cativos da de exames mais sistemáticos, análises sobre
costa ocidental (em especial dos portos de essa migração de africanos ocidentais de
São Tomé, Costa da Mina e Calabar) que Salvador para o Rio de Janeiro, especialmente
após o levante dos malês de 1835, aparecem
vinham diretamente para o Rio represen- em: GOMES; SOARES, 2001; SOARES, 2001.
tavam apenas 3,2% do total da escravaria FARIAS, 2015; HOLLOWAY, 1998, p. 268. Sobre

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Como acontecia no século XVIII, eles fossem “nagôs”, cada um tinha “sua terra”,
quase sempre apareciam, em diferentes re- conforme assinalou o escravo Antônio, acu-
gistros, identificados simplesmente como sado de participar da rebelião dos malês, em
originários da Costa da Mina ou de nação 1835 (REIS, 2003, p. 338).
mina. E mina era um designativo genérico No Rio de Janeiro, como já apontado aci-
que, pouco a pouco, foi ampliando seu cam- ma, esses nagôs da Bahia acabaram optando
po semântico até praticamente se transfor- pela mesma estratégia das gerações anterio-
mar, na virada do século XIX, em sinônimo res, garantindo um grupo coeso e maior, aí
de africano. Contudo, perscrutando fontes denominado mina. Com isso, preveniam-se
diversas e também alguns estudos mais re- contra a possibilidade de dispersão acarre-
centes sobre escravidão urbana e tráfico tada pela afirmação de pequenas identida-
atlântico, é possível constatar que os africa- des diferenciadas. Na capital carioca, uma
nos ocidentais que viviam no Rio de Janei- nação nagô seria francamente minoritária e
ro ao longo do oitocentos vinham de áreas teria mais dificuldade de negociar sua inser-
onde predominava a língua iorubá. Além ção na vida urbana, especialmente no caso
disso, boa parte havia desembarcado pri- dos africanos forros que precisavam se in-
meiro na Bahia e, sobretudo a partir da dé- serir nas redes de trabalho já constituídas.
cada de 1830, e depois passado à capital do Na condição de mina, estabeleceram áreas
Império.13 de ocupação para moradia, lazer, trabalho e
Quando esses homens e mulheres proce- práticas religiosas, minimizando, pela orga-
dentes de diferentes vilas ou reinos da África nização, o ônus de serem um grupo minori-
ocidental chegavam à cidade do Rio, depois tário emuma cidade de maioria de escravos
de passarem pela Bahia, logo se transmuda- vindos da África centro ocidental.
vam em minas. O caso dos nagôs é exemplar. Ainda assim, localizamos, especial-
Em terras baianas, os cativos que falavam o mente para as primeiras décadas do século
iorubá ficaram conhecidos como nagôs, an- XIX, cativos que se identificavam – e eram
tes mesmo de se reconhecerem como iorubás identificados por seus senhores – como na-
no continente africano. Se o termo nagô fora gôs, haussás, minas-nagôs e outras deno-
imposto no circuito do tráfico14, a identida- minações étnicas adotadas na Bahia. Em
de nagô foi elaborada na Bahia (REIS, 2003, 1835, por exemplo, 60 africanos ocidentais
p. 336). Mas, sob o grande “guarda-chuva” foram anunciados na coluna de “Escravos
nagô que ali se formou, estavam também fugidos” do Diário do Rio de Janeiro. Nes-
muitos grupos menores. Ainda que todos te conjunto, 40 foram designados como de
“Nação Mina”; 9, de “Nação Calabar”; e 3,
a revolta dos malês que ocorreu em Salvador em
de “Nação Nagô”. Havia ainda outros 9 com
1835, envolvendo escravos e libertos africanos
muçulmanos, ver: REIS, 2003. identidades conjugadas (algumas de proce-
13 Embora o chamado êxodo mina ainda careça de dência desconhecida), como “Mina Nagô”
exames mais sistemáticos, análises sobre essa
migração de africanos ocidentais de Salvador
(3); “Mina Ussá” (1); “Mina Ajá” (1); “Mina
para o Rio de Janeiro, especialmente após o Ginjá” (1); “Mina Quilombona”(1) e “Mina
levante dos malês de 1835, aparecem em: GO- Docó” (1). Este último, segundo informações
MES; SOARES, 2001; SOARES, 2001.
14 O termo nagô era usado, na África ocidental, de seu dono, era “um preto de nação Mina,
pelos falantes de fon e outras línguas gbe para que se chamava Docó, nome de sua nação”.15
designar o que hoje conhecemos como iorubas
(REIS, 2003, p. 336). 15 Diário do Rio de Janeiro, 13 de julho de 1835.

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De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

Para o ano de 1845, dez anos após o início do Mariza Soares na constituição das identida-
chamado êxodo mina da Bahia, encontra- des dos mina-maki nas irmandades do Rio
mos, na mesma seção, 41 homens e mulhe- de Janeiro (FLORENTINO, 2002; MAMI-
res procedentes da costa ocidental africana GONIAN, 2000; SOARES, 2001; SOARES,
divididos nas seguintes “nações”: Mina (25); 2000). Seja como for, a partir dos anos 1860
Nagô (4); Calabar (4); Mina Nagô (4); Mina essas “nações compostas” começariam a de-
Ussá (2); e Mina Geyge (1). saparecer, observando-se em apenas 8,8 %
Embora esses registros revelem grupos (25) dos casos. Ao final, todos acabariam ge-
bem específicos e identidades diferenciadas, nericamente identificados como mina.
a análise em conjunto deixa claro o progres- Após a abolição, os africanos que ainda
sivo processo de agregação identitária em viviam no Rio de Janeiro concentravam-se
torno dos minas. A quitandeira Custódia, na área portuária da cidade, nas freguesias
anunciada na coluna de “Escravos fugidos” de Santana e Santa Rita, redutos dos mi-
de 25 de novembro de 1835, foi descrita nas desde meados do século XIX. De acor-
como uma “preta mina, de Nação Nagô”. do com o recenseamento realizado naquele
Já Raimunda, cativa que havia escapado ano, a região abrigava 1.463 indivíduos que
haviam nascido na África, contingente não
da casa do Sr. João Caetano dos Santos, em
encontrado em nenhum outro bairro. Uma
Niterói, era simplesmente “de nação Mina,
nova contagem da população só seria feita
da Bahia”. Mesmo caso de Luiza, uma outra
16 anos depois17. Antes disso, porém, João
quitandeira de frutas, fressura de boi e gali-
do Rio – em suas incursões pelas casas das
nhas, identificada na edição de 5 de agosto
ruas de São Diogo, Barão de S. Félix, Hos-
de 1845 como “uma preta de Nação Mina,
pício, Núncio e da Aclamação18 – estimaria
vinda há pouco da Bahia”.16
Examinando 2.565 alforrias de africanos 17 Em 1890, Santa Rita tinha 43.601 habitantes,
dos quais 16.876 eram estrangeiros (destes,
ocidentais entre os anos de 1800 a 1871, Flá- 12.315 eram portugueses e 1.720 espanhóis). Já
vio Gomes também constatou esse proces- em Santana, encontramos – nesse período – 67.
385 pessoas, entre as quais o maior contigente
so de aglutinação organizacional (FARIAS,
estrangeiro da cidade – 27.074, sendo 16.173
2005). Neste conjunto, verificou que aque- portugueses e 4.844 italianos. Com tantos imi-
les classificados como minas correspondiam grantes vivendo na região, não é de estranhar
que os pretos e pardos fossem minoria. 60,6%
a 75,5% (1.944). Os restantes apareciam dos moradores de Santa Rita e 66,4%, de San-
como nagô, calabar, haussá e jejê, e ainda tana eram brancos. Ver: Recenseamento Geral
com denominações conjugadas, como mina- da República dos Estados Unidos do Brasil em
31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro, Typ.
nagô, mina-calabar, mina haussá e mina-je- Leuzinger, 1895; CRUZ, 2000, p. 243-290. De-
je. Já em 1819 surgia o primeiro registro de pois desse censo em 1890, uma nova contagem
só seria feita no recenseamento de 1906. Mas,
uma mina-hausá. Isso indica – segundo o
refletindo a ideologia oficial e racista do perío-
autor – que a agregação identitária em torno do, que por força pretendia “embranquecer” os
dos minas teria começado bem antes, e não habitantes do país, a população não foi classifi-
cada de acordo com a cor. Cf. Recenseamento do
só a partir da década de 30, como sugerem Rio de Janeiro (Distrito Federal), realizado em
Florentino, Líbano Soares e Magigoniam. As 1906 (CHALHOUB, 2001, p. 43-45).
chaves para essa articulação estavam colo- 18 Todas essas ruas – e também outras visita-
das pelo cronista em 1904, e descritas em suas
cadas já no século XVIII, como discutido por crônicas reunidas no inquérito As religiões no
Rio – ficavam nas freguesias centrais, como
16 Diário do Rio de Janeiro, 25 de novembro de Santana e Santa Rita. Para uma análise dos afri-
1835; 30 de agosto de 1845; 5 de agosto de 1845. canos descritos nos textos do cronista carioca,

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Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

que, em 1904, “da grande quantidade de es- de seus grupos, vilas ou cidades de origem.
cravos africanos vindos para o Rio no tem- Essa informação é, de fato, surpreendente,
po do Brasil colônia e do Brasil monarquia”, já que, desde pelo menos as últimas décadas
restavam apenas “uns mil negros”. Segundo do oitocentos, o termo mina passara a de-
o cronista, eram todos de pequenas “nações signar, genericamente, os cativos e libertos
do interior da África”, como os “igesá, oié, originários da Costa da Mina. No censo de
ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se conside- 1890, por exemplo, todos eram simplesmen-
ram filhos dos ibouam, ixáu dos gêge e dos te “africanos”. Mas, curiosamente, ao longo
cambindas”.19 de todos os textos publicados pelo cronista
Decerto estava se referindo a diferentes no período, em nenhum outro momento os
grupos étnicos da África Ocidental, que ha- homens e as mulheres africanos são iden-
bitavam regiões no que hoje é o sudoeste da tificados por aqueles subgrupos. Não há
Nigéria e o sudeste da República do Benim. tampouco quaisquer menções a eles como
Até a década de 1830, os grupos que viviam indivíduos iorubás ou nagôs. Como então se
nessas áreas – como os abinus, auoris, egba- identificavam aqueles homens e mulheres
dos egbás, equitis, ibarapas, ibolas, ifés, ifo- procedentes da África?
ninis, igbominas, ijexás, ilajes, oiós, ondos, Segundo o jornalista da Gazeta, todos
quetos – não se consideravam como iorubás. eles falavam entre si um idioma comum: o
Até então esse era o nome pelo qual os haus- eubá. Como destacara seu guia Antônio, que
sás referiam-se aos oiós, seus vizinhos do havia estudado em Lagos, o eubá era para os
sul.20 Segundo Robin Law, talvez tenha sido africanos o que o inglês era para os “povos
em 1832, com a publicação do livro de J. Ra- civilizados”. Quem conhecia essa língua afri-
ban, A vocabulary of the Eyo, or Aku, a dia- cana podia “atravessar a África e viver en-
lect of Western Africa, que o termo iorubá foi tre os pretos do Rio”.21 Certamente o termo
usado pela primeira vez para designar gru- eubá era uma corruptela do termo iorubá,
pos que falavam variantes do mesmo idioma, ou uma interpretação do que ouvira João do
adoravam os mesmos deuses e tinham uma Rio. De acordo com Nina Rodrigues, na Bah-
cultura bem semelhante (LAW, 1973, p. 208; ia, muitos dos nomes de “nações africanas”
SILVA, 2002, p. 532-533). Também no iní- eram deformados. Era o caso, por exemplo,
cio dos anos 30, na colônia de Serra Leoa, os da palavra Egbá. Muitos negros não pro-
oios, egbás, ibarapas, ijebus e ijexás que ali nunciavam o g. Assim, era comum encon-
se instalaram passaram a ser identificados trar documentos que falavam em negros de
pelos missionários ingleses como iorubas Ebá ou simplesmente de Bá (RODRIGUES,
(SILVA, 2002; REIS, 2003, p. 336). 1988, p. 102-103). É bem provável que algo
Quando retornamos às descrições de semelhante tenha ocorrido com os negros do
João do Rio, inferimos que, no Rio de Janei- Rio. No Grande dicionário da língua por-
ro do início do século XX, ainda havia africa- tuguesa de Antônio de Morais Silva, o eubá
nos ocidentais que se identificavam a partir é identificado como “o nome duma língua
muito falada pelos negros do Rio, que deriva
ver: FARIAS, 2010.
19 João do Rio, “No mundo do feitiço/ Os feiticei- do egbá, nome do povo africano”, “tribo de
ros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de 1904, p. 2.
20 Segundo Reis (2003) “os escravos de Oió, boa 21 João do Rio, “No mundo dos feitiços: Os feiti-
parte deles empregados na famosa cavalaria do ceiros”. Gazeta de Notícias, em 9 de março de
reino, eram principalmente de origem nortista. 1904, p.2.

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De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

indígenas da África ocidental inglesa” (SIL- procedência que os minas que encontramos
VA, 1945, p. 212, 956). Embora, numa reedi- no Rio de Janeiro em tempos pretéritos?
ção da obra no início do século XX, recorra Em primeiro lugar, é preciso ressaltar
ao relato de João do Rio para exemplificar que nem todos os africanos ocidentais que
a utilização do termo, Silva acrescenta que chegaram à cidade do Rio, especialmente
a língua era falada por um grupo étnico es- após o fim do tráfico atlântico, eram nagôs
pecífico, os egbás de Abeokutá, também ge- saídos da Bahia. Ao longo do oitocentos,
nericamente identificados como iorubás, ou chegando até as primeiras décadas do sécu-
como nagôs em Salvador. lo XX, levas de migrantes, incluindo africa-
Em suas crônicas, o jornalista carioca nos e seus descendentes, sairiam da capital
poucas vezes fala diretamente em africanos baiana para aportar no Rio de Janeiro. Mas
mina. Contudo, analisando seus artigos em eles não eram as únicas lideranças religio-
conjunto, é possível concluir que se trata- sas, culturais e políticas da comunidade ne-
va efetivamente de homens e mulheres da gra conhecida como Pequena África. Pelo
Costa Mina. Em todas as chamadas publi- menos é o que se depreende das descrições
cadas na Gazeta no período em que saíram de João do Rio, de alguns registros judiciá-
as reportagens sobre as religiões africanas, rios do período e mesmo a partir de alguns
os textos foram anunciados como regis- depoimentos colhidos por Roberto Moura. 23
tros de incursões e descrições das religiões Em nenhum momento, João do Rio afir-
dos mina. Não sabemos se as notas foram ma que os africanos e crioulos encontrados
redigidas pelo próprio João do Rio, já que naquele início do século XX eram originários
não há qualquer indicação nesse sentido.
da Bahia. Por que, então, tantos estudiosos
De todo modo, em 10 de março, depois da
concluem que os líderes muçulmanos e cul-
publicação da primeira reportagem sobre o
tores dos orixás, muitos dos quais descritos
mundo dos feitiços, o periódico informava
pelo repórter carioca, teriam sido levados de
que continuaria a falar dos “negros minas”,
Salvador para o Rio de Janeiro?24 De fato,
descrevendo as “yauôs”, ou filhas-de-santo.
Cinco dias depois, corrigia alguns equívo- crevendo Os novos feitiços de Sanim, revelados
pelo negro na casinhola de Ojô”. Gazeta de No-
cos mencionados no dia anterior, na crônica tícias, 28 de março de 1904, p. 1. Ver ainda a Ga-
“No mundo dos feitiços/Os feiticeiros”. Em zeta dos dias 10, 13, 19 e 20 de março de 1904.
uma pequena nota destacavam que, como 23 Não obstante a importância e o pioneirismo do
trabalho de Moura (1995), nos parece que, em
os “minas têm apelidos muitos parecidos”, sua análise, os baianos, e somente eles, são os
era compreensível que fizessem uma certa únicos responsáveis pelo florescimento de uma
confusão com o nome de alguns “feiticei- “cultura negra no Rio de Janeiro”. Isso por certo
ocorreu em função dos depoimentos orais co-
ros”. No mesmo texto, o redator indicava lhidos (muitos dos quais de filhos e outros des-
ainda que, na véspera, havia chegado à ci- cendentes de baianos das primeiras décadas do
dade o africano Sanim, um “mina horrendo, século XX).
24 Alberto da Costa e Silva (2003, p. 182) assinala
feiticeiro convicto, que traz mulheres e no- que o Conde de Gobineau descreveu em seu rela-
vos feitiços”22. Mas esse grupo teria a mesma tório, em 1869, que todos os africanos minas do
Rio eram muçulmanos, e muitos deles haviam
22 Cf. Gazeta de Notícias, 15 de março de 1904, p. migrado de Salvador para a Corte. “Quarenta
1. Em 28 de março, sai uma nova nota, agora anos mais tarde”, completa Silva, “João do Rio
informando que, como eram muitos os pedidos confirmaria a informação de Gobineau: muitos
para que se descrevessem os feitiços dos “negros dos moslins do Rio provinham da Bahia”. Nas
minas”, João do Rio daria, no dia seguinte, um crônicas publicadas por João do Rio em 1904,
novo artigo sobre o mundo dos feitiços, “des- não há qualquer referência direta à origem baia-

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Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

ainda que indiretamente, é possível perceber Papagaio, que tem dois filhos doutores e
a presença baiana nas entrelinhas de suas mora num sobrado com escadas adaptadas
reportagens. Quando flanava por uma “rua e cheias de varas de metal, reluzentes como
sossegada” do centro da cidade, numa tarde ouro”.27 Afora essas evidências esparsas,
de junho de 1904, encontrou o “fiel e dedi- somente o fato dos africanos descritos por
cado Antônio”, que andava desaparecido há João do Rio serem iorubás poderia nos levar
dois meses. João do Rio aceitou o convite de a supor que todos teriam saído de Salvador,
seu guia, que o chamara para participar dos já que ali conformavam um grupo majoritá-
festejos juninos que se realizariam na casa rio no conjunto dos africanos da cidade.
do Galiza Vavá, experiência mais tarde des- Contudo, entre os “feiticeiros”, alufás,
crita na crônica S. João entre os africanos, pais e mães-de-santo descritos pelo repórter
publicada pela Gazeta no dia 25 de junho de da Gazeta, encontramos alguns que parti-
1904. Ali soubera que os “negros africanos ram de Lagos diretamente para o Rio de Ja-
trouxeram das nações a que pertencem todo neiro. Em março de 1904 o jornal publicou
o aparato místico da sua ingênua [sic] força uma pequena biografia e um retrato do afri-
religiosa”. Além disso, constatou – não sem cano Emanuel Ojô, atendendo aos apelos dos
um certo espanto – que em seus candomb- ávidos e curiosos leitores que vinham acom-
lés celebravam tanto S. João, como S. Pedro panhando no mesmo periódico os artigos de
e o 2 de julho25. Ora, 2 de julho era a data João do Rio sobre os feiticeiros da cidade28.
em que se comemora, na Bahia, a indepen- Reconhecido como o “chefe de uma espécie
dência do Brasil (ALBUQUERQUE, 2002, de maçonaria geral dos negros”, o “consultor
p. 157-203). Isso evidencia que os baianos técnico dos pretos” da cidade do Rio, o afri-
estavam, de alguma forma, nessas celebra- cano, segundo o relato do jornal, era filho de
ções, influenciando não só suas práticas e ri- relojoeiro na África, “mais ou menos rico”,
tuais, como também o calendário festivo das mas gastava muito, além de ter muitas mu-
casas de culto.26
Sem contar que alguns africanos recor- 27 João do Rio, “Negros ricos”. Gazeta de Notícias,
davam, nas conversas com o cronista, de 13 de maio de 1905, p. 3. Segundo Nina Rodri-
gues, no final do século XIX, o lemano – líder
amigos, festas e outras celebrações que co- dos negros muçulmanos em Salvador – era o
nheciam da Bahia. O alufá Júlio Ganam não nagô Luís, que morava à rua da Alegria, 3, no
Barris. Sua casa funcionava também como “igre-
esquecia dos “negros ricos” da Bahia. Lá os
ja maometana”, que era constituída por uma sala
africanos ganhavam muito: “com mais de interna destinada aos ofícios e atos divinos. Ali
200 contos, o lemano Luiz dos Barris, o Xa- reuniam-se os malês da cidade. Rodrigues nada
fala de sua “fortuna”, apenas registra que ele ti-
by-Ganam que vende pão no mercado, o tio nha muitos filhos e era casado com um “negra
Amando, a tia Adissa Lucrecia, a Joaquina crioula de mais de 30 anos, que esteve por algum
tempo no Rio de Janeiro, onde se converteu ao
na dos líderes religiosos muçulmanos. islamismo” (p. 62-63).
25 João do Rio “S. João entre os africanos”. Gazeta 28 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os Feiticei-
de Notícias, 25 de junho de 1904, p.1. ros”, Gazeta de Notícias, 20 de março de 1904,
26 Em outra crônica, publicada em dezembro do p. 05. Os textos não são assinados, mas, se não
mesmo ano, João do Rio destacaria ainda que, foram escritos por João do Rio, certamente ti-
no período das festas natalinas, as comemora- veram alguma participação do jornalista, já que
ções começavam no dia 15 de dezembro e só ter- os três biografados são personagens abordados,
minavam em 13 de janeiro, quando se celebrava com freqüência, em seus artigos. Além disso, os
Nosso Senhor do Bonfim, uma festa tipicamente ácidos e preconceituosos comentários presentes
baiana. Cf. João do Rio “O natal dos africanos”. na “galeria de feiticeiros” são bem similares aos
Kosmos, dezembro de 1904. que encontramos nos textos de João do Rio.

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De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX

lheres. Era um “preto elegante”, que anda- ser conhecido em Lagos, que desde 1851 era
va sempre a cavalo. Como podemos ver em controlada pela Grã-Bretanha – não acredi-
seu retrato, publicado junto ao texto, as es- tava muito nos feitiços, inclusive os temia
carificações marcadas em seu rosto, típicas muito, mas no Brasil aprendeu o alicuri dos
dos iorubás, evidenciavam sua filiação étni- alufás. Em sua casa, “quase no começo da
ca. Esses sinais, também conhecidos como rua dos Andradas”, reuniam-se os feiticeiros
alajas, eram feitos na infância com lâminas da cidade, resolviam-se as contendas, escre-
muito afiadas, manipuladas por especia- viam-se as cartas e ainda se “decidia quem
listas geralmente devotos de Ogum (REIS, devia morrer”. Sempre na porta do hotel e
2003, p. 311 – 313). Em sua terral natal, restaurante Globo, bem próximo à sua re-
“quando o cobre diminuiu”, Ojô teria come- sidência, ali mesmo ele tomava as decisões
çado a trabalhar “na estiva”. Como nenhum nos momentos de perigo; recebia os africa-
parente seu, “rei de uma tribo do interior, nos recém-chegados, como o negro Sanim,
rei dos Ifé”, conseguisse minorar as agruras um feiticeiro mina que chegara de Lagos em
daquele trabalho, ele decidiu partir para o março de 1904, e ficara hospedado em sua
Brasil. O periódico não fornece maiores ex- casa; e ainda facilitava o estabelecimento de
plicações sobre as circunstâncias em que ele seus patrícios em alguma atividade na ci-
realizara essa longa travessia, mas algumas dade, como ocorrera com Abubaca Caolho,
indicações apresentadas ao longo do texto que também nascera em Lagos, e com seu
nos permitem lançar algumas conjeturas. A auxílio, firmara-se como “feiticeiro”. Diante
se crer nas informações fornecidas pelo jor- de tantos atributos, o redator da Gazeta de
nal, ele residira durante algum período em Notícias não vacilou e afirmou que todos os
Lagos, mas seus parentes eram da cidade de africanos, “feiticeiros” e alufás do Rio, res-
Ifé, a cidade sagrada dos iorubás. Assim, in- peitavam Emmanuel Ojô e diziam-se seus
ferimos que Ojô era um iorubá, que conhe- parentes.30
cia os “candomblés de Lagos” (assim cha- Ainda que não tenhamos como aferir a
mados no texto) e provinha de uma família exata procedência dos “mil negros” e outros
prestigiosa da África Ocidental.29 Mas como mais africanos ocidentais que viviam no Rio,
e porque veio para o Brasil continuam sendo podemos concluir, partindo dos relatos de
um mistério. João do Rio e de outros registros das primei-
De qualquer maneira, no Rio de Janei- ras décadas do século XX – como periódicos
ro, ainda segundo indicações do periódico e processos criminais – que esses africanos
e também de acordo com algumas obser- eram originários de vários grupos e reinos
vações registradas por João do Rio, rapida- iorubás, como Egbá e Ifé, e, especialmente,
mente conquistara prestígio entre a comuni- da cidade de Lagos. Certamente havia ainda
dade de africanos e seus descendentes. Ojô, entre eles nagôs, e quem sabe tapas, haussás
“que entre os ingleses é simplesmente Sch- 30 Cf. “No mundo dos feitiços/Os feiticeiros”, Ga-
midt” – um outro nome pelo qual ele devia zeta de Notícias, Domingo, 20 de março de
1904, p. 05. Gazeta de Notícias, Domingo, 13 de
29 Na festa de São João a que compareceu no can- março de 1904, p. 02; Gazeta de Notícias, Ter-
domblé do Galiza Vavá, na rua Barão de São Fé- ça-feira, 15 de março de 1904, p. 01. De João do
lix, Ojô, “todo de branco”, falava dos “candom- Rio, ver especialmente as crônicas: “No mundo
blés de Lagos, das peças de ouro e referia-se com do feitiço/Os feiticeiros”, Gazeta de Notícias,
ódio aos pretos que fazem fortuna”. João do Rio, 09 de março de 1904, p. 02; e “Os novos feitiços
“S. João entre os africanos”. Gazeta de Notícias, de Sanin”, Gazeta de Notícias, Domingo, 29 de
25 de junho de 1904, p.1. março de 1904, p. 04.

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Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares

ou calabar, saídos de Salvador. Mas, aqui, to orixás como alufás achavam-se “relacio-
acabariam todos sendo genericamente co- nados pela língua, com costumes exteriores
nhecidos como minas. mais ou menos idênticos e vivendo da feiti-
E se a língua iorubá os unia, a crença çaria”.33 São muitas as referências feitas pelo
escolhida por cada um deles, por vezes, po- jornalista à presença desses dois grupos em
dia separá-los. Segundo João do Rio, os ne- diferentes cerimônias e festejos realizados
gros africanos dividiam-se, no Rio, em duas pelos africanos e seus descendentes. Nas
grandes crenças: “os orixás e os alufás”. Por comemorações natalinas dos africanos, por
orixás, designava aqueles que, em grande exemplo, que começavam em 15 de dezem-
número, cultuavam os orixás africanos. Já bro e só terminavam em 13 de janeiro, com
os alufás tinham um rito diverso. Consul- “a apoteose do Senhor do Bonfim”, os africa-
tando o glossário de termos muçulmanos e nos, “divididos em orixás e mulsumins, jun-
africanos, anexado ao estudo de Reis, vemos tavam-se nesses candomblés formidáveis”.34
que o alufá era um mestre malê, um clérigo, E não era apenas nesses momentos festivos
segundo a versão em iorubá para o termo que se encontravam.
sudanês-ocidental alfa. Significava ainda o Tantos os filhos de Alá quanto os filhos
mesmo que mu’allim (em árabe), marabout dos orixás viviam da “feitiçaria”. Desde pelo
ou alim (REIS, 2003, p. 605). O jornalista menos a década de 1830, os minas eram
usa a expressão indiscriminadamente, para reconhecidos nas comunidades negras ur-
designar tanto os líderes e mestres muçul- banas como feiticeiros, célebres e mágicos
manos, como outros fiéis e seguidores de adivinhos (GOMES; SOARES 2001). No al-
Alá. Em dois momentos, fala em mussul- vorecer do século XX, João do Rio diria que,
mi, que, segundo ele, viria do “árabe mes- enquanto os orixás faziam sacrifícios, afo-
lemonn” e designava “o homem consagrado gavam os santos em sangue, davam-lhes co-
aa Deus”.31 Ainda de acordo com Reis, mu- mida, enfeites e azeite-de-dendê, os alufás,
sulmi era o termo haussá que identificava os “apesar da proibição da crença, usam do ali-
muçulmanos. genum, espíritos diabólicos chamados para
Além disso, o cronista da Gazeta afir- o bem e o mal, num livro de sortes, marca-
ma que os alufás não gostavam da “gente do com tinta vermelha e alguns, os maiores,
de santo”, a que chamavam de “auadudó- como Alikali, fazem até idams ou as grandes
mágicas, em que a uma palavra cabalística
chum”. Os orixás, por sua vez, desprezavam
a chuva deixa de cair e obis aparecem em
“os bichos [sic] que não comem porco, tra-
pratos vazios”.35 Nina Rodrigues também
tando-os de malés”. Não sabemos ao certo
se João do Rio queria, na verdade, dizer ma- 33 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os fei-
ticeiros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de
lês, já que, analisando em conjunto os tex-
1904, p. 2.
tos do cronista, esta é a primeira e única vez 34 João do Rio, “O natal dos africanos”. Kosmos,
em que faz referência ao termo. E malê era dezembro/1904.
35 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os feiticei-
justamente a forma como eram chamados ros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de 1904,
os africanos iorubás islamizados.32 De qual- p. 2. O padre Etienne Brazil, um “anti-islamita
quer forma, mesmo com esses conflitos, tan- militante”, nas palavras de João Reis, em artigo
publicado em 1909, apesar de apontar muitos
31 João do Rio, “Negros ricos”. Gazeta de Notícias, “erros” nos registros de João do Rio sobre os
13 de maio de 1905, p. 3. muçulmanos, concorda com ele nesse ponto. Se-
32 (REIS, 2003, p. 606). Malê vem do iorubá ìmále gundo Brazil, os alufás da Capital Federal, não
ou ìmòle. obstante a terminante proibição do Alcorão, se

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observou que, no final do século XIX, os quais correspondiam um território e uma lín-
negros baianos consideravam os malês “co- gua) e também dos calabares (nome de um
nhecedores de altos processos mágicos e fei- porto por onde saíram escravos de diferen-
ticeiros” (RODRIGUES, 1935, p. 29). tes etnias e línguas) e que constituíram um
Observamos assim que, apesar de algu- grupo minoritário, mas importante no Rio de
mas divergências quanto à crença escolhida, Janeiro (BEZERRA, 2010).
parte dos “mil negros” descritos por João do É preciso então ter em mente que a com-
Rio, especialmente aqueles que ficaram co- posição da população africana residente na
nhecidos como minas, reconheciam-se como cidade do Rio de Janeiro ao longo dos sécu-
“parentes étnicos”. Além de falarem entre los combinou variáveis diversas, tais como
si uma mesma língua, o iorubá, reuniam-se diferentes territórios, alvos do comércio de
em torno de práticas culturais e religiosas co- escravos na África, diferentes línguas fala-
muns, recriando muito do que, desde meados das nos territórios atingidos, grupos étnicos
do oitocentos, outros minas vivenciavam na que sofreram mudanças ao longo do tempo,
cidade. Além disso, não experimentavam um incluindo misturas, migrações, etc. Essas
absoluto exclusivismo étnico. Suas casas, fes- estratégias de recomposição social são re-
tas e cerimônias religiosas estavam “cheias conhecidas na África e a noção de etnicida-
de baianos e mulatos”. E, como vimos, conta- de já supõe ela mesma esses rearranjos. A
vam com forte companheirismo e solidarie- prática de intercasamentos (seja por língua,
dade. Quando algum conterrâneo chegava à localidade, grupo étnico ou outros) é reco-
cidade, logo encontrava abrigo entre os seus. nhecidamente um mecanismo privilegiado
Se estava difícil conseguir uma vaga de car- de conexão entre grupos e esta estratégia
regador no porto, logo um patrício tratava de foi largamente utilizada na África e também
lhe arranjar “alguma colocação”, de preferên- no Rio de Janeiro.36 Portanto, a questão que
cia na “feitiçaria”. efetivamente diferencia os rearranjos étni-
Assim, partimos do pressuposto que a cos na África e no Brasil dizem respeito, em
identidade mina resulta da construção de primeiro lugar, às dimensões das popula-
uma identidade de nação (a nação mina) ba- ções envolvidas, e, em segundo, à impossibi-
seada numa procedência comum, a Costa da lidade de constituir, no Brasil, um território
Mina, que então abarcava o litoral da costa que desse estabilidade ao grupo e, por fim,
ocidental africana que corresponde hoje à à pressão do Estado no sentido de evitar a
costa de Gana, Togo Benim e Nigéria, se pro- formação de grupos de descendência com
longando para o interior algumas vezes até os identidade própria. Os filhos dos africanos
limites do Sahel. No século XVIII eles proce- nascidos no Brasil eram chamados “criou-
diam majoritariamente de áreas de povos de los”. Tal designação impedia a reprodução
línguas gbe, enquanto no século XIX, a escra- da identidade “mina” nas gerações nascidas
vização se desloca, e os escravos que chegam no Brasil, funcionando como um impedi-
ao Rio de Janeiro correspondem a territórios mento à constituição de um grupo que tives-
mais a leste, onde predominava o uso da lín- se a estabilidade necessária para ao longo do
gua iorubá. Ao lado deles, existiam escravos tempo se reinventar como um grupo étnico.
vindos de outras áreas, como os haussas (aos 36 Para uma análise das estratégias matrimoniais
de africanos no Rio de Janeiro no século XVIII,
entregavam à magia e ao fetichismo. Cf. BRA- ver: Soares, 2000. Para o oitocentos, ver: FA-
ZIL, 1909, p. 79. RIAS, 2012; 2013.

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