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ARTIGO ARTICLE 175

Autonomia reprodutiva:
um estudo de caso sobre a surdez

Reproductive autonomy:
a case study on deafness

Debora Diniz 1

1 Anis: Instituto de Bioética, Abstract The ethical principle of reproductive autonomy is one of the cornerstones of bioethi-
Direitos Humanos e Gênero.
cal theories. Prenatal diagnostic techniques and advances in genetics have broadened the spec-
C. P. 8011, Brasília, DF
70673-970, Brasil. trum of possibilities for reproductive choice. Consequently, they allow for selection in diagnosed
d.diniz@anis.org.br cases of fetal malformation, for instance. This article analyzes the case of deafness, in particular
the argument from the deaf community that supports the birth of deaf children as a way of
maintaining its cultural identity. The article discusses the community’s culturalist argument
that deafness should not be considered a disability. Furthermore, the article considers the extent
to which reproductive decisions by potential parents could limit the development of their future
children.
Key words Deafness; Genetics; Bioethics

Resumo O princípio ético da autonomia reprodutiva é um dos eixos fundamentais das teorias
bioéticas. As técnicas de diagnóstico pré-natal e o avanço da genética vêm ampliando o leque
das possibilidades de escolha reprodutiva, permitindo, por exemplo, a seleção em casos de diag-
nóstico de má-formação fetal. Neste artigo, o caso da surdez será analisado, em especial o argu-
mento da comunidade Surda que defende a preferência pelo nascimento de crianças surdas co-
mo forma de manutenção da identidade cultural surda. O argumento culturalista dessa comu-
nidade, o de que a surdez não deve ser considerada uma deficiência, é discutido, sendo pondera-
do em que medida as decisões reprodutivas de futuros pais podem limitar o desenvolvimento de
seus futuros filhos.
Palavras-chave Surdez; Genética; Bioética

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Introdução emerge, fazendo desta um caso-limite que de-


safia a compreensão ética. A resistência que as
O final do século XVIII foi um marco para o de- comunidades surdas, especialmente norte-ame-
bate da educação de surdos. Foi nesse período ricana e inglesa, vêm apresentando à nova on-
que escolas rivais, os oralistas e os manualis- da de medicalização da surdez com a medicina
tas, firmaram posições pedagógicas e políticas genética é um caso exemplar da dificuldade de
distintas (Bayton, 1997). Alexander Graham se estabelecerem parâmetros claros e definidos
Bell foi uma figura proeminente nesse debate, para o que caracterizaria o patológico na diver-
tendo sido um defensor do ensino da lingua- sidade humana.
gem oral, reservando severas críticas ao uso da Neste sentido, a surdez, entendida como o
linguagem dos sinais como a língua natural dos paradigma da resistência dos movimentos de
surdos. Para Bell, assim como para grande par- deficientes à medicalização da vida social, não
te dos educadores oralistas, o ensino e o apren- é uma novidade da medicina genética. A gené-
dizado da linguagem oral permitiriam aos sur- tica, e especialmente o ethos do aconselha-
dos a integração social, rompendo a barreira mento genético reprodutivo, onde neutralida-
lingüística entre ouvintes e surdos. Bell justifi- de e imparcialidade éticas são valores domi-
cava sua resistência à criação de escolas espe- nantes, potencializa valores e atitudes sociais
ciais para surdos, onde somente se utilizaria a relacionados à surdez, ao mesmo tempo em
linguagem dos sinais, pelo risco de formarem- que esta desafia a eficácia desses princípios
se comunidades surdas com tendência ao ca- éticos. Casos como os relatados por Dena Da-
samento endógamo, tornando possível “...a nis, Ronald Green ou Harlan Lane, em que fa-
formação de uma variedade surda da raça hu- mílias e comunidades Surdas anunciam suas
mana...” (Bayton, 1997:130). O receio de Bell era preferências por embriões surdos em detri-
não apenas o da formação de uma colônia de mento de embriões ouvintes, isto é, famílias de
surdos dentro da sociedade nacional, a exem- surdos, por meio das tecnologias reprodutivas,
plo do que ocorre com inúmeras comunidades escolhem embriões surdos e descartam em-
de imigrantes, mas, principalmente, a de que briões ouvintes, provocam os limites do mode-
os surdos constituíssem a alteridade absoluta, lo ético dominante na genética, que defende a
a variação não ouvinte da espécie humana soberania da autonomia reprodutiva das pes-
(Jordan, 1991). soas (Davis, 2001; Green, 1997; Lane, 1997). Ou-
Essa fantasia de criação de um novo huma- tro campo médico em que as comunidades sur-
no a partir de uma natureza não prevista, mas das provocam a compreensão do modelo ético
passível de ser dominada, não ficou restrita aos baseado na autonomia é a audiologia com as
ideais pedagógicos de Bell. A história social da cirurgias de implante coclear, em que pais Sur-
surdez mostra quanto os surdos, e mais recen- dos não autorizam que seus filhos submetam-
temente a comunidade surda, vêm sendo alvo se à cirurgia sob a alegação de que essa é uma
de controle e ordenamento médicos, exata- forma de extermínio da cultura Surda pela su-
mente por desafiarem os limites normativos do posta cura da surdez (Levy, 2002).
normal e do patológico. De acordo com a tradi- Mas nem sempre a genética promoveu a
ção nos estudos culturalistas sobre surdez, es- autonomia reprodutiva como princípio ético
tabeleceu-se uma convenção lingüística que norteador de sua prática. Desde a história da
delimita as fronteiras políticas do movimento e medicina nazista e dos movimentos higienistas
que, para fins argumentativos, será seguida que marcaram o início do século XX, a genética
neste artigo. Entende-se por comunidade Sur- se viu ligada a ideologias eugênicas de intole-
da as pessoas que possuem o sentimento de rância em face da diversidade, tendo sido pre-
pertencimento à cultura Surda, definida basi- ciso reformular por completo seu discurso e
camente pela linguagem dos sinais, ao passo prática médica para que voltasse a conquistar
que surdos são todos os que não se identificam a confiança e a respeitabilidade social (Paul &
com o movimento social, ou porque foram pes- Spence, 1995). O fantasma da eugenia como si-
soas socializadas em ambiente ouvinte ou por- nônimo de intolerância e opressão moral ain-
que têm variados graus de deficiência auditiva. da ronda a genética contemporânea, muito
A história da educação de surdos oscila en- embora haja uma razoável distância entre o
tre mudanças nas técnicas pedagógicas e ma- que caracterizou a prática clínica e de pesquisa
nifestações de identidade cultural, um indício da genética nazista e os dilemas morais decor-
da dificuldade de se definir socialmente a sur- rentes das recentes pesquisas genômicas.
dez. E é exatamente dessa tensão entre argu- Diferente do passado, quando famílias de
mentos de anormalidade física e normalidade surdos eram arbitrariamente esterilizadas ou
cultural que o discurso genético sobre a surdez mesmo crianças surdas eram transformadas

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em cobaias de pesquisa, os dilemas atuais im- caso paradigmático de exercício ético. É preci-
postos pela genética clínica são de outra or- so lembrar, no entanto, que, mesmo entre as
dem. Talvez o tema ético seja o mesmo – o res- populações surdas, não há consenso sobre co-
peito à autonomia reprodutiva –, mas certa- mo qualificar a surdez, se como deficiência ou
mente o conteúdo do conflito agora é outro. O variância lingüística, sendo o movimento das
avanço das técnicas de diagnóstico pré-natal, comunidades Surdas minoritário dentre a po-
pelo mapeamento genético de síndromes cau- pulação surda em geral.
sadoras da surdez, associado ao sentimento de Não há dúvidas de que a idade da inocên-
orgulho pelo pertencimento à comunidade cia genética não mais existe (Kitcher, 1996). Po-
Surda fizeram com que o desejo pelo filho sur- sições de resistência ao uso e à popularização
do passasse de expectativa do acaso a possibili- da genética não vêm sendo fortes, tampouco
dade de seleção (Rehm & Morton, 1999). O consistentes o suficiente para romper com a
avanço nas técnicas de mapeamento genético, lógica que assegura a necessidade social da in-
além da segurança de diagnóstico, tornou pos- formação genética para a promoção do bem-
sível algo considerado impensável há algumas estar. A possibilidade de conhecer o pedigree
décadas: a possibilidade de a comunidade Sur- genético de um embrião não é somente uma
da afirmar, por meio da ciência, a preferência novidade tecnológica da medicina, mas uma
pelo surdo. A diferença para o passado é que prescrição para os futuros pais que reconhe-
antes se discutia a importância do reconheci- cem nessa informação uma vantagem adicio-
mento da autonomia reprodutiva aos surdos, nal para suas decisões reprodutivas. Admitir
uma vez que os mesmos eram considerados in- essa inércia social em face da ciência não é o
desejados para a ordem moral. Hoje, se enfren- mesmo que assumir uma relação de resignação
ta a dúvida sobre a imposição ou não de limi- passiva ao seu avanço e, principalmente, às
tes ao exercício da autonomia reprodutiva de conseqüências sociais, políticas e éticas de seu
algumas comunidades Surdas que defendem a uso. A genética reprodutiva, ao permitir que os
preferência por embriões surdos em nome da futuros pais recebam informações sobre o es-
adequação familiar e cultural (Edwards, 1997). tado do embrião antes de seu nascimento, am-
Em certo sentido, seria possível dizer que, no pliou o leque de possibilidades de escolha, o
campo da genética reprodutiva, algumas co- que para muitas pessoas é um grande benefí-
munidades de surdos passaram de vítimas ao cio. Tanto não é desejável que se soneguem in-
banco dos réus. formações já disponíveis – o que eticamente é
diferente do exercício do direito de não ser in-
formado – quanto é impossível atravancar o
O fim da inocência genética avanço científico por medo das preferências
pessoais. É fundamental que se forme um de-
Dilemas morais semelhantes a este provocado bate público, amplo e irrestrito, entre cientistas
pelas comunidades Surdas não são fatos raros e profanos, sobre a genética e seu impacto, con-
na vida coletiva. Tampouco são meros resulta- siderando-se ao mesmo tempo o comprometi-
dos do avanço biotecnológico da medicina, co- mento com os princípios de não-maleficência
mo sugerem os mais resistentes à medicaliza- e da autonomia individual (Feyeraband, 1993).
ção da sociedade. Alguns temas em pauta, co- Os testes genéticos para diagnóstico predi-
mo a moralidade do aborto ou a moralidade tivo passam gradativamente a compor a rotina
sexual, são anteriores às pesquisas genéticas. de um bom pré-natal, especialmente entre fa-
Na verdade, o que há por trás dessa controvér- mílias com acesso aos melhores serviços de
sia são diferentes maneiras de entender e qua- saúde. Em certo sentido, pode-se considerar,
lificar o humano, com base também em dife- como sugerem Parens & Asch, que os testes ge-
rentes perspectivas sobre o que determina a néticos serão uma extensão lógica das ofertas
qualidade de vida e o bem-viver. A dificuldade, de exames pré-natal que asseguram a saúde do
no entanto, não está em reconhecer a plurali- feto (Parens & Asch, 1999). Mas, se por um la-
dade moral da humanidade, mas sim em en- do, essa lógica justifica-se pela segurança de
contrar mecanismos norteadores para essa di- diagnóstico que os exames propiciam, por ou-
versidade, que, muitas vezes, elege princípios e tro, a dúvida sobre o impacto moral da infor-
valores incompatíveis entre si (Diniz, 2001a). E mação genética é ainda inquietante. E é exata-
é exatamente nesse sentido que o confronto mente nesta tensão entre informação genética
entre as comunidades Surdas, com seu apelo e escolha moral que o exame genético para de-
pela seleção de embriões surdos, e as pessoas tectar a predisposição à surdez encontra-se
ouvintes e surdas, que não se identificam com imerso. Para a grande maioria das pessoas, sur-
o movimento cultural da surdez, torna-se um dez é sinônimo de uma grave e limitante defi-

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ciência, ao passo que, para outras, a impossibi- sível de ser medicalizado ou curado. Os Surdos
lidade de escutar exige apenas uma reestrutu- se comparam às comunidades de imigrantes,
ração da ordem lingüística. A depender do sugerindo uma diferença de grau no fato de o
ponto de partida moral sobre como se define a bloqueio lingüístico ser devido a uma limita-
surdez, ou seja, como uma patologia genética ção física e não de aprendizado, um argumen-
indesejável ou como uma variação cultural, as to largamente criticado por aqueles que não
escolhas familiares frente à informação genéti- reconhecem o fundamento culturalista na sur-
ca serão radicalmente diferentes. Na verdade, dez (Levy, 2002). Em 1890, um instrutor de sur-
para grande parte das comunidades surdas, dos, durante um congresso sobre a importân-
negar que a surdez seja uma deficiência passí- cia da linguagem dos sinais, comparou a difi-
vel de cura é um argumento que se encontra culdade expressiva dos surdos à de imigrantes
atrelado ao da surdez como variação cultural (- chineses recém-chegados aos Estados Unidos,
Levy, 2002). em um claro indício do suporte culturalista de
O curioso é que o avanço científico que ma- sua argumentação política (Bayton, 1997). A
peou alguns dos traços genéticos para a surdez mesma estratégia comparativa vem sendo ain-
não supunha a seleção positiva dos embriões da hoje utilizada por membros da cultura Sur-
surdos, tal como proposto pela comunidade da, especialmente entre líderes políticos e co-
Surda. Muito provavelmente, as pesquisas so- munitários (Dolnick, 1993).
bre as causas genéticas da surdez possuíam Em linhas gerais, a comunidade Surda fun-
dois objetivos: (1) conhecer as configurações damenta sua posição culturalista na diferença
genéticas da surdez, com vistas ao desenvolvi- que existe entre condição da surdez (incapaci-
mento de tratamentos e curas; (2) na ausência dade de ouvir) e sintoma social da surdez (in-
de tratamentos e curas, permitir que futuros capacidade de falar). Os representantes da cul-
pais selecionassem negativamente os embriões tura Surda defendem que estariam sendo jul-
portadores de genes para a surdez. Ou seja, co- gados anormais pelo simples fato de não usa-
mo conseqüência natural do diagnóstico gené- rem a mesma língua que os ouvintes, ou seja,
tico embrionário para a surdez, esperava-se o por não serem bilíngües assim como os chine-
aborto seletivo. Muito embora a opção pela in- ses do exemplo anterior ou, ainda, por não
terrupção da gestação seja a saída mais comum compartilharem dos valores culturais hegemô-
e amparada pelo ethos do aconselhamento ge- nicos, segundo as palavras de Roslyn Rosen,
nético que assume posicionamentos não res- então presidente da Associação Norte-Ameri-
tritivos diante do aborto, a seleção positiva dos cana de Surdos, ao comparar a surdez a mino-
embriões surdos trouxe o tema da não-malefi- rias étnicas: “...eu sou feliz como sou...e não
cência para o campo do debate ético em gené- gostaria de ser “curada”...em nossa sociedade,
tica reprodutiva (Chadwick & Levitt, 1997). todos concordam que os brancos têm uma vida
melhor que os negros. Mas alguém imaginaria
que uma pessoa negra deveria fazer uma opera-
Cultura surda ção para se tornar branca?...” (Levy, 2002:139).
A demarcação da fronteira entre condição e
Em março de 2001, Jeff McWhinney, diretor sintoma permite que se considere a surdez co-
executivo da Associação Britânica de Surdos, mo um caso-limite da premissa de que a defi-
iniciou seu pronunciamento sobre o tema da ciência é uma condição antes social que física,
genética e da surdez com a seguinte afirmação: argumento fortemente defendido pelos teóri-
“...a comunidade Surda é uma comunidade or- cos do modelo social da deficiência (Oliver,
gulhosa de si. Orgulhosa de sua cultura, orgu- 1990; Oliver & Barnes, 1988).
lhosa de sua história e orgulhosa de sua lingua- Dado que não existe consenso sobre o sta-
gem. Nós temos todos os direitos de ser orgulho- tus social da surdez entre membros da comu-
sos. Nós sobrevivemos a várias tentativas de es- nidade Surda e ouvintes, a pergunta feita por
tigmatização, de opressão e mesmo de elimina- McWhinney durante seu pronunciamento –
ção de todos nós...” (McWhinney, 2001:1). O or- “...qual a diferença entre escolher ter um bebê
gulho a que se referia McWhinney é o de se re- surdo e escolher um bebê ouvinte? A não ser que
conhecer como uma comunidade, onde a lin- se acredite que a vida de uma pessoa surda seja
guagem dos sinais é o ícone da cultura. Para os inferior que a de uma pessoa ouvinte, tais deci-
que defendem a idéia da cultura Surda, entre sões deveriam ser tomadas sob as mesmas ba-
surdos e ouvintes o que existe é uma fronteira ses...” – retira o debate do campo genético pro-
traçada pela audição, ou seja, nada que justifi- priamente dito e o lança para o campo dos direi-
que o confinamento dos surdos ao estigma so- tos sociais fundamentais (McWhinney, 2001:2).
cial do patológico ou do anormal, um traço pas- Para McWhinney, assim como para inúmeros

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teóricos do modelo social da deficiência, o pro- da identidade intrafamiliar não apenas descon-
blema não reside na moralidade do aborto, até sidera a surdez como uma diferença cultural,
mesmo porque grande parte deles defende o classificando-a como uma patologia, mas tam-
direito de escolha, mas no argumento manifes- bém se apóia em princípios éticos de justiça e
to que o aborto seletivo carrega consigo (Diniz, de não-maleficência para criticá-la, uma vez
2001b). Parens & Asch definem o argumento que o debate ético sobre autonomia reproduti-
manifesto pela correlação que existe entre os va no aborto não se torna capaz de mediar essa
exames genéticos e a vida das pessoas portado- questão (Biesecker, 1997). O tema-chave desse
ras de deficiências: “...os testes pré-natais que confronto entre autonomia, não-maleficência
selecionam contra traços genéticos de deficiên- e justiça é a pergunta de como as decisões ge-
cia manifestam uma atitude danosa sobre as néticas dos futuros pais podem expandir ou li-
pessoas portadoras de deficiência e enviam mitar as possibilidades futuras de seus filhos,
mensagens danosas para as pessoas que vivem considerando que a surdez é uma condição fí-
com esses traços...” (Parens & Asch, 1999:S2). No sica, até o momento, irreversível (Davis, 2001).
caso específico da surdez, por exemplo, a críti-
ca da comunidade Surda ao argumento mani-
festo seria o de que não sendo a surdez uma Autonomia reprodutiva,
deficiência, mas uma restrição lingüística cul- não-maleficência e justiça
turalmente determinada, o aborto seletivo re-
mete antes a valores sobre qualidade de vida “...Eu gostaria que minha filha fosse como eu,
do que a restrições absolutas impostas pela que ela fosse surda...”. Com essas palavras, uma
surdez. Logo, não apenas a comunidade Surda mulher grávida, participante de um programa
se distancia dos outros movimentos de defi- de televisão, descreveu como imaginava sua fi-
cientes não se reconhecendo como um deles, lha ainda por nascer (Lane, 1997:160). Isso foi
mas também, do ponto de vista político, apro- em 1989, em um momento em que ainda não
xima-se de outros movimentos sociais que cons- era possível escolher a condição auditiva do
troem seus discursos com base na fronteira en- embrião. Se no passado não havia como impu-
tre diferenças biológicas e desvantagem social, tar responsabilidade pelas heranças genéticas,
tais como os movimentos de mulheres e anti- tampouco era possível exercer com criativida-
racistas (Jordan, 1991). Esse movimento de apro- de o direito de escolha. O avanço da genética e,
ximação política do movimento Surdo com ou- em especial, do projeto genoma humano, vem
tros movimentos sociais foi duramente critica- produzindo um conjunto de informações que
do por Neil Levy, que defende que, diferente- amplia o leque de possibilidades de escolha
mente do sexo ou da raça, a surdez é uma inca- para os futuros pais, fazendo com que a acusa-
pacidade que possui fundamentos absolutos, ção de irresponsabilidade genética comece a
não dependendo apenas do ordenamento social vigorar. Hoje, com o fim da inocência genética,
para ser erradicada a desigualdade (Levy, 2002). é preciso rever o princípio do exercício ilimita-
Mas nos casos em que a surdez for conside- do da autonomia reprodutiva dos futuros pais
rada uma vantagem, estima-se que a preferên- em situações em que suas escolhas impliquem
cia por embriões surdos ocorrerá em dez por danos irreversíveis e graves para seus futuros
cento do total das famílias de surdos, isto é, em filhos. A ignorância genética do passado era
famílias de futuros pais também surdos, um da- uma barreira científica que protegia os futuros
do que aponta para o quanto o movimento sur- pais da crítica e da condenação moral, o que
do ainda é uma idiossincrasia minoritária para não é mais possível com os atuais avanços do
as populações surdas (Chadwick & Levitt, 1997; diagnóstico genético.
Davis, 2001; Rehm & Morton, 1999). Para essas Ronald Green (1997), ao analisar a situação
famílias, a certeza do nascimento de um filho hipotética de um casal surdo que deliberada-
surdo é um tranqüilizador para a estrutura fa- mente escolhe um embrião surdo por meio de
miliar e social, ordenada em torno da lingua- tecnologias reprodutivas, sustenta a diferença
gem dos sinais. Ou seja, o princípio da busca entre direitos e obrigações no campo das deci-
pelo semelhante, um valor para todas as políti- sões reprodutivas. Segundo Green, esse é um
cas sociais de adoção, seria o motivo do desejo exemplo de uma situação em que os direitos
de futuros pais surdos por embriões surdos. O podem estar em conflito com as obrigações. No
nó da questão, no entanto, não está no argu- intuito de mediar essa tensão entre direito e
mento culturalista utilizado pela comunidade obrigação, o autor sugere a seguinte norma:
Surda, mas na própria premissa cultural utili- “...os pais têm a obrigação prima facie de não
zada. O argumento contrário à possibilidade permitir que a criança seja formada delibera-
de seleção de embriões surdos como garantia damente ou negligentemente com uma saúde

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que resulte em sofrimento ou deficiência signifi- mulher é uma questão básica de estrutura so-
cativas, ou em reduções significativas nas op- cial discriminatória às mulheres. Caso se extin-
ções de vida, quando comparada a outras crian- guisse a discriminação contra as mulheres, ain-
ças com as quais ela irá crescer...” (Green, 1997: da assim as mulheres surdas sofreriam restri-
10). Ou seja, a sugestão é que se considerem as ções de oportunidades. E, nas palavras de Bu-
obrigações para com os futuros filhos um bali- chanan et al. (1997:284), essa é uma separação
zador para o exercício da autonomia reprodu- fundamental a ser feita, uma vez que “...tem
tiva dos futuros pais no campo da genética re- implicações importantes sobre como nós iremos
produtiva, um argumento duramente criticado enfrentar os custos para eliminação das limita-
por Leslie Biesecker por considerá-lo desres- ções de oportunidades que resultam do fato de
peitoso com as comunidades de deficientes e, ser surdo frente às limitações sofridas por aque-
em última instância, eugênico (Biesecker, 1997). les que são gays ou negros, por exemplo...” . Ou
Dessa forma, os futuros pais têm a obrigação seja, por um princípio de justiça social e de
de minimizar a loteria da natureza que, até não-maleficência, deve-se considerar que o re-
pouco tempo, era considerada indomável no sultado do exercício de autonomia reprodutiva
campo da herança genética. Sendo assim, a es- dos futuros pais surdos pode não apenas impor
colha pelo embrião surdo deveria ser conside- limitações graves ao futuro da criança a ser ge-
rada uma escolha irresponsável do ponto de rada; é preciso também ponderar o esforço so-
vista genético, uma vez que a decisão dos futu- cial para que se compense essa desigualdade
ros pais implica uma restrição definitiva e ab- inicial entre surdos e ouvintes.
soluta das possibilidades futuras de escolha Reconhecer a irresponsabilidade genética
pela criança. Como resultado da preferência ini- dos futuros pais não é o mesmo que proibi-los
cial dos pais, a criança terá seu leque de opor- de realizar suas preferências reprodutivas. Para
tunidades e escolhas definitivamente encerra- John Harris, confundir o julgamento moral de
do nos limites da cultura Surda. Em termos um ato com sua proibição é uma falácia co-
culturais, a escolha pelo embrião surdo confi- mum no campo da ética reprodutiva (Harris,
na a futura criança ao grupo cultural de seus 2000). É possível, portanto, reconhecer a irres-
pais, uma decisão que deve ser considerada, no ponsabilidade dos futuros pais membros de
mínimo, limitante. comunidades Surdas em preferir embriões sur-
Segundo um defensor da cultura Surda, não dos em nome de seus referenciais culturais,
deveria haver diferença entre prevenir o nasci- mas isso não significa que devamos impedi-los
mento de uma criança surda e prevenir o nas- de tomar essas decisões. A passagem do julga-
cimento de uma mulher, de um gay ou de um mento de um ato para sua proibição moral so-
negro, uma vez que estas também são condi- mente deve ser percorrida após um longo e
ções socialmente limitantes e, ao contrário do exaustivo debate público, não esperando que
aborto seletivo por determinação de sexo, mun- seja possível atingir o consenso sobre esse tema.
dialmente condenado, o aborto seletivo em ca- Antes disso, é preciso que se discuta ampla-
sos de surdez é moralmente neutro ou mesmo mente como as decisões genéticas dos futuros
estimulado (Buchanan et al., 2000). Ora, muito pais podem expandir ou limitar as possibilida-
embora este seja um argumento politicamente des de expressão futuras de seus filhos e quais
forte para o movimento da cultura Surda, é devam ser, se é que podem existir, as restrições
preciso reconhecer diferenças entre uma mu- para o exercício da autonomia reprodutiva. A
lher surda e uma mulher ouvinte. As restrições importância de um debate como este é o de ga-
de oportunidade às mulheres surdas são infini- rantir a pluralidade de argumentos e valores,
tamente maiores que as impostas às mulheres muito embora a saída para um conflito moral
ouvintes. O fato de existirem restrições de aces- dessa natureza implique necessariamente a
so às oportunidades pelo simples fato de ser coação de uma das partes discordantes.

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Agradecimentos

Agradeço ao grupo de participantes do Programa Im-


plicações Sociais e Éticas do Projeto Genoma Huma-
no, um espaço privilegiado de reflexão, em que parte
das idéias aqui expostas foi discutida, e à Patrícia
Tuxi, psicopedagoga, intérprete de LIBRAS, que gen-
tilmente esclareceu questões sobre a educação de
surdos e a linguagem de sinais. Este artigo foi escrito
como resultado da participação no Summer Faculty
Institute on the Ethical, Legal, and Social Implications
of the Human Genome Project, em Dartmouth College,
New Hampshire, Estados Unidos, em junho de 2001.

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