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MELO, Luciana da Silva. “Resenha – A Hora da Estrela:


uma narrativa de pequenas epifanias”. RBSE – Revista Bra-
sileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 42, p. 149-157,
dez de 2015. ISSN: 1676-8965.
RESENHA
http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html

Recebido em: 18.09.2015


Aceito em: 29.10.2015

Introdução
Resenha - A Hora da Estrela: uma
narrativa de pequenas epifanias Esta resenha oferece uma análise,
sob a perspectiva das narrativas literária,
cinematográfica e sociológica, do livro e
do filme A hora da estrela, de Clarice Lis-
Filme
Título original: A hora da estrela. pector e Suzana Amaral, respectivamente.
Direção: Suzana Amaral. A intenção é mostrar como essas narrativas
Produção: Assunção Hernandes. se entrecruzam, oferecendo uma leitura
Roteiro: Suzana Amaral e Alfredo Oroz, base- particular dos aspectos da realidade social
ado em livro de Clarice Lispector. Intérpretes: a partir da análise do discurso.
Marcélia Cartaxo; José Dumont; Tamara Tax- Não é de hoje que alguns teóricos
man; Fernanda Montenegro e outros. tentam definir qual o campo de ação rei-
Raiz Produções Cinematográficas, 1985. 1 vindicado de um lado pela História e, de
filme (96min.), son., color., 35mm. outro, pela Literatura. Esta não é uma ta-
refa fácil.
De um modo bem geral, podemos
Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
dizer que, especialmente a partir do século
Que, para ouvi-las, muita vez desperto XIX, passa a existir um consenso em acei-
E abro as janelas, pálido de espanto... tar que a grande diferença entre essas “ci-
E conversamos toda a noite, enquanto
ências” é que a História se ocuparia dos
A via láctea, como um pálio aberto, fatos, da verdade, enquanto que a Litera-
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, tura se dedicaria a tudo que é ficção, falso.
Inda as procuro pelo céu deserto. Ou, se preferirmos, a História lidaria com a
Direis agora: “Tresloucado amigo! realidade e a Literatura com o imaginário.
Que conversas com elas? Que sentido Obviamente, esse é um tema con-
Tem o que dizem, quando estão contigo?
troverso, uma vez que a realidade pode ser
E eu vos direi: ”Amai para entendê-las! entendida como uma representação da to-
Pois só quem ama pode ter ouvido talidade da vida, bem como a ficção, quan-
Capa de ouvir e entender estrelas.” do materialmente concretizada, se fazendo
Olavo Bilac1.
existir pelo objeto chamado livro, se torna
palpável, logo, real. Mais do que isso, am-
bas lidam com as experiências humanas
que são verdadeiras e incontestáveis.
Todo esse diálogo estabelecido en-
1
Poema publicado em Poesias (1888) como soneto XIII tre as fronteiras da História e da Literatura
de Via-Láctea.

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pode ser transportado para o universo so- (...) com o passar dos anos, o cinema foi
ciológico, porque também, enquanto ciên- em busca de sua legitimação enquanto
cia, a Sociologia reivindica um espaço do arte. Para isto buscou formas mais ela-
saber calcado nos fatos sociais, que têm boradas de expressão e recorreu então à
seu substrato na realidade, ou se relativi- literatura e ao teatro, artes estas consoli-
dadas há bastante tempo. Fica claro, por-
zarmos, nas diversas realidades que se a- tanto, afirmar que o cinema, ao longo de
presentam. “O fato social é invocado para sua história vem se servindo da literatura
explicar a estrutura da obra e o seu teor de não apenas a partir de suas obras, mas
ideias, fornecendo elementos para determi- também de seus procedimentos nar-
nar a sua validade e o seu efeito sobre nós” rativos (ARAGÃO, 2009, p. 29).
(CANDIDO, 2000, p.14).
Contudo, não podemos esquecer
No caso da História, o passado é
que a adaptação de um filme é uma relei-
inventado, os fatos são selecionados, a
tura ou uma possibilidade de leitura da
memória é (re)criada, a história é fabri-
obra, na qual não há compromisso com a
cada, mas se trata de uma ‘fabricação auto-
fidelidade original, uma vez que está im-
rizada’, sustentada pelos dados de fontes,
plícito aí um processo de recriação, que
pesquisas documentais e critérios de cienti-
muitas vezes valorizará determinados as-
ficidade do método. Isto porque a História
pectos da obra em detrimento de outros.
resguarda seu desejo de constituir um co-
Em palestra ministrada por Jorge
nhecimento científico. De certa forma, o
Furtado, na 10ª Jornada Nacional de Lite-
historiador detém a tutela do tempo, na
ratura, o autor, citando Neil Postman, es-
medida em que fica o passado que poderia
clarece os aspectos que diferenciam a nar-
ter sido numa versão do que realmente foi,
rativa cinematográfica da literária:
criando um lapso de distância entre o leitor
e o discurso do historiador. O texto impresso exige raciocínio. Em-
Também a Sociologia, ao estudar pregar a palavra escrita significa seguir
os fenômenos sociais, pretende estabelecer uma linha de pensamento que exige um
uma base teórico-metodológica voltada poder considerável de classificação, de
inferências e argumentação. Uma socie-
para o estudo desses fenômenos sociais,
dade baseada, sobretudo, no texto escrito
constituindo-se num relevante instrumento seria aquela em que a lógica, a ordem e
de compreensão da realidade e suas intera- o contexto predominam. Numa socie-
ções sociais. O sociólogo trabalha com a dade baseada em imagens, por outro la-
mesma matéria do historiador: os fatos do, lógica e contexto perdem terreno pa-
passíveis de observação e teste; a constru- ra a gratificação imediata. A revolução
ção de uma episteme, com base em méto- da imagem transformou nossa maneira
dos, que ofereça uma compreensão calcada de pensar (FURTADO, 2003).
no real. Mas, sobretudo, o sociólogo tra- A narrativa cinematográfica traz,
balha com a construção de narrativas, em numa lógica contrária, o processo narrativo
última instância, com as representações da literatura, já que a imagem no cinema é
sociais. a matéria narrativa.
Já na narrativa literária, o dado in- Se de um lado, a literatura estava
ventado pelo romancista acontece de fato destinada, nas suas origens, ao reduzido
para a voz narrativa, mas sua autoridade, público letrado do século XIX; o cinema
enquanto discurso, se constrói pela apro- nasceu com o olhar voltado ao público ile-
ximação, pela empatia do leitor com fatos trado, claramente associado ao mundo da
distantes, ao contrário do que acontece diversão popular. O cinema, nesse mo-
com as outras duas áreas do saber. mento, era visto como “atração, isto é, co-
O cinema, por sua vez, desde o seu mo uma técnica que encantava as plateias
surgimento, sempre se nutriu na literatura, pelo seu poder fotográfico de copiar o mo-
como afirma Gleyda Aragão: vimento das coisas” (BRITO, 2006, p.138).

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Com o passar do tempo, o cinema discurso competente, bem como da apro-


ganha status de linguagem artística, dado o priação do ato de escrever e de dar/ter voz.
surgimento da câmera móvel e o refina- Ler tal obra é ser, de alguma forma,
mento do tratamento da imagem. Dessa violentamente lançado nesse universo in-
forma, o cineasta, tal qual o escritor, esten- quietante e questionador. Diria mesmo que
deu sua capacidade de narrar ao trazer para é impossível não se sentir tentado a tecer
o seu universo os efeitos que a literatura comentários sobre esses temas. Ao nos
não era capaz de produzir, dadas as especi- depararmos com tal quadro, desponta uma
ficidades de sua linguagem. necessidade urgente, uma quase obrigação
Como veremos adiante, no filme A de elaborarmos algumas respostas nem que
hora da estrela, a imagem transfere, pela seja para nós mesmos, para não sentirmos
obliteração, o papel do narrador de Clarice. o incômodo de parecer, em absoluto, com a
O Rodrigo S. M. passa a ser cada especta- personagem. Surge uma vontade de agir,
dor porque a imagem constrói sua própria como se pudéssemos gritar (e ser ouvidos)
narrativa. em bom e alto som: Reage Macabéa! Fala
alguma coisa!
Vozes submersas numa narrativa pluri-
Mas é claro que não é tão fácil as-
língue
sim. Ter a consciência do poder da palavra
Juro que este livro é feito sem palavras. É é viver em suspense, porque essa consciên-
uma fotografia muda. Este livro é um silên- cia nos diz a todo o momento que ela é
cio. Este livro é uma pergunta
Clarice Lispector
fonte de liberdade tanto quanto o é de o-
pressão. Todo aquele que domina o ins-
O conjunto da obra da escritora trumental técnico da linguagem e com ele
Clarice Lispector sempre foi muito criti- constrói representações acerca do mundo
cado por apresentar temáticas e persona- faz parte de uma pequena elite que ocupa
gens etéreos e esfumaçados, com pouca espaço privilegiado na sociedade, posicio-
clareza e difícil apreensão. A autora foi nando-se como agente transformador do
rotulada de intimista e pouco comprome- discurso, decidindo o que deve ser dito,
tida com questões sociais, ou dizendo de bem como seu lugar na escala de impor-
outro modo, Clarice era uma escritora não tância e competência.
engajada. Dessa forma, aquele que tem voz
Dessa forma, então, Clarice Lis- usufrui a liberdade de construir os símbo-
pector se lançou ao desafio de responder à los e celebrar seus valores. Por outro lado,
crítica ou pelo menos tentar. Quis provar o fato de ser parte do grupo que domina o
que sabia (mas, por opção, não desejava) discurso, necessariamente, confirma o seu
fazer diferente. A resposta para tal embate oposto: a existência dos excluídos, dos
se concretizou em A hora da estrela, essa marginais, dos impossibilitados de se faze-
obra avassaladora, contundente, explícita e rem representar. Os detentores do discurso
ao mesmo tempo fluida e velada. Ponto “legítimo” estão sempre lembrando a esses
para a crítica, ponto para Clarice. outros de que não possuem nem espaço
Como A hora da estrela é uma obra nem voz, logo, estão condenados a não
plena de ideias e de elementos para refle- compartilhar e celebrar o código dessa mi-
xão e análise, é possível constatar inúme- noria. De alguma forma, usurpam e avil-
ros aspectos por ela abordados: o papel do tam o ser, retirando-lhe a voz e o direito de
intelectual na sociedade; a indigência do participar efetivamente dos ritos sociais.
povo brasileiro representado na figura de O fato de Macabéa lidar com a pa-
Macabéa; a reflexão sobre a condição da lavra (não nos esqueçamos de que ela é
mulher; a discussão sobre o exercício da datilógrafa), assim como Rodrigo S. M.,
linguagem/fala como forma de legitimar o não significa uma aproximação, uma inter-
face entre eles, ao contrário, revela distan-

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ciamento. Macabéa copia (mal) palavras mente sobre o povo brasileiro, só pode ser
que não lhe pertencem na tentativa de ga- lido2 pela mesma elite que dela fala).
rantir sua sobrevivência; Rodrigo dispõe Se Clarice já é inerentemente uma
das suas com a finalidade de questionar o escritora de difícil leitura e compreensão,
mundo. Macabéa é operária da palavra, em A hora da estrela, o universo humano
trabalhadora braçal; Rodrigo organiza-a e ficou ainda mais particularizado, ou seja,
cria universos para indagar o mundo que o voltado para uma elite detentora de bens
cerca. simbólicos refinados o suficiente para a-
John Carey (1993), ao tratar do pa- dentrar em tão densas questões. Falando
pel dos intelectuais na sociedade, nos per- mais claramente: a massa está presente na
mite observar o estreito diálogo que se es- obra com todas as implicações e ambigui-
tabelece com a obra em questão. Carey nos dades possíveis. Mais do que isso, a massa,
fala da resistência dos intelectuais em acei- protagonizada por Macabéa, é elemento
tar a presença da massa quer como consu- primordial no livro, contudo, ela não tem
midora de informação, ou como formadora acesso a ele e, mais importante, não foi
de uma opinião ou (pior) produtora da cul- escrito por alguém que a represente.
tura formal. Tanto Rodrigo S. M, o narrador in-
O autor vai mostrando, ao longo do terno do livro, costurado nas entranhas da
seu texto, o comportamento desses inte- obra, quanto Clarice, a autora do romance,
lectuais diante da crescente transformação não se constituem, não se configuram en-
social: crescimento demográfico, o advento quanto massa, ou seja, a representação
da imprensa escrita, a política de alfabeti- formal dos papéis sociais não se dá por
zação, etc. Vendo-se impossibilitados de intermédio dessas pessoas, contudo, está
brecar o processo histórico, criaram um autorizada pelo discurso das competências.
mecanismo poderoso, desenvolveram um Em se tratando do filme, Suzana
código de escrita bastante elaborado como Amaral optou por adaptar o romance de
forma de excluir a massa e continuar lhe uma autora considerada difícil numa época
negando direito à voz, permitindo que a em que tanto os nordestinos quanto o pró-
elite intelectual permanecesse dominando prio cinema nacional não eram muito bem
o discurso. vistos pela sociedade.
Ora, não é essa a história da nossa Não nos esqueçamos de que o bo-
heroína trágica, Macabéa? om de retomada do cinema brasileiro deu-
Contemporaneamente, as artes e a se com Carlota Joaquina, a princesa do
teoria da cultura já se preocupam em repre- Brasil, no ano de 1995. Dez anos após a
sentar o “protagonismo” da indigência, da estreia de A Hora da Estrela, de Suzana
exclusão, mas também é sintomático que, Amaral.
num plano de análise material, essa indi- Suzana (bem como Clarice), ao a-
gência seja ironicamente representada por presentar os personagens, retrata uma dura
uma personagem como Macabéa, tão frá-
gil, de "corpo cariado" e sem voz ou pelo 2
Cabe aqui uma ressalva: É claro que não existe um
menos inconsciente da sua existência. público apto para ler especificamente Clarice Lispector,
Por mais vida, por mais sentimen- João Cabral, Machado ou qualquer outro escritor. A
diferença que estabeleço é de que há algumas especi-
tos profundos e complexos que Clarice ficidades concretas exigidas para esta leitura da obra que
Lispector tenha dotado sua obra e sua Ma- certamente a massa destituída de voz não consegue al-
cabéa – mulher, feia, nordestina, semialfa- cançar, pois – parafraseando Bourdieu –, não tem a apro-
priação dos instrumentos de capital simbólico ou está fora
betizada –, a percepção e apreensão desses desse determinado campo científico. Ou ainda, em outras
aspectos só se tornam possíveis por um palavras, os representantes da massa não podem ser seus
leitor com características opostas às da próprios críticos, pois não alcançam os códigos do campo
literário. E isso nada tem a ver com a sensibilidade de
personagem. (Que contradição! Um livro cada leitor em relação a uma obra ou autor. Ver Bourdieu
escrito sobre a massa, mais especifica- (2007).

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realidade social. Ambas nos mostram o pena de morte a prática da religião judaica.
quão esquecidas, abandonadas e destituídas Alguns judeus preferiram a morte ao aban-
são essas pessoas/personagens; elas desfi- dono da sua fé.
lam em um contexto de completa in- Assim como os macabeus foram
visibilidade social e dos afetos. obrigados a se submeter a uma imposição
Qualquer que seja o discurso narra- tirana, cerceadora da liberdade religiosa,
tivo (literário ou cinematográfico) utili- também a nossa heroína se viu obrigada a
zado, as duas leituras evocam o que Bakh- sobreviver em um mundo opressor que
tin (1977) chamou de discurso polifônico. limita sua própria liberdade de existir.
Glória, ávida pelo amor dos ho- E o que tudo isso quer dizer? Ma-
mens, espera o desfecho da cinderela, mas cabéa traz em si mesma o germe da con-
tudo que consegue são as migalhas de a- tradição: encontra-se encarcerada pela sua
mor dos homens casados. própria inadaptação à sociedade de valores
Olímpico, também nordestino, an- capitalistas ao mesmo tempo em que tudo
seia pela fama; ele quer vencer na “cidade explicitamente negativo que possui repre-
grande”, na “capital”. Ele espera ser reco- senta a liberdade plena do mundo a ser
nhecido e ter direito à voz, deseja ser “al- vivido.
guém”, um deputado, e poder falar ao O corpo e a fragilidade da heroína
mundo o que pensa. sem voz são o cativeiro que a aprisionam,
A cartomante, madame Carlota, en- gritando muito alto para o mundo que ela é
reda as pessoas em histórias açucaradas e incapaz de reproduzir o sistema no qual
felizes como se quisesse purificar seu pas- está imersa. Em tal mundo, ela não se en-
sado de prostituta, dando novo sentido à caixa, tanto que, no fim, ela morre (talvez
vida. como aqueles macabeus que preferiam a
Macabéa é apontada por Clarice e espada a negar suas crenças). A sociedade
Suzana Amaral como a nordestina feia, alardeia: Macabéa, não existe lugar para
frágil, vazia, vaga, desinteressante, sem você neste mundo! Em contrapartida, sua
voz e “incompetente para a vida”. Ela não liberdade, sua redenção se localiza em um
tem opinião, vive exposta ao que o acaso e outro plano: o da afetividade. A sua in-
a Rádio Relógio lhe revelam. No fundo, competência para viver os valores pe-
Macabéa não quer nada, não espera, logo, queno-burgueses é refletida na sua incom-
não se frustra. petência para enganar, ambicionar ou ferir
“Eu não sei o que é que tem dentro o outro. Apesar de ser (aparentemente)
do meu nome”, diz nossa heroína. vazia e estúpida, Macabéa, à la Sartre, di-
A começar pelo próprio nome, Ma- aloga exaustivamente consigo mesma, se
cabéa comporta todas as implicações da confronta, questiona a si e a tudo o tempo
ambiguidade e do paradoxo de ser quem é, todo quando duvida das coisas. E se há
material e existencialmente. Macabéa é o algo que a ‘velha Maca’ possui são dúvi-
feminino de Macabeus3, também título de das: não tem certeza de quem é, do que faz,
um livro (subdividido em duas partes) do da dor e do amor que sente (“Será que eu
Antigo Testamento que conta a história do sou eu?”).
cativeiro e libertação dos judeus depois do
A narrativa cinematográfica: onde todas
domínio de Alexandre Magno da Macedô-
as vozes se encontram
nia. Após uma fase de gozo de liberdade
religiosa, os hebreus caíram sob o jugo dos Esta história acontece em estado de e-
mergência e de calamidade publica (...).
reis da Síria. Antíoco IV acentuou a luta É uma história em tecnicolor para ter al-
contra os judeus quando lhes impôs o hele- gum luxo, por Deus, que eu também pre-
nismo como prática religiosa, punindo com ciso.
Clarice Lispector
3
I e II Livro dos Macabeus. In: Bíblia Sagrada. Ed.
Paulinas. p. 1110-74.

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Apesar de duas linguagens distin- - Eu?


tas, cinema e literatura oferecem leituras - Por que esse espanto? Gente fala de
particularizadas sobre aspectos relevantes gente.
da sociedade. Enquanto filme baseado em - Ah, mas eu não acho que eu sou muita
uma obra literária, A Hora da Estrela, de gente.
Suzana Amaral, nos remete ao conceito de - Você não é gente, o que que você é en-
tradução, de Walter Benjamin (2008), no tão?
qual se dá a passagem de uma linguagem - É que eu ainda não estou acostumada.
para a outra. - O que? Não se acostumou com o que?
Rosalia Scorsi (2004, p. 38) afirma
- É que eu não sei explicar. Será que eu
que “ao transportar uma obra original para sou eu?
outra gramática, tentará o tradutor preen-
cher o intervalo entre as línguas”, sem que Se pela perspectiva literária, Maca-
isso signifique, entretanto, que ao se apro- béa só adquire existência no discurso fic-
ximar do sentido verdadeiro da obra, o cional de Rodrigo S.M; no filme, a narra-
tradutor garanta o seu sentido absoluto. tiva cinematográfica deixa transparecer a
Suzana Amaral fez uma opção por fome de mundo de Macabéa pela sua curi-
omitir o narrador-personagem de Clarice osidade, pela vontade de saber sempre
Lispector, Rodrigo S.M, em seu filme, mais. Sua existência é marcada pelo ques-
contudo, essa opção não tirou a profundi- tionamento.
dade da narrativa literária ao ser transpor- Maria do Carmo Xavier (2008) ob-
tada para as telas. Ainda que Rodrigo não serva que embora Macabéa seja criação de
exista como um personagem, as questões Rodrigo, ela tem seus próprios mistérios.
relativas à solidão estão contempladas no Rodrigo precisa de Macabéa para explicitar
filme. Solidão que o compele ao autoco- seus sofrimentos e angústias em relação as
nhecimento e cujo foco de reflexão recai suas inquietações de ordem social:
sobre os ombros de Macabéa, que, em úl- O fato de a nordestina não conseguir in-
tima instância, é o desdobramento de Ro- teragir-se na sociedade, o que a conduz
drigo S.M.: ao isolamento, revela não só problemas
de moradia, de alimentação e trabalho
Vejo a nordestina se olhando ao espelho dentro da sociedade urbana brasileira,
e – um ruflar de tambor – no espelho a- mas a omissão, a falta de sensibilidade
parece o meu rosto cansado e barbudo. de uma classe de elite intelectualizada
Tanto nós nos intertrocamos. Não há que deveria tomar uma posição diante de
dúvida que ela é uma pessoa física tão absurda realidade social (XAVIER,
(LISPECTOR, 1990, p. 37). 2008, p. 217).
Macabéa externaliza sua solidão e Esse mesmo sentimento inquietante
sofrimento pelas constantes indagações e revelado pela autora, por meio da análise
quem indaga é um ser incompleto. de Rodrigo S.M no romance, é identificado
- Pois é. no filme nas seguintes passagens:
- Pois é o que? No quarto (cortiço?), enquanto Ma-
- Eu só disse pois é. cabéa pinta as unhas, suas colegas se arru-
- É, mas pois é o que? mam para passear no final de semana.
- É melhor a gente mudar de conversa - O banheiro desocupou. Quem vai to-
porque você não entende. mar banho? Ô, Macabéa, você não vai
tomar banho, mulher?
- Entender o que?
- Eu não, assim borra o esmalte.
- Ai meu Deus. Macabéa, vamos mudar
de assunto? - Ô, das Dor, então vai você que o ba-
nheiro está vazio.
- Falar então de que?
- Tá, então eu vou.
- Por que você não fala de você?

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- E o meu cabelo? rais elementares. Não modifica a relação


- Ah, depois eu termino. homem-natureza e não socializa”.
- E você, vai sair com quem? Para além disso, Macabéa não é ca-
- Com ninguém. paz de estabelecer a comunicação, embora
o rádio seja o único fio que a liga ao mun-
- Você não quer passear com a gente no
zoológico? do. Ela não consegue traduzir as in-
formações da Rádio Relógio num discurso
- Eu gosto mesmo é de passear no metrô
que a integre na sociedade e na vida, ou
nos dias de domingo.
seja, a personagem não consegue converter
- No metrô?
os signos em comunicação, ela não verba-
- Eu, hein? Quem gosta de buraco é tatu. liza uma narrativa coerente.
- Eu acho tão bonito o metrô. A incompetência de Macabéa per-
As colegas sorriem. passa todos os seus momentos: ela é uma
Na cena seguinte, Macabéa desce heroína que resiste às situações adversas
as escadas do metrô, sozinha. Ela aguarda do universo humano, das questões de gê-
a chegada dos vagões, mas se posiciona, nero (o lugar do feminino), da sexualidade,
sem perceber, após a linha de segurança. da exclusão social, da origem pobre, da
Enquanto isso, ela nota, envaidecida, que o solidão, da frustração amorosa. Contudo,
guarda “não tira os olhos dela”. Ele se a- seu breve percurso confirma que sua re-
proxima e avisa que é perigoso ficar além sistência é vencida, a sociedade a exclui
da faixa de segurança. constantemente até não existir mais.
Uma Macabéa frustrada pede des- Intertextualidade da obra na literatura e
culpas e afasta-se, sozinha. no cinema
Em outro momento, Macabéa e
Glória conversam em um bar. Macabéa Notemos que as interpretações e
come um cachorro-quente e Glória almoça. correspondências estabelecidas entre a
Eis o diálogo: obra e a lógica do tempo e do espaço do
mundo ‘real’ (contemporaneidade) podem
- Quer dizer que você é virgem mesmo,
também ser feitas nos limites das duas nar-
é, Macabéa?
rativas, que nesse sentido são atemporais,
Macabéa confirma com a cabeça. porque levantam questões de ordem inter-
Glória prossegue: nas, tais como as questões de estética, de
- Também com essa cara! Você é muito estilo, de (meta) linguagem, de caráter so-
desbotada, Macabéa. Precisa comer co- ciocultural e de intertextualidade.
mida pra criar peitinho, bundinha. Veja É impossível deixar de perceber o
eu: fui criada na carne. Meu pai é açou- diálogo e os paralelismos que se estabele-
gueiro. Eu adoro carne. Tem que parar cem entre Clarice Lispector e Machado de
de comer cachorro-quente com coca- Assis, no que diz respeito ao estilo.
cola.
O primeiro ponto que salta aos o-
- Ah, eu como porque é barato, mas o lhos é a questão da onisciência/onipresença
que eu gosto mesmo é de goiabada com do autor/narrador/personagem com os nar-
queijo. radores de Machado. Rodrigo S.M. possui
Macabéa não tem pares, as pessoas a virulência e a sutileza nas/das palavras e
não compreendem sua perspectiva do belo; reflexões sobre o destino da personagem.
ela não sabe produzir nada, segundo a ótica Assim como os narradores de Machado,
do mercado, nem se expressar, a não ser a ele não se restringe a narrar fatos. Na ver-
própria miséria por ela representada. Como dade, ele está tão entrelaçado na vida da
bem explicita Rosana Silva (2007), Maca- heroína que por vezes fica difícil reconhe-
béa “não atende a dois pressupostos cultu- cer de quem são os sentimentos e impres-
sões do mundo e das coisas. Na instância

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humana do romance, ele conhece tão bem qualquer que seja o plano de análise, mas
sua personagem que os dois chegam a se induzida por uma ação salvacionista ex-
confundir, são antípodas de uma mesma terna e superior, que está além da realidade
relação. vivida.
Ao mesmo tempo (numa outra ins- Não podemos esquecer as pitadas
tância que reconhecemos enquanto exercí- de ironia presentes nas narrativas que dão
cio da linguagem), demarca o abismo que cor ao quadro e fazem as ligações entre as
se estende entre os dois. Ele é o detentor da duas realidades: a da ficção e da não fic-
fala, do discurso. Diversas vezes se gaba ção. Tanto Clarice quanto Suzana ‘brin-
do estilo metalinguístico e do domínio do cam’, metafórica e simultaneamente, com
seu instrumento de trabalho – a palavra. os valores do universo criacional e os da
Um segundo ponto é a prevalência sociedade capitalista de consumo.
da análise psicológica (rica nas obras de A saída apontada pela cartomante
Machado), que ganha grande destaque co- de Clarice está no encontro de um amor
mo questionadora do ser humano e do seu específico e preconceituosamente estereo-
papel social, da relação metafísica entre o tipado, aceito como modelo de sucesso
Deus criador e a Existência tal como se dentro da sociedade. A salvação de Maca-
apresenta: o intelectual tem esse caráter béa se dá pela mão de um belo homem
divino de criar vida, inventar um mundo louro, rico e estrangeiro. Sintomático que
próprio, agindo como um Deus no seu uni- nossa heroína seja pobre, esteticamente
verso literário. De um lado, essas inquieta- desinteressante e nordestina e que sua as-
ções são sentidas por intermédio de Clarice censão social (material) e humana (exis-
Lispector, criadora da obra; de Rodrigo, tencial) só possa se concretizar à margem
“cocriador” de Macabéa e de sua condição do processo de tomada de consciência, da
(melhor seria dizer sua não condição); e da SUA consciência. Mais uma vez é marcada
própria Macabéa, que é incapaz de inventar a incompetência de Macabéa para superar
um mundo próprio, porque desconhece que suas debilidades por ela mesma.
possa fazê-lo. Por outro lado, o sentimento No fim, vence o sistema de valores
de inquietude nos vem pelo olhar de Su- capitalistas. Não há qualquer redenção para
zana Amaral, que captou as pequenas epi- ela. Ao mesmo tempo em que o intelectual,
fanias dessa nordestina, Macabéa, e as tra- mais claramente observável no discurso
duziu com a estreita e íntima conexão que literário (Rodrigo/Clarice), se embriaga e
estabeleceu com a obra original. Nas pala- se confunde na existência de Macabéa,
vras de Benjamin (2008, p. 27-31), o filme dela se diferencia enquanto ator, cuja re-
preservou o parentesco das línguas, com- presentação social se manifesta na agência
plementando-se, uma à outra, na totalidade da transformação social. Ele continua a
das suas intenções. existir e a ter lugar no mundo, apesar da
O terceiro ponto é o jogo que o li- panaceia de sentimentos que sua posição
vro e o filme fazem com o conto “A car- social lhe causa.
tomante”, de Machado de Assis, usando
Referências
exatamente os mesmos elementos contidos
nele, ou seja, apresentando uma saída ex- ARAGÃO, Gleyda Lucia C. C. Do livro à
terna à personagem e sua trajetória frente à tela: identidade e representação em A Ho-
impossibilidade de ela própria dar uma ra da Estrela, de Clarice Lispector. Forta-
resposta a suas angústias. leza, 2009. 148 f. Dissertação (Mestrado) –
Macabéa não tem alternativas no Programa de Pós-Graduação em Linguísti-
espaço no qual está imersa e, quando surge ca Aplicada, Centro de Humanidades, Uni-
a oportunidade de reação, ela é falseada, versidade Estadual do Ceará, Fortaleza,
porque não é uma ação provocada pela 2009. Disponível em:
consciência da sua situação no mundo, http://www.uece.br/posla/dmdocuments/gl

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