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Autonomia reprodutiva:
um estudo de caso sobre a surdez
Reproductive autonomy:
a case study on deafness
Debora Diniz 1
1 Anis: Instituto de Bioética, Abstract The ethical principle of reproductive autonomy is one of the cornerstones of bioethi-
Direitos Humanos e Gênero.
cal theories. Prenatal diagnostic techniques and advances in genetics have broadened the spec-
C. P. 8011, Brasília, DF
70673-970, Brasil. trum of possibilities for reproductive choice. Consequently, they allow for selection in diagnosed
d.diniz@anis.org.br cases of fetal malformation, for instance. This article analyzes the case of deafness, in particular
the argument from the deaf community that supports the birth of deaf children as a way of
maintaining its cultural identity. The article discusses the community’s culturalist argument
that deafness should not be considered a disability. Furthermore, the article considers the extent
to which reproductive decisions by potential parents could limit the development of their future
children.
Key words Deafness; Genetics; Bioethics
Resumo O princípio ético da autonomia reprodutiva é um dos eixos fundamentais das teorias
bioéticas. As técnicas de diagnóstico pré-natal e o avanço da genética vêm ampliando o leque
das possibilidades de escolha reprodutiva, permitindo, por exemplo, a seleção em casos de diag-
nóstico de má-formação fetal. Neste artigo, o caso da surdez será analisado, em especial o argu-
mento da comunidade Surda que defende a preferência pelo nascimento de crianças surdas co-
mo forma de manutenção da identidade cultural surda. O argumento culturalista dessa comu-
nidade, o de que a surdez não deve ser considerada uma deficiência, é discutido, sendo pondera-
do em que medida as decisões reprodutivas de futuros pais podem limitar o desenvolvimento de
seus futuros filhos.
Palavras-chave Surdez; Genética; Bioética
em cobaias de pesquisa, os dilemas atuais im- caso paradigmático de exercício ético. É preci-
postos pela genética clínica são de outra or- so lembrar, no entanto, que, mesmo entre as
dem. Talvez o tema ético seja o mesmo – o res- populações surdas, não há consenso sobre co-
peito à autonomia reprodutiva –, mas certa- mo qualificar a surdez, se como deficiência ou
mente o conteúdo do conflito agora é outro. O variância lingüística, sendo o movimento das
avanço das técnicas de diagnóstico pré-natal, comunidades Surdas minoritário dentre a po-
pelo mapeamento genético de síndromes cau- pulação surda em geral.
sadoras da surdez, associado ao sentimento de Não há dúvidas de que a idade da inocên-
orgulho pelo pertencimento à comunidade cia genética não mais existe (Kitcher, 1996). Po-
Surda fizeram com que o desejo pelo filho sur- sições de resistência ao uso e à popularização
do passasse de expectativa do acaso a possibili- da genética não vêm sendo fortes, tampouco
dade de seleção (Rehm & Morton, 1999). O consistentes o suficiente para romper com a
avanço nas técnicas de mapeamento genético, lógica que assegura a necessidade social da in-
além da segurança de diagnóstico, tornou pos- formação genética para a promoção do bem-
sível algo considerado impensável há algumas estar. A possibilidade de conhecer o pedigree
décadas: a possibilidade de a comunidade Sur- genético de um embrião não é somente uma
da afirmar, por meio da ciência, a preferência novidade tecnológica da medicina, mas uma
pelo surdo. A diferença para o passado é que prescrição para os futuros pais que reconhe-
antes se discutia a importância do reconheci- cem nessa informação uma vantagem adicio-
mento da autonomia reprodutiva aos surdos, nal para suas decisões reprodutivas. Admitir
uma vez que os mesmos eram considerados in- essa inércia social em face da ciência não é o
desejados para a ordem moral. Hoje, se enfren- mesmo que assumir uma relação de resignação
ta a dúvida sobre a imposição ou não de limi- passiva ao seu avanço e, principalmente, às
tes ao exercício da autonomia reprodutiva de conseqüências sociais, políticas e éticas de seu
algumas comunidades Surdas que defendem a uso. A genética reprodutiva, ao permitir que os
preferência por embriões surdos em nome da futuros pais recebam informações sobre o es-
adequação familiar e cultural (Edwards, 1997). tado do embrião antes de seu nascimento, am-
Em certo sentido, seria possível dizer que, no pliou o leque de possibilidades de escolha, o
campo da genética reprodutiva, algumas co- que para muitas pessoas é um grande benefí-
munidades de surdos passaram de vítimas ao cio. Tanto não é desejável que se soneguem in-
banco dos réus. formações já disponíveis – o que eticamente é
diferente do exercício do direito de não ser in-
formado – quanto é impossível atravancar o
O fim da inocência genética avanço científico por medo das preferências
pessoais. É fundamental que se forme um de-
Dilemas morais semelhantes a este provocado bate público, amplo e irrestrito, entre cientistas
pelas comunidades Surdas não são fatos raros e profanos, sobre a genética e seu impacto, con-
na vida coletiva. Tampouco são meros resulta- siderando-se ao mesmo tempo o comprometi-
dos do avanço biotecnológico da medicina, co- mento com os princípios de não-maleficência
mo sugerem os mais resistentes à medicaliza- e da autonomia individual (Feyeraband, 1993).
ção da sociedade. Alguns temas em pauta, co- Os testes genéticos para diagnóstico predi-
mo a moralidade do aborto ou a moralidade tivo passam gradativamente a compor a rotina
sexual, são anteriores às pesquisas genéticas. de um bom pré-natal, especialmente entre fa-
Na verdade, o que há por trás dessa controvér- mílias com acesso aos melhores serviços de
sia são diferentes maneiras de entender e qua- saúde. Em certo sentido, pode-se considerar,
lificar o humano, com base também em dife- como sugerem Parens & Asch, que os testes ge-
rentes perspectivas sobre o que determina a néticos serão uma extensão lógica das ofertas
qualidade de vida e o bem-viver. A dificuldade, de exames pré-natal que asseguram a saúde do
no entanto, não está em reconhecer a plurali- feto (Parens & Asch, 1999). Mas, se por um la-
dade moral da humanidade, mas sim em en- do, essa lógica justifica-se pela segurança de
contrar mecanismos norteadores para essa di- diagnóstico que os exames propiciam, por ou-
versidade, que, muitas vezes, elege princípios e tro, a dúvida sobre o impacto moral da infor-
valores incompatíveis entre si (Diniz, 2001a). E mação genética é ainda inquietante. E é exata-
é exatamente nesse sentido que o confronto mente nesta tensão entre informação genética
entre as comunidades Surdas, com seu apelo e escolha moral que o exame genético para de-
pela seleção de embriões surdos, e as pessoas tectar a predisposição à surdez encontra-se
ouvintes e surdas, que não se identificam com imerso. Para a grande maioria das pessoas, sur-
o movimento cultural da surdez, torna-se um dez é sinônimo de uma grave e limitante defi-
ciência, ao passo que, para outras, a impossibi- sível de ser medicalizado ou curado. Os Surdos
lidade de escutar exige apenas uma reestrutu- se comparam às comunidades de imigrantes,
ração da ordem lingüística. A depender do sugerindo uma diferença de grau no fato de o
ponto de partida moral sobre como se define a bloqueio lingüístico ser devido a uma limita-
surdez, ou seja, como uma patologia genética ção física e não de aprendizado, um argumen-
indesejável ou como uma variação cultural, as to largamente criticado por aqueles que não
escolhas familiares frente à informação genéti- reconhecem o fundamento culturalista na sur-
ca serão radicalmente diferentes. Na verdade, dez (Levy, 2002). Em 1890, um instrutor de sur-
para grande parte das comunidades surdas, dos, durante um congresso sobre a importân-
negar que a surdez seja uma deficiência passí- cia da linguagem dos sinais, comparou a difi-
vel de cura é um argumento que se encontra culdade expressiva dos surdos à de imigrantes
atrelado ao da surdez como variação cultural (- chineses recém-chegados aos Estados Unidos,
Levy, 2002). em um claro indício do suporte culturalista de
O curioso é que o avanço científico que ma- sua argumentação política (Bayton, 1997). A
peou alguns dos traços genéticos para a surdez mesma estratégia comparativa vem sendo ain-
não supunha a seleção positiva dos embriões da hoje utilizada por membros da cultura Sur-
surdos, tal como proposto pela comunidade da, especialmente entre líderes políticos e co-
Surda. Muito provavelmente, as pesquisas so- munitários (Dolnick, 1993).
bre as causas genéticas da surdez possuíam Em linhas gerais, a comunidade Surda fun-
dois objetivos: (1) conhecer as configurações damenta sua posição culturalista na diferença
genéticas da surdez, com vistas ao desenvolvi- que existe entre condição da surdez (incapaci-
mento de tratamentos e curas; (2) na ausência dade de ouvir) e sintoma social da surdez (in-
de tratamentos e curas, permitir que futuros capacidade de falar). Os representantes da cul-
pais selecionassem negativamente os embriões tura Surda defendem que estariam sendo jul-
portadores de genes para a surdez. Ou seja, co- gados anormais pelo simples fato de não usa-
mo conseqüência natural do diagnóstico gené- rem a mesma língua que os ouvintes, ou seja,
tico embrionário para a surdez, esperava-se o por não serem bilíngües assim como os chine-
aborto seletivo. Muito embora a opção pela in- ses do exemplo anterior ou, ainda, por não
terrupção da gestação seja a saída mais comum compartilharem dos valores culturais hegemô-
e amparada pelo ethos do aconselhamento ge- nicos, segundo as palavras de Roslyn Rosen,
nético que assume posicionamentos não res- então presidente da Associação Norte-Ameri-
tritivos diante do aborto, a seleção positiva dos cana de Surdos, ao comparar a surdez a mino-
embriões surdos trouxe o tema da não-malefi- rias étnicas: “...eu sou feliz como sou...e não
cência para o campo do debate ético em gené- gostaria de ser “curada”...em nossa sociedade,
tica reprodutiva (Chadwick & Levitt, 1997). todos concordam que os brancos têm uma vida
melhor que os negros. Mas alguém imaginaria
que uma pessoa negra deveria fazer uma opera-
Cultura surda ção para se tornar branca?...” (Levy, 2002:139).
A demarcação da fronteira entre condição e
Em março de 2001, Jeff McWhinney, diretor sintoma permite que se considere a surdez co-
executivo da Associação Britânica de Surdos, mo um caso-limite da premissa de que a defi-
iniciou seu pronunciamento sobre o tema da ciência é uma condição antes social que física,
genética e da surdez com a seguinte afirmação: argumento fortemente defendido pelos teóri-
“...a comunidade Surda é uma comunidade or- cos do modelo social da deficiência (Oliver,
gulhosa de si. Orgulhosa de sua cultura, orgu- 1990; Oliver & Barnes, 1988).
lhosa de sua história e orgulhosa de sua lingua- Dado que não existe consenso sobre o sta-
gem. Nós temos todos os direitos de ser orgulho- tus social da surdez entre membros da comu-
sos. Nós sobrevivemos a várias tentativas de es- nidade Surda e ouvintes, a pergunta feita por
tigmatização, de opressão e mesmo de elimina- McWhinney durante seu pronunciamento –
ção de todos nós...” (McWhinney, 2001:1). O or- “...qual a diferença entre escolher ter um bebê
gulho a que se referia McWhinney é o de se re- surdo e escolher um bebê ouvinte? A não ser que
conhecer como uma comunidade, onde a lin- se acredite que a vida de uma pessoa surda seja
guagem dos sinais é o ícone da cultura. Para os inferior que a de uma pessoa ouvinte, tais deci-
que defendem a idéia da cultura Surda, entre sões deveriam ser tomadas sob as mesmas ba-
surdos e ouvintes o que existe é uma fronteira ses...” – retira o debate do campo genético pro-
traçada pela audição, ou seja, nada que justifi- priamente dito e o lança para o campo dos direi-
que o confinamento dos surdos ao estigma so- tos sociais fundamentais (McWhinney, 2001:2).
cial do patológico ou do anormal, um traço pas- Para McWhinney, assim como para inúmeros
teóricos do modelo social da deficiência, o pro- da identidade intrafamiliar não apenas descon-
blema não reside na moralidade do aborto, até sidera a surdez como uma diferença cultural,
mesmo porque grande parte deles defende o classificando-a como uma patologia, mas tam-
direito de escolha, mas no argumento manifes- bém se apóia em princípios éticos de justiça e
to que o aborto seletivo carrega consigo (Diniz, de não-maleficência para criticá-la, uma vez
2001b). Parens & Asch definem o argumento que o debate ético sobre autonomia reproduti-
manifesto pela correlação que existe entre os va no aborto não se torna capaz de mediar essa
exames genéticos e a vida das pessoas portado- questão (Biesecker, 1997). O tema-chave desse
ras de deficiências: “...os testes pré-natais que confronto entre autonomia, não-maleficência
selecionam contra traços genéticos de deficiên- e justiça é a pergunta de como as decisões ge-
cia manifestam uma atitude danosa sobre as néticas dos futuros pais podem expandir ou li-
pessoas portadoras de deficiência e enviam mitar as possibilidades futuras de seus filhos,
mensagens danosas para as pessoas que vivem considerando que a surdez é uma condição fí-
com esses traços...” (Parens & Asch, 1999:S2). No sica, até o momento, irreversível (Davis, 2001).
caso específico da surdez, por exemplo, a críti-
ca da comunidade Surda ao argumento mani-
festo seria o de que não sendo a surdez uma Autonomia reprodutiva,
deficiência, mas uma restrição lingüística cul- não-maleficência e justiça
turalmente determinada, o aborto seletivo re-
mete antes a valores sobre qualidade de vida “...Eu gostaria que minha filha fosse como eu,
do que a restrições absolutas impostas pela que ela fosse surda...”. Com essas palavras, uma
surdez. Logo, não apenas a comunidade Surda mulher grávida, participante de um programa
se distancia dos outros movimentos de defi- de televisão, descreveu como imaginava sua fi-
cientes não se reconhecendo como um deles, lha ainda por nascer (Lane, 1997:160). Isso foi
mas também, do ponto de vista político, apro- em 1989, em um momento em que ainda não
xima-se de outros movimentos sociais que cons- era possível escolher a condição auditiva do
troem seus discursos com base na fronteira en- embrião. Se no passado não havia como impu-
tre diferenças biológicas e desvantagem social, tar responsabilidade pelas heranças genéticas,
tais como os movimentos de mulheres e anti- tampouco era possível exercer com criativida-
racistas (Jordan, 1991). Esse movimento de apro- de o direito de escolha. O avanço da genética e,
ximação política do movimento Surdo com ou- em especial, do projeto genoma humano, vem
tros movimentos sociais foi duramente critica- produzindo um conjunto de informações que
do por Neil Levy, que defende que, diferente- amplia o leque de possibilidades de escolha
mente do sexo ou da raça, a surdez é uma inca- para os futuros pais, fazendo com que a acusa-
pacidade que possui fundamentos absolutos, ção de irresponsabilidade genética comece a
não dependendo apenas do ordenamento social vigorar. Hoje, com o fim da inocência genética,
para ser erradicada a desigualdade (Levy, 2002). é preciso rever o princípio do exercício ilimita-
Mas nos casos em que a surdez for conside- do da autonomia reprodutiva dos futuros pais
rada uma vantagem, estima-se que a preferên- em situações em que suas escolhas impliquem
cia por embriões surdos ocorrerá em dez por danos irreversíveis e graves para seus futuros
cento do total das famílias de surdos, isto é, em filhos. A ignorância genética do passado era
famílias de futuros pais também surdos, um da- uma barreira científica que protegia os futuros
do que aponta para o quanto o movimento sur- pais da crítica e da condenação moral, o que
do ainda é uma idiossincrasia minoritária para não é mais possível com os atuais avanços do
as populações surdas (Chadwick & Levitt, 1997; diagnóstico genético.
Davis, 2001; Rehm & Morton, 1999). Para essas Ronald Green (1997), ao analisar a situação
famílias, a certeza do nascimento de um filho hipotética de um casal surdo que deliberada-
surdo é um tranqüilizador para a estrutura fa- mente escolhe um embrião surdo por meio de
miliar e social, ordenada em torno da lingua- tecnologias reprodutivas, sustenta a diferença
gem dos sinais. Ou seja, o princípio da busca entre direitos e obrigações no campo das deci-
pelo semelhante, um valor para todas as políti- sões reprodutivas. Segundo Green, esse é um
cas sociais de adoção, seria o motivo do desejo exemplo de uma situação em que os direitos
de futuros pais surdos por embriões surdos. O podem estar em conflito com as obrigações. No
nó da questão, no entanto, não está no argu- intuito de mediar essa tensão entre direito e
mento culturalista utilizado pela comunidade obrigação, o autor sugere a seguinte norma:
Surda, mas na própria premissa cultural utili- “...os pais têm a obrigação prima facie de não
zada. O argumento contrário à possibilidade permitir que a criança seja formada delibera-
de seleção de embriões surdos como garantia damente ou negligentemente com uma saúde
que resulte em sofrimento ou deficiência signifi- mulher é uma questão básica de estrutura so-
cativas, ou em reduções significativas nas op- cial discriminatória às mulheres. Caso se extin-
ções de vida, quando comparada a outras crian- guisse a discriminação contra as mulheres, ain-
ças com as quais ela irá crescer...” (Green, 1997: da assim as mulheres surdas sofreriam restri-
10). Ou seja, a sugestão é que se considerem as ções de oportunidades. E, nas palavras de Bu-
obrigações para com os futuros filhos um bali- chanan et al. (1997:284), essa é uma separação
zador para o exercício da autonomia reprodu- fundamental a ser feita, uma vez que “...tem
tiva dos futuros pais no campo da genética re- implicações importantes sobre como nós iremos
produtiva, um argumento duramente criticado enfrentar os custos para eliminação das limita-
por Leslie Biesecker por considerá-lo desres- ções de oportunidades que resultam do fato de
peitoso com as comunidades de deficientes e, ser surdo frente às limitações sofridas por aque-
em última instância, eugênico (Biesecker, 1997). les que são gays ou negros, por exemplo...” . Ou
Dessa forma, os futuros pais têm a obrigação seja, por um princípio de justiça social e de
de minimizar a loteria da natureza que, até não-maleficência, deve-se considerar que o re-
pouco tempo, era considerada indomável no sultado do exercício de autonomia reprodutiva
campo da herança genética. Sendo assim, a es- dos futuros pais surdos pode não apenas impor
colha pelo embrião surdo deveria ser conside- limitações graves ao futuro da criança a ser ge-
rada uma escolha irresponsável do ponto de rada; é preciso também ponderar o esforço so-
vista genético, uma vez que a decisão dos futu- cial para que se compense essa desigualdade
ros pais implica uma restrição definitiva e ab- inicial entre surdos e ouvintes.
soluta das possibilidades futuras de escolha Reconhecer a irresponsabilidade genética
pela criança. Como resultado da preferência ini- dos futuros pais não é o mesmo que proibi-los
cial dos pais, a criança terá seu leque de opor- de realizar suas preferências reprodutivas. Para
tunidades e escolhas definitivamente encerra- John Harris, confundir o julgamento moral de
do nos limites da cultura Surda. Em termos um ato com sua proibição é uma falácia co-
culturais, a escolha pelo embrião surdo confi- mum no campo da ética reprodutiva (Harris,
na a futura criança ao grupo cultural de seus 2000). É possível, portanto, reconhecer a irres-
pais, uma decisão que deve ser considerada, no ponsabilidade dos futuros pais membros de
mínimo, limitante. comunidades Surdas em preferir embriões sur-
Segundo um defensor da cultura Surda, não dos em nome de seus referenciais culturais,
deveria haver diferença entre prevenir o nasci- mas isso não significa que devamos impedi-los
mento de uma criança surda e prevenir o nas- de tomar essas decisões. A passagem do julga-
cimento de uma mulher, de um gay ou de um mento de um ato para sua proibição moral so-
negro, uma vez que estas também são condi- mente deve ser percorrida após um longo e
ções socialmente limitantes e, ao contrário do exaustivo debate público, não esperando que
aborto seletivo por determinação de sexo, mun- seja possível atingir o consenso sobre esse tema.
dialmente condenado, o aborto seletivo em ca- Antes disso, é preciso que se discuta ampla-
sos de surdez é moralmente neutro ou mesmo mente como as decisões genéticas dos futuros
estimulado (Buchanan et al., 2000). Ora, muito pais podem expandir ou limitar as possibilida-
embora este seja um argumento politicamente des de expressão futuras de seus filhos e quais
forte para o movimento da cultura Surda, é devam ser, se é que podem existir, as restrições
preciso reconhecer diferenças entre uma mu- para o exercício da autonomia reprodutiva. A
lher surda e uma mulher ouvinte. As restrições importância de um debate como este é o de ga-
de oportunidade às mulheres surdas são infini- rantir a pluralidade de argumentos e valores,
tamente maiores que as impostas às mulheres muito embora a saída para um conflito moral
ouvintes. O fato de existirem restrições de aces- dessa natureza implique necessariamente a
so às oportunidades pelo simples fato de ser coação de uma das partes discordantes.
Agradecimentos
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