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Yi-Fu Tuan Kspaco e@ Lugar A Perspectiva da Experiéncia Tradugao de Livia de Oliveira (Professora-Adjunta do Departamento de Geografia do Instituto de Geociéncias e Ciéncias Exatas da UNESP — Campus de Rio Claro) mo] DIFEL Ditvebo Eta SA s BAS BC/BIBLIVI ELA UE uitwuia c seunyivoin ; * 3S Lrvpapia € O1STRIBUIDORA CURITIBA LTDA BS ors 4,080.00 “SF Terma No.801/93 Registro:212, 901 04/10/33 BN 000 2 1364? ‘Titulo Original: - Space and Place: The Perspective of Experience fiw Copyright © 1977 by the University of Minnesota 23 Capa: Natanael L. de Oliveira CIP-Brasil. Catalogagao-na-Publicagao CAmara Brasileira do Livro, SP Tuan, Yi-Fu, 1930- ‘Te20 Espago ¢ lugar : a perspectiva da experi tradugao de Livia de Oliveira. — Si Paulo: 1, Espago — Percepyao 2. Percepgdo geogrifica |. CDD-153.752 83-0697 -155.96 Indices para catélogo sistematico: 1. Espaco : Influéncias : Psicologia 155.96 2. Bspago : Percepyao humana ; Psicologia 153.752 3. Homem : Percepgto do espago : Psicologia 153.752 4, Lugares : Imagens mnentais : Psicologia 155.96 5. Percepeo geogrifica : Psicologia 155.96 1983 Direitos de tradugo reservados para o Brasil por: 5) DIFEL Sede: Av. Vieira de Carvajho, 40 — 5? andar CEP 01210 — Sao Paulo — SP Telex: 32294 DFEL-BR Tels.; 223-6923 ¢ 223-4619 Vendas: Rua Doze de Setembro, 1.305 — V. Guilherme CEP 02052 — Sao Paulo — SP Tel.: 267-0331 JRRUSNESSSENENNN NEEM Prefacio vida: um livro se origina de outro assim como, na esfera do compromisso politico, uma aco conduz a outra. Escrevi um livro intitulado Topofilia premido pela necessidade de separar e ordenar de alguma maneira a ampla variedade de atitudes e valores relacionados com o meio ambiente fisico do homem. Embora apreciasse observar a riqueza ¢ a amplitude da experiéncia | do homem.com-o-meiouinbienté, nao pude nessa época encontrar um tema ou conceito abrangente com o qual estruturar 0 A vida das idéias é uma est6ria continua, como a propria u heterogéneo material; e, portanto, mui- rer a categorias convenientes e conven- cionais (como subiirbio, vila, cidade, ou tratar separada- mente os sentidos humanos) em vez de usar categorias que evoluissem logicamente de um tema central. Neste livro pro- curo alcangar uma posigéo mais coerente. Para tanto re- duzi meu enfoque para “espaco” e “lugar” enquanio ele- mentos do meio ambiente, intimamente relacionados. Ainda mais importante, procurei desenvolver_meu_ material-detma unica perspectiva ==-a_da_experiéncia. A_complexa_natu- réza da experiéncia humana, que varia do sentimento prim4- tio até a concep¢ao explicita, orienta o contetido e os temas deste livro. Pe 4 OAM ee VO Ce ee eve 2 G. an a ees ~<—wvevveve Prefacio Freqiicntemente, tem-me sido dificil o devido reconheci- mento das obrigacdes intelectuais. Uma raz4o é que devo tanto a tantos. Um problema ainda maior é que posso deixar de agradecer as pessoas a quem devo mais. Eu as “‘devorci’’! Suas idéias se transformaram em meus pensamentos mais profundos. Os meus mentores andnimos sao os estudantes e colegas da Universidade de Minnesota. Confio que eles sejam indulgentes com qualquer apropriag4o inconsciente de seus insights, e todos os professores sabem que esta é a forma mais sincera de reconhecimento, Tenho, também, agradecimentos especificos e 6 com pra- zer que os fago. Sou profundamente grato a J. B. Jackson ¢ P. W. Porter por terem encorajado meus esfor¢os iniciais; a Su-chang Wang, Sandra Haas ¢ Patricia Burwell pelos dia- gramas que atingiram a elegfncia formal que em meu texto ficou apenas no nivel da inten¢io; e a Dorian Kottler da University Press pelo meticuloso trabalho.de revisio. Desejo, também, agradecer As seguintes instituigdes pelos recursos que me permitiram trabalhar no Espago e Lugar, com peque- nas interrupgdcs, nos dois tltimos anos: 4 Universidade de Minnesota, por conceder-me a licenca para viagem de estu- dos, seguida de mais um ano de afastamento; A Universidade do Havai, onde pela primeira vez explorci os temas deste livro, com um pequeno grupo de estudantes de pés-graduagao, inte- ressados no assunto; A Fundac&o Educacional Australiano- Americana (Programa Fulbright-Hays), por me ter possibili- tado uma visita A Australia; ao Departamento de Geografia Humana, da Universidade Nacional da Australia, por ter me propiciado um anibiente agradavel e estimulaute para pensar e escrever; e A Universidade da Calif6rnia, em Davis, por um ano de sol e calor, tanto humano como climatico. Yi-Fu Tuan Ano Novo Chinés, 1977. Sumario Preficio V Hlustragdes IX 1 Introdugao 3 2. PerspectivaExperiencial 9 6° Espaco, LugareaCrianga 22 4 Corpo, Relacées Pessoais e Valores Espaciais 39 5 6 7 8 ‘5 Espaciosidade e Apinhamento 58 4 ; Habilidade Espacial, Conhecimento ¢ Lugar 76 ; ) Espago Mitico e Ligar 96 8 Espaco Arquiteténico e Conhecimento 113 9 ‘Tempo no Espaco Experiencial 132 * Experiéncias Intimas com Lugar 151 Afeigdo pela Patria 165 Visibilidade: A Criagto de Lugar 179 13 Tempo e Lugar 198 14 Epilogo 220 Notas 227 en PN ORS It. 17. 18. 19, ILUSTRACOES . Espago definido como localizagao relativa e como espaco demarcado. Mapas do mundo dos Aivilik. . A estrutura do corpo humano, espago e tempo. “Centro” sugere “elevacio” e vice-versa: 0 exemplo de Pequim. Organizagoes egocéntricas ¢ etnocéntricas do espago. De espago a lugar: a aprendizagem de um labirinto. Distorgdes nos labirintos desenhados. Etak — navegagao celeste microné: Concepcao do espaco como Iugar-repleto (oceano Paci- fico) de Tupai . Espacos mitico-conceituais. 10. Cosmos ptolomaico. Casas com patios internos: 0 grande contraste entre o “interior” e 0 “exterior”. . Oyurt mongole o pantedio de Adriano: o-domo simbélico e suas expressdes arquitet6nicas. . A casa como cosmos ¢ mundo social: 0 exemplo da casa dos Atoni no Timor indonésio. . Acampamento pigmeu: a separagio do espaco social e sagrado. . Espago e tempo dos Hopi: os reinos subjetivo e objetivo. . Mito cosmogdnico e espaco orientado: viagens mitol6- gicas dos herdis ancestrais dos Walbiri na Australia cen- tral. Espaco sagrado simétrico (Ming T’ang) e Cidade do Ho- mem assimétrica. O lugar como um simbolo piiblico nitidamente visivel: as places royales de Paris, segundo o plano de M. Patte. Lugares duradouros: rochedo de Ayers e Stonehenge. ‘ oe ae eee & Ge Oe ECRMABEEAELECEES \ vey ~+-+eevvrvevyey 20. 21. 22. Aldeias, cidades comerciais ¢ areas comerciais: lugares visiveis e “‘invisiveis”. Movimento, tempo e lugar: a. caminhos e lugares linea- res; b. caminhos e lugares ciclicos/pendulares. Os anéis de crescimento (tempo) das muralhas de Paris. Espago e Lugar A Perspectiva da Experiéncia 1 Introducao Ge 6 spaco" e ‘‘lugar'’ so termos familiares que indi- FE: cam experiéncias comuns. Vivemos no espaco. Nao ha lugar para outro edificio no lote. As Grandes Planicies do a sensaco de espaciosidade. O lugar é seguranga eo espaco é liberdade: estamos ligados ao _primeiro-e_deseja- mos 0 outro, Nao hé lugar como o lar. O que é lar? fia velha isa, Ovelho bairro, avelha cidade ou a patria .Os gebgrafos luda os fugares. Os planejadores gostam de evocar “um sen- tido de lugar”. Estas so expresses comuns. Tempo e lugar siio componentes bAsicos do mundo. vivo,.nés_os ad: Quando, no entanto, pensamos sobre eles, po- dem assumir significados inesperados e levantam questdes que nao nos ocorreria indagar. Que é espago? Vejamos um episédio, da vida do tedlogo Paul Tillich que serviré de enfoque A questao sobre o signi- ficado do espago na experiéncia. Tillich nasceu e cresceu em uma pequena cidade da Alemanha Oriental em fins do século passado. A cidade tinha caracteristicas medievais, Circun- dada por uma muralha e administrada do edificio da prefei- tura municipal construido na Idade Média, dava a impressio de um pequeno mundo, protegido e auto-suficiente. A uma crianga imaginativa, a cidade pareceria estreita e limitadora. 3 wu ~~~ veervvrvvv Fey Introdugao Todos os anos, no entanto, o jovem Tillich podia escapar com sua familia para o mar Baltico. A viagem para 0 litoral — 0 espaco aberto e o horizonte sem limites — era um grande acontecimento, Mais tarde Tillich elegeu um lugar no oceano Atlantico para viver apés a aposentadoria, deciséo esta que sem dtvida deve muito as experiéncias da juventude. Quando crianga, Tillich também péde escapar as limitagdes da vida de uma cidade pequena fazendo viagens a Berlim. As visitas 4 grande cidade curiosamente Ihe'lembravam o mar. Berlim, também, deu a Tillich a sensacdo de amplidao, de infinito, de espaco sem limitagdes.' Experiéncias deste tipo nos levam noyamente a refletir sobre o significado de uma palavra como “espago” ou “espaciosidade”, que pensamos conhecer bem. Que é um lugar? O que da identidade ¢ aura a um lugar? Estas perguntas ocorreram aos fisicos Niels Bohr e Werner Heisenberg quando visitaram o castelo de Kronberg na Dina- marca. Bohr disse a Heisenberg: Nao & interessante como este castelo muda to logo a gente imagina que Hamlet viveu aqui? Como cientistas, acreditamos que um castelo consiste s6 em pedras, ¢ admiramos a forma como o arquiteto as ordeneu. As pedras, © teto verde com a piitina, os entalhes de madeira na igteja constituem o castelo todo. Nada disto deveria mudar pelo fato de que Hamlet morou aqui ¢, no entanto, muda completamente. De repente os muros ¢ os baluartes falam uma linguagem bem diferente. O proprio patio se transforma em um mundo, um canto escuro nos lembra a escuridao da alma humana, e escu- tamos Hamlet: "Ser ou nfo ser”, No entanto tudo o que realmente sabemos sobre Hamlet 6 que seu nome aparece em uma crénica do século XIII. Ninguém poder provar que ele realmente existiu, e menos ainda que aqui viveu. Mas todo mundo conhece as questdes que Shakespeare o fez, per- guntar, a profundeza humana que foi seu destino trazer A luz; assim, teve também que encontrar para si um lugar na Terra, aqui em Kronberg. Uma ver. que sabemos disto, Kronberg se forna, para nés, um eastelo bem dif rente.’ Estudos etolégicos recentes mostram que animais nao humanos também tém um sentido de territério e lugar. Os espacos sao demarcados e defendidos contra os invasores. Os lugares sao centros aos quais atribuimos valor e onde s&o satisfeitas as necessidades biolégicas de comida, Agua, des- canso e procriagdo. Os homens compartilham com outros ani- Introdugao mais certos padrdes de comportamento, mas como indicam as reflexdes de Tillich e Bohr, as pessoas também respandem_ao ago € ao lugar de maneiras. _complicadas, que.ndo.se.conce- bem no reino ‘animal, Como é possivel que tanto o mar Baltico como Berlim évoqiiem uma sensagAo de vastidao e infinito? Como é possivel que uma simples lenda assombre 0 castelo de Kronberg e transmita uma sensac¢do que permeia as mentes de dois cientistas famosos? Se ha seriedade em nossa preocu- pagdo com a natureza e qualidade do meio ambiente humano, estas s4o, certamente, perguntas basicas. Entretanto, poucas vezes clas tém sido levantadas. Ao contrdrio, estudamos ani- mais, como, por exemplo, ratos ¢ lobos, e dizemos que o comportamento humano e os seus valores so bem parecidos com os deles. Ou medimos_¢ mapeamos 0 espago e lugar, € adquirimos leis espaciais e inven’ ‘Arios de OSSOS~ eSfOTKO: Estas sio abor dagens | precisam ser_complenientad: 5s Somos, humanos. Temos 0 privilégio de acesso a ¢ dos de espirito, pensamentos € sentimentos. Temos a visio do interior dos fatos humanos, uma asserg’o que n&o podemos fazer a respeito de outros tipos de fatos. As pessoas as vezes se comportam como animais encur- ralados e desconfiados. Outras vezes também podem agir como cientistas frios dedicados a tarefa de formular leis e mapear recursos. Nenhuma das duas atitudes dura muito. As pessoas sao seres complexos. Os dotes humanos incluem 6r- gios sensoriais semelhantes aos de outros primatas, mas so coroados por uma capacidade excepcionalmente refinada para a criag&o de simbolos. Saber como o ser humano, que est4 ao mesmo tempo no plano do animal, da fantasia e do calculo, experiencia e entende o mundo é 0 tema central deste livro. Considerando os dotes humanos, de que maneira as pes- soas_atribuem significado e organizam 0 espago e 0 lugar? Quando se faz esta pergunta, o cientista social tentado a ver acultura como um fator explicativo. A cultura 6 desenvolvida unicamente pelos seres humanos. Ela influencia intensamente Introdugao 0 comportamento e os valores humanos. A sensa¢Ho de espaco e lugar dos esquimés é bem diferente aa dos americanos. Esta abordagem é valida, mas nao leva em conta o problema dos tragos comuns, que transcendem as particularidades culturais €, port t ¢fo_humana. Na observacio dos anto, refletem “universais”, ‘a comportamental provavelmente se volta para o comportamento andlogo do primata. Neste tra- balho, reconhecemos nossa heranca animal, bem como a im- portancia desempenhada pela cultura. A cultura é inevitavel, sendo explorada em todos os capitulos. Mas o propésito deste ensaio no é escrever um manual sobre a influéncia das cul- turas nas atitudes humanas em relagio a espaco e lugar. B antes um prélogo & cultura em sua infinita diversidade; e eintrelagaiin: 38 bidlégicos. As criangas tém apenas nogées muito grosseiras sobre espaco e lugar. Com o tempo adqui- rem sofisticagio. Quais so os estégios da aprendizagem? O corpo humano ou esta deitado, ou ereto. Em posigio ereta tem alto e baixo, frente e costas, direita e esquerda. Como estas posturas corporais, divisdes e valores sao extrapolados para o espago circundante? 2) As relagdes de espago e lugar. Na experiéncia, o signi- ficado de espago freqiientemente se funde com o de lugar. “Bspago” € mais abstrato do que “lugar”. O que comega como espaco indiferenciado transforma-se.em_lugar A medida que.o.conhecemos melhor ¢ 0 dotamos.de.yalor. Os arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lugar; podem igual- mente falar das qualidades locacionais do espago. As idéias de “espago” e “lugar” nfo podem ser definidas uma sem a outra. A partir da seguranga e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidao, da liberdade e da ameaga do espago, e vice- versa. Além disso, se pensamos no espaco como algo que permite movimento, entdo lugar é pausa; cada pausa no movi- mento torna possivel que localizagio se transforme em lugar. 3) A amplitude da experiéncia ou conhecimento. A expe- riéncia pode ser direta e intima, ou pode ser indireta e con- 7 Introdugéio ! ceitual, mediada por simbolos. Conhecemos nossa casa inti- mamente; podemos apenas conhecer algo sobre 0 nosso pais se ele é muito grande. Um antigo habitante da cidade de Minneapolis conhece a cidade, um chofer de taxi aprende a andar por ela, um gedgrafo estuda Minneapolis e a conhece conceitualmente. Estas so trés formas de experienciar. Uma pessoa pode conhecer um lugar tanto de modo intimo como” a iildadé de ex- pressar 0 que conhece através dos sentidos do tato, paladar, olfato, audigAo, e até pela visio. As pessoas tendem a eliminar aquilo que nao podem expressar. Se uma experiéncia oferece resisténcia a uma Silo comunicagio raépida, a resposta comum entre os praticos “fazedores”’) é consider4-la particular — se nao idiossinera- tica — e portanto sem importancia. Na_extensa_literatura sobre qualidade ambiental, .relativamente poucas-obras-ten- tam compreender-o que as pessoas.sentem. sobre.espago ¢€ lugar, considerar.as diferentes-maneiras.de experienciar-(sen- sorio-motora, tétil, visual, conceitual) e interpretar.espago-e lugar como imagens de sentimentos.complexos — muitas vezes ambivalentes. Os planejadores profissionais, com sua necessidade urgente de agir, apressam demais a produgao de modelos e inventdrios. Por sua vez, 0 leigo aceita sem muita hesitagio, dos planejadores carismaticos e, dos propagan- distas,. slogans sobre 0 meio ambiente que tenha recebido através da midia, esquecendo-se facilmente a rica informagao derivada da experiéncia, da qual dependem estas abstracées. » No entanto, é possivel articular sutis experiéncias humanas, tarefa a que os artistas vém se dedicando — freqiientemente com éxito, Em obras literarias, bem como em obras de psico- logia humanistica, filosofia, antropologia e geografia, est4o registrados intrincados mundos de experiéncias humanas. Este livro chama a atengiio para as questdes formuladas pelos humanistas sobre espago e lugar? Procura sistematizar os insights humanisticos, exp6-los em sistemas conceituais (aqui organizados na forma de capitulos), de modo que sua importancia seja evidente para nds, nado somente como seres pensantes interessados em saber mais sobre a nossa prépria weweve eee EE ee ee eee 8 Introdugao natureza — nossa potencialidade para experimentar — mas também como arrendatérios da Terra, preocupados na pra- tica com 0 projeto de um habitat mais humano. A abordagem é descritiva, visando mais freqiientemente a sugerir do que concluir. Em uma Area de estudo que é em grande parte experimental, talvez cada colocagio devesse terminar por um ponto de interrogacao ou ir acompanhada de oragdes adje- tivas. Pede-se ao leitor que as supra. Um trabalho exploraté- tio como este deve ter a virtude da clareza, mesmo que para isso seja necessdrio sacrificar 0 detalhe erudito e a qualifi- cago, Um termo-chave neste livro é “experiéncia”. Qual ¢ a natureza da experiéncia e da perspectiva experiencial? 2 Perspectiva Experiencial xperiéncia é um termo que abrange as diferentes ma- E neiras através das quais uma pessoa conhece e constréi a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos 7 mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até 2 j H percep¢ao visual ativa e a mancira indireta de simbolizagao.* Experiéncia sensacio, percep¢ao, concepgio ie EMOCAO_ emogio a pensamento PENSAMENTO As emogdes dao colorido a toda experiéncia humana, incluindo os niveis mais altos do pensamento. Os matema- ticos, por exemplo, afirmam que a expressio de seus teoremas é orientada por critérios est¢ticos — nogdes de elegancia ¢ simplicidade que respondem a uma necessidade humana. O pensamento da colorido a toda experiéncia humana, incluindo as sensacdes primérias de calor e frio, prazer e dor. A sen- sacdo é rapidamente qualificada pelo pensamento em um tipo 9 Perspectiva Experiencial especial. O calor é sufocante ou ardente; a dor, aguda ou fraca; uma provocagio irritante, ou uma forga brutal. A experiéncia est voltada para o mundo exterior..Ver e pensar claramente_yao além, do.eu. O sentimento é mais ambiguo, Segundo Paul Ricoeur, “O sentimento é (...) sem diivida intencional: é um sentimento por ‘alguma coisa’ — © amordvel, 6 odioso, (por exemplo]. Mas é uma estranha intencionalidade: por um lado indica qualidades sentidas quanto as coisas, quanto as pessoas, quanto ao mundo, e por outro manifesta e revela a maneira pela qual o eu € afetado intimamente”. No sentimento, “uma intengio e uma afeigao coincidem em uma mesma experiéncia”.? A experiéncia tem uma conotagio de passividade; a pa- homém ow mulher exper iente é éaquem tém acontecido muitas coisas. No entanto, nao f: das plantas Feferindo imais inferiores, a palavra “experiéncia” parece inapropriada. Porém existe um con- traste entre um cachorrinho e um experiente mastim; e os seres humanos so maduros ou imaturos dependendo de terem ou nao tirado vantagens dos acontecimentos. Assim, _a_expe- x iéncia implica a capacidade _de aprender a partir da propria vivéncia? Experienciar é aprender; significa atuar.sobre. 0 dado e criar a a partir dele. O dado no, pode ser conhecido em ima.criagdo de-sentimento e pensamento. Comiovafirmow Susanne Langer: “O mundo da fisica é essencialmente o mundo real interpretado pelas abs- tragdes matematicas, e o raundo do sentido é o mundo real interpretado pelas abstragdes imediatamente fornecidas pelos Srgiios dos sentidos.””4 Experienciar é vencer os perigos. A palavra “‘experiéncia”’ provém da mesma raiz latina (per) de ‘‘experimento”, “‘ex- perto” e “perigoso”.> Para experienciar no sentido ativo, é necessdrio aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilu- s6rio e o incerto. Para se tornar um experto, cumpre arris- car-se a enfrentar os perigos do novo. Por que alguém se arrisca? O individuo é compelido a isso. Esta apaixonado, Perspectiva Experiencial e a paixdo é um simbolo de forca mental. O repertério emo- cional de um molusco é muito restrito quando comparado com o de um cachorrinho; e a vida afetiva do chimpanzé é quase tao variada e intensa quanto a do homem. Uma crianga nos primeiros anos de vida se distingue de outros filhotes de mamiferos tanto por seu desamparo como pelas suas bruscas reagdes de medo. Sua amplitude emocional, do sorriso ao acesso, insinua a extensio de seu potencial intelectual. A experiéncia é constituida de sentimento e pensamento. O sentimento humaro nao € uma su “de sensagdes dis- tintas; mais precisamente a meméria e a intuigdo sdio capazes de produzir impactos sensoriais no cambiante fluxo da expe- riéncia, de modo que poderiamos falar de uma vida do senti- mento como falamos de uma vida do pensamento. B.uma.ten- déncia comum referir-se ao sentimento e pensamento_como opostos, um Tegistrando estados subjetivos, 0 outro repor- tando-se A réalidade objetiva. De fato, estio proximos as du a maneiras de conhecer. us e pensar so processos..intimamente_relacionados. HA muito tempo, imples registro do que ja nao se considera a.visio apenas um estimulo da luz; ela 6 um processo seletiyo e.criativo em que os estimulos ambientais sao organizados em estruturas fluentes sinais significativos ao dr; o Orgio apropriado, Os sentidos do olfato € do tato sao educados mentalmente? Ten- demos a negligenciar 0 poder cognitivo desses sentidos. No entanto, 0 verbo francés savoir (“‘saber”) esta intimamente relacionado com 0 inglés savour. O paladar, 0 olfato e o tato podem atingir um extraordindrio refinamento. Eles discrimi- nam em meio A riqueza de sensagdes e articulam os mundos gustativo, olfativo e textural. A inteligéncia é necessdria 4 estruturagio dos mundos. Do mesmo modo que os atos intelectuais de ver e ouvir, os sentidos do olfato e tato podem ser melhorados com a prtica até chegarem a discernir mundos significantes. Os adultos podem desenvolver uma extraordindria sensibilidade para uma ampla variedade de fragrancias florais.’ Apesar de ser 0 ~~ ee voer vv vc oe Ve Tee 12 Perspectiva Experiencial nariz humano muito menos agugado que o nariz dos cies para detetar certos odores de baixa intensidade, as pessoas podem ser sensiveis a uma gama maior de odores do que os cies. Cachorros e criangas no apreciam o perfume das flores da mesma forma que os adultos. As criangas preferem 0 cheiro das frutas ao das flores.’ As frutas so boas para comer, assim a preferéncia.é compreensivel. Mas qual é 0 valor, para a sobrevivéncia, da sensibilidade aos dleos quimicos langados pelas flores? Esta sensibilidade nao serve a um propésito bioldgico definido. Pareceria que o nosso nariz, tanto quanto nossos olhos, procura ampliar e compreender o mundo. Alguns odores tém um poderoso significado biolégico. Por exemplo, os odores do corpo podem estimular a atividade sexual, Por outro lado, por que muitos adultos acham repul- sivo 0 cheiro de putrefagéo? Mamiferos, com narizes muito mais agucados que 0 do homem, toleram e até apreciam cheiros de carne putrefata, que desagradariam ao homem. As criangas pequenas, também, parecem ser indiferentes aos cheiros fétidos. Langer sugere que os odorés de putrefacaio sao memento mori* para os adultos, mas que n4o tém essa cono- taco para os animais c as criancas.* O tato articula outra classe de mundo complexo. A m&o humana € incomparavel em sua forga, agilidade e sensibilidade. Os primatas, in- cluindo o homem, usam as mios para conhecer e confortar os membros de sua propria espécie, mas 0 homem também usa as nos para explorar o meio ambiente fisico, diferenciando-o cuidadosamente pelo tato da casca e da pedra Os homens adultos nao gostam de ter sobre a pele substdncias pegajosas, talvez porque elas destruain a capacidade de discernimento da pele. Tais substdncias entorpecem, como éculos embagados, afaculdade de exploragao. O meio ambiente arquiteténico moderno pode agradar aos olhos, mas freqiientémente carece da personalidade esti- (©) Expressio latina que se traduz por: “Lembra-te que iris morrer”. Designa particularmente um objeto simbélico que sirva ao homem como adverténcia de sua condigfo mortal (N, da E.). 13 Perspectiva Experiencial mulante que pode ser proporcionada pelos odores variados agradaveis. Eles imprimem carter aos objetos e lugares, tor- nando-os distintos, faceis de identificar e lembrar. Os odores sao importantes para os seres humanos. Fizemos referéncia a um mundo olfativo, mas podem as fragrancias e perfumes constituir um mundo? “Mundo” sugere estrutura espacial; um mundo olfativo seria aquele em que os odores estado espa- cialmente arranjados, e no simplesmente aquele onde apa- recam em sucessao acidental ou como misturas rudimentares. Podem outros sentidos, além da vis&o e do tato, proporcionar um mundo espacialmente organizado? E possivel argumentar que o paladar, o odor e mesmo a audi¢%o no nos dao, por si mesmos, a sensago de espago-” A quest&o € muito acadé- mica, porque a maioria das pessoas fazem uso dos cinco sen: tidos, que se reforgam mtitua e constantemente para fornecer o mundo em que vivemos, intrincadamente ordenado e carre- gado de emogdes. O paladar, por exemplo, envolve quase invariavelmente 0 tato e o olfato: a lingua rola ao redor da bala, explorando sua forma enquanto o olfato registra o aroma de caramelo. Se podemos ouvir e cheirar algo, pode- mos muitas vezes também vé-lo, Quais so os érgios sensoriais ¢ experiéncias que per- mitem aos seres humanos fer sentimentos intensos pelo espago visio € POS © as pernas. Bag bdsicos para que tomemos consciéncia do espaco. éxpéiiéiciado quando hé fugar para se mover. Ainda ae mudando de um lugar para outro, a pessoa adquire um.sentido de diregZo. Para frente, para tras e para os lados s&o diferenciados pela experiéncia, isto é, conheci dos subconscientemente-no ato de movimentar-se. O espaco assume uma organizacao coordenada rudimentar céntrada no eu, que se move e se direciona. Os olhos humanos, por terem superposi¢do bifocal e capacidade e estereoscépica, proporcio- nam as pessoas um espaco vivido, .em_trés.dimensdes. A expe- riéncia, contudo, é necesséria. Uma crianga ou um adulto cegos de nascimento mas que tenham recentemente recupe- rado a visio, precisam de tempo e pratica para perceber que 0 14 Perspectiva Experiencial mundo se constitui de objetos tridimensionais estaveis e dis- postos no espaco, em vez de padroes mutaveis e cores. Tocar e manipular coisas com a mio produz.x de objetos — Avangar até as coisas e brincar com elas revela a Sua descon- tinuidade e a sua distancia relativa. O movimento _intencional ga percepcao, tanto. visual. como haptica,, dao 0s. seres hu- O lugar é uma classe esp: valor, emibora Ao seja uma coisa.valiosa,.que.possa.ser. GAL ménte ‘manipulada © ou leyada. de um.lado.para. objeio no, qual se_pode morar. O espago, como ja mencio- namos, é dado pela capacidade de mover-se. Os movimentos freqiientemente sio dirigidos para, ou repelidos por, objetos & lugares. Por isso 0 espaco pode ser_experienciado de varia: maneiras: como a localizagao relativa de objetos ou lugares, como as dist&ncias e extensées que separam ou.ligam. 0s_ Ju- gares, e — mais fabetrataments — como a 4rea definida por O paladar, o olfato, a sensibilidade da pele e a audigao nao podem individualmente (nem sequer talvez juntos) nos tornar cientes de um mundo exterior habitado por objetos. No entanto, em combinagao com as faculdades “‘espacializantes” da visdo e do tato, estes sentidos essencialmente nio distan- ciadores enriquecem muito nossa apreensio do carater espa- ‘cial e geométrico do mundo. Em inglés, por exemplo, quali- ficam-se alguns sabores como sharp, e outros como flat.* O significado destes termos geométricos é realgado pelo uso metaf6rico no reino do paladar. O odor é capaz de sugerir massa e volume. Alguns cheiros, como de almiscar ou de angélica, s4o “fortes”, ao passo que outros sao “delicados”” “finos”, ou “‘leves’’. Os carnivoros dependem do sentido agu- (*) Os adjetivos sharp e flat significam neste contexto, respectiva- mente, “picante” e-“‘insipido”. Quando se referem, porém, a formas, sto outros os termos correspondentes em nosso idioma. Sharp equivaleria a “em dngulo agudo”; e flat, a “plano”, “liso” (N. da E.). 15 ‘spectiva Experiencial A. Espaco definido pela localizacao relativa dos entrepostos (mulher Aivilik) esquimé Alvilik 0 do cacador * Groeatindia Porto Hacrison Cc “Suglok + Cabo Dorset “Wala Frobisher Enseada Ponds - Forte Ross oat, Hnseada dos Ledes at, Ensenda« Bathurst, + Repulsa *Enseada Ponds Ree * ©lltha Southampton (sede) ‘atalik "Ponto Esquim6 Mle Mérinore “tha das Morsas A\Reputsa Brandon oe AOAROMAHAMAARA Ae @ “Terra do Homem Branco * Mais HomensBrancos & son 8 & Figura 1, O espago como localizagio relativa ¢ como espaco demarcado. te O espago da mulher esquimé (Aivilik) 6 definido essencialmente pela loca- a lizagito e pela distancia de pontos significantes, na maioria entrepostos (A), como percebidos do ponto de vista da sede na ilha de Southampton, ao GQ passo que a idéia de limite (a linha da costa) € importante para o sentido de - espaco do homem esquimé (B). Edmund Carpenter, Frederick Varley e o Robert Flaherty, Eskimo. Toronto, University of Toronto Press, 1959, p. 6. 8 Reimpresso com permissio da University of Toronto Press. o eG cado do olfato para seguir e capturar a presa, e pode ser que 6 seu nariz seja capaz de articular um mundo espacialmente * é estruturado — pelo menos aquele que se diferencia pela dire- cio e distancia. O nariz do homem é um érgio bastante atro- + fiado. Dependemos da vista para localizar as fontes de perigo & e de atrago, mas, com o auxilio de um mundo visual anterior, . o nariz do homem também pode discernir direcao e calcular a distancia relativa através da intensidade de um cheiro. Uma pessoa que manipula um objeto, sente nio apenas sua textura mas suas propriedades geométricas de tamanho e forma. Prescindindo da manipulagao, a sensibilidade da pele, 16 Perspectiva Experiencial por si s6, contribui para a experiéncia espacial do homem? Ela contribui, embora de forma limitada. A pele registra sensagdes. Informa sobre sua propria condigéo e ao mesmo tempo sobre a condigdo do objeto que a esta pressionando. Porém a pele nao sente a distancia. Neste aspecto a percepgao tatil est4 no extremo oposto da visual. A pele é capaz de transmitir certas idéias espaciais e pode fazé-lo sem 0 apoio dos outros sentidos, dependendo somente da estrutura do corpo ¢ da capacidade de movimento. O comprimento rela- tivo, por exemplo, é registrado quando diferentes partes do corpo sto tocadas ao mesmo tempo. A pele pode transmitir uma sensagio de volume e massa. Ninguém duvida de que “entrar em uma banheira com 4gua morna d& a nossa pele uma sensagio mais macica do que uma alfinetada”.” A pele, quando entra em contato com objetos achatados, pode avaliar aproximadamente a sua forma e tamanho. Em pequeno nivel, a aspereza e suavidade s&o propriedades geométricas que a pele reconhece facilmente. Os objetos também sfo duros ou moles. A percepgio tatil diferencia estas caracteristicas na evidéncia espacio-geométrica. Assim, um objeto duro, sob pressdo, retém a sua forma, enquanto um objeto mole nfo a retém.” O sentido de distancia e de espago se origina da capaci- dade auditiva? O mundo do som parece estar espacialmente estruturado, embora sem a agudeza do mundo visual. E possi- vel que 0 cego que pode ouvir, mas nao tem mios € apenas pode mover-se, carega de sentido de espago; talvez para tais pessoas todos os sons sejam sensagdes corporais e nao indi- cagdes sobre o carater de um meio ambiente. Poucas pessoas tém deficiéncias tio sérias. Tendo visio e possibilidade de. mover-se e de usar as mios, os sons enriquecem muito o sentimento humano em relagéo ao espaco. As orelhas do homem nio so flexiveis, por isso estéo menos aparelhadas para discernir direcdo do que, por exemplo, as orelhas de um lobo. Mas, virando a cabeca, uma pessoa pode aproximada- mente dizer a direcio dos sons. As pessoas identificam sub- conscientemente as fontes de rufdo, e a partir dessa infor- magio constroem 0 espaco auditivo. 5 HL Perspectiva Experiencial Os sons, embora vagamente localizados, podem transmi- tir um acentuado sentido de tamanho (volume) e de distancia. Por exemplo, numa catedral vazia, o ruido de passos res soando claramente no chao de pedra cria a impressio de uma vastidao cavernosa. A respeito do poder do som em evocar distancia, Albert Camus escreveu: “A noite, na Algéria, po- demos ouvir os latidos dos cées a uma distAncia dez vezes maior do que na Europa. Assim, o ruido assume uma nos- talgia desconhecida em nossos paises confinados.”” Os cegos desenvolvem uma aguda sensibilidade para os sons; sio capa- zes de usa-los € a suas ressonancias para avaliar 0 carater espacial do meio ambiente. As pessoas que podem ver siio menos sensiveis aos indicadores auditivos porque nao depen- dem tanto deles. Todos os seres humanos aprendem a relacio- nar som e distncia ao falar. Alleramos 0 tom da nossa voz, de baixo para alto, de intimo para publico, de acordo com a distancia social e fisica percebida entre nés e os outros. O volume e a express&o da nossa voz, tanto como o que procu- ramos dizer, sao lembretes permanentes de proximidade e de distancia. O proprio som pode evocar impressdes espaciais. Os es- trondos do troviio so volumosos; 0 estridulo do giz no quadro negro € “‘comprimido” e fino, Os tons musicais baixos sao volumosos, enquanto os agudos parecem finos ¢ penetrantes. Os musicélogos falam de “espago musical”. Em misica criam-se ilusdes espaciais completamente independentes do fendmeno de volume ¢ do fato de 0 movimento logicamente implicar espago.'> Com freqiiéncia se diz que a miisica tem forma. A forma musical pode dar vez a uma confirmagio do sentido de orientagio, Para o musicdlogo Roberto Gerhard, “forma na miisica significa saber exatamente, a cada ins- tante, onde se esta. A consciéncia da forma é realmente uma sensacao de orientacio” Os diversos espagos sensoriais parecem-se muito pouco entre si. O espago visual, com a sua nitidez e tamanho, difere profundamente dos difusos espacos auditivo e tatil-sensorio- motor. Um homem cego cujo conhecimento do espacgo deriva de indicadores auditivos ¢ tateis no pode, por algum tempo,

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