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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO …………………………………......……………….....................................… 2
2. FUNDAÇÃO E CAMPANHAS FILIPINAS …............………………..….………………….…. 3
2.1 A Origem do Convento das Flamengas ……………….........................................… 3
2.2 Os objectivos e a ideologia política na arquitectura filipina ….................................. 6
2.3 Estado da Questão ………………………………………......................................….. 12
2.4 A primeira campanha filipina: 1586 ………………………...............................…...…. 14
2.5 A Reconstrução do Convento: 1626 …………………….......................................…. 16
2.6 Descrição do Convento ………………………………….......................................…... 19
2.7 A Igreja “epi-maneirista” ..................................................................................... 24
2.8 Os Frias, família de arquitectos ........................................................................... 26
2.9 O Convento das Flamengas na nova dinastia bragantina ....................................... 29
3. O BARROCO NACIONAL NO CONVENTO DAS FLAMENGAS ..................................…. 32
3.1 Conjuntura Política e Económica ………………………….....................................… 32
3.2 A Sala do Rosário 1694 …………………………………..................................…..…. 33
3.2.1. Análise interpretativa do conjunto ………………….............................…..…. 36
3.2.2 A Sala do Rosário enquanto “obra de arte total” ………...........................….. 52
3.3. A capela de João Vanvessem: 1699. ………………...…….....................…………… 56
3.3.1 João Vanvessem (1620-1704), traços biográficos …………………………….. 56
3.3.2 Análise de capela ……........................................................................…. 58
3.3.3 O conjunto pictórico da sacristia da igreja: estado da questão ............. 61
3.3.4 Reinserção das telas no espaço ........................................................... 64
3.3.5 Análise das telas da “Exaltação da Cruz” .............................................. 67
3.3.6 Análise das telas do “Caminho da Perfeição” ....................................... 69
3.3.7 O Caminho da Perfeição e a vida de João Vanvessem ........................ 78
4.CAMPANHA ROCOCÓ E OS AZULEJOS DA IGREJA ……………….........…………………. 80
5.O DECLÍNIO: DO LIBERALISMO À ACTUALIDADE ………....….........……………………. 96
5.1.Tempos difíceis: 1834-1887 …………………………............................……………. 96
5.2.A inevitável extinção e o destino do património: 1887 ….......................…………. 98
5.3.As intervenções e actuais problemas …………...........................……...…..………. 103
6 CONCLUSÃO ………………………………………...................….......…………………………. 106
FONTES / BIBLIOGRAFIA ………………...………………………...................…………………… 107

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

1. INTRODUÇÃO
A Presente monografia nasceu como um trabalho curricular apresentado em 1998 na cadeira
de Seminário, regida pelo Prof. Dr. Vítor Serrão, na licenciatura em História, variante em História
da Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Cinco anos volvidos sobre a conclusão deste trabalho, nunca deixamos de manter uma
relação de afectividade com a História e o Património deste monumento, tão desconhecido dos
lisboetas e dos historiadores em geral.
Nunca deixamos de ter uma insatisfação pelo facto das descobertas feitas, da investigação
desenvolvida, ficarem no esquecimento de uma secretaria de Universidade, sem que este
estudo contribuísse, de alguma forma, para alertar a comunidade para um dos mais importantes
monumentos da capital.
Ao longo da nossa vida profissional, temos tentado, muitas vezes sem sucesso, publicar total
ou parcialmente as conclusões mais importantes deste estudo. Mas após inúmeras tentativas,
apenas conseguimos concretizar, no ano 2002, a publicação de uma comunicação proferida em
2000, onde sintetizámos, a nosso ver de modo insatisfatório, as principais novidades que este
trabalho trouxe.
Com a publicação integral deste estudo, com a necessária revisão que cinco anos de
experiência obrigam a fazer, julgamos dar o nosso contributo para que se conheça um dos
conventos mais interessantes da capital.

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2 FUNDAÇÃO E CAMPANHAS FILIPINAS


2.1. A ORIGEM DO CONVENTO DAS FLAMENGAS
As freiras do Convento de Nossa Senhora da Quietação vieram da Flandres (Países Baixos),
na época sob domínio Espanhol. Para saber a conturbada história destas religiosas, que
escolheram Portugal como o seu país de refúgio, será necessário consultar a obra da Madre
Soror Catarina do Espírito Santo1.
A história destas freiras não é diferente de tantas outras comunidades religiosas que vieram
fugidas das guerras religiosas na Europa do século XVI. Todas tiveram em comum o facto de
verem em Portugal, não só um paraíso de paz e tranquilidade, mas também um baluarte do
catolicismo, mais fortalecido com a Conta-reforma tridentina e com a nova dinastia filipina.
Por volta de 1572, organizou-se nos Países Baixos um exército de libertação encabeçado
pelo príncipe Guilherme de Orange. O seu objectivo inicial era expulsar o domínio estrangeiro
exercido pelos Áustrias, mas acabou por reprimir tudo aquilo que Filipe II representava, ou seja,
o Catolicismo forte e renovado que ia contra as ideias protestantes. O confronto foi inevitável e a
revolta espalhou-se rapidamente incentivada pela fraca resistência das autoridades espanholas
e pelo forte apoio popular. A população flamenga via no rei de Espanha e, por consequência, na
Igreja Católica um inimigo e um opressor.
É em Alkmaar que vamos encontrar a origem das freiras Flamengas. Esta cidade foi
fortemente atacada pelos rebeldes que cercaram o convento das freiras Clarissas. Com a ajuda
de alguns católicos, as freiras conseguiram escapar de noite antes do assalto dos soldados,
salvando apenas as partículas do Santíssimo Sacramento. O “Corpo de Deus” foi escondido
entre elas na carroça utilizada durante a fuga.
Quando chegaram a Haarlem, as freiras pediram auxílio às autoridades da cidade. O
governador permitiu a sua entrada e foram acolhidas pelas freiras carmelitas descalças da
cidade. Quando na cidade se soube desta permissão, houve logo grandes manifestações da
população que pretendia tomar de assalto o convento. O motivo para esta má recepção foi o

1Soror Catarina do Espírito Santo também sofreu as perseguições ocorridas nos Países Baixos mas não pertencia
ao grupo inicial. Era filha de D. Luís Carrilho, um castelhano governador de Hoogstraten, cidade do Barbante em
cujo convento franciscano vivia Catarina. Devido ao cargo do seu pai, esta freira foi alvo de tentativas de sequestro
pelos protestantes. A pedido do governador, Filipe II recebe em Lisboa a religiosa e coloca-a no entretanto fundado
Convento das Flamengas. Todavia, é esta religiosa que nos conta em castelhano a origem e percurso do núcleo
original de freiras flamengas que fundaram este convento. O livro publicado apenas em 1627 foi dedicado à Infanta
Soror Margarida da Cruz e foi levado à estampa por vontade da Condessa de Calheta, benfeitora do Convento. Esta
obra é uma importante fonte para as conturbadas guerras religiosas e de libertação política que se viveram nos
Países Baixos no século XVI, devendo pela sua importância ser difundida entre os historiadores holandeses e
belgas.

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receio da população de Haarlem que este acolhimento motivasse uma invasão do príncipe de
Orange como represália.
Perante este receio, as autoridades da cidade pediram às freiras que se retirassem, embora
com um pedido formal de desculpas.
Nos mesmos três carros de bois com que haviam chegado, as freiras saíram de Haarlem e
dirigiram-se para Amsterdão onde foram acolhidas por uma senhora nobre, irmã de uma das
religiosas. O marido desta benfeitora era o governador da cidade que tomou as providencias
necessárias para as abrigar no convento das Descalças. Aqui permaneceram por seis anos
[Espírito Santo, 1627, fl. 8 e 9.].
No entanto, em 1578, a cidade de Amsterdão foi cercada e a população não teve outra
solução se não renderem-se às tropas protestantes. Os invasores tomaram de assalto os
templos mas não foram violentos para com os religiosos católicos, obrigando apenas as freiras a
se vestirem como mulheres normais.
Apesar de não serem perseguidas, as freiras optaram por embarcar e sair de Amsterdão.
Passaram por vários portos sem dificuldades até que chegaram a Antuérpia. Aqui, o grupo de
Alkmaar dividiu-se. Metade foi para Malines, onde esteve dois anos, tendo as outras
permanecido em Antuérpia.
Em 1580, Malines estava também sitiada pelo príncipe de Orange. Dentro da cidade rebenta
um motim motivado falta de mantimentos. A 12 de Abril desse mesmo ano, os protestantes
entram na cidade com o auxílio dos ingleses e destruíram as igrejas e mosteiros. O convento
das Clarissas, onde estavam as freiras de Alkmaar não foi poupado e as freiras foram
capturadas na enfermaria onde estavam escondidas.
Por quatro dias, os invasores ocuparam o convento libertando, em troca de dinheiro, as
freiras junto dos familiares. No entanto, a dada altura, as novas autoridades da cidade
impediram o acolhimento familiar e as freiras vagueavam pela rua sem poderem ir para um
convento ou sair da cidade.
As freiras de Antuérpia juntaram quatrocentos florins, com a ajuda dos fiéis, e resgataram as
religiosas cativas em Malines e Hoogstraten. Com a chegada destas refugiadas, o convento de
Antuérpia passou a comportar duzentas religiosas que estiveram nesta cidade por um ano e um
mês.
Em 1581, o príncipe de Orange ocupou Antuérpia e prometeu, de início, proteger o culto
católico nos seus domínios, decerto pela forte presença de católicos no Sul da Flandres. No
entanto, a população protestante revoltou-se contra os católicos, que representavam a lealdade

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para com Filipe II e foi decretada a expulsão da cidade dos religiosos masculinos. As freiras
puderam ficar mas seriam secularizadas e proibidas de assistir ao culto.
Com estas imposições, consideradas humilhantes, as religiosas optaram por abandonar
voluntariamente a cidade. Para este exílio contribuíram as doações dos nobres e dos ricos
mercadores locais que professavam a fé católica.
Devido ao seu grande número, as freiras de Antuérpia foram obrigadas a dividirem-se. No dia
3 de Julho de 1581, deu-se a separação tendo vários grupos seguido para a Europa Central que
permanecia católica. Só um pequeno grupo das freiras, as do Convento de Alkmaar, decidiram
seguir para a Península Ibérica, reclamando do seu estatuto de vassalas de Filipe II. [Espírito
Santo, 1627, fl. 16 a 21.]
A 21 de Setembro, chegaram a Santander e em Outubro aportaram em Bilbao onde
decidiram ficar. Contudo, pela pobreza da região, passaram muitas necessidades. Vendo que
não havia nessa cidade condições ou algum convento que as recolhesse decidiram partir para
Lisboa, a 5 de Fevereiro de 1582, onde ainda se encontrava o rei espanhol.
Contribuiu para esta decisão a fama de riqueza que o nosso país tinha na Flandres desde o
tempo de D. Manuel I e a coincidência de Filipe II de Espanha ter sido coroado, recentemente,
rei de Portugal.
Apesar da bonança que apanharam por toda a viagem, foram obrigadas a aportar no porto
de S. Martinho, perto do mosteiro dos Padres Capuchinhos da Arrábida. O frades recolheram-
nas em ambiente de festa. Uma rica benfeitora local, D. Brites, doou-lhes fartas esmolas.
O padre confessor das freiras de Alkmaar, um inglês que, desde Antuérpia, as acompanhava
escondido, decidiu partir para Lisboa com quatro freiras, deixando as outras cinco recolhidas no
convento da Arrábida.
A 1 de Março de 1582, o padre confessor e as freiras que o acompanhavam chegaram ao
mosteiro de S. Francisco de Xabregas, cabeça da província franciscana dos Algarves, onde
foram bem acolhidas. O Provincial mandou que as freiras seguissem para o convento feminino
da Madre Deus. Enquanto isso, o padre confessor foi chamado à presença do Rei Filipe II. Este
ouviu a história da destruição do convento de Antuérpia e a fuga das duzentas monjas, sendo
este grupo o único que optou por manter-se sob a alçada política do rei católico.
Filipe II mandou buscar as que estavam na Arrábida e ordenou que permanecessem todas
na Madre Deus e se mantivessem como uma comunidade. Obtiveram o apoio da Infanta D.
Margarida e da Imperatriz que prepararam o sítio de Nossa Senhora da Glória para as receber.
Foram incorporadas na Província dos Algarves da Ordem de S. Francisco para poderem

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continuar sob a alçada das duas benfeitoras. Elegeram a sua primeira abadessa e mantiveram-
se sobre a regra original de S. Francisco e Santa Clara.
Só a 4 de Outubro de 1582 é que se lhes juntou a autora da crónica que relata estes
eventos, a Madre Soror Catarina do Espírito Santo, perfazendo o número de dez monjas. Esta
era uma jovem espanhola filha de um alto dignatário do governo de Filipe II na Flandres.
A 11 de Dezembro desse mesmo ano, as freiras flamengas foram chamadas à presença da
família real. O rei prometeu cuidar delas e tudo fazer para evitar que passassem as
necessidades do passado, mantendo a sua política de favorecimento das ordens religiosas.
Foram para o Convento da Anunciada de onde saíram numa procissão para o novo local com a
participação dos músicos da Capela Real, acompanhadas pela Imperatriz, a Infanta D.
Margarida e o Cardeal Arquiduque Alberto, tendo sido benzidas pelo Bispo de Lisboa, D. Jorge
de Ataíde [Espírito Santo, 1627, fl. 23 a 25.]
Após os festejos, as freiras foram deixadas em repouso depois de tantas e conturbadas
perseguições. Nos anos que se seguiram, o convento passou a ser o refúgio de muitas freiras
flamengas que fugiam das guerras religiosas e encontravam neste outro reino de Filipe II um
paraíso da paz protegido por um forte catolicismo.2
Por quatro anos estiveram as Flamengas no sítio de Nossa Senhora da Glória, mas
abandonaram-no por ser doentio. Decidiram então construir um novo convento em Alcântara,
topónimo que muito se assemelhava à sua terra natal: Alkmaar.
Enquanto as novas instalações se preparavam, mudaram-se para o Convento das Carmelitas
Descalças de Santo Alberto, tendo ocupado definitivamente o actual convento a 8 de Dezembro
de 1586. A invocação escolhida foi a de Nossa Senhora da Quietação, orago evocativo da
calma e da paz que procuravam para que nunca mais sofressem as inquietações do passado
[BNL, Cod. 7784, fls. 3 a 7].

2.2. OS OBJECTIVOS E A IDEOLOGIA POLÍTICA NA ARQUITECTURA FILIPINA


A fundação do Convento das Flamengas ao Calvário deve ser inserido na conjuntura
histórico-artística da sua época que teve um importante peso na sua formação.
Em 1578, D. Sebastião morre no Norte de África deixando como único descendente o seu tio
avô, D. Henrique, um velho Cardeal com poucas hipóteses de dar ao país descendência ou um

2 O Convento das Flamengas encontrou assim a sua vocação. No epílogo à obra de Soror Catarina do Espírito
Santo, frei Juan de las Llagas chama a atenção para que “todos los que de catholicos nos preciamos tengamos
lastima de nuestros hermanos, hijos de nuestra comun Madre, la Iglesia, que en aquellas tierras vivem tan
miserablemente opprimidos por los hereges, hagamos com amor fraternal por ellos (…)”[Espírito Santo, 1627, fl. 35.]

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grande reinado. O problema da sucessão tornou-se inevitável, sendo Filipe II de Espanha o mais
sólido candidato. Apesar da sua forte pretensão, este monarca não se quis tornar rei de Portugal
pela violência, mas sim pela diplomacia. Com base nesta política e com o objectivo de satisfazer
a nobreza, este soberano irá dar ao nosso país a maior autonomia possível. Esta liberalidade da
União Ibérica será de tal forma suave que o rei será acusado, pelo lado espanhol, de ser
demasiado permissivo. Na Flandres, por outro lado, mantinha-se uma apertada e impopular
dependência de Madrid, o que foi o motivo principal para as grandes revoltas.
Para evitar estas mesmas convulsões em Portugal, Filipe II permite que as premissas da
autonomia portuguesa sejam as mesmas do velho projecto de união ibérica de D. Miguel da
Paz, filho de D. Manuel, mas com uma autonomia ainda mais alargada para Portugal. Desta
forma, o único laço que unia Espanha ao nosso país era apenas a coincidência de terem o
mesmo indivíduo como rei, já que até os impérios coloniais se mantiveram totalmente
separados. A moeda, a iconografia régia, a heráldica de estado e até os documentos de
chancelaria mantiveram-se como se não existisse uma União Ibérica. Até a numeração do
monarca foi adaptada à cronologia portuguesa: Filipe II passou a ser D. Filipe I de Portugal.
A nível ideológico, o novo rei não tomou qualquer iniciativa de apagar o passado histórico de
Portugal. Antes pelo contrário, fez tudo para ser considerado o legítimo descendente e sucessor
de D. Afonso Henriques e de D. Manuel. A nível político teve uma sábia administração,
suprimindo os excessos do reinado de D. Sebastião e acabando com os abusos e a corrupção
que minavam a Fazenda Régia. Desta forma, conseguiu pôr o aparelho de Estado a funcionar
tão bem como o espanhol, a máquina administrativa mais avançada da Europa de então.
Esta política de respeito para com os portugueses também se constatou na Arte, em
particular na Arquitectura. Lisboa mantinha-se como capital de um império mas deixava de ter a
figura pessoal de um rei. Desapareceu a personagem que tantas vezes se mostrava ao povo
assegurando por si só a justiça para os fracos e a união do reino. Filipe II sabia desta lacuna
que nunca poderia suprimir pois jamais abandonaria Madrid. Assim, decidiu conceber um
complexo e enorme plano de obras para a capital de Portugal, que a ornaria de edifícios dignos
de uma metrópole imperial, ao mesmo tempo que mantinha viva e sempre presente a imagem
do Rei.
A escolha precisa dos edifícios onde intervir obedeceria a um critério rigoroso que visava
cumprir quatro objectivos bem concretos.
O primeiro era o favorecimento das Ordens Religiosas. O Concílio de Trento (1563) havia
decretado a revitalização destas comunidades que passavam a ter objectivos muito concretos

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no combate à heresia reformista. Lutero havia criticado a inutilidade e o desleixo dos monges
que viviam à custa dos crentes. A Santa Sé reconheceu o erro e obrigou à moralização das
ordens antigas, criando outras vocacionadas para o combate ao Protestantismo em várias
frentes. Estas novas ordens, como os Jesuítas, irão necessitar do apoio da Coroa para a
construção dos seus conventos nas cidades. Os grandes centros urbanos, como Lisboa, eram a
área de intervenção das novas ordens pois eram o local onde residia a classe culta e humanista
que possuía na sua biblioteca as obras literárias proibidas e consideradas geradoras de desvios.
Ironicamente, o perigo protestante quase nunca existiu em Portugal.
Este favorecimento das Ordens Religiosas começara no reinado de D. João III prolongando-
se pelo de D. Sebastião e de D. Henrique. O velho Cardeal Rei, que na juventude havia sido um
intelectual humanista, fora posteriormente um pilar da Contra-reforma portuguesa. No seu curto
reinado iniciaram-se as grandes obras, pelo menos em projecto, de Santo Antão-o-Novo, dos
Jesuítas, e de S. Bento de Lisboa, dos Beneditinos.
Filipe II, o mais católico dos monarcas, não contrariou a política construtiva dos seus
antecessores. O seu gosto pessoal pela arquitectura e o facto de ter o combate às heresias nos
objectivos da sua administração levou a um desenvolvimento de novas construções. Apesar dos
Jesuítas terem sido largamente beneficiados, não foram os únicos. Novas ordens foram criadas
como os Teatinos ou os padres do Oratório. As velhas ordens de génese medieval foram
recicladas e remoralizadas. O Concílio de Trento havia salientado a importância da localização
dos conventos nas grandes cidades onde funcionariam como “redes” para capturar os fiéis.
Conventos que normalmente preferiam a reclusão no campo, abrem as suas igrejas aos
católicos aonde o fausto, a riqueza, os cânticos e a música do culto cativavam multidões
afastando-as de quaisquer desvios.
O segundo objectivo deste surto de obras na cidade de Lisboa foi a legitimação de Filipe II
como rei de Portugal. Este monarca interferiu em edifícios conotados com as dinastias
anteriores com um grande significado simbólico e político. O objectivo não era apagar os
vestígios do passado, mas antes revivê-los. Ou seja, Filipe II não quis iniciar uma nova dinastia,
quis antes ser considerado o legítimo sucessor da anterior. Será com base nesta ideologia que
Filipe II interviu nos diversos monumentos conotados com a dinastia de Avis, como o Convento
de Cristo em Tomar ou os Jerónimos.
Para afastar a ideia do rei distante, imprópria e inconveniente para uma capital imperial, os
filipes irão intervir em numerosos palácios, aumentando os antigos e criando novos. Disto é o
maior exemplo o Palácio da Ribeira, obra longa que durante décadas manteve a presença de

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um rei ausente. Outras intervenções decorrem nos paços de Almeirim (1581) Sintra e Salvaterra
(1599) [Soromenho, 1995, p. 381] dando-se a construção de novos palácios como o de
Alcântara (1600) que só albergou um monarca debaixo do seu tecto sessenta anos após a sua
construção.
Há também um conjunto de monumentos que pela sua história individual foram escolhidos
para serem intervencionados. É o caso de S. Vicente de Fora que era o símbolo da conquista de
Lisboa aos Mouros por D. Afonso Henriques. Filipe II, que também havia conquistado a capital a
D. António, quis colocar-se no papel de Rei conquistador e libertador e mandou reconstruir
totalmente este convento. Há ainda mais casos específicos como o Convento das Flamengas
onde Filipe II faz uma obra para se legitimar como Rei dos Países Baixos no preciso local onde
derrotou o exército de D. António; ou em Santos-o-Novo onde favorece uma ordem de génese
castelhana.
O terceiro vector que assistiu à edificação do Convento das Flamengas foi o incentivo do
novo rei a um crescimento ordenado da cidade de Lisboa. A capital portuguesa era também a
metrópole de um vasto império colonial sendo a cidade mais populosa da península com cerca
de 165.000 habitantes [Idem, p. 394]. No entanto, com a união Ibérica havia perdido a presença
do Rei. Isto era algo de muito importante do ponto de vista das mentalidades, pois, a presença
de um monarca dava segurança aos habitantes e importância à cidade. Filipe II quis, de alguma
forma, suprimir esta falta e proporcionou à capital portuguesa um crescimento ordenado para
fora dos seus muros medievais. Este crescimento foi feito através da criação de vias
estruturantes que quer para Ocidente, quer para Oriente, acompanhando sempre a margem do
rei Tejo.
As vistas sobre o Tejo eram muito apreciadas pelos lisboetas de quinhentos, ao ponto de
haver conflitos entre moradores pelo direito à paisagem, já que esta valorizava uma propriedade
[Ferrão, 1994, p. 239].
Estas vias estruturantes irão ser desenhadas pelos conventos e palácios que fogem do velho
burgo medieval apertado e insalubre, onde os terrenos eram caros e fortemente disputados pela
população. As margens do Tejo e as propriedades afastadas da cidade, proporcionavam, pelo
contrário, a certeza de terrenos baratos, com bonitas vistas, calmos, tranquilos, frescos e
saudáveis. Aqui, os conventos e palácios podiam crescer sem limites e de forma organizada,
sem provocar descontentamentos entre a população [Serrão, 1994, p. 198]. Estes arruamentos
largos e compridos pautados por novos conventos e palácios seriam, no futuro, pólos atractivos
da população proporcionando um crescimento “ordeiro” da cidade nos séculos seguintes.

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Este surto de crescimento na Lisboa quinhentista, fruto da vontade mútua de Filipe II e das
autoridades municipais lisboetas, que não desejavam ver a cidade perder importância pelo facto
de aí já não residir um monarca, irão ditar os locais onde se construirá a maioria dos novos
conventos.
São estes os três vectores estruturantes que estiveram presentes no surto construtivo na
cidade de Lisboa, entre 1580 e 1620, onde naturalmente se inclui o Convento das Flamengas ao
Calvário. Existe ainda mais um que, a nível histórico e político pode ser considerado secundário,
mas que, para a História de Arte, é de capital importância. Trata-se do gosto pessoal de Filipe II
pela arquitectura.
Apesar da complexa administração dos seus vastos reinos, Filipe II tentava, sempre que
possível, passar algum tempo com Herrera, acompanhando o evoluir dos diversos projectos
[Kubler, 1988, p. 99]. Estando prevista uma tão grande intervenção arquitectónica em Lisboa,
com diversos estaleiros, Filipe II irá dar uma grande importância à linguagem utilizada e ao tipo
de arquitectura praticada. A arquitectura portuguesa, em 1580, era chã, ou seja,
desornamentada, vernácula, sem qualquer carácter erudito, obedecendo apenas às exigências
práticas que se deparavam aos arquitectos, estes por sua vez formados na engenharia militar de
D. Sebastião, com rudimentares conhecimentos teóricos.
Filipe II, ao dar início às grandes campanhas em Lisboa, poderia ter simplesmente utilizado
os arquitectos já instalados em Portugal. No entanto, devido ao seu gosto pessoal e
sensibilidade estética, Filipe II vai trazer para Portugal uma arquitectura erudita e de vanguarda
a nível europeu, mas sem atropelar a ordem e a classe de arquitectos já existente no nosso
país.
A apresentação desta nova linguagem, mais erudita e italianizante, será feita aos arquitectos
portugueses nos estaleiros de S. Vicente de Fora e no Paço da Ribeira. Esta nova maneira de
construir, personificada por Filipe Terzi, não será uma imposição estética, mas sim a
apresentação de um novo caminho que os arquitectos portugueses eram livres de seguir. A
liberdade de optar entre o modelo vernáculo desenvolvido através da arquitectura militar e da
igreja de S. Roque, e o modelo erudito trazido por Filipe II, levado à prática por Terzi e
desenvolvido em S. Vicente de Fora fará uma dialéctica de variantes inesgotáveis que durarão
até ao século XVIII e se espalharão por todo o Império Colonial Português [Pais da Silva, 1996,
p. 170].

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Será portanto a tentativa de alinhar a arquitectura portuguesa com os modelos estrangeiros o


quarto factor que assistirá às campanhas de obras de Filipe II na capital do seu mais recente
reino: Portugal.
Com base nestes quatro pilares podemos concluir que o mecenato filipino irá proporcionar a
construção, em Lisboa, de grandes conventos, fora dos muros medievais, proporcionando desta
forma o crescimento da cidade. Estes possuem uma carga ideológica que legitima o novo
monarca e seguem, sempre que possível, os cânones da arquitectura erudita de Herrena. É esta
a construção filipina perfeita.
No entanto, nada disto é uma imposição. Muitos conventos não pretenderam legitimar Filipe
II como rei e menos ainda pretendem seguir uma arquitectura diferente da que era utilizada pela
classe de arquitectos há muito instalada em Portugal. Por vezes, as novas soluções
apresentadas passam completamente à margem de certas construções deste período
[Soromenho, 1995, p. 381], como é o caso das Flamengas onde o factor da legitimação política
é mais importante que qualquer opção estilística.
De facto, o Convento das Flamengas não se enquadra nem na corrente erudita de S. Vicente
de Fora, nem tão pouco na corrente vernácula de S. Roque. Kubler refere uma terceira corrente,
ainda mais desornamentada e própria dos conventos femininos que viria a ser a génese da
arquitectura da restauração [Kubler, 1988, p. 157].
Este modelo tem como expoente máximo o Convento de Santa Clara-a-Nova de Coimbra
(1677-1696) onde se observa uma composição de nave única, sem capelas intercomunicantes,
apenas com duas laterais pouco salientes e um grande coro por detrás da nave.
O modelo conventual feminino português foi iniciado, segundo este autor, noutro templo de
Clarissas, Santa Clara de Évora (1600-1610) onde já se observa a nave como uma ampla
câmara paralelepipédica para onde o público de fiéis entrava por um pequeno portal lateral.
Dentro da nave o público tinha dois pólos que o atraíam, o altar mor onde estava o retábulo e o
sacrário e, no sentido oposto, o coro baixo, onde as freiras cantavam durante o culto, estando
separadas dos fiéis por uma pesada grade de ferro.
O alçado destes templos de Clarissas, e dos conventos femininos em geral, é caracterizado
pela completa nudez das paredes, onde apenas se observam pequenas janelas, contrafortes e
um portal lateral singelo. O modelo para estas construções estará na arquitectura militar e no
exterior da capela mor dos Jerónimos.
Kubler coloca esta corrente como uma opção estética, a par das já abordadas corrente
erudita e a corrente vernácula/utilitária. Mas, em que medida esta opção é um gosto estético?

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Tal como Kubler verificou, esta desornamentação é exclusiva dos conventos femininos não
sendo aplicada noutros edifícios.
Este despojamento é utilizado pois era o que melhor servia os ideais de decoro e reclusão
dos conventos femininos. A decoração exterior é apagada pois é sinónimo de vaidade, luxúria e,
consequentemente, de perdição. Esta pobreza de fachada é compensada pela riqueza interior,
primeiro de azulejos policromos e depois em talha e pintura, numa dialéctica de corpo/alma.
O edifício simbolizava assim a freira ideal: feia, austera e pobre por fora (corpo), bonita, rica e
exuberante por dentro (alma). Com base neste raciocínio, é difícil considerar a
desornamentação dos conventos femininos como uma mera corrente estética. Este modelo não
era suposto ser aplicado em conventos masculinos, igrejas paroquiais ou palácios, sendo por
sua vez obrigatório nos conventos femininos. Portanto não se trata de uma opção estética ou de
um gosto, mas sim de uma imposição ideológica.
É portanto neste panorama de múltiplas vertentes e opções estilísticas que o Convento das
Flamengas irá aparecer. Tendo a oportunidade de optar por um modelo mais erudito, acabará
por escolher o tipo de construção que ideologicamente melhor se adapta a um convento
feminino.
Contudo, este modelo conventual feminino apenas se iniciou nos inícios do século XVII, pelo
que, o convento das Flamengas, construído por Filipe II, não seguiria este modelo
arquitectónico. Assim, convém abordar as várias campanhas de obras que originaram o actual
edifício.

2.3. ESTADO DA QUESTÃO


Uma das primeiras obras que se deteve um pouco na análise do imóvel foi o manuscrito de
Luís Gonzaga Pereira (1840), autor ainda muito ligado ao Antigo Regime que atacou a Lei de
Extinção das Ordens Religiosas. No entanto, podemos considerá-lo um dos primeiros e únicos a
olharem para a sua arquitectura e perceber a sua mensagem: a planta, alçado e corte desta
igreja é feito ao rigor da Ordem, tendo por magestoso a oração, primeiro objecto em que deve
pôr a mira o bom católico, concluindo finalmente, podemos afirmar não ser dos piores templos
da Corte [Pereira, 1929, p. 335].
Sendo esta uma obra de génese filipina foi, naturalmente, conotada com o regime espanhol,
considerado pela historiografia oitocentista como uma tirania usurpadora sustentada por
portugueses corruptos, traidores e pervertidos. Para os autores do final do século XIX, como
Gomes de Brito, a Arte Portuguesa podia-se escrever em três volumes: D. João II, D. Manuel e

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esse largo succeder de decadências que o reinado horroroso de D. João III iniciou [Brito, 1888,
p. 70]. Este último período foi considerado um inventário de constantes attentados contra a
integridade da Arte [Idem, p. 71].
Os imóveis semelhantes ao Convento das Flamengas eram considerados inúteis, enormes e
sem gosto: e o das Flamengas é a atestadora do mau gosto das construções feitas entre D.
Filipe I e D. Pedro II (…) Como amostra do que foi a architetura civil sumptuosa em Lisboa e,
pode-se dizer em todo o reino, essa lôbrega treva artística dos restos do XVI século e de todo o
XVII, ahi temos (…) o solar dos Condes de Óbidos, casarão immenso, em que a insipidez do
todo e a chateza da concepção disputam primazias, com vergonha da Arte e oppóbrio do gosto
[Idem, p. 72].
Sendo esta a opinião que a historiografia oitocentista nutria pela arquitectura seiscentista, o
mesmo sentimento estará presente em relação aos seus executores: os Frias (…) estão bem
longe como artistas, de merecer altos conceitos, embora o (…) Patriarcha da família, Nicolau de
Frias passasse à posteridade (…) como “grande architecto” (…). Não é pois porque, insignes
pelas obras que deixassem, credores enfim de celebrada memória, intentemos hoje em modesta
página vingar os Frias do esquecimento ingrato das gerações. É pelo contrário, porque esta
família de architectos de paes e filho, representante das tradições da Arte, cúmplice certamente,
nas degenerescências d’ella por annos e annos de successivas decadências (…)[Idem, pp. 73 e
74].
Após o ataque frontal à arte seiscentista, este autor limitou-se no seu artigo a enumerar as
sepulturas da igreja do Convento das Flamengas, criticando-as também. Referiu, de igual forma,
o livro de Madre Soror Catarina do Espírito Santo e transcreveu os documentos publicados por
Viterbo nesse mesmo ano.
Todavia, não houve uma resposta à altura de toda esta agressividade, pois, a sociedade da
época comungava inteiramente destas opiniões. Sanches de Frias, considerando-se
descendente da família dos arquitectos, foi timidamente em socorro dos seus antepassados.
Todavia, concorda plenamente com Gomes de Brito quanto à ostracização da arte do período
filipino: a influência reformadora da Renascença (…) desde a menoridade de D. Sebastião até
D. João IV, apagou no espírito dos artistas a aspiração do bello, e aniquilou por completo o
sentimento inventivo e o gosto pelas obras do passado. Do período excepcional em que figuram
um mancebo loucamente aventureiro e fogoso, um rei clerical e decrépito e uma usurpação
ferrenha e enervadora, tudo esprimido abraçado e dirigido pela omnipotência dos Jesuítas, não

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podiam sair artistas, que nos merecessem hoje largos conceitos, nem se tornassem insígnes
pelas obras que deixassem, nem credores de celebrada memória. [Frias, 1889, p.45].
Apesar de comungar do mesmo espírito anti-seiscentista, este autor vai defender os seus
antepassados dizendo que, em vez de cúmplices, são vítimas do seu tempo. No entanto, a
incapacidade de olhar para o monumento com isenção de preconceitos manteve-se, pois este
estudo acabou por decair numa história genealógica dos Frias.
No início do século XX, deu-se o período da olisipografia protagonizada por historiadores
amadores, alguns de grande nível, mas que regra geral repetiam aquilo que era descrito pelas
velhas crónicas conventuais, ligando os monumentos a factos históricos neles ocorridos.
Inclui-se aqui as palavras de João Paulo Freire, Norberto de Araújo e, mais recentemente,
Meyrelles Souto. Seguindo o mesmo tipo de abordagem surge a obra de Maria Maia Ataíde que,
no entanto, tem uma maior preocupação analítica na leitura da obra de arte, tentando interpretá-
la.
A nova geração de historiadores de Arte, especializados em ramos muito concretos, não têm
dado muito valor a este monumento. Ao nível do estudo da arquitectura este contributo é nulo,
sendo o Convento das Flamengas mais conhecido pela sua pintura e azulejaria do que pela
participação dos Frias.
Chegamos assim a uma situação em que o estudo do Convento das Flamengas teve um
arranque bastante prematuro, mas ficou arrumado nas “obras a esquecer” e assim permaneceu
até hoje.

2.4. A PRIMEIRA CAMPANHA FILIPINA: 1586


A 11 de Dezembro de 1582, Filipe II mandou que as freiras flamengas saíssem do Convento
da Madre Deus para o sítio de Nossa Senhora da Glória3, ainda muito perto do centro da cidade
e por isso apertado e insalubre.
Por esta razão, em 1586, as freiras mudaram-se deste local para o Convento de Santo
Alberto onde aguardariam a conclusão da sua residência em Alcântara.
Tomou parte activa nesta construção o Arquiduque Alberto, Cardeal e Vice-rei de Portugal,
que herdara do tio o gosto pela arquitectura. Este tinha plena consciência dos objectivos do
plano de obras de Filipe II para a cidade de Lisboa.

3 Esta casa era junto à Ermida da Glória, a Valverde, a actual Avenida da Liberdade. Esta ermida deu o nome às
actuais Calçada, Rua, Travessa e Elevador da Glória [Araújo, s.d., p. 33]. Após o abandono desta casa pelas freiras
flamengas foi transformada em palácio pelos Condes de Castanheira. Actualmente corresponde à encosta Oeste da
cidade sobranceira à Avenida da Liberdade.

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De início, houve algumas dificuldades em definir o projecto arquitectónico, pois, como as


religiosas eram de diferentes origens não se entendiam quanto à sua traça. Foi o próprio
Cardeal Arquiduque que resolveu a situação definindo os estatutos da regra, simples para não
ofender ninguém. Esta simplicidade também estará presente na obra de arquitectura [BNL, Cod.
7784, fls. 3 a 7]
Sendo esta uma obra régia, tomou também parte Gonçalo Pires de Carvalho4, provedor das
obras reais, que teve um papel pessoal nesta construção. Não se limitou a supervisionar a obra
de forma distante. Pelo contrário, Gonçalo Pires de Carvalho esteve em contacto permanente
com a construção e manteve uma grande amizade com as freiras flamengas. Esta relação
resultou devido ao seu espírito intelectual que necessitava de contactar com expressões do
pensamento norte-europeu. Em reconhecimento pela sua amizade e pelos seus serviços, as
freiras flamengas ofereceram-lhe uma das duas imagens de Nossa Senhora de Monte Agudo
que tinham sido resgatadas à fúria herege.5 [Santa Maria, 1707, pp. 393, 431 e 432].
Quanto ao arquitecto que concebeu o convento, sabemos que a planta terá saído do punho
do próprio Cardeal Arquiduque Alberto, de forma a resolver problemas que dividiam as próprias
freiras. Quanto ao mestre de obras que concretizou a obra nada sabemos.
Não é possível considerar que a construção se tenha prolongado por muito mais tempo para
além de 1586, pois existem várias sepultura na nave, sendo a primeira a de Garcia da Veiga,
que está datada de 1588. Seguiram-se-lhe Jerónimo Henriques, em 1595, Álvaro de Castro e
Barbara de Tápia, em 1604.

4 Gonçalo Pires de Carvalho era neto de Pêro de Carvalho e filho de João de Carvalho, ambos provedores das
obras régias. O pai morreu em 1578 na batalha de Alcácer Quibir na companhia de D. Sebastião. A sua função era a
de provedor de todas as obras de mosteiros, igrejas e ospitais e das obras que se fizer, asi nos meus paços e nas
casas da Índia e Mina nesta cidade de Lixboa, como em quaisquer outras partes de meus reinos que se ajão de
pagar às custas de minha fazenda[ANTT Chancelaria de D. Filipe I, Livro 18, fl. 231] função que consistia numa
espécie de ministro da cultura do século XVI. A sua tarefa residia em administrar o dinheiro da coroa nas obras
régias que faziam parte do plano de obras de Filipe II para o país e para a cidade de Lisboa. Era um trabalho político
e económico de coordenação dos diversos estaleiros, cabendo a direcção artística a Filipe Terzi que lhe devia
obediência: mando a todos os almoxarifes, reçebedores, escrivais e officiais das ditas obras e aos meus Architectos
e mestres dellas e quaisquer outros officiais […] que ajão o dito Gonçallo Piriz Carvalho por provedor das ditas obras
e lhe obedeção e cumpram inteiramente os seus mandados [Ibidem]. Deve-se a Gonçalo Pires de Carvalho a boa
concretização das obras previstas por Filipe II na cidade de Lisboa, pois este dignatário sobreviveu nas funções até
1613, facto que possibilitou a continuação das obras após a morte de Filipe II e da saída do Arquiduque Alberto
apontados quase sempre como os únicos responsáveis pelo surto de obras ocorridas entre 1580 e 1620
esquecendo o homem que no campo trabalhou para que tudo chegasse a bom porto, o português Gonçalo Pires de
Carvalho.
5 Estas imagens, segundo a tradição, teriam sido feitas com a madeira do carvalho onde aparecera, em “Sichem”, a

Virgem Maria. Uma permaneceu no Convento das Flamengas numa capela da cerca e a outra foi para a Capela de
Gonçalo Pires de Carvalho na Igreja da Penha de França.

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Outro indício que nos leva a saber que a igreja estava concluída nos finais do século XVI foi
o facto de o altar mor ter sido dourado em 1604, a expensas da citada D. Bárbara de Tápia, que
no seu testamento deixou cem cruzados para o efeito [BNL, Cod., 7792, Agosto, V].
Este altar, um exemplar maneirista de feição arquitectónica incluiria as quatro imagens
franciscanas de feição maneirista que chegaram até nós: S. Francisco e Santa Clara6 que estão
no actual altar-mor, e Santa Rita e S. Boaventura que actualmente estão no coro-alto.

2.5 A RECONSTRUÇÃO DO CONVENTO: 1626


Contudo, o conjunto arquitectónico que hoje observamos em Alcântara não deverá ser o
convento filipino debuxado (ou programado) pelo Cardeal Arquiduque Alberto, mas sim um
segundo convento feito entre os anos de 1620 e 1630. Nesta segunda campanha não foi alheio
Teodósio de Frias e a vizinha obra do Palácio Real de Alcântara.
Apesar de Filipe III estar ausente do reino, manteve, tal como seu pai, a política de
construção e remodelação dos paços régios para marcar em todo o país a presença de um rei
ausente. Nesta ideologia inclui-se o Palácio de Alcântara, iniciado em 16017.
Este último palácio, apesar de já não existir, foi de grande importância para o Convento das
Flamengas, estando unido a ele através da extensa fachada que corria ao longo da actual Rua
1º de Maio até ao Largo de Alcântara. Restam dele apenas as suas cavalariças.
A relação entre o Convento das Flamengas e o palácio era estreita pois ambos foram obras
régias e portanto peças importantes no plano de obras para a cidade. A relação entre estes dois
edifícios tornou-se mais estreita com a nova dinastia de Bragança, nomeadamente com D.
Afonso VI e principalmente com D. Pedro II, monarcas que fizeram deste paço a sua morada
permanente.
O palácio de Alcântara foi iniciado em 1601 estando encarregue da obra Teodósio de Frias8.
O arquitecto foi obrigado a residir permanentemente no estaleiro para melhor supervisionar a

6 Esta imagem segundo a tradição foi tentada queimar pelos hereges flamengos, que não a conseguindo destruir a
deitaram ao mar. Tendo dado à costa foi recolhida pelos portugueses e entregue às freiras flamengas de Alcântara.
Esta história é apenas uma lenda, pois nem a imagem é flamenga, nem aparenta ter sido queimada ou deitada ao
mar. É meramente uma imagem seicentista portuguesa feita na mesma empreitada que as outras três. Mas tal como
todas as lendas, esta tem um fundo de verdade, pois a história desta santa Clara não é mais que a das freiras
flamengas, que não tendo sido destruídas, foram expulsas e “lançadas” ao mar para serem recolhidas pelos
portugueses.
7 O Palácio de Alcântara foi construído sobre a Quinta de João Baptista Rovelasco.
8 Teodósio de Frias nasceu em Lisboa por volta de 1555 e era filho de outro arquitecto, Nicolau de Frias. A primeira

notícia que fala deste arquitecto data de 1600 colocando-o a servir a Coroa na arquitectura militar. Percebe-se que
nesta época Teodósio encontrava-se em Madrid trabalhando como arquitecto real, certamente cumprindo as
directrizes do monarca castelhano que pretendia alinhar a arquitectura portuguesa com a espanhola, mais erudita,
patrocinando por isso a ida de arquitectos portugueses a Madrid. Em 1601 foi nomeado Juiz da Balança da Casa da

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sua construção, tendo aí falecido a 11 de Novembro de 1634. [Viterbo, 1899, Vol. 1, p. 387 a
393].
Vários documentos sustentam a participação de Teodósio de Frias numa campanha que
remodelou totalmente o Convento, talvez para que este se unisse melhor à fachada do palácio,
dando assim uma maior impressão de monumentalidade ao conjunto
O primeiro é a lápide sepulcral de Teodósio de Frias que se encontra na igreja do convento
das Flamengas. Apesar de já não estar no seu local original, esta sepultura9, além da
importância para a biografia do arquitecto, tem importância para este estudo pois afirma que fez
as traças do “mosteiro novo”.
Esta passagem suscitou alguma discussão no final do século passado tendo o problema
ficado por resolver. Gomes de Brito [Brito, 1888a, p. 108] defendeu que deve ler-se as trassas
do mosteiro novo indicando que este novo convento seria o de Monte Calvário, em frente ao das
Flamengas, fundado em 1617, quando o arquitecto estava activo, ao passo que o das
Flamengas, por ter sido fundado em 1586, seria demasiado antigo para ser obra deste
arquitecto.
Sousa Viterbo tem outra leitura [Viterbo, 1899, Vol. 1, p. 389] pois defende que se deve ler
“as casas do mosteiro novo” não adiantado nada quanto à interpretação de Gomes de Brito.
Pensamos que ambas as leituras estão incorrectas pois o “mosteiro novo” de que a lápide
fala é o das Flamengas, reedificado entre 1620 e 1630, pois é o que se subentende do contexto.
Teodósio de Frias construiu por ordem régia um novo convento para as Flamengas que aqui
deve de ter o significado de edifício (mosteiro) e não de instituição (convento) como leram
Gomes de Brito e Sousa Viterbo.

Moeda de Lisboa, recebedor do dinheiro das partes vivas da Mina e encarregue das obras do Paço de Alcântara.
Mas só em 1603 foi nomeado arquitecto real em substituição de Domingos da Mota que falecera. Em 1609
encontramo-lo a fazer remodelações em Santos-oVelho. No ano seguinte, substitui o seu pai no estaleiro das obras
do Paço da Ribeira, embora estivesse obrigado pelo monarca a residir na obra de Alcântara. Em 1612 foi nomeado
almoxarife dos Paços da Ribeira, tendo nesta mesma data regressado a Madrid. Em 1620 está de novo em Lisboa
onde fez campanhas de remodelação das “casas do castelo” e no ano seguinte executa o segundo projecto para a
Igreja de Santa Engrácia vindo a falecer em Lisboa, no seu local de trabalho, em 1634. [Viterbo, 1988, Vol. I, pp. 387
a 393; Serrão, 1994, p. 197].
9 Esta lápide que vale mais do que muitos documentos diz o seguinte: (transcrição actualizada) “Sepultura perpétua

de Teodósio de Frias, cavaleiro de fidalgo da Casa de Sua Majestade, seu arquitecto e mestre de suas obras e da
cidade de Lisboa e Arcebispado, juiz da balança da casa da moeda de Lisboa; filho de Nicolau de Frias, cavaleiro do
hábito de Cristo e arquitecto do dito senhor; e de sua mulher Dona Leonor Pereira; os quais, por grande devoção
que tiveram a este convento, escolheram este jazigo perpétuo nele, e fez as rasas (sic) do mosteiro novo por
mandado de Sua Majestade com ordem do qual correu enquanto viveu por amor de Deus. Faleceu ela a 18 de
Dezembro de 1627 e ele a 11 de Novembro de 1634”.

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Ligado à obra das Flamengas e do contíguo Palácio de Alcântara, Teodódio de Frias fez-se
enterrar na igreja, decerto obra sua que devido ao modelo arquitectónico seguido, nunca poderá
ser a igreja original construída em 1586.
A suportar esta tese temos mais quatro documentos: o primeiro é a informação que Filipe III
(1598 - 1621) visitou o convento quatro vezes quando esteve em Lisboa (1619), concedendo
quatrocentos mil réis anuais enquanto as obras durassem. [BNL, Cod. 7784, fls. 19 a 24]
O segundo é a referência de que existia no cartório do convento vários papeis da trassa
deste convento feitos por Teodosio de Frias, architecto de sua Magestade e outro papel da obra
da igreja [Ibidem] ficando assim atestado que este arquitecto, activo apenas na primeira metade
do século XVII, foi o autor de uma intensa remodelação no convento de tal forma que o fez de
novo.
Atestando esta campanha profunda, encontrámos uma pequena referência beata, o terceiro
documento: consta também de humas obras que se fizerão na igreya, se tirarão os ossos das
nossas fundadoras e se puzerão em hum caxam, o qual se meteo no alicerse da igreja da banda
do púlpito […]. A este tempo havia fundado o convento mais de quarenta annos, ou seja, em
1626, em plena actividade de Teodósio de Frias. [BNL, Cod. 7784, fls. 3 a 7]
Subentende-se deste relato que a igreja foi construída de novo a partir dos alicerces,
obrigando à exumação dos sepultados, ou seja, o local da igreja nova não corresponderia à
localização da antiga, nem tão pouco se poderia aproveitar os alicerces quinhentistas.
Finalmente, o quarto documento, o testamento do mestre de obras Estácio Correia que
afirma que as freiras Flamengas devem-lhe 500.000 réis de resto de contas da obra que fez no
mosteiro. [IAN/TT, Registo Geral de Testamentos, Livro 6, fls. 118 a 122v]. Pela grande soma
envolvendo esta campanha, apenas poderemos estar perante uma reedificação total.
Coincidente com a reconstrução do convento, deu-se a publicação da obra de Madre Soror
Catarina do Espírito Santo, publicada em Lisboa, em 1627, pelas oficinas de Pedro Craeesbeck,
numa acção que pretendeu renovar a todos os níveis a comunidade.
Julgamos que a explicação para justificar a destruição, em 1620 - 1630, do convento filipino
delineado pelo Cardeal Arquiduque Alberto, reside no facto de a primitiva igreja não seguir os
cânones obrigatórios de um convento feminino, que só apareceu em Évora vinte anos depois da
fundação filipina do Convento.
O Cardeal Arquiduque Alberto pode ter utilizado um modelo flamengo ou espanhol para a
igreja que, nas décadas seguintes, foi considerado indecoroso e impróprio. Com o aparecimento
do modelo de igreja conventual feminina, com alçado austero sem frontispício, ausência de

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portal principal, coro alto e baixo e minimização das capelas laterais da nave, optou-se por
destruir a igreja quinhentista e substituí-la pela actual.
Olhando para os exemplos dos conventos femininos filipinos em Madrid, concluímos que são,
arquitectonicamente, muito distintos dos portugueses. De facto, observando a planta das
Descalzas Reales (projecto de Juan Bautista de Toledo, 1557) ou La Encarnacion (projecto de
Juan Gomez de Mora, 1611-1616), vemos que a Igreja do Convento possui fachada com portal
principal voltado para o exterior, como se de uma igreja conventual masculina se tratasse. Este
modelo perdurou em Espanha, ao longo de todo o século XVII e XVIII, apesar de existirem
algumas tentativas em Madrid de se difundir o modelo conventual feminino sem frontispício e
com portal lateral para a igreja. Dê-se o caso das Jerónimas de Corpus Christi (projecto de
Miguel de Sória, 1615 – 1625) e as Mercedárias Descalzas de la Puríssima Concepcion
(projecto de Manuel del Olmo, 1663-1675).
Julgamos que a primeira igreja das Flamengas de Lisboa, construída em 1586, seguiria o
modelo das Descalzas Reales, com quem, aliás, a elite portuguesa detinha grandes relações.
Por uma questão de decoro, foi adoptado, a nível nacional, um novo modelo, por volta de 1620,
implicando a demolição e a reconstrução das igrejas conventuais femininas portuguesas, e
talvez, de todo o Convento
Este fenómeno verificou-se noutros conventos femininos lisboetas. Foi o que aconteceu com
o convento da Esperança (fundado em 1524), Mónicas (fundado em 1586), Madre Deus
(fundado em 1509) e Santa Marta (fundado em 1580). Em todos estes conventos, a igreja
quinhentista foi substituída por um templo longitudinal, de entrada lateral e austeridade parietal,
por volta de 1620-1630, seguindo o modelo de Santa Clara de Évora.

2.6. DESCRIÇÃO DO CONVENTO


O edifício10 era, antes de mais, um local de reclusão feminina e portanto estava quase
inteiramente vedado à entrada das pessoas do mundo exterior, especialmente dos homens. É
assim que ele é concebido, havendo claramente a consciência da necessidade da divisão entre
reclusão e espaço público. Assim, Teodósio de Frias concebeu este edifício como um quadrado

10 Após a extinção em 1887 o convento foi dividido entre a Irmandade de Nossa Senhora da Quietação e o Instituto
Ultramarino que tinha por função albergar as famílias desamparadas pela morte do seu chefe nas campanhas de
África. Para melhor servir a este fim procedeu-se à total remodelação do interior do edifício conventual para o dividir
em residências independentes, mantendo-se apenas intacto, a nível estrutural, o claustro e a igreja. Assim, a análise
do convento não deve de ser feita partindo do edifício que actualmente existe, mas sim da sua descrição que foi
feita aquando da sua extinção. [ANTT, AHMF, Caixa 1963]

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em torno do claustro com um pequeno prolongamento afastado dos dormitórios que consistia
em divisões de livre acesso às pessoas do mundo exterior.
O visitante entrava por este apêndice que tinha um claustro pequeno com dez colunas
toscanas e cobertura de madeira. Uma vez dentro tinha acesso apenas a três dependências,
que, pertencendo ao edifício do convento, estavam separadas da clausura pois serviam pessoas
de fora.
O visitante tinha assim à esquerda a sacristia da igreja que também funcionava como capela
privativa de João Vanvessem e de seus herdeiros, a família Sínel de Cordes. Em frente estava o
locutório, onde os familiares das freiras as podiam visitar. À direita, estava a Casa do Despacho
da Irmandade de Nossa Senhora da Quietação, onde os irmãos da confraria se reuniam11.
Todas estas divisões serviam pessoas oriundas do mundo profano e como tal o arquitecto teve
o cuidado de as colocar longe e separadas da clausura.
O outro ponto do convento aberto aos leigos era a igreja cuja entrada se fazia lateralmente
pelo lado Sul, a antiga Rua de S. Joaquim, actual 1º de Maio. Tal como a generalidade dos
cenóbios femininos não tem portal principal, mas sim uma singela entrada na parede sul. Neste
caso específico é um portal em calcário encimado por duas volutas que ladeiam um escudo com
as armas nacionais, em que os escudetes estão em aspa, heráldica própria da Casa de
Bragança.
O interior da igreja é também muito singelo, sem mármores nem embutidos e consiste numa
“church box”, dois paralelepípedos em que um é a capela-mor e o outro a nave. O interior é
muito simples e desornamentado, havendo junto ao arco triunfal dois altares laterais pouco
profundos. A parede não tem qualquer animação para além do púlpito, obra posterior à
campanha arquitectónica. No chão, que vai subindo em direcção à capela-mor, existem várias
sepulturas que foram todas acumuladas contra a parede do antigo coro baixo. No entanto, este
não era o seu local de origem, pois dispunham-se ao longo da nave numa passadeira até à
capela mor.12

11 Esta divisão foi demolida nos anos quarenta para permitir a passagem da Rua Leão de Oliveira.
12 A disposição das sepulturas era a seguinte: a partir do arco triunfal a primeira era a de Simão Granaet, falecido a
12 de abril de 1682, e de sua mulher e herdeiros. A segunda era a de Manuel da Silva Louzado, falecido a 17 de
Fevereiro de 1683, de sua mulher, Isabel da Silva, e de seus herdeiros. A terceira era a de Teodósio de Frias,
falecido a 11 de Novembro de 1634 e de sua mulher Lianor Pereira, que morreu a 18 de Dezembro de 1627. A
quarta sepultura pertencia a Pedro Fernandes, pai de três religiosas “flamengas” e que morreu a 2 de Dezembro de
1627. A quinta sepultura era a mais antiga e estavam nela enterrados Jerónimo Anriques, falecido a 2 de Novembro
de 1592 e sua esposa Grácia da Veiga que morreu a 29 de Junho de 1588. A sexta é de João Antunes e Domingas
Roiz. Duarte Smith e Joana Galoa estavam na oitava. Por debaixo da pia baptismal ficava a de Álvaro de Castro e
Bárbara de Tápia que possuíam uma sepultura brasonada, tendo esta benfeitora dourado o altar mor em 1604.

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O tecto em abóbada de canhão não é da construção original, como se pode verificar pelo
alçado exterior, em que e o telhado foi alteado sobressaindo do seu local original, ainda
marcado por um friso de pedra com goteiras em forma de canhão, típicas da primeira metade do
século XVII.
Tal como todas as igrejas dos conventos femininos dos séculos XVII, esta teria um coro alto
e um coro baixo. O primeiro ainda subsiste e o acesso faz-se por um estreito corredor dentro da
parede da nave, muito ao gosto da arquitectura militar de finais de quinhentos e início de
seiscentos. O segundo foi tapado, em 1786, para receber um programa azulejar que foi
considerado tão importante que deve de ter originado a sua supressão.
O alçado do convento, visto da rua principal, a actual 1º de Maio, aparenta austeridade e
recato, como convém a uma ordem feminina. A parede não tem qualquer animação para além
do pequeno portal e das janelas, que são dispostas no plano de acordo com as divisões. Não
existiu uma preocupação de se fazer uma fachada com unidade, pois colocou-se as janelas
onde eram necessárias criando um ritmo desconexo e alternado no exterior. O observador pode
assim adivinhar a orgânica interior do edifício pois houve uma maior preocupação com o interior
do que com o exterior.
O edifício foi construído por alvenaria composta por pequenas pedras unidas com argamassa
formando grossas paredes, algumas delas com mais de dois metros de grossura, e próprias da
construção da época. O chão do convento era em ladrilho e as coberturas eram em tijolo de
burro para que as paredes suportassem menos força de empuxo. Este tipo de materiais permitia
construções mais rápidas, leves e baratas.
O coro baixo, após ter sido tapado em 1786, foi transformado em celeiro, mas manteve a sua
abóbada abatida em tijolo, sustentada por uma coluna ao centro da sala e por duas pilastras na
parede. A abóbada abatida é frequentemente utilizada nos coros baixos femininos para afirmar a
humildade das freiras que aí oravam de joelhos. A utilização de colunas e pilastras para dividir o
espaço também é frequente nestas divisões como prova a planta de Santa Clara-a-Nova de
Coimbra, embora em proporções maiores.
As outras divisões conventuais que se dispunham de forma orgânica à roda do claustro
eram, no primeiro piso, a sacristia do convento e a sala do capítulo.
A Sala do Capítulo tinha a parede ornada de pilastras duplas aos cantos e duas simples em
cada parede lateral. No chão, encontravam-se sete sepulturas de abadessas. Numa das
paredes, à direita de quem entrava, encontrava-se uma maquineta envidraçada evocativa do
Senhor Aparecido. No topo estava um altar neoclássico em talha pintada e dourada semelhante

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aos da igreja. As paredes eram rodeadas de bancos guarnecidos de azulejos, tal como as
janelas. Nesta dependência encontravam-se duas tábuas que deveriam de ser de um retábulo
contemporâneo à fundação, uma representava Nossa Senhora e a outra um Cristo Crucificado,
atribuído pelos inventariantes à escola de Grão Vasco, como era frequente fazer-se no século
XIX a toda a pintura em tábua. Ambas as tábuas seguiram para o Museu Nacional de Arte
Antiga após a extinção do Convento, podendo a primeira admirar-se na exposição permanente.
No primeiro piso, encontrava-se a cozinha grande que se unia ao celeiro por um grande
corredor que passava lateralmente à Sala do Capítulo e à Sacristia. A cozinha grande dava
acesso a duas arrecadações e obviamente ao refeitório onde uma abertura na parede permitia a
passagem das comidas. O acto de comer, tal como o de dormir, era considerado nos conventos
como algo de nefasto pois atendia as necessidades do corpo e não da alma. Assim, as refeições
eram sempre acompanhadas pela leitura dos Evangelhos para não serem consideradas como
tempo perdido. Devido a isto, o refeitório do Convento das Flamengas tinha um púlpito com
escada de cantaria, bacia de pedra e balaústres de pau santo.
O refeitório, já no lado norte, dava acesso à dispensa que possuía dois bancos de alvenaria
cobertos de azulejos. Após esta divisão encontrava-se uma dependência de tecto lajeado que
tinha uma escadaria nobre em pedra de dois lances denominada Escada dos Reis, construção
monumental, possivelmente fruto de uma obra régia, e que dava acesso à directo à Casa dos
Convalescentes, no segundo piso.
No lado Leste, existia a Casa da Abadessa, arrecadações diversas, a cozinha pequena e um
corredor por onde as freiras tinham acesso ao locutório quando alguém pretendia falar com elas.
Todas estas divisões se desenvolvem de forma orgânica e orientada pelos pontos cardeais
em torno do claustro.
O belo claustro maneirista que ainda subsiste neste convento é o centro de todo o edifício,
centro esse marcado pela pequena fonte octogonal que possui inscrições incompreensíveis,
talvez pelas pedras estarem trocadas.
Quase todos os conventos masculinos e femininos tinham obrigatoriamente um claustro
marcado ao centro por uma fonte que, no caso das Flamengas e de outros conventos, está ao
centro do edifício. O claustro é quase invariavelmente um grande quadrado com arcadas e
representa uma grande praça urbanística de uma cidade, cujos cidadãos são os monges. A
fonte que tem ao centro simboliza a água viva que estava no centro do paraíso terrestre
[Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 334].

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O claustro das Flamengas é quase um quadrado perfeito com vinte e cinco metros de lado,
espaço este dividido por dez colunas dóricas pequenas e esguias suportadas por rudes plintos
cúbicos o que demonstra a vernaculidade do conjunto. A coluna dórica é por natureza pesada e
grossa e por isso própria à arquitectura militar. Neste caso é aqui utilizada pois confere
simplicidade e tranquilidade ao espaço. Estas colunas vernáculas e não canónicas não
suportam qualquer tipo de arcaria, nem tão pouco se utiliza abobadamento nas galerias dos dois
pisos que constitui este claustro. As colunas do segundo piso são mais pequenas, dando assim
um interessante equilíbrio ao conjunto, embora obedeçam à mesma disposição.
No segundo piso, encontravam-se cinco capelas ao longo da galeria do claustro, destas
quatro eram grandes e outra apenas um pequeno oratório. Todas as divisões deste segundo
andar desenvolvem-se, tal como no primeiro, em torno do claustro. A primeira destas divisões
era o coro alto, profundamente remodelado em 1786, para receber as freiras que aí assistiam à
missa.13
No lado direito, encontra-se uma porta que dá acesso a uma verdadeira jóia da obra de arte
total característica do Barroco Nacional. Trata-se da “Sala do Rosário” que trataremos num
capítulo independente devido à sua riqueza decorativa. Esta sala tem quatro portas orientadas
pelos pontos cardeais. A sul dá para o coro, a leste para o claustro, a oeste para um miradouro
e a norte para o extenso dormitório.
O dormitório possuía trinta e quatro celas divididas por biombos. À sua esquerda situavam-se
as latrinas e as arrecadações. No lado norte, encontramos a Casa do Lavor que possuía dois
altares, a Casa dos Convalescentes onde desembocava a Escada dos Reis e a cozinha da
enfermaria.
No lado Oeste, encontrava-se a enfermaria que possuía um altar. Este seria de feição
maneirista, com estrutura retabular, pois é descrito com camarim e quatro nichos com mísulas
contornadas por pilastras e arcos de cantaria. Após a enfermaria, encontrava-se uma casa
contígua que antecedia a entrada a Sul para os Mirantes, único local de onde as freiras podiam
ver o mundo exterior, mas sem serem vistas, graças a umas janelas de ripas.
A Leste, encontrava-se a Casa de Espera onde aguardavam pela sua vez para a Confissão.
Perto desta divisão encontrava-se a Capela das Relíquias, toda forrada de azulejos com um

13 Actualmente encontra-se aberto, mas antes da extinção a entrada estava vedada por uma grade em talha
dourada cujas únicas aberturas eram somente dois comungatórios onde as freiras recebiam o Sacramento. Esta
grade, por não permitir a passagem foi retirada pela Irmandade quando esta tomou posse das instalações. O
Sacrário que aí existia, tal como os três altares em talha foram retirados, vendo-se apenas dois nichos vazios.
Actualmente o que resta é a pintura das paredes que ameaça desaparecer e a pintura do tecto cheia de flores e
motivos cristológicos.

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altar em talha onde estavam várias relíquias de santos. Ao lado, encontrava-se o confessionário
e a Casa dos Capelães ou Hospício, onde viviam os padres estranhos à clausura que ouviam
em confissão as freiras e assistiam às missas. Estas últimas divisões desaparecem na década
de quarenta para dar acesso a uma nova rua.

2.7 A IGREJA EPI-MANEIRISTA


Da campanha epi-maneirista que ocorreu na igreja do Convento das Flamengas pouco ou
nada resta devido à renovação estética efectuada em 1786. Assim, desapareceu todo o
programa decorativo que, por volta de 1626, revestiu a igreja de azulejos policromos azuis,
amarelos e brancos.
Nas primeiras décadas do século XVII, surgiu o gosto de aplicar azulejos nas igrejas
reanimando as velhas e nuas estruturas Góticas e Maneiristas. Este virar de gosto prendeu-se
com uma vontade da arte portuguesa em se diferenciar da arte espanhola. No entanto, esta
vontade de renovação e diferenciação ficará na arquitectura apenas restrita aos revestimentos
azulejares, material barato e de forte impacto visual, já que as dificuldades económicas que
surgiam nesta altura apenas acabarão no período joanino [Pereira, 1986, p. 11].
É deste período que data a actual igreja do Convento das Flamengas ao Calvário. Como
Kubler verificou, a tipologia dos conventos femininos, na qual se inclui este exemplar, apenas
surgiu por volta de 1600 com a construção de Santa Clara em Évora [Kubler, 1988, p. 157].
É precisamente nesta década de 1620 que irão aparecer os revestimentos azulejares
policromos de tapete com a função de reanimar as paredes e dinamizar espaços que já não
correspondiam ao novo gosto em formação. O padrão de tapete será muito utilizado nesta
época pois consistia numa solução barata já que se baseava na repetição infinita com um
padrão básico de 2x2 até 12x12 azulejos. O efeito final era deslumbrante pois provocava um
forte impacto visual ao mesmo tempo que imitava ricas tapeçarias penduradas nas paredes
[Pereira, 1986, p. 16].
No Convento das Flamengas, encontramos alguns vestígios destes revestimentos no
corredor de aceso ao coro alto onde estão algumas dezenas de azulejos aplicados na parede. O
mais comum é o P-700 [Santos Simões, 1971, p.104] que Santos Simões data de 1628, pois
encontram-se exemplares iguais na Capela de S. Sebastião no Lumiar cuja campanha azulejar
que reveste inteiramente este templo encontra-se datada. Ora sendo a igreja concluída por
Teodósio de Frias, por volta de 1626, é muito provável que as suas paredes fossem, por volta
de 1628, inteiramente forradas de azulejos de padrão imitando tecido fino.

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Se observarmos atentamente o revestimento da pequena ermida do Lumiar vemos que o


padrão P-700 não ocupa toda a igreja, sendo apenas o pano de fundo para painéis de azulejos
com santos e cenas historiadas.
Dos painéis de azulejos figurativos temos como testemunho o grande painel de azulejos da
Adoração do Santíssimo Sacramento14, que estilisticamente também deve de rondar a década
de vinte do século XVII e que inicialmente estaria na igreja servindo de fundo a uma peça de
ourivesaria, certamente um ostensório.
Frei Agostinho de Santa Maria relata-nos outra informação da existência de um painel de
azulejos historiado retratando um milagre da Virgem: Na igreja está pintada huma maravilha,
que esta Senhora obrou em favor de hua boa & afflicta mulher; a qual, pertendendo seu marido
(por tentação do demónio) de a matar com hum punhal, invocando em seu favor a Senhora da
Quietação, lhe cahio das mãos o punhal, com admiração do mesmo agressor. [Santa Maria, t.
III, 1707, p. 396].
Esta campanha azulejar de 1626-8 sobreviveu às campanhas de D. Pedro II e de Bento
Coelho da Silveira tendo sido definitivamente retirado em 1786 quando a igreja recebeu os
azulejos actuais.
Outro indício que suporta a teoria que o interior da igreja das Flamengas estaria revestida a
azulejos policromos como revestimento da arquitectura de Teodósio de Frias, trata-se dos
exemplares que revestem o claustro. Alguns deles são reaproveitamentos mas outros vêm-se
claramente que foram destinados para o local e que tinham como função animar as paredes
nuas do claustro assemelhando-se a ricas tapeçarias penduradas das janelas. Outro exemplar
de espaço forrado a azulejo era a capela das relíquias que existiu no segundo piso, embora esta
tenha desaparecido no século XIX ou XX.

14 Este magnífico painel policromo em azul, amarelo e branco mede 2,70m de altura por 1,82m de largura, sendo
constituído por 247 azulejos de 14 cm de lado, numa esquadria de 19x13. Apesar do seu tamanho monumental
encontra-se intacto e sem lacunas o que é um milagre se atendermos à sua atribulada história. Era certamente um
painel de um altar seiscentista da igreja que servia de fundo a um ostensório. Devido à reforma no programa
decorativo de 1786 este foi retirado e colocado na portaria onde esteve até 1887, data em que foi registado no
inventário. Quando esta divisão passou para o Instituto Ultramarino, a Irmandade de Nossa Senhora da Quietação
retirou-o e um dos seus membros levou-o para uma quinta em Sintra onde permaneceu até à sua morte. Quando
esta ocorreu, o novo Juiz da Irmandade requereu de volta o painel e foi colocado na parede lateral do lado da
Epístola na capela mor da igreja servindo de altar a Santo António, sendo assim visto por Santos Simões na década
de sessenta [Santos Simões, 1971, p. 104]. Posteriormente, foi retirado e colocado no mirante, uma pequena sala
perto da Sala do Rosário. No entanto, esta sala é imprópria para se ter a consciência total do tamanho deste painel.
Infelizmente, esta é a única que a Irmandade actualmente dispõe não se vendo qualquer alternativa para a sua
melhor visualização. Este painel é muito belo onde as nuvens em azul se abrem para um enorme resplendor em
amarelo com raios que serpenteiam num bonito efeito visual. Em baixo, dois anjos, também amarelos, adoram o
Santíssimo Sacramento que por não estar representado levanta a hipótese atrás referida deste painel ser um fundo
para um verdadeiro ostensório há muito desaparecido.

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A nossa historiografia já reconheceu que o azulejo era o complemento perfeito de uma


arquitectura de volumetria compacta e sem aberturas como é o caso das Flamengas. A
arquitectura chã portuguesa foi apoiada pela igreja católica tridentina que incentivou a
proliferação dos revestimentos ornamentais de azulejos nas paredes, tectos e altares que, na
sua concepção progressivamente cenográfica e teatral, desenvolvia um espectáculo visual cada
vez mais sedutor e esmagador, exercendo a sua missão opressora através da subjugação e
persuasão dos sentidos. O azulejo complementa, dinamiza, enriquece e transforma a
arquitectura de forma não passiva nem inocente [Meco, 1984, p. 20].

2.8. OS FRIAS, FAMÍLA DE ARQUITECTOS.


Teodósio de Frias trabalhou no convento das Flamengas e no vizinho palácio de Alcântara,
vivendo neste edifício e enterrando-se na igreja do convento em 1634. Este arquitecto nasceu
por volta de 1555 [Frias, 1889, p. 51] e apesar de contar 31 anos à data da construção do
primeiro convento filipino (1586) é improvável que seja ele o autor, pois à data seu pai ainda
estava activo15.
Não sabemos se Nicolau de Frias de alguma forma participou na construção, em 1586, do
Convento filipino das Flamengas. Contudo, caso assim fosse, é bem possível que Teodósio
tenha herdado a obra de seu pai, quarenta anos depois, pois a hereditariedade do trabalho foi
uma constante nesta família.
Nicolau de Frias contava, em 1586, cerca de 56 anos, sendo já um arquitecto maduro que
viria pouco depois a substituir Filipe Terzi no Palácio da Ribeira.
O utilitarismo presente no Convento das Flamengas lembra, de algum modo, a arquitectura
militar onde Nicolau de Frias se formou. Devido às necessidades práticas, os engenheiros e
arquitectos militares desde cedo conceberam paredes muito grossas, muitas delas como local
de passagem de estrutura celular e como zona de circulação [Kubler, 1988, p. 7]. Esta

15 Nicolau de Frias nasceu em Lisboa em 1530 [Frias, 1889, p. 51] e era filho de Pedro de Frias, imaginário [Freire,

1929, p. 172]. Genro de Domingos Vieira Serrão e irmão do Pároco de Unhos (paróquia muito rentável) Nicolau foi o
patriarca de uma longa dinastia de arquitectos que chegaria à Restauração. Foi com D. Sebastião para Alcácer
Quibir (1578) possivelmente para trabalhar na arquitectura militar, ficando lá cativo com Filipe Terzi. Enquanto que
este último foi de imediato resgatado, Nicolau permaneceu preso por mais algum tempo, tendo por essa razão
recebido o hábito da Ordem de Cristo. Data de 1586 a sua primeira obra documentada que consiste no risco para a
obra e carpintaria da nave do meio da igreja de Santa Catarina de Monte Sinai. Em 1588 faz o primeiro projecto para
o Convento de Santa Marta e em 1597 sucede o grande Filipe Terzi nas obras do Paço da Ribeira. Trabalhou
também no Convento de Cristo em Tomar embora a sua participação não fosse das mais importantes [Viterbo,
1988, Vol. I, p. 385].Em 1606, procede ao primeiro projecto de Santa Engrácia. A sua aprendizagem e ensinamentos
é pouco teórica e muito vernacular, assente sobretudo na experiência do quotidiano. Em sua casa formou uma
“escola oficina” e dos seus ensinamentos surgiu Teodósio, Luís e Teodósio II, dinastia de arquitectos com forte
ligação à coroa [Soromenho, 1995, p. 396].

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característica estará presente nas Flamengas. Basta lembrar o corredor de acesso da igreja ao
coro alto, mas também a estrutura celular onde todas as dependências se arrumam. Este
utilitarismo dito vernáculo trazido pelos arquitectos militares serão adoptados frequentemente
pois serviam melhor as exigências das novas regras que impunham estruturas funcionais,
gastos controlados e despojamento decorativo [Soromenho, 1995, p.383].
Mas este convento não era exclusivamente vernáculo e austero. Haviam vários
apontamentos eruditos que infelizmente desapareceram. Como exemplo, referimos a Casa do
Capítulo, uma dependência alongada com pilastras duplas aos cantos, a Escada dos Reis com
dois vãos cuja riqueza dos mármores era atestada pelo nome, e finalmente pelo pequeno
claustro da entrada com as suas dez colunas toscanas que por ser de uso das pessoas do
mundo exterior era mais erudito que o grande claustro interior.
A austeridade exterior não implica necessariamente o mesmo gosto para os interiores. Uma
fachada pobre correspondia muitas vezes a interiores luxuosos, decorados com pinturas,
madeiras exóticas, tectos pintados, tapeçarias e azulejos [Ferrão, 1994, p.244].
Portanto, as divisões interiores deste convento seriam a verdadeira obra de Teodósio/Nicolau
de Frias que demonstraria como este arquitecto conseguiu coordenar da melhor forma todas
estas dependências.
Se as divisões interiores do convento perderam-se, tal não aconteceu com o claustro que
permanece intacto. A primeira dificuldade que surge na análise desta estrutura é colocá-la numa
família artística. Nesta época, os claustros eram dominados pelo modelo erudito de Palladio
surgido em Tomar pela mão de Diogo de Torralva.
Este modelo maneirista erudito e de prestígio irá receber como concorrente os modelos de
Herrera, difundidos através do Escorial e trazidos para Portugal aquando da subida ao trono de
Filipe II. Apesar de mais austeros e apropriados aos preceitos tridentinos, estes serão
igualmente ricos.
Ambos os modelos apostam na monumentalidade, na riqueza dos materiais, no prestígio do
seu acabamento, na erudição dos modelos recorrendo a vários ritmos e ordens arquitectónicas.
Perante estes dois exemplos é difícil classificar o claustro das Flamengas que mais parede
um pátio de uma estrutura militar. As suas colunas são esguias, pequenas, vernáculas e não
canónicas feitas a partir do calcário da região de Lisboa, a pedra mais barata. Não há arcarias,
abóbadas, decoração, ritmo ou alternância de ordens arquitectónicas do primeiro para o
segundo piso, pois todas as colunas são, sem excepção, de capitel dórico, próprio para a
arquitectura militar segundo os mais antigos tratados de arquitectura.

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O modelo mais semelhante que encontramos para este claustro existe não num convento,
mas no pátio interior do Palácio Maneirista de Carlos V, em Granada, de Pedro de Machuca
(1526).
Este monumento também aposta nas colunas simples sem grandes decorações e na
ausência de arcarias pois as colunas sustentam entablamentos decorados com motivos
clássicos (métopas e triglifos). No entanto, trata-se de uma estrutura oval, ao contrário da
quadratura dos claustros. A decoração dos entablamentos é erudita baseando-se nos modelos
clássicos e os varandins do segundo piso têm pedras almofadadas de inspiração flamenga.
Neste palácio as ordens das colunas alteram-se, sendo no piso térreo utilizada a ordem
dórica e no piso superior a ordem jónica. Apesar das semelhanças temos de manter as
distâncias entre este monumento e o Convento das Flamengas em Lisboa, pois o primeiro é um
palácio de um soberano e o segundo um convento mendicante feminino. Salvo estas distâncias,
é possível ver neste cenóbio uma continuação deste tronco flamengo, sendo até apetecível
imaginar a preferência pelas próprias freiras por este modelo nórdico que desta forma seguia o
gosto da sua terra natal, mantendo no seu claustro, o permanente contacto visual com a sua
terra de origem.
Este modelo foi utilizado em Portugal no claustro do Convento de Nossa Senhora da Serra
do Pilar, em Vila Nova de Gaia, (1576 - 83) seguindo à risca o modelo do Palácio de Carlos V,
pois mantém a forma redonda exacerbando os motivos decorativos flamengos, embora apenas
opte por um só andar.
Outro claustro que segue este cânone é o de São Salvador de Grijó (1593). Este é
claramente muito semelhante ao das Flamengas, embora mais monumental e erudito, pois
utiliza, no primeiro piso, colunas jónicas e no segundo compósitas, estando ambas as arcadas
separadas por silhares de azulejos seiscentistas.
Enquanto que na Serra do Pilar o modelo flamengo é utilizado com todo o rigor e erudição,
exaltando ainda mais a componente decorativa que não existe em Granada, o claustro de Grijó
segue o mesmo modelo mas, à semelhança das Flamengas, assume uma clara vernacularidade
e austeridade, mais de acordo com os cânones Contra-reformistas.
O humanismo e a cultura difundidos na Serra do Pilar em 1576 serão afastados em benefício
do decoro tridentino praticado nas Flamengas e em Grijó. Mas o claustro que mais se
assemelha ao das Flamengas iremos encontrá-lo em Guimarães, no Convento de S. Francisco,
obra de cerca de 1600.

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Concluímos assim que, por exigência das freiras Flamengas, Teodósio de Frias fez este
claustro, por volta de 1626. No entanto, dada a sua experiência de trabalho fundada meramente
na arquitectura militar e devido à obrigação de decoro e austeridade próprias para um convento
feminino, a obra resultou claramente chã muito diferente dos modelos vigentes de Tomar e do
Escorial.
O facto de o convento surgir com alçado austero e de ser utilizado um arquitecto de nome
inferior quando comparado com Filipe Terzi ou Baltazar Álvares, prende-se com a mensagem
que o edifício pretendia transmitir, ou seja, a de ser um convento feminino mendicante em que
os valores de pobreza, decoro e recato são arduamente defendidos.
Também não nos podemos separar esta obra da comunidade de freiras que a criaram, pois
não são Clarissas comuns, são refugiadas de guerra, perseguidas pelos seus congéneres por
professarem uma religião diferente. Durante largos anos foram perseguidas e andaram em fuga
procurando o descanso que só encontrarão em Portugal, sendo por essa razão que baptizaram
o seu convento de Nossa Senhora da Quietação (calma, paz e tranquilidade). Sendo a
arquitectura a arte que modela os espaços interiores e exteriores criando sentimentos e
transmitindo ideias aos utilizadores desses espaços, é natural que este claustro não pretenda
transmitir opulência nem erudição, mas antes, ser um lugar de descanso e “quietação”
mantendo sempre viva uma doce recordação da sua terra de origem através de um
apontamento arquitectónico flamengo no claustro.

2.9. O CONVENTO DAS FLAMENGAS NA NOVA DINASTIA BRAGANTINA


Como verificámos anteriormente, este convento estava fortemente conotado com os filipes,
devendo ao primeiro Habsburgo a sua fundação e as benesses monetárias dela decorrentes.
Esta conotação política tornou-se muito desconfortável com o golpe de 1 de Dezembro de 1640
e houve a necessidade de aderir à nova dinastia.
Por esta razão, houve uma ligação muito íntima entre as flamengas e os reis D. Afonso VI e
D. Pedro II. Ambos se casaram com D. Maria Francisca Isabel de Sabóia na Igreja das
Flamengas, o primeiro em 1666, o segundo em 1668. D. Pedro II mandou deixar sepultado o
seu coração na capela mor da igreja.
Uma das abadessas do Convento, Madre Soror Maria da Cruz (1653-1659), foi sobrinha da
rainha D. Luísa de Gusmão.
Esta aproximação poderá ter nascido pelo facto de ambos os monarcas residirem
permanentemente no vizinho Palácio de Alcântara. Contudo, a força ideológica de legitimação

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que o Convento auferia e, principalmente, a devoção pelo orago de Nossa Senhora da


Quietação não terão sido alheias à aproximação de uma dinastia que pretendia para si uma paz,
uma tranquilidade e um reconhecimento que apenas chegariam em 1668.
Infelizmente, a conjuntura económica e política não permitiam grandes campanhas artísticas
e a ligação à nova dinastia irá verificar-se através de pequenos apontamentos que, à primeira
vista, passam despercebidos.
O primeiro é o brasão que está no pequeno portal da entrada na igreja. É um brasão
seiscentista muito semelhante aos utilizados na numismática de D. João IV e D. Afonso VI. No
entanto, tem uma particularidade muito importante: os escudetes estão em aspa em vez da
posição normal que é em cruz latina. Ora como na heráldica nada é ocasional, esta pequena
variante decerto que contem muito significado. Maia Ataíde identifica deste brasão como sendo
uma pedra de armas filipina [Ataíde, 1988, Vol. V, t. III, p.107], mas a dinastia Habsburgo foi
sempre muito ciosa na manutenção do brasão régio português.
Esta disposição em aspa das quinas pode prender-se com a vontade de mostrar a filiação
franciscana deste convento, já que esta ordem tem por brasão as cinco chagas de Cristo a
gotejar sangue também em aspa. Mas há outra hipótese mais provável em que este brasão
efectivamente representaria o Portugal Restaurado pela dinastia dos Braganças, já que esta
família ducal tem por brasão cinco escudetes em aspa.
Portanto, o convento queria afirmar a todos a sua total adesão à nova dinastia como legitima
soberana de Portugal, apesar do seu passado muito conotado com a dinastia anterior.
Outro pequeno apontamento que já não existe era a imagem de Nossa Senhora das Mercês
que as freiras consideravam a responsável pela vitória dos portugueses nas Linhas d Elvas
[Santa Maria, t. III, 1707, p. 400].
Mas a obra de arte deste convento que mais claramente se afirma anti-castelhana é sem
dúvida o retrato da imagem de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães, tela protobarroca
infelizmente muito danificada e escondida numas dependências perto da torre.
Esta tela não representa a Virgem Maria, mas sim uma imagem específica desta entidade
celestial, como se pode ler na legenda: O retrato verdadeiro de N.S. da Oliveira de Guimarães.
Anno 1649.
A imagem de Nossa Senhora da Oliveira, existente na igreja da Colegiada de Guimarães terá
imensa importância em Portugal, depois de 1640, devido às lendas, já na época vivas, que a
colocam como salvadora da soberania nacional sempre nos momentos em que esta esteve
ameaçada pelos espanhóis.

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Esta imagem está ligada aos inícios do cristianismo e da nacionalidade tendo muito
beneficiada pelo Conde D. Henrique e pelo rei D. Afonso Henriques, que segundo a lenda terá
pedido o seu auxílio na batalha de Ourique em 1139, devendo a sua vitória e a coroa de rei à
dita imagem. Portanto, a Senhora da Oliveira de Guimarães patrocinou a fundação de Portugal e
protegeu todos os descendentes do rei fundador.
Outra vitória de Portugal que se ficou a dever à imagem foi a de D. João I na batalha de
Aljubarrota contra os castelhanos muito mais numerosos [Santa Maria, 1707, t. IV, pp. 55 a 57].
Ora, numa conjuntura de guerra e de novo perigo frente aos espanhóis é natural que a devoção
por esta imagem, considerada milagrosa em assuntos políticos, se reacendesse nascendo esta
tela.
A pintura, muito degradada e em perigo de se perder, representa efectivamente uma imagem
cujas carnadura se assemelham a uma personagem viva. O manto decorado com estrelas de
oito pontas douradas faz realmente lembrar as imagens de roca seiscentistas pelo modo artificial
como cai pelo corpo. A imagem tem uma enorme coroa e colar dourados com pedras preciosas
e está colocada num nicho em arquitectura maneirista fingida, um pouco imperfeita, mas com
brutescos, “ferroneries” e motivos flamengos. A ladear a imagem estão dois anjinhos de cada
lado, segurando, cada um deles, um brasão de Portugal envolto em ramos e oliveira, evocação
à imagem.
Para a mentalidade da época, esta imagem era patrona e defensora de Portugal, sendo a
sua intercessão indispensável num contexto de nova guerra contra Espanha. Assim era urgente
unir e dirigir as preces de todos os portugueses para esta imagem, surgindo por todo o país
representações visuais da Senhora da Oliveira, que no caso do exemplar das Flamengas foi, até
ao século XX, motivo de grandes peregrinações de populares à igreja.

3 O BARROCO NACIONAL NO CONVENTO DAS FLAMENGAS


3.1 CONJUNTURA POLÍTICA E ECONÓMICA
A crise política que se irá viver entre 1640 e 1689 (nascimento do príncipe D. João) é muito
complexa pois envolve duas vertentes distintas: a externa e a interna. A nível externo Portugal
necessitava de ver reconhecida a sua independência e deixar de estar associado à Espanha,
facto que por si só originava os ataques dos holandeses, ingleses e franceses às nossas
colónias. Portugal será obrigado a aproximar-se destas nações com tratados diplomáticos e
comerciais muito desfavoráveis à nossa economia.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

A nível interno, Portugal debatia-se com outras dificuldades. A nossa administração tinha
perdido o dinamismo por sessenta anos de adormecimento. Portugal já não estava habituado a
ser independente e não tinha uma corte à altura de tomar conta de vastos domínios coloniais.
Além destes problemas iniciais, D. João IV tinha também os portugueses partidários de
Espanha que atentaram contra a sua vida em 1641. O herdeiro do trono, D. Teodósio, morre
prematuramente deixando como futuro rei o irmão, D. Afonso VI, um jovem mentecapto incapaz
de governar. D. Luísa de Gusmão, ficará como regente até 1663 quando o Conde de Castelo
Melhor faz um golpe de estado para colocar no trono o débil rei mais facilmente manobrável.
O irmão do rei, o Príncipe D. Pedro, aliado à cunhada, D. Maria Francisca Isabel de Sabóia,
afasta D. Afonso VI e casa-se com esta e juntos afastam Castelo Melhor. Mas D. Pedro II não
consegue dar descendência à sua débil dinastia e será necessário casar-se segunda vez com
D. Maria Sofia de Neuburgo para nascer um herdeiro à coroa, o futuro D. João V, ficando assim
assegurada a estabilidade política do nosso país.
A guerra e os problemas internos impossibilitaram a coroa de proceder a um favorecimento
artístico. Desta forma, eram os conventos e as autoridades eclesiásticas que patrocinavam as
poucas obras efectuadas durante estes quase cinquenta anos. Esta falta de iniciativa dos
encomendantes irá estagnar o avanço na pintura e na arquitectura que até muito tarde irão
repetir formulários maneiristas já muito ultrapassados.
Todas as verbas destinadas à arquitectura serão gastas na revitalização dos fortes militares,
fazendo com que desta forma se mantenha activa a velha corrente chã que perdurará até ao
século seguinte.
A conjuntura artística apenas irá melhorar com o fim da guerra, o nascimento do príncipe
herdeiro e o fim dos conflitos internos. Este novo período iniciado em 1668 com a assinatura da
Paz com Espanha marcará a abertura, ainda que tardia, de Portugal ao Barroco europeu, mas
de uma forma muito própria.
Na pintura, Bento Coelho da Silveira dominará por três décadas mantendo o predomínio da
cor sobre o desenho seguindo o exemplo de Rubens. A pintura de tectos irá prolongar de forma
anómala uma estética maneirista e própria do mundo português: o desenho de brutescos.
Essencialmente, esta arte do Barroco nacional apostará no horror ao vazio e formará um
conjunto de várias componentes que terão como função preencher e animar espaços
arquitectónicos ainda marcadamente chãos e desornamentados. As artes decorativas deixam de
servir a arquitectura, sendo esta pensada exclusivamente para receber todas as outras
componentes ficando o conjunto conhecido como “obra de arte total”, onde, numa sinfonia

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

unitária, a talha, os embutidos, as esculturas, os azulejos, a pintura a óleo e a pintura em tectos


se conjugarão formando uma única obra de arte com uma só leitura.
A conjugação de todas estas artes tão distintas mas com um só objectivo irá obrigar a que
entalhadores, escultores, estofadores, pintores, ladrilhadores, douradores e decoradores
trabalhem ao mesmo tempo para a mesma obra paga pelo mesmo encomendante. Surgem
assim equipas de trabalho em que todos os indivíduos tem a consciência de como será a obra
acabada. O programa que rege todos estes artistas é concebido pelo encomendante, que
poderia ser o próprio Rei, ricos dignatários da corte, bispos e confrarias, todos eles enriquecidos
pelo ouro do Brasil, que conseguirão reerguer a arte portuguesa com o esplendor perdido há
muito.
D. Pedro II escolheu como sua residência o vizinho palácio de Alcântara e tornou-se Juiz
perpétuo da Irmandade de Nossa senhora da Quietação em 1694. Quando morreu deixou
sepultado o seu coração na capela mor da igreja das Flamengas estando ainda hoje o local
assinalado por uma lápide.
A estreita relação entre este convento e D. Pedro II suscitou importantes campanhas
decorativas, onde se incluem dois núcleos importantíssimos do Convento das Flamengas: a
“Sala do Rosário” e a Capela de João Vanvessem.

3.2. A SALA DO ROSÁRIO: 1694


No Convento das Flamengas, em Alcântara, ao lado do coro alto, existe uma sala rectangular
que constitui um dos mais belos exemplares de “obra de arte total” do chamado “Barroco
Nacional”. Toda a sala congrega azulejos, talha, pintura a óleo e escultura numa bela harmonia.
É sem exagero que podemos considerar esta dependência o maior tesouro que o Convento das
Flamengas encerra, não só pela raridade do conjunto, mas principalmente pelo facto de este
permanecer intacto. Como se não bastasse, ainda podemos observar nesta bela obra a mão do
melhor pintores activo em Lisboa em finais do século XVII: Bento Coelho da Silveira (1620-
1708).
Infelizmente, os documentos para esta sala são nulos. Em todos os códices existentes na
Biblioteca Nacional não existe uma única referência a esta sala, pois quase todos eles são
bastante anteriores. No inventário da extinção (1888) apelidam-na de “ante-coro” o que nada
clarifica quanto à sua função. Mais recentemente surgiu na bibliografia o termo de “Sala do
Despacho”, nome que poderia ajudar em muito à formulação de uma hipótese.

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A Irmandade de Nossa Senhora da Quietação, fundada em 1686, e que D. Pedro II se tornou


o seu Juiz Perpétuo, em 1694, poderia ter mandado decorar esta dependência para ser a sua
sala de despacho e reuniões.
No entanto, esta hipótese terá de ser afastada por duas razões: não leva em conta o
simbolismo iconológico da própria obra de arte nem a sua localização dentro do espaço
conventual.
De facto, existiu uma sala do despacho desta irmandade, mas estava afastada da zona de
clausura das freiras, num apêndice a nascente demolido por volta de 1940. Como a maioria dos
irmãos desta Confraria eram homens comuns não era conveniente que estivessem dentro da
clausura feminina, pois esta sala encontra-se junto ao dormitório. Actualmente, para chegarmos
até este ante-coro passamos pelo coro alto, através da igreja mas antes da extinção, esta
passagem era impossível pois estava vedada com uma grade em talha dourada. No século XVII,
qualquer pessoa que aqui quisesse entrar teria de entrar na clausura, subir o claustro e ficar à
distância de uma porta do dormitório das freiras. Obviamente este local não era para pessoas
comuns. Como verificámos, Teodósio de Frias distinguiu na seu projecto os locais de acesso
fácil aos visitantes e o espaço de clausura, onde ficava esta sala, vedado a todas as pessoas do
mundo exterior.
Outra hipótese que conciliaria o termo de “Sala do Despacho” era de esta sala ser o gabinete
da Abadessa, onde esta despacharia os documentos relativos à administração do convento.
Mais uma vez, esta hipótese é afastada pois tal dependência existia no primeiro piso na ala
oriental. Assim, o termo Sala do Despacho deve ser totalmente afastado.
Para descobrirmos a verdadeira função desta sala teremos obrigatoriamente de a analisar
enquanto obra de arte.
Quase toda a produção artística europeia desta época deve ser encarada também como uma
mensagem, uma obra de propaganda, que pode ser erudita, popular, catequética ou política. Tal
como todas as mensagens, a obra de arte tem um emissor e um receptor. O emissor pode ser o
encomendante, mas frequentemente é um ser superior: Deus, Igreja, Estado, etc. O receptor é a
quem se destina a obra de arte e é em função dele que se irá ditar a forma final da mensagem,
ou seja, os símbolos utilizados, pois de nada serve uma obra de arte/ mensagem que não possa
ser entendida pelo destinatário.
Ainda sem entrarmos numa análise profunda, podemos observar que existem oito anjos que
seguram símbolos iconográficos. Note-se em particular o belo exemplar que segura a palma do

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sacrifício e que olha para nós com uma expressão vigilante. Perto deste anjo existe outro cujos
atributos são os lírios da virgindade.
Ora, “sacrifício” e “virgindade” não podiam ser valores para os membros da Nobreza que
constituíam a Irmandade de Nossa Senhora da Quietação e menos ainda o eram para D. Pedro
II cujo primeiro casamento provocou grande escândalo na época. Estes valores são atributos de
freiras, logo esta sala destinava-se às religiosas flamengas.
Resta agora saber para que fim específico servia esta jóia do “Barroco Nacional”. A resposta
está nos quadros que devem de ser analisados não individualmente mas como um conjunto,
pois todos eles formam os quinze mistérios do Rosário.
Os quinze mistérios dividem-se em três grupos: “Gozosos” (Anunciação, Visitação, Adoração
dos Pastores, Apresentação do Menino ao Templo e Menino entre os Doutores), os “Dolorosos”
(Cristo no Horto, Flagelação, Coroação de Espinhos, Cristo carregando a Cruz e Calvário) e os
“Gloriosos” (Ressurreição, Subida de Cristo aos Céus, Pentecostes, Assunção da Virgem e
Coroação da Virgem). Cada grupo de cinco mistérios serve de meditação durante a oração
diária do “terço”, um conjunto de cinco grupos de dez avé-marias alternadas por cinco padre-
nossos.
Este conjunto de orações era obviamente rezado diariamente pelas freiras nesta sala, sendo
por isso conveniente chamá-la de “Sala do Rosário” em vez da vã designação de “ante coro” ou
da errónea “sala do despacho”.
A oração do Rosário terá grande importância na Europa Contra-reformista pois foi a estas
orações que se atribuiu a vitória da Batalha de Lepanto (1571) a primeira vitória dos europeus
sobre os até aí invencíveis turcos.
Daí em diante, o Rosário passou a ser um novo instrumento de luta contra os hereges em
geral. Tendo as freiras sido expulsas da sua terra natal pelos protestantes, é natural que surja
neste convento um tão belo exemplar inteiramente dedicado aos mistérios do Rosário, onde as
freiras lutavam à sua maneira (orando) contra os protestantes que as haviam expulso.
Apesar de termos esclarecido que esta sala não se destinava às reuniões da Irmandade, é
muito provável que tenha sido esta organização a custear a sua produção. D. Pedro II, Juiz
desta Confraria desde 1694 e residente no vizinho palácio de Alcântara terá patrocinado esta
obra pois trabalharam nela a melhor mão-de-obra do reino, em particular Bento Coelho da
Silveira16, pintor régio desde 1682.

16Bento Coelho foi o melhor e o mais fértil pintor português dos finais de seiscentos. Até há bem pouco tempo, a
obra deste pintor permaneceu na mais completa ignorância tapada pela sujidade e pelo preconceito. No entanto,

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Esta sala surge assim como um local de combate contra os protestantes pela Fé Católica. A
arma era obviamente a oração do Rosário que tantas vitórias tinha conseguido e que de certeza
mais benesses iria trazer.

3.2.1. Análise interpretativa do conjunto


A “Sala do Rosário” consiste num pequeno rectângulo com 8,50m x 5,30m. Ao centro de
cada parede existe uma porta orientada para um ponto cardeal que abre para uma dependência
diferente.
Toda esta sala encontra-se inteiramente forrada a azulejos, na metade inferior da parede até
à altura de um metro, e a pintura de óleo sobre tela revestidas a talha dourada, na metade
superior e tecto, num total de três registos de pintura.
Os azulejos são monocromáticos em azul e branco, sendo que os contornos, tal como José
Meco notou, são a roxo. Este conjunto conta com um total de oito painéis todos muito
semelhantes estando atribuídos por este investigador ao pintor Manuel dos Santos17
relacionando-os, desta forma, com a mesma mão que pintou os do nartex de Santo Amaro.
[Meco, 1979, p.50, nota] Assim, este conjunto será datável de finais do século XVII, adaptando-

graças aos esforços de alguns investigadores e da presente exposição dedicada a este pintor foi possível
reconstituir a sua vida e obra. Bento Coelho nasceu por volta de 1620 e morreu em 1708. A sua actividade inicia-se
em 1648 com o ingresso na Confraria de S. Lucas, mas a sua obra torna-se verdadeiramente explosiva em
quantidade e qualidade quando recebe o cargo de pintor régio em 1678. A partir desta data e até à sua morte irá
pintar a maioria das telas conhecidas actualmente. Foi um pintor amado e ao mesmo tempo odiado, suscitou
admiração e ódio. Félix da Costa não fala dele numa única linha no seu tratado, ao passo que a Academia dos
Singulares lhe dedica vários versos. A sua produção foi tão vasta que terá pintado para o Brasil e Índia tendo Cirillo
dito a seu respeito: “Pintou um quadro por cada dia que viveu”[Machado, 1922, p. 67]. Esta grande produção
explica-se pelo facto de Bento Coelho não ter concorrência numa altura em que todas as igrejas e conventos de
Portugal decidiram renovar a sua decoração interior, devido a melhorias conjunturais. A sua técnica de fá presto em
que o desenho é negligenciado em favor da mancha de cor conciliou-se com este grande surto de encomendas às
quais Bento Coelho soube dar resposta.
17 A obra de Manuel dos Santos foi, desde cedo, confundida com o trabalho de Gabriel del Barco, pois ambos

trabalham na mesma época e obviamente utilizam a mesma linguagem estética: brutescos e festões de flores com
meninos entrelaçados. No entanto, José Meco notou grandes diferenças na qualidade do trabalho atribuído a
Gabriel del Barco, havendo muitas obras cuja excelente qualidade em nada comungavam com os restantes
trabalhos assinados por este autor estrangeiro. Santos Simões atribuiu a um mestre desconhecido algumas destas
obras, como os revestimentos das capelas mores da Igreja Matriz do Sardoal, da Igreja de S. Francisco na Horta e
da Igreja de S. José em Ponta Delgada, e ainda os painéis provenientes do destruído Convento de Santa Ana
reaplicados na capela mortuária da Igreja do Convento da Madre Deus, em Lisboa. Será José Meco que encontrará
o nome deste pintor: Manuel dos Santos, de quem estão documentados os painéis da Capela do Arcebispo no
Convento dos Congregados de São Filipe de Neri em Estremoz, actualmente a Câmara Municipal, de 1706 e o
revestimento da Igreja da Misericórdia de Olivença de 1723. Além destas obras José Meco acrescenta por analogias
estilísticas os painéis da portaria do Convento de São Vicente de Fora, os da portaria do Convento de São
Domingos em Lisboa, um painel aplicado numa casa na rua de São Mamede, na capital, os azulejos da Capela do
Senhor Morto no Convento do Espinheiro em Évora, os painéis superiores da nave da Capela da Peninha na Serra
de Sintra, de 1711. Este pintor trabalhou em conjunto com outros artistas, em particular com Gabriel del Barco em
1703 na capela mor da Igreja Matriz do Sardoal e com António de Oliveira Bernardes na Igreja de São Domingos em
Benfica [Meco, 1979, pp. 50 e 51 nota].

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se esta cronologia à hipótese de ter sido a Irmandade, sob a égide de D. Pedro II, a fazer esta
obra por volta de 1694.
À primeira vista, os painéis de azulejos são atarracados pois encontram-se abaixo do ângulo
normal de visão. Esta localização é rara, pois, nas igrejas típicas do “Barroco Nacional”, os
painéis de azulejos contam com uma altura na parede com cerca de dois metros (Marvila,
Cardais, Madre Deus).
A explicação para este fenómeno prende-se mais uma vez com a funcionalidade deste
espaço. Se a “Sala do Rosário” servia para orar, as freiras estariam ajoelhadas e portanto o seu
ângulo de visão seria diferente dos locais onde as pessoas estivessem de pé. Se o visitante se
ajoelhar, tal como faziam as freiras, irá constatar que a leitura dos azulejos fica corrigida e
semelhante aos outros exemplares conhecidos.
Nos oito painéis de azulejos a estrutura é semelhante. São constituídos por uma moldura
arquitectónica muito decorada, mas sem perspectiva, e por um podium quebrado por dois anjos
que seguram uma grande concha. Lateralmente, foram representadas cariátides de seios
descobertos que sustentam o entablamento, também decorado por folhas de arcanto. Este está
também quebrado por “ferroneries” de onde pendem dois festões com várias flores que se
enrolam na cabeça das cariátides e decaem pelo seu corpo. Ao centro, encontra-se um
medalhão circular com três querubins na parte superior e um mascarão de leão na parte inferior
que liberta grandes ramagens que preenchem o resto do painel.
A única diferença que distingue estes oito painéis é o conteúdo dos medalhões com símbolos
relativos à Ordem Franciscana. Estes símbolos encontram-se agrupados aos pares, frente a
frente, no sentido Nascente - Poente o que permite adivinhar a orientação da sala para um
pequeno nicho em talha dourada com um crucifixo para onde as freiras dirigiam a sua oração.
Desta forma, mantinha-se a orientação para Leste idêntica às igrejas comuns.
O primeiro par de símbolos consiste numa travessa com três moedas, ou medalhas,
numeradas da esquerda para a direita em numerais romanos: I, II e III. A travessa encontra-se
rodeada pelo cordão da Ordem Francisca.
O segundo par contém um emblema muito usado pelos Franciscanos que consiste em dois
braços cruzados com a chaga de Cristo nas mãos, tendo por detrás uma cruz e a legenda “Tipus
amoris”. Normalmente, um dos braços está nu pois é o de Cristo e o outro está vestido, sendo o
de S. Francisco que recebeu a estigmatização. No entanto, nestes dois painéis ambos os braços
estão vestidos.

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O terceiro par de painéis tem como emblema o brasão da Ordem Franciscana, com as cinco
chagas de Cristo a gotejar sangue dispostas em aspa. Como timbre este brasão tem a coroa de
espinhos de Cristo. A rodear o brasão está o cordão com nós da Ordem de S. Francisco.
Finalmente, o último par de emblemas apresenta três bandeiras com uma cruz no pavilhão.
Julgamos que a simbologia destes painéis prende-se com as três ramificações da Ordem
Franciscana: a da primeira regra, criada por São Francisco e Santa Clara, na qual se incluía o
Convento das Flamengas, a regra reformada por São Boaventura e Santa Colecta e finalmente
a Ordem Terceira, aberta a todas as pessoas.
Estes azulejos dispostos numa sala quadrada representam vários emblemas da Ordem
Franciscana, todos eles envolvidos por ramagens, o que, iconograficamente, pode simbolizar a
unidade da ordem. Portanto, estes painéis não representam nada de divino, mas sim algo de
terreno com o qual as freiras se identificavam: a Ordem Religiosa Franciscana. Esta ideia de
terreno está perfeitamente de acordo com a dimensão quadrada (ou rectangular) da Sala do
Rosário que os azulejos não pretendem contrariar pois a sua leitura faz-se em linha recta de
Oeste para Este e não em círculo.
Convém verificar que estes emblemas são idênticos aos utilizados na loiça comum das
freiras flamengas, como se pode comprovar pelos exemplares expostos na colecção
permanente do Museu Nacional de Arte Antiga.
Se os azulejos representam algo de existente e palpável no nosso mundo, tal não se passa
com os magníficos quadros de Bento Coelho da Silveira que representam e invocam cenas do
mundo espiritual. Os Mistérios do Rosário encontram-se dispostos em três registos sendo que
as primeiras dez telas encontram-se na metade superior da parede, quatro estão inclinadas a
45º e fazem a ligação entre o tecto e a parede, e finalmente a última tela, a Coroação da Virgem
encontra-se colocada no tecto, o que perfaz os quinze Mistérios do Rosário.
Como a junção entre a parede e o tecto necessitava de telas triangulares, Bento Coelho irá
colocar aí oito telas de três lados, bastante invulgares, que representam anjos com atributos
marianos, estando agrupados aos pares ladeando cada uma das quatro primeiras
representações dos Mistérios Gloriosos.
A estrutura da metade superior da parede da sala é toda em talha dourada. Em
contrapartida, o tecto é constituído por molduras douradas muito simples sem qualquer
decoração, inseridas em caixilhos de madeira pintada a óleo com motivos florais onde abunda o
vermelho, o branco, o rosa, o azul turquesa e o dourado.

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Nesta sala, onde abunda a pintura, a talha e os azulejos, encontra-se também lugar para a
escultura, como é próprio do Barroco Nacional. Num dos cantos da sala existe uma mísula em
talha dourada que suporta uma imagem de S. João Evangelista.
O nicho forrado a talha dourada, que está por cima da porta do lado oriental, contém uma
pequena imagem de Cristo Crucificado em terracota. Era para esta escultura que as freiras
dirigiam as suas preces quando oravam na Sala do Rosário.
Como vimos, existem quinze telas representando os Mistérios do Rosário (Gozosos,
Dolorosos e Gloriosos) com mais oito telas triangulares representando oito anjos, o que perfaz
um total de vinte e três pinturas todas indubitavelmente da autoria de Bento Coelho da Silveira.
A leitura inicia-se pela Anunciação que é a tela que está à esquerda da porta do lado leste, por
debaixo do nicho em talha dourada. Devido a esta disposição, a leitura das primeiras dez telas
não se faz da esquerda para a direita, como é frequente, mas sim ao contrário, no sentido
oposto ao dos ponteiros do relógio. Esta estruturação da leitura originou que a composição da
Encarnação esteja ao contrário das composições mais comuns, ou seja, o Anjo Gabriel aparece
do lado direito.

A Encarnação é uma das primeiras cenas relatadas no Evangelho de S. Lucas [Lucas, 1:26-
38] e confunde-se facilmente com a Anunciação. A diferença entre ambas consiste em que
naquela cena, que é a retratada por Bento Coelho nas Flamengas, Maria acedeu a ser Mãe de
Cristo e por isso é venerada pelo Anjo Gabriel que se ajoelha perante ela. A veneração para
com Maria é devido a ela já conter em si o corpo e sangue de Jesus sendo por isso o primeiro
sacrário da cristandade. Desta forma, reafirma-se o papel santo da Virgem, algo que era
contestado pela Europa protestante.
A Virgem está à esquerda de braços cruzados sobre o peito, olhando humildemente para o
céu, passiva e conformada com a missão que Deus lhe deu. No momento em que a Virgem
aceitou ser a portadora de Deus na forma de homem, deu-se a Encarnação do Verbo. Perto da
Virgem, vêm-se alguns símbolos: um livro aberto na profecia de Isaías, pois a Virgem estava a
orar quando o Anjo lhe apareceu. Mas este objecto não tem uma leitura assim tão linear. Se o
livro estivesse fechado significaria a matéria virgem, mas como está aberto quer dizer que a
matéria foi fecundada [Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 414] e, de facto, este quadro mostra o
momento da Encarnação, em que a Virgem foi fecundada pelo Divino Espírito Santo. Mas o livro
não se limita a estar aberto, as páginas estão a virar-se com o vento, ou seja, estamos a assistir
ao início do desenrolar de uma história que nos irá ser contada.

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Perto da Virgem está outro símbolo: um cesto de costura com as três fases da tecelagem: o
novelo, o fio desenrolado e o fio já tecido. Certos autores vêm nestes cestos de costura, muito
comuns nas Anunciações do século XVII, um pormenor de carácter doméstico, proveniente da
pintura flamenga, que se baseava numa tradição antiga bizantina. Segundo esta tradição, a
Virgem estaria a tecer a cortina do templo antes de ser visitada pelo Anjo Gabriel [Sobral, 1998,
p. 194].
No entanto, sem afastar esta hipótese podemos adiantar que o cesto com representações
das três fases distintas da tecelagem poderá ter um significado mais complexo. A tecelagem
prende-se com o destino dos homens, ou seja, a inevitabilidade do que está para vir: a Paixão e
o sacrifício de Cristo, mas também com a criação pelo parto, já que a Virgem terá de dar à luz
Cristo, apesar de O não ter concebido em pecado [Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 637].
O terceiro símbolo presente é o vaso com rosas, também muito frequente neste tema
executado por Bento Coelho da Silveira. O vaso é o local onde as maravilhas se operam, é o
seio materno, o útero no qual se forma um novo nascimento, é o reservatório de vida e de
tesouros [Idem, p. 677]. É outro símbolo que vai ao encontro da beleza da maternidade sem
pecado da Virgem e ao tesouro que ela contém. O símbolo do vaso é complementado com as
rosas que caracterizam Maria com os valores de beleza e de amor puro.
O quinto símbolo presente nesta Encarnação é a coluna, emblema da fortaleza da Virgem
que teve a coragem de aceitar o papel que Deus lhe destinou, de carregar no seu ventre o
Salvador. Assim, a Virgem faz o eixo entre a Terra e o Céu, pois com a Encarnação de Cristo,
Deus desceu à Terra sob a forma de homem. No entanto, a coluna está tapada por uma cortina
púrpura, símbolo do sangue de Cristo que será derramado.
A maioria dos símbolos desta tela são dedicados à Virgem, no entanto, a leitura inicia-se pela
direita onde está o Anjo Gabriel ajoelhado com a mão no peito em sinal de respeito pela Mãe de
Deus, segurando açucenas como defende o tratadista Francisco Pacheco.
Também no lado direito, no canto superior, aparece a pomba do Espírito Santo, envolta em
luz, numa glória de anjinhos, um apontamento barroco de fortuna muito fértil na pintura de Bento
Coelho.
Esta Encarnação existente na Sala do Rosário do Convento das Flamengas baseia-se, tal
como centenas de muitas outras, na pintura contra reformista do mesmo tema que Fernão
Gomes pintou para os Jerónimos, em 1594. Com o Concílio de Trento, a posição da Virgem será
reforçada e portanto haverá uma necessidade de se ter o maior cuidado nas representações
catequéticas que não deveriam de ter pormenores indecorosos. Muitos autores preocupam-se

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com a composição das imagens, como por exemplo Palleoti que defende no seu tratado (1582)
que a Virgem deve estar representada ajoelhada e concentrada nas suas orações, por isso o
uso do livro aberto. Ao mesmo tempo este autor critica os ricos ornamentos que vão contra a
modéstia e a pobreza da Virgem. Bento Coelho segue este conselho e representa Maria de
joelhos com um vestido branco e um manto azul sem qualquer ornamento, padrão de tecido ou
peças de ourivesaria, motivos de prestígio tantas vezes usados na nossa pintura quinhentista
[Sobral, 1996, p. 120].
O Anjo segue claramente os já muito velhos modelos maneiristas, não possuindo o
movimento próprio da pintura barroca europeia. Como verificou o historiador Luís de Moura
Sobral, este anjo submisso é frequentemente utilizado na pintura de Bento Coelho seguindo à
risca a passagem de Francisco Pacheco citada por este historiador: O anjo, “mancebo
formosíssimo (…) com vistosas asas e roucas recatadas (…) não há-de vir a cair nem a voar, e
com as pernas descobertas (…), mas deve de estar vestido decentemente, com ambos os
joelhos em terra, com grande respeito e reverência diante da sua rainha e Senhora”. Podendo-
lhe por “uma açucenas na mão esquerda”, as quais significam “a exaltação da Virgem de um
estado humilde ao mais alto e levantado da Rainha do Céu e Mãe de Deus”. No cimo do quadro
“costuma-se pintar uma glória com o Padre Eterno e muito serafins e anjos e o Espírito Santo
em figura de pomba deitando resplandecentes raios de luz” [Pacheco, 1956, Vol. 2, pp. 231 a
234, cit. Sobral, 1996, p. 120].
Este modelo de Anunciação será muito comum e frequentemente utilizado pelos pintores
espanhóis em quase todas as pinturas deste tema. Bento Coelho não será excepção e vai
seguir nas suas composições este esquema muito repetido. Talvez o exemplar mais flagrante
seja a Anunciação do Museu Nacional Machado de Castro (nº inv. 2215) em que Bento Coelho
limitou-se a copiar a mesma composição que nas Flamengas, embora este último esteja
invertido devido a necessidades de leitura já abordadas. O mesmo fenómeno de cópia do
modelo contra-reformista também se pode observar na pintura do mesmo tema da Pousada da
Rainha Santa Isabel em Estremoz. Bento Coelho utiliza e repetirá indefinidamente este tema até
fazer em 1697 a magnifica Anunciação do Convento das Comendadeiras da Encarnação de
Avis, onde pela primeira vez na pintura seiscentista, o anjo quebra as imposições contra
reformistas já centenárias e adquire um grandioso movimento perfeitamente barroco. O anjo
irrompe pela sala a voar e, com uma das pernas descoberta, aponta para o Deus-Pai. Os
preceitos de Francisco Pacheco deixaram de ter significado e a pintura entrou definitivamente no
seu período barroco.

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A próxima tela é a Visitação que também tem uma leitura da direita para a esquerda. Esta
cena também é descrita por S. Lucas [Lucas 1:39-80] e teve direito a ser estipulada por Pacheco
que defende desta maneira a disposição da Visitação: Deve-se pintar esta visita no pátio da
casa da santa anciã que sai repentinamente à porta duma sala para receber a Santíssima
Virgem (…) e abraçando-se as duas primas com grande alegria (…). S. José (…) saudaria o
Santo Zacarias como o dono da casa e assim estariam os dois apartados louvando a Deus, a
uma distância tal que não pudessem ouvir a conversa das duas primas [Pacheco, 1956, Vol. 2,
p. 236, cit. Sobral, 1998, p. 260].
Como a leitura deste quadro se faz a partir da direita, encontramos neste lado o mais
importante da pintura, ou seja, a Virgem com o seu vestido branco e vermelho (cores
componentes da rosa) e o manto azul sem qualquer ornamento ou enfeite. Para indicar que foi
feita uma viagem, Bento Coelho coloca nas costas da Virgem um chapéu de viajante preso ao
seu pescoço.
Por detrás de Maria está José, empurrado para um plano secundário, vestido de castanho
para não roubar as atenções que se devem dirigir exclusivamente para a Virgem. Tal como Luís
de Moura Sobral reparou, o S. José utilizado por Bento Coelho não é o velho descrito nos textos
bíblicos mas sim um homem ibérico, forte, maduro, de tez escura e barba rala [Sobral, 1998,
p.260]. O papel de José resume-se exclusivamente a mostrar o seu respeito e veneração pela
mãe de Deus, tal como demonstra o seu acto de tirar o chapéu e encostá-lo ao peito em atitude
submissa. O burro que S. José segura também se ajoelha e baixa a cabeça. Segundo Pacheco,
o jumento serviu para transportar Maria e José durante a sua jornada. Contudo, se tivermos em
conta que o burro também é o emblema do obscuro e das tendências maléficas [Chevalier e
Gheerbrant, 1997, p. 133] então, a sua postura significa que o mal foi dominado e vencido por
Maria e por Cristo, ainda no seu ventre.
Por detrás de José e do burro estão duas personagens, possivelmente dois anjos, que se
riem segredando algo que nos escapa. Neste lado direito, onde está a Virgem e S. José, domina
a luz proveniente do céu aberto pintado por Bento Coelho, o que contrasta com a escuridão do
interior da casa de Isabel, à esquerda do quadro. Santa Isabel, uma parente da Virgem já velha
quando concebeu um filho, o futuro S. João Baptista, ajoelha-se para receber a Virgem pois
reconhece nela o Verbo Encarnado do Espírito Santo. Por detrás da velha mulher, Zacarias, o
seu marido, com vestes sacerdotais, recebe Maria e José de braços abertos.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Na extremidade esquerda do quadro, passa-se uma cena pouco decorosa para figurar num
convento feminino. Um rapaz sorridente tenta levantar o avental a uma criada de Isabel, também
ela grávida. Esta tem um corpete escarlate com um atrevido decote e não parece repudiá-lo,
dizendo-lhe antes, com um gesto, que aguarde por um momento mais oportuno.
A explicação para este casal que não figura nos textos sagrados mas que aparece noutras
pinturas do mesmo tema da autoria de Bento Coelho, prende-se com o facto de haver a
necessidade de existirem nesta cena três mulheres grávidas: Maria, Isabel e a criada. Nas
Visitações onde apenas aparece Maria e Isabel, o observador seria levado a pensar na
dualidade como opostos, ou seja, Maria que havia concebido sem pecado opunha-se a Isabel
que concebera com pecado S. João Baptista. Esta dedução inevitável não seria conveniente
para Santa Isabel e para o seu filho. A resolução deste problema não era fácil, por um lado não
se podia colocar Isabel ao mesmo nível que Maria, mas por outro não era conveniente à fé que
os cristãos olhassem para S. João Baptista como um homem comum. Para melhorar a leitura,
inseriu-se um terceiro casal de esposos perfeitamente profanos que nas Escrituras nunca
existiram e assim faz-se uma nova leitura: Maria concebeu sem pecado e por isso vê-se por
detrás dela o céu, símbolo do divino. Por oposição, está o casal que concebeu um filho comum
em pecado e por isso estão envolvidos na escuridão do interior da casa, emblema do profano e
da intimidade. Entre estas duas realidades, está Santa Isabel que efectivamente está a meio do
quadro com o corpo metade dentro de casa e metade fora. O sentido era mostrar que Santa
Isabel concebera com pecado, mas por vontade divina já que o seu filho seria S. João Baptista.
À primeira vista, este casal de criados pode ser considerado demasiado indecente para
figurar num convento feminino, mas se o compararmos com outro casal semelhante que está na
Visitação do mesmo autor na Igreja do Convento das Comendadeiras de Avis, em Lisboa,
concluímos que o casal das Flamengas até é bastante bem comportado. Nessa tela, a criada é
interpolada por dois homens não parecendo insatisfeita com a situação!
Além do casal profano há outras características que unem o quadro das Flamengas a outros
exemplares do mesmo tema e do mesmo autor. Bento Coelho, tal como fizera com as
Anunciações, irá repetir inúmeras vezes o mesmo modelo e a mesma composição. A única
diferença é novamente o facto de a tela das Flamengas estar invertida, devido à via de leitura do
conjunto que está disposto da direita para a esquerda, ao contrário dos outros exemplares.
Ainda assim, podemos ver pontos comuns além da composição: o S. José nunca é um velho,
mas sim um homem forte e vigoroso da mesma idade que a Virgem. No caso da Igreja das
Comendadeiras de Avis ele não é empurrado para um papel tão secundário e humilde, pois de

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

volta dele contam-se inúmeros anjos que o acompanham e felicitam. No quadro da Igreja Matriz
de S. Bartolomeu em Vila Viçosa, S. José deixa de ser o “criado” da Virgem como nas
Flamengas e passa a ser o seu esposo devido à proximidade com que é retratado.
Zacarias e Isabel são as personagens que menos variantes apresentam. O primeiro, aparece
sempre com as vestes sacerdotais e Isabel é retratada como uma velha, tal como as Escrituras
referem. Outro elemento iconográfico que aparece com frequências nas Visitações é o cão,
embora Bento Coelho não o tenha utilizado nas Flamengas.

O terceiro painel da série dos Mistérios do Rosário é a Adoração do Menino pelos Pastores.
Esta tela é de menores dimensões que as anteriores pois foi concebida para ser colocada por
cima da porta que dá acesso ao dormitório, ou seja, ao centro da parede Norte. Novamente,
utiliza-se os textos de S. Lucas [Lucas 2:8-20] à semelhança do que aconteceu nas outras
passagens.
Bento Coelho optou por repetir uma solução muito utilizada noutras pinturas. A cópia dos
quadros é tão flagrante que, à primeira vista, o pintor até se esqueceu que tinha de inverter a
imagem adaptando-a ao conjunto. No entanto, Bento Coelho negligencia este aspecto e faz a
leitura deste quadro da esquerda para a direita como é o mais frequente. O resultado foi que a
leitura em vez de se iniciar pela Virgem inicia-se pelos pastores.
A explicação para este aparente lapso não se prende com negligência, mas sim com o facto
de o mais importante neste quadro já não ser a Virgem como nos anteriores, mas sim Jesus
Cristo que entretanto nasceu. Como a criança é representada ao centro, é indiferente se a
Virgem está à direita ou à esquerda e por isso o pintor utilizou a solução que melhor lhe
convinha pela facilidade, daí que haja uma aparente interrupção na leitura do conjunto.
Maria está à ajoelhada esquerda em oração com o seu vestido vermelho e branco. O Menino
Jesus, deitado num pano sobre as palhas, olha para a mãe e é ele o foco de luz de toda a
pintura. S. José aparece por detrás da Virgem com uma posição pouco comum, tal como
verificou Luís de Moura Sobral: Nas Flamengas, o esposo de Maria apoia a cabeça na mão
direita, adormecido ou mediando sobre o sagrado mistério, motivo certamente tirado dum
Descanso na Fuga para o Egipto [Sobral, 1998, p. 216]. No centro e no lado direito do quadro
estão os pastores a adorarem o Menino, seis ao todo. Entre eles vê-se um idoso e um jovem de
calções escarlates que segura um carneiro atado por uma corda, pronuncio do sacrifício de
Cristo. Este último pastor que se prepara para ajoelhar aparece noutras composições, tendo
Luís de Moura Sobral apontado a sua possível influência “bassanesca”. Além do carneiro,

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Pacheco delibera que as outras ofertas devam ser bolos e frutas secas, embora outras tradições
apontem para outros tipos de presentes. Em qualquer dos casos, a única oferenda feita pelos
pastores na tela das Flamengas é o já referido carneiro.
Neste quadro também aparece a célebre vaca que o Concílio de Trento proibiu, mas que a
vontade popular manteve até aos dias de hoje. Pacheco recomenda a sua utilização, pois
apesar de não figurarem nos textos canónicos, a vaca e o burro eram apontamentos inocentes
da vida quotidiana que em nada prejudicavam a fé católica, antes pelo contrário, atraíam o olhar
do observador e cativavam a sua devoção pelo Presépio.
Pacheco é permissivo na questão da vaca, mas não o é em relação à nudez do Menino,
contra a qual tece algumas críticas. No entanto, os pintores continuavam a representar o menino
nu sem dar qualquer importância às palavras de Pacheco.
A cópia mais flagrante que Bento Coelho fez desta composição é o exemplar do mesmo
tema proveniente do Museu Nacional Machado de Castro (nº inv. 2991). No entanto, existem
algumas diferenças que convém salientar. O Menino não se encontra totalmente nu. Um
pedacinho de pano tapa-lhe os órgãos genitais, e em vez de olhar para a mãe, Jesus dorme
profundamente enquanto é adorado por Maria, representada de forma idêntica à da tela das
Flamengas. S. José, desta vez, está ao lado de Maria e copia-lhe a posição. O pastor dos
calções vermelhos também está presente, tal como o seu carneiro atado.
Além deste, podemos ver mais cinco pastores do lado direito todos de idades variadas, tendo
um deles outra oferta para fazer ao Menino Jesus. Do lado esquerdo, estão a vaca e dois
pastores apoiados num umbral de uma janela, onde nas Flamengas estava o S. José
adormecido.
Apesar das pequenas diferenças, a composição, o equilíbrio e a gama das cores são
exactamente idênticos aos da tela das Flamengas, o que demonstra que Bento Coelho não
tinha qualquer problema em copiar quase integralmente modelos já muito repetidos.

A quarta pintura é a Apresentação do Menino ao Templo que segue o Evangelho segundo S.


Lucas [Lucas, 2:21-40]. Novamente, Bento Coelho negligenciou a leitura do conjunto e pintou
uma cena com a disposição normal das figuras pois, mais uma vez, o mais importante da
composição, Jesus, está no centro. A Virgem está à esquerda a entregar o Menino ao velho
Simeão que reconhece na criança o Salvador. Jesus abre os braços para o homem que está
ajoelhado com ricas vestes. No lado esquerdo, está, no primeiro plano, S. José com um par de
pombas acompanhado por duas mães e os respectivos filhos ao colo.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

São as duas mulheres que estiveram grávidas ao mesmo tempo que Maria e que
apareceram na Visitação. Santa Isabel é retratada muito nova com o seu filho, S. João Baptista,
ambos com muita atenção para o mistério que se desenrola à sua frente. Ao lado, está a criada
de Santa Isabel com o seu filho voltado para o peito da mãe sem perceber o que se está a
passar. A própria criada não está com atenção à cena, mas sim com sorrisos para o marido que
troca olhares com ela debruçado sobre o altar numa posição pouco respeitável. Novamente, a
simbologia das três crianças está presente nesta composição.
No lado direito está Simeão ajoelhado, a profetisa Ana e mais quatro personagens, sendo
três figurantes com o que possivelmente será o marido de Santa Isabel, Zacarias.
Nos exemplares que chegaram até nós da Apresentação ao Templo, Bento Coelho da
Silveira manteve quase sempre a mesma composição com pequenas variantes: na tela das
Comendadeiras da Encarnação de Avis, o Menino foge assustado do velho Simeão e a criada
de Santa Isabel não foi retratada apesar de existir um outro rapaz debruçado sobre o altar.
Após esta cena, existe, já no lado Oeste da divisão um espaço vazio que serve de
iluminação. À primeira vista seriamos levamos a pensar que faltaria uma tela naquele local,
possivelmente uma fuga para o Egipto, mas tal hipótese é afastada porque o mistério que se
segue à Apresentação ao Templo é de facto o Menino entre os Doutores.

O Menino entre os Doutores é a cena seguinte. Este episódio é relatado por S. Lucas [Lucas
2:41-52], sendo que neste quadro a leitura volta a estar correcta estando o Menino sentado à
direita por onde se inicia a leitura da pintura. Jesus é o foco das atenções estando sentado num
trono da sabedoria rodeado de velhos sábios. Um deles enumera argumentos com os dedos da
mão, contra os quais Cristo refuta animadamente. Maria encontra o seu filho a discutir com os
sábios e leva a mão ao peito em sinal de felicidade. Normalmente Cristo encontra-se ao centro
do quadro, mas nas Flamengas foi colocado à direita devido à leitura do conjunto.

Os Mistérios Dolorosos iniciam-se na cena seguinte com o princípio da paixão de Cristo. O


Cristo no Horto retrata os últimos momentos da sua liberdade quando se inicia o processo que
só acabará com a Crucificação. O episódio do Horto das Oliveiras é relatado quase de forma
idêntica por S. Mateus, S. Marcos e por S. Lucas [Lucas 22:39-46] sendo o texto de este último
o utilizado por Bento Coelho da Silveira pois é o único Evangelista que fala na presença de um
anjo.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Nesta tela, Bento Coelho retratou Jesus Cristo com grande angústia, orando ajoelhado sobre
uma pedra. Por de traz dele, os apóstolos dormem profundamente, distinguindo-se apenas S.
João Evangelista. À esquerda, um anjo que veio para confortar Jesus apoia-se numa cruz,
símbolo da paixão que está prestes a começar. No alto, iluminado, está o cálice de que as
escrituras falam e cujo significado prende-se com o sangue derramado que ele irá conter, ou
seja, é a antecipação do sacrifício que está para vir, por isso Cristo pede a Deus para que ele se
afaste, mas tal não aconteceu.

A cena seguinte é a Flagelação que nos Evangelhos não tem uma passagem própria. Os
Livros Canónicos apenas referem que Jesus antes de ser Crucificado foi mandado flagelar por
Pilatos. No entanto, esta cena da Flagelação ganhará muita importância como imagem dos
suplícios sofridos por Cristo. Jesus está despido, a meio da composição, sendo supliciado por
três homens que O chicoteiam. No lado direito, um algoz reforça o laço que prende Jesus,
enquanto que outro, ajoelhado à esquerda prepara o seu instrumento para flagelar Cristo. Bento
Coelho teve a oportunidade de inserir nesta composição um tronco nu masculino que não foi
considerado indecoroso para figurar num convento feminino. Também é de salientar que todas
as personagens que martirizam Cristo estão envoltas na escuridão, símbolo das trevas com que
terão de viver por este pecado.

O passo seguinte é a Coroação de Espinhos. Este cena é relatada de forma quase idêntica
em S. Mateus [Mateus 27:27-31] e S. Marcos com variantes em S. João. Cristo aparece
conformado e sentado no seu trono improvisado pelos torturadores, de mãos atadas e o corpo
cheio de cortes provocado pela flagelação anterior. Tal como as Sagradas Escrituras referem,
Cristo foi coroado de espinhos e coberto por um manto vermelho. Dois homens de cada lado
torturam-no vergando-lhe uma cana na cabeça. O homem do lado esquerdo é tão musculoso
que passa a ser aberrante, rondando o caricatural. Aliás, desde a Idade Média que os algozes
de Cristo foram excelentes pretextos para os pintores trabalharem a caricatura. Ajoelhado está o
homem que dá a Cristo o seu ceptro, uma cana verde e do lado esquerdo, um indivíduo magro e
pequeno tem prazer em observar a situação, mas não se atreve a chegar ao pé de Cristo. Este
homem, tal como aquele que presta a vénia cínica a Cristo estão vestidos de amarelo, símbolo
do orgulho, da presunção, da crueldade e do cinismo [Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 59] o
que se coaduna perfeitamente com estes homens que tão seguros das suas convicções são
intolerantes e cruéis para com Cristo.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

A última cena do lado Sul é a de Cristo Carregando a Cruz, episódio contado com mais
pormenor no Evangelho de S. Lucas [Lucas 23:26-32]. Bento Coelho representou esta
passagem novamente utilizando modelos muito comuns. Cristo está ao centro carregando com
sacrifício a sua cruz, sendo auxiliado por Simão de Cirene que é coagido a isso por um
centurião. Atrás vão três mulheres, a Virgem Maria, Maria, mãe de Tiago, e Maria Madalena que
não esconde o pranto. Perto da Virgem, a acompanhá-la, está S. João Evangelista. À frente de
Jesus estão dois homens que caminham puxando as cordas que O arrastam. Tal como as
Escrituras referem, Cristo, volta-se para responder aos prantos das mulheres. Como fundo,
Bento Coelho desenhou uma multidão que acompanha o cortejo com bandeiras e cornetas
numa alegre algazarra. No entanto, todo o conjunto está envolto numa escuridão perturbadora.

O último Mistério Doloroso é o Calvário que se pode observar na parede leste do lado
direito. A composição é bastante simples, desenvolvendo-se em três estádios. No primeiro,
Cristo está crucificado olhando para o céu e proferindo as palavras: perdoa-lhes Pai, que não
sabem o que fazem [Lucas 23:34]. No segundo, Maria e S. João Evangelista ladeiam a cruz à
mesma altura. E finalmente, Maria Madalena, mais baixa, chora a seus pés com os seus longos
cabelos louros mantendo sempre ao pé de si o frasco de bálsamos, o seu atributo. Não existe
nenhuma passagem Bíblica que refira este momento com estas quatro personagens, sendo uma
composição baseada em gravuras muito difundidas pela Europa. Nem a Virgem Maria nem S.
João Evangelista choram, pois para essa função existe Maria Madalena. A Virgem sendo a
personificação da Igreja Católica deve de ser forte e não mostrar a dor, nem mesmo nesta altura
difícil, tal como ficou decretado pelos cânones contra-reformista.

Entramos agora no segundo registo, que tem uma leitura inversa ao do nível inferior. A sua
leitura é feita agora da esquerda para a direita, no sentido dos ponteiros do relógio. A primeira
tela retrata o primeiro dos Mistérios Gloriosos, a Ressurreição de Cristo e está localizada na
parede sul da Sala do Rosário. Novamente, Bento Coelho utiliza os modelos sempre repetidos
desde a Idade Média. Cristo sai de rompante, glorioso, envolto numa túnica vermelha segurando
na mão uma cruz com função de estandarte que sustenta uma bandeira branca com uma cruz
vermelha.
No chão e envolto na escuridão está o túmulo onde cristo esteve sepultado e os soldados
que acordam pasmados com a cena. Na extremidade direita, vemos as três mulheres santas:

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Maria Madalena, seguida por Joana e por Maria mãe de Tiago. Toda a luz do quadro é originária
de Jesus que ressuscita gloriosamente da morte. Novamente as fontes seguidas são o
Evangelho de S. Lucas [Lucas 24:1-12] e também uma passagem de S. Marcos [Marcos, 28:1-
10].
Ladeando cada uma das telas do segundo registo estão duas pinturas triangulares, onde
diversos anjos com atributos alusivos à Virgem se adaptam perfeitamente a essa forma. À direita
da Ressurreição de Cristo está um anjo sorridente que segura um ramo com muitas rosas,
símbolo da beleza e da perfeição acabada. No lado esquerdo, um anjo segura uma cana,
símbolo da fragilidade.

A tela seguinte, no lado Oeste, é a Ascensão de Cristo narrada mais uma vez por S. Lucas
[Lucas 24:50-52]. Cristo, agora vestido de púrpura com um manto vermelho levita nos céus de
braços abertos. Em baixo, estão a Virgem e os doze apóstolos, entre os quais, no primeiro
plano, no lado direito, S. João Evangelista. A reacção dos apóstolos a este tipo de fenómeno
difere, uns estão admirados, outros riem, outros choram e outros ainda ficam cheios de
devoção.
A ladear esta cena está no lado direito uma anjo com um portal arquitectónico, outro símbolo
da Virgem pois ela é chamada de “Porta do Céu” nas ladainhas dedicadas à Virgem. No lado
esquerdo, está um anjo com um espelho envolvido numa bela moldura, que simboliza a beleza
incorruptível da alma.

A tela seguinte está por cima da porta Norte e representa o Pentecostes. Ao centro, a Virgem
reza por um livro que está aberto à sua frente. A adoração é mostrada pelas mãos cruzadas no
peito. Ao lado está uma mulher que olha para ela em sinal de admiração. No céu abre-se uma
luz que irradia línguas de fogo, cada uma delas destinada a cada um dos presentes. No lado
esquerdo, vê-se S. João Evangelista com o seu livro fechado, por detrás dele está Maria
Madalena. No lado direito, vemos S. Mateus, o outro apóstolo que também foi evangelista com o
seu livro fechado. Perto dele estão os restantes apóstolos. Os livros destes dois evangelistas
estão fechados porque a cena do Pentecostes não é narrada nos seus escritos.
Ao receberem as línguas de fogo, as expressões variam entre as personagens. A Virgem
está passiva, S. João recebe o Espírito Santo com humildade, Maria Madalena mostra um
sorriso e os outros apóstolos dividem-se entre o pavor, a admiração, a satisfação e o espanto.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Os anjos que ladeiam o Pentecostes são, quanto a nós, os melhores pela expressividade dos
seus rostos. À esquerda vemos um anjo com a palma, o símbolo da perfeição atingida pelo
sacrifício. Bento Coelho não se limitou a colocar um atributo na mão de um anjo, fez com que a
sua expressão se adequasse à mensagem transmitida. Assim, o anjo olha para nós, para o
espectador, como se nos vigiasse, atento aos nossos sacrifícios mas também às nossas falhas.
É possivelmente o melhor anjo do conjunto pois interage com o espectador, perturbando-o e
criando-lhe sentimentos. O anjo do lado direito não lhe fica atrás sendo o seu atributo os lírios
da virgindade. A expressão deste anjo adequa-se à mensagem que transmite pois tem um olhar
recatado e inocente. As suas roupas são quase inteiramente brancas o que vai de encontro à
mensagem de pureza.

A última tela dos Mistérios Gloriosos que está neste segundo registo é a Assunção da
Virgem. Maria sobe aos céus empurrada por muitos anjos pequenos. A conduzi-la estão dois
anjos maiores que a levam para o céu. Em baixo, estão os apóstolos e Maria Madalena. No lado
esquerdo, S. João Evangelista ora compenetrado perante o mistério, e ao lado, um outro
apóstolo, talvez S. Pedro, emociona-se e não consegue conter as lágrimas.
A ladear esta tela estão mais dois anjos, o da esquerda que segura um ramo de oliveira,
símbolo da paz e o da direita, mostra uma estrela, emblema da Virgem pois ela é também
chamada de “Estrela da Manhã”.

Terminada a leitura do segundo registo, estamos virados para Este e por isso a pintura do
tecto encontra-se ao contrário. Assim, o observador é obrigado a dar meia volta para ver
correctamente o último dos Mistérios do Rosário: a Coroação da Virgem.
Maria está de joelhos sobre uma nuvem de mãos cruzadas no peito, na mesma posição
humilde e passiva de conformação quando se deu o primeiro mistério, a Anunciação. Em baixo,
um turbilhão de anjinhos empurra a nuvem para cima, para que Maria seja coroada por Deus
Pai, um ancião de cabelos brancos e vestes púrpuras e azuis que segura um ceptro e o globo
terrestre. À direita do Pai está Cristo, ainda com as cinco chagas e apenas vestido com a túnica
vermelha. Ambos seguram a coroa que será colocada na cabeça de Maria. Sobre o conjunto
está o espírito Santo e uma Glória de anjos, uns a cantar e outros a tocar instrumentos musicais.

Concluída a análise das telas de Bento Coelho da Silveira podemos verificar que este pintor
utiliza aqui certas características que também estão presentes em muitos outros trabalhos seus.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

As vinte e três telas são pensadas para serem incluídas num determinado local, respeitando
uma lógica de leitura. Se qualquer dos quadros fosse retirado do seu local de origem todo o
conjunto perderia o significado.
Bento Coelho concebe as suas obras para figurarem em grandes espaços arquitectónicos e
como tal as suas obras ganham um carácter monumental. Devido a este preferência por pinturas
de grandes dimensões, o pintor, no Convento das Flamengas, tal como noutros locais, favorece
a cor, o que o aproxima de Rubens, mas negligencia o rigor do traço. Bento Coelho tinha a
consciência que as suas pinturas iriam ser observadas a partir de uma grande distância,
corrigindo-se assim todas as deficiências que pudessem existir. As suas composições surgem
sem desenho subjacente, pois tal como observámos, Bento Coelho repete inúmeras vezes
modelos já utilizados. O pintor limita-se a pintar directamente sobre a tela branca as figuras com
as cores e contornos finais, resultando daqui formas doces e diluídas.
Outra característica da pintura de Bento Coelho e que também está presente na Sala do
Rosário do Convento das Flamengas é que o pintor tinha a consciência de quem iria ver a
pintura e por onde. Com base nestes dois dados, a pintura nascia adaptada a um determinado
local e para ser vista por um determinado público. Por esta razão, o pintor colocou oito anjos
com atributos da Virgem, mas cujo significado também poderia ser entendido como qualidades
de freiras. Surge assim um anjo do sacrifício que olha para nós com ar arrogante como se nos
advertisse que está permanentemente a vigiar o nosso comportamento.
Os anjinhos são outra característica muito comum de Bento Coelho e frequente nos
ambientes beatos dos conventos femininos. No entanto, exceptuando a Assunção da Virgem, o
pintor não utilizou muito este artifício, possivelmente por exigência do encomendante para quem
estas pinturas tinham um carácter mais funcional que lúdico.
Através dos grandes arcanjos podemos ver a mão inconfundível de Bento Coelho. Os anjos
que estão nos cantos do segundo registo são idênticos aos outros anjos que estão num
conjunto de três telas assinadas pelo autor e datadas de 1695, em particular aos anjos da
Virgem com o Menino e a Visão da Cruz, tela que está no Departamento de Gestão da Reitoria
da Universidade Nova de Lisboa.

3.2.2. A Sala do Rosário enquanto obra de arte total


A “Sala do Rosário” foi concebida como uma “obra de arte total”, onde talha, imaginária,
pintura e azulejos transmitem em conjunto uma mensagem que importa compreender. Esta
mensagem foi pensada pelo encomendante, possivelmente as abadessas que em conjunto com

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

os vários artistas, pintores, entalhadores, douradores e ladrilhadores optaram pelo resultado


final. Desta forma, a Sala do Rosário resulta da cooperação de vários artistas que juntos
trabalharam para satisfazer o encomendante que queria transmitir uma mensagem.18
A forma da Sala do Rosário consiste num quadrado alongado (rectângulo), tendo a meio de
cada parede uma porta que abre para um ponto cardeal distinto. A porta é, iconograficamente, o
lugar de passagem entre dois mundos contrários, do domínio profano para o domínio sagrado
[Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 537]. Transpondo esta ideia para a sala em estudo,
constatámos que também ela própria é um local de passagem entre dois caminhos transversais
de contrários. A porta Norte abre para o dormitório (local profano de descanso do corpo e por
isso nefasto para a alma) e situa-se virada de frente para a porta Sul que dá para o coro-alto
onde as freiras “trabalhavam” assistindo aos ofícios litúrgicos, precavendo a salvação da alma.
O outro caminho decorre na transversal no eixo Este/Oeste. A Oeste situa-se um pequeno
miradouro, onde as freiras tinham o contacto possível com o mundo exterior onde o pecado
dominava. Do outro lado, para lá da porta Este, fica o claustro, espaço também aberto ao ar
livre, mas de recolhimento e contemplação. Cada caminho contém em si dois contrários.
Havendo dois caminhos que se cruzam, estes também se opõem. O caminho Norte/Sul
(Dormitório/Coro-alto) é feito em espaços interiores, fechados, enquanto que o caminho
Oeste/Este (Miradouro/Claustro) é feito entre dois espaços abertos, ao ar livre.
Esta forma de um quadrado com quatro portas cardeais com dois caminhos transversais
lembra de imediato a simbologia da cidade, da “Urbs” romana e consequentemente da terra. Se
transpusermos o conceito de cidade ideal para a religião judaico-cristã obtemos não Roma, que
era um local de perdição, mas sim a Jerusalém Celeste que no seu centro continha o “Agnus
Dei”, o Cordeiro de Deus (Jesus Cristo), cujo sacrifício tirou o pecado do Mundo. Se
concebermos a Sala do Rosário como uma Jerusalém Celeste simbólica iremos ter no seu
centro as freiras que também se sacrificam e oram para tirar o pecado do Mundo. Neste
quadrado-terra, as freiras rezavam aspirando ao plano celeste. Gera-se assim uma dialéctica
terra/céu, semelhante à que existe nas igrejas.
A forma quadrada da sala não resulta de exigências utilitárias, funcionais ou estruturantes,
pois havia total liberdade da divisão se expandir quer em largura, quer em comprimento. Existe,
portanto, uma intencionalidade nas medidas e na forma desta dependência. Se as analisarmos,

18 Um dos poucos investigadores que tentou compreender esta sala como um todo foi Carlos Moura que tentou ler
iconograficamente estas telas. No entanto, desconhecendo que se tratava dos Mistérios do Rosário, julgou tratar-se
de duas narrativas independentes: a Vida da Virgem e a Vida de Cristo interligadas pela tela da Coroação da Virgem
[Moura, 1986, p. 147].

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

concluímos que (com uma tolerância de alguns centímetros) esta sala segue as medidas das
igrejas “ad quadratum” constituídas por três medidas iguais no comprimento e duas na largura.
Estas são também as medidas do microcosmos e do homem, segundo Santa Hildegarda [Idem,
p. 549]. Esta proporção de 2/3 presente na Sala do Rosário é utilizada nas igrejas cistercienses,
sendo a Sé de Portalegre um exemplo deste modelo em Portugal. Simbolicamente eram as
medidas utilizadas para representar na igreja o espaço da terra onde estavam os fiéis. Estas
relações geométricas e aritméticas são um tipo de erudição presente nas composições
arquitectónicas de seiscentos.
Desta forma vemos que as medidas da Sala do Rosário são adequadas a um templo ou a
um local de oração, sendo portanto de excluir que esta sala tivesse uma qualquer função
profana, como sala de reuniões de uma irmandade.
Nos locais onde existe esta dialéctica entre a terra e o céu, é frequente haver uma
associação entre o quadrado e o círculo. Normalmente, esta relação aparece na arquitectura
sob a forma de um cubo suplantado por uma cúpula (S. Pedro de Roma ou Santa Engrácia em
Lisboa). O quadrado pertence ao tempo, ao finito e ao terrestre. O cubo delimita o espaço onde
estão os fiéis. O círculo é elevado à forma de cúpula e representa a eternidade, o infinito e o
transcendente, que é contemplado mas inatingível pelos fiéis que estão em baixo. Ou seja, a
cúpula delimita o espaço do divino sobre o espaço dos homens.
Na Sala do Rosário é possível fazer esta relação entre cubo, delimitador do espaço terrestre
e dos fiéis, e “cúpula” que evoca o transcendente e o céu.
Os azulejos representam símbolos relativos à Ordem Franciscana, uma organização religiosa
que por ser constituída por homens é finita e terrena. A leitura dos azulejos é feita em linha recta
nunca necessitado o observador de desempenhar um círculo para os ver na totalidade. Além
disto, os azulejos estão colocados não à altura de um homem adulto de pé como é frequente,
mas sim até à cabeça de uma pessoa ajoelhada, tal como as freiras estavam quando rezavam o
Rosário. Se o observador se ajoelhar, verá como a leitura fica corrigida e os painéis ficam ao
nível dos olhos. Logo, há uma vontade de delimitar o espaço terrestre (onde as freiras estavam)
através de azulejos que lembrassem a sua vida ainda terrena (símbolos da Ordem Franciscana).
O oposto passa-se nas pinturas a óleo que estão dispostas de tal forma que o observador
necessita de percorrer com o olhar três círculos à volta da sala para as ler, desde a Anunciação
até à Coroação da Virgem. Primeiro, o visitante dá uma volta pela sala no sentido oposto ao dos
ponteiros do relógio, depois dá outra volta no sentido contrário e finalmente quando chega ao

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último quadro é obrigado a dar meia volta pois este encontra-se propositadamente ao contrário
da posição do leitor.
Por cima do cubo forrado a azulejo está, portanto, uma cúpula de pinturas a óleo que
representa o transcendente, o infinito e o intemporal.
Ainda nesta dialéctica terra/céu, presente na Sala do Rosário podemos fazer algumas
comparações e analogias. A Terra está para o Céu, tal como o quadrado está para o círculo,
como o cubo está para a cúpula, como as freiras estão para Deus, como a pintura
monocromática do azulejo está para a pintura a óleo colorida e emoldurada a folha de ouro. Em
todas estas relações há uma distinção e uma conciliação: o cubo distingue-se da cúpula mas
sustenta-a; as freiras são pessoas terrestres e por isso distinguem-se dos anjos e santos, no
entanto, devido à sua vida de oração, sacrifício, clausura e contemplação conciliam-se com eles,
apesar de permanecerem inferiores.
O mesmo se passa ideologicamente na relação azulejo/pintura a óleo. O azulejo é
monocromático, feito de materiais pobres que lembram a loiça doméstica. Representa, assim, o
mundo terrestre e finito, delimitador do espaço onde estão as pessoas comuns, neste caso as
freiras. Por cima, ideologicamente superior está a pintura a óleo, que utiliza a cor e cujos
pintores estão no topo da pirâmide estatutária. A própria pintura é emoldurada a folha de ouro e
representa numa cúpula imaginária feita através de vias de leituras circulares o mundo superior
e transcendente: Deus, Cristo, Maria, os anjos e santos. Apesar de existir esta diferenciação, há
também uma conciliação, pois a pintura não teria o significado pretendido sem os azulejos e
vice-versa.
Esta dialéctica Terra/Céu presente no Barroco Nacional sob a forma de azulejo/pintura a óleo
e talha está presente em muitos outros locais. Para sustentarmos esta nossa leitura
apresentaremos três exemplos de espaços onde este fenómeno se verifica, todos eles com
funções distintas.
O primeiro e o mais eloquente é a Sala dos Brasões em Sintra onde se pode ver esta
dialéctica do Alto e do Baixo representada por um cubo e por uma estrutura que pretende ser
uma esfera. Em baixo, numa sala quadrada estão painéis de azulejos que representam cenas
da vida quotidiana, ou seja, delimitam o espaço onde se situam as pessoas normais. No
entanto, temos de ter a consciência de que esta sala era frequentada pela nobreza, logo vai-se
representar a vida real deste extracto social, com caçadas, cenas de galanteio, bailes,
piqueniques, etc. Os azulejos representam o mundo onde “nós” estamos, sendo que este “nós”
varia consoante o público que frequenta o espaço, podendo ser o povo, o clero ou a nobreza.

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Por cima está o ideal, o inatingível, o quase transcendente pois evoca-se o Rei, os Príncipes
e os Grandes. Os heróis cuja actuação os levou a serem evocados nesta cúpula dourada. Há
novamente a distinção entre os azulejos que representam cenas triviais e os heróis evocados no
firmamento e superiores a nós.
Outro exemplo é a Igreja do Convento de Nossa Senhora da Conceição de Marvila. Neste
templo que estava aberto às pessoas comuns, encontram-se dois silhares de azulejos com dois
metros de altura ao longo de toda a igreja representando cenas campestres e citadinas. A leitura
destes azulejos não se faz em círculos mas sim em linha recta. Por cima, estão pinturas a óleo
que representam a vida de Santa Brígida. Novamente há a dualidade Terra/Céu e
imanente/transcendente.
Os azulejos delimitam o espaço terreno onde se situavam as pessoas. Por isso, representam
o mundo onde elas viviam. Por cima das pessoas, visível mas inatingível estava o mundo
transcendente dos santos. Os azulejos monocromáticos representam a vida quotidiana na terra
das pessoas que estão presentes no local enquanto que a pintura a óleo emoldurada a talha
dourada representa a vida celeste.
Finalmente, um terceiro exemplo, agora no espaço estritamente clerical: o ante coro do
Convento da Madre Deus em Lisboa, também conhecido como capela de Santo António. Esta
sala é, pela sua disposição no convento, muito semelhante à Sala do Rosário, se bem que tenha
sido alterada com os restauros ocorridos naquele monumento durante o século passado.
Nesta sala existem dois silhares de azulejos com a altura de um homem adulto, delimitadores
do espaço terreno com representações da “nossa” vida. Como o espaço era para ser
frequentado por freiras é óbvio que apareçam cenas relativas à sua vida, evocadas por ermitões
que lêem alfarrábios afastados do mundo e fechados dentro de grutas. Simbolizam a vida
contemplativa e de reclusão que as freiras levavam ou deviam levar. Por cima das suas cabeças
estão os painéis representando a vida de Santo António.
Apresentámos, assim, três espaços com funções diferentes, utilizados por três classes
distintas e em todos eles podemos observar o fenómeno de divisão do espaço em terreno e
celeste através da conjugação dos azulejos, da talha e da pintura a óleo, características do
Barroco Nacional.

3.3. A CAPELA DE JOÃO VANVESSEM: 1699


3.3.1 João Vanvessem (1620-1704), traços biográficos

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O segundo elemento de grande interesse do Convento das Flamengas é a sacristia da igreja,


a antiga capela sepulcral de João Vanvessem.
Este alto funcionário da corte de D. Pedro II nasceu a 8 de Setembro de 1620, filho de Miguel
Vanvessem e Catarina Iagres, um casal flamengo radicado em Portugal por motivos religiosos
ou económicos. Miguel Vanvessem era casado com Catarina Iagres de quem teve pelo menos
quatro filhos: João, Maria e Bárbara, estas duas professas no Convento das Flamengas e ainda
vivas quando o seu irmão mandou construir a capela [BNL, Cod. 7792], e mais uma filha
entrevada que viveu toda a vida nos cuidados do irmão.
Com oitenta anos de idade, João Vanvessem faz no seu testamento [IAN/TT, Registo Geral
de Testamentos, Livro 103, fls. 138v a 141] uma retrospectiva da sua vida atribulada, tal como a
História da Europa daquele período. Com vinte e oito anos entrou na administração pública:
Entrei a servir nos lugares de letras a 3 de Março de 1648. Dois anos depois encontramo-lo
como Juiz de Fora em Sintra onde viveu a primeira provação, pois teve de enfrentar uma frota
armada vinda de Inglaterra.
Um ano antes, em 1649, Carlos I de Inglaterra fora derrotado após uma sangrenta guerra
civil que dividiu aquele país. Oliver Cromwell instaurou a “Commonwealth”, uma república
apoiada no Parlamento. Com a ruptura do regime monárquico inglês, o tratado de paz anglo-
luso, assinado a 29 de Janeiro de 1642, ficou sem efeito até 9 de Junho de 1656, data da
ratificação por D. João IV de um novo acordo de aliança entre Inglaterra e Portugal.
Durante este período (1649 - 1656) a relação entre os dois reinos permaneceu instável.
Como observámos pelo testamento de João Vanvessem, os navios ingleses da Commonwealth
assolavam as costas portuguesas semeando a instabilidade: e no anno de 1650, vindo a
armada do Parlamento de Inglaterra a esta barra, como Juiz de Fora que [er]a de Sintra, avesti a
maior parte deste anno em vigias, conduções de soldados e fis com a gente da ordenança
trezentas braças de trincheira na praya de Alcorvim.
Após estas dificuldades em Sintra, João Vanvessem transitou para o cargo de Juiz de Fora
da cidade de Leiria. Posteriormente, foi promovido a Desembargador dos Agravos para a
Relação e depois passou a ser Juiz de Feitos da Coroa e Fazenda.
Com este último cargo, o monarca mandou-o a Pernambuco para inquirir sobre a razão
porque fora expulso o governador Jerónimo de Mendonça. Os ânimos no Brasil ainda estavam
exaltados e João Vanvessem correu risco de vida: e estando neste serviço me mandou Sua
Magestade que sem dar escuza alguma fosse a Pernambuco tirar devasça de como e porque
cauza foi expulso o governador Jerónimo de Mendonça, o que satisfiz com grande perigo de

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minha vida por estar a gente daquella cappitania amotinada e me livrou Deos Nosso Senhor da
morte que me quizerão dar. Este governador Jerónimo de Mendonça era fértil em conflitos, já
que em 1673 encontramo-lo a fugir à forca por participar numa conspiração que visava depor D.
Pedro recolocando no trono o débil D. Afonso VI. [Veríssimo Serrão, 1980, p.210].
Após o regresso a Portugal, o rei continuou a dar a João Vanvessem tarefas difíceis. Desta
vez foi destacado para ir às Beiras confiscar e vender os bens dos cristãos novos. Os grandes
lucros que arrecadou fizeram-no subir consecutivamente na hierarquia da Casa da Suplicação.
Primeiro foi Corregedor do Cível da Corte, depois Desembargador dos Agravos, Provedor da
Fazenda e finalmente Conselheiro da Fazenda onde serviu de Provedor da Alfândega, cargo
que ocupava desde 1686.
Com este cargo assinou um decreto que se tornou célebre da História da Arte Portuguesa,
pois, renegando a sua ascendência, proibiu a importação de azulejos holandeses para Portugal.
Esta vida cheia de sacrifícios pessoais, correndo inúmeros riscos para atender somente ao
serviço do país, levando uma existência moralmente irrepreensível, passando privações e
abstendo-se dos prazeres mundanos, levou a que no final da vida empreendesse duas
campanhas artísticas. Uma foi na sua capela sepulcral, a sacristia da igreja do Convento das
Flamengas ao Calvário e a outra foi na Capela de São João Baptista, santo do seu nome, na
Quinta de Nossa Senhora da Conceição em Barcarena, propriedade de seu sobrinho António
Luís de Cordes.
Sobre a primeira obra, a sua capela funerária, João Vanvessem refere o seguinte: Declaro
que eu reedifiquei e fiz como de novo a Sanchristia do Convento de Nossa Senhora da
Quietação das freiras flamengas de Alcântara, arrabalde desta cidade, em que gastei muitos mil
cruzados em caixões, respaldos, painéis, alampada e cappella e hum carneiro para a sepultura
de que as religiozas me fizerão doação asinadas na patente de lisença do seu Provincial pera a
nomear em quem me parecer, pelo que a annexo ao dito morgado com obrigação de o
administrador delle mandar na ditta cappella dizer todos os annos huma missa, dia da Exaltação
da Crus, por minha tenção e dar azeite pera a alampada. E nella se não poderá sepultar corpo
algum sem lisença do dito morgado.
A capela encomendada por João Vanvessem seria, pois, dedicada à Exaltação da Cruz. De
facto, tanto o altar, que possui um belíssimo Calvário que segue os cânones de Pacheco, tal
como as doze telas que cobririam as paredes teriam como base iconográfica a Cruz, símbolo do
sacrifício de Cristo, instrumento fundamental da Sua Paixão na qual salvou a Humanidade. João
Vanvessem, pelo relato da sua vida feito no testamento, considera que também carregou a sua

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própria cruz, cheia de sacrifícios e renúncias, mas veículo para a sua salvação, mensagem que
está vincadamente patente no ciclo pictórico de Bento Coelho da Silveira.
A outra obra documentada por João Vanvessem como sendo da sua encomenda é a capela
de São João Baptista na Quinta de Nossa Senhora da Conceição em Barcarena, felizmente
ainda hoje existente. Sobre esta obra, João Vanvessem refere o seguinte: Declaro que na quinta
de Barcarena que hé morgado do dito meu sobrinho, António Luís de Cordes, mandei fazer
muitas obras em renovar as cazas e fazer outras de novo e reformar a hermida com a perfeição
que me foi possível dando dinheiro pera todas estas despezas.
Esta capela é ricamente decorada com azulejos datados de 1691 e assinados por Gabriel del
Barco, tendo também na sua decoração um belíssimo altar de embrechados e tectos pintados
muito semelhantes à da sacristia das Flamengas. Esta semelhança foi já observada por José
Meco que também a fez corresponder com o encomendante que teria utilizado a mesma mão de
obra, pelo menos na pintura dos tectos: Este tecto (o das Flamengas) assemelha-se
vincadamente a outras obras de Gabriel del Barco, especialmente aos azulejos e tecto da
capela de Barcarena, constituída pela família Sínel de Cordes, de ascendência flamenga, cujo
panteão se situava precisamente numa cripta por baixo desta sacristia do Convento das
Flamengas, dado este a ter em conta19. José Meco acertou, sem dúvida, na relação que faz
entre estes dois tectos, relacionando esta semelhança ao encomendante. Contudo, o patrono
não é a família Sínel de Cordes, mas sim um seu parente, João Vanvessem, que terá utilizado
para ambas as encomendas a mesma mão de obra.
Este português de sangue flamengo morreu em Lisboa a 27 de Março de 1704.

3.3.2. Análise da Capela


A escolha da sacristia para capela não foi ocasional pois, desde o século XVI, que esta
dependência era o local onde se guardavam os objectos de maior valor como os paramentos,
alfaias litúrgicas ou as relíquias. Desenvolveu-se, assim, um novo tipo de mobiliário com uma
decoração adaptada ao valor destas às riquezas. Surgem desta forma os arcazes em madeiras
exóticas e os lavabos em mármore. A sacristia torna-se o local onde se guarda riqueza e por
esta razão será o local escolhido para figurarem importantes conjuntos pictóricos, como
aconteceu, por exemplo, em S. Roque.

19 MECO, José, Op. Cit., pp. 49 e 50.

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Tendo João Vanvessem optado por fazer uma campanha decorativa, onde deixou bem
marcados a sua riqueza e o seu prestigio social, foi natural que tenha escolhido a sacristia, local
para onde os tesouros estavam à partida destinados.
A decoração desta capela sepulcral é inteiramente proveniente do gosto de João
Vanvessem, pois a possibilidade de adquirir os padroados das capelas incluía o direito de cuidar
da decoração, que seria sempre ao gosto do patrono.
A capela de João Vanvessem foi feita por volta de 1699, data do testamento, e constitui um
belo exemplo da Obra de Arte Total. Tal como a Sala do Rosário, existe aqui uma conjugação
completa dos vários ramos da Arte. Podemos ver neste pequeno local a participação de
escultores, pintores a óleo, entalhadores, douradores, pintores de tectos, carpinteiros,
marceneiros, fundidores, ladrilhadores, pintores de azulejos, arquitectos e decoradores de
mármores. Todos estes artífices trabalharam em conjunto servindo os interesses de João
Vanvessem.
Nesta capela, o elemento principal é o altar, onde podemos observar um belo Cristo
Crucificado numa cruz esculpida de forma a imitar a madeira bruta cujo significado evoca o
sacrifício e a dor de Jesus. A simbologia desta cruz irá jogar com a mensagem das pinturas a
óleo que mais tarde analisaremos. Este Cristo segue os preceitos de Pacheco pois está preso
com quatro cravos e não com três, como é mais frequente. Outro exemplar que também segue
este modelo raro e de feição erudita é o Cristo crucificado da autoria de Manuel Pereira, na
Igreja de S. Domingos de Benfica, datado de 1632. Esta imagem é mais realista que o exemplar
das Flamengas mas, por outro lado, muito mais estático. O Cristo das Flamengas, talvez por ser
muito posterior, é mais movimentado e teatral na sua expressão de sofrimento com o sangue em
relevo a escorrer pela pele.
Como fundo a esta escultura, temos uma pintura representando alguns cavaleiros perto de
uma peça arquitectónica, numa atmosfera envolta em escuridão, proporcionada por um sol
poente.
Emoldurando este conjunto, está um revestimento em talha dourada de muito boa qualidade.
No entanto, as formas e as folhagens pouco fazem lembrar a explosão da talha do reinado de D.
Pedro II. Os motivos decorativos estão ainda muito apegados à estrutura não havendo a
desenvoltura característica deste período.
Este altar, decerto elaborado por um arquitecto, utiliza o jogo dos mármores (liós) policromos
vermelhos e brancos. É constituído por duas pilastras brancas com empostas vermelhas onde
sustentam um arco de volta perfeita branco. A pedra de fecho é vermelha e está decorada com

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volutas e efeitos em ponta de diamante, sendo o conjunto enquadrado num alfiz também com
decoração marmórea austera e erudita. O frontal de altar divide-se em três planos rectangulares
em liós vermelho, dentro dos quais existe um losango em brecha da Arrábida polida.
Os azulejos policromos em tons azuis, amarelos, verdes e brancos, decorados com
folhagens, que estão na parede em frente ao altar, são um elemento de arcaísmo pois
constituem um modelos que pouco correspondia ao gosto vigente na época.
Este tipo de azulejos, como José Meco notou, pertencem à fase final da policromia desta
arte. No período de 1670 a 1680, decorreu um “canto do cisne” deste técnica, recuando-se a
uma estética confundível com azulejos quinhentistas. Mas apesar deste momentâneo
“revivalismo”, em breve o azulejo regressará à monocromia do azul e branco [Meco, 1984, p.
47].
Os azulejos policromos desta capela, muito semelhantes a uns existentes na Igreja da Penha
de França, em Lisboa, não deixam, contudo, de ser muito tardios para a cronologia apontada. A
explicação para o carácter recuado da obra prende-se, em nosso entender, com a estética do
encomendante, um flamengo octogenário cujo gosto se prendia muito mais com o já
ultrapassado Maneirismo. Desta forma, irá utilizar na sua capela um altar arquitectónico em
pedra e um formulário escultórico e azulejar próprios de uma época recuada. Assim se explicam
os azulejos policromos de folhagens e “ferroneries” que rodeiam os arcazes, aplicação pouco
comum para os finais do século XVII.
À parte destas notas arcaízantes, a capela de João Vanvessem é uma obra-prima do seu
tempo. Esta capela sepulcral foi feita poucos anos depois da Sala do Rosário (1694). Tendo D.
Pedro II, como Juiz da Irmandade, patrocinado essa obra, é natural que os altos dignatários da
corte imitassem o monarca intervencionando nos mesmos monumentos com a mesma mão de
obra. Disto, é prova a participação de Bento Coelho da Silveira em ambas as campanhas.
Outra mão de obra excelente pode ser observada no tecto pintado, um dos melhores
exemplos desta arte. José Meco atribuiu-lhe a autoria a Gabriel del Barco [Meco, 1979, p.49]
opinião que pode necessitar de revisão, pois este pintor era demasiado imperfeito para ser o
autor deste tecto.
A linguagem utilizada é muito comum para a época. Abundam os meninos louros sentados
em vieiras que brincam com festões de inúmeras flores. Estas misturam-se com motivos de
brutescos menos realistas que nascem das asas de anjos, tudo envolvendo o motivo central de
arcanto. Este modelo repete-se por quatro vezes no tecto quase sem diferenças.

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O chão em pedra liós é também obra deste período e utiliza desenhos largos com motivos
geométricos e florais numa linguagem que lembra bastante a estética do famoso arquitecto João
Antunes. Nesta capela, optou-se por uma conjugação de mármores coloridos, utilizando-se o
rosa, o branco e o negro.
Houve uma vontade clara de, através da decoração do chão, dividir os espaços da capela.
Assim pode-se verificar a existência de um pavimento de passagem entre a porta da igreja e a
antiga porta de saída que dava para o claustro pequeno. No interior, delimitado pelos arcazes,
existe outro pavimento que serve de chão ao espaço sacro da capela. Este, por figurar num
local mais importante é intensamente mais decorado, lembrando um tapete de luxo.
Os arcazes em pau santo revelam um bom trabalho de estriagem e um excelente labor de
fundição e douramento de bronzes. Todas as gavetas dos arcazes encontram-se preenchidas
com grelhas em bronze dourado com motivos de ramagens entrelaçadas e figuras mascarões
“all’anticho”, ainda maneiristas. Também se utilizaram motivos orientais, como as “ghinas”,
mulheres seminuas com asas e cauda de sereia de onde saem motivos florais.
Os apontamentos orientais eram um elemento de prestigio e de riqueza. Ao utilizar esta
decoração e a madeira exótica do Brasil com apliques em bronze dourado, João Vanvessem
quis mostrar a todos a sua riqueza e prosperidade.

3.3.3. O conjunto pictórico da sacristia da igreja: estado da questão


Incluída na campanha de João Vanvessem, e peça principal desta, conta-se o revestimento
da capela/sacristia com doze pinturas, todas da autoria de Bento Coelho. Este conjunto chegou
íntegro aos nossos dias, embora desmontado e disperso. As dez telas (seis pequenas e quatro
grandes) alusivas ao Caminho da Perfeição guardam-se no Convento das Flamengas à guarda
da Irmandade de Nossa Senhora da Quietação. As duas grandes telas dedicadas à Exaltação
da Cruz, guardam-se na igreja Paroquial de São Pedro de Alcântara.
Dos diversos autores que repararam nestas pinturas, poucos conseguiram perceber o seu
significado. Em 1887, os inventariantes do Estado conseguiram identificar correctamente o
conjunto. Dois anos depois, em 1889, José Joaquim Gomes de Brito propôs-se a estudar a
sacristia do convento. No entanto, devido às suas posições de desvalorização da arte
seiscentista, o seu estudo limitou-se a parafrasear o testamento de João Vanvessem e a fazer
árvores genealógicas da família Sínel de Cordes. Dedicou algumas linhas a dissertar sobre o
significado de uma lâmpada em prata que já não existia e quando chegou à altura de referir o
conjunto pictórico da sacristia escreveu com desprezo: Sobre o merecimento dos quadros que

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ficaram nada direi. O retábulo do altar já não é hoje possível de discriminar sequer o que
representasse. Uma torre, uns cavaleiros é tudo o que confusamente se entrevê sob uma oleosa
e tão farta camada de verniz, que chega a parecer que resina escorre na tela. Os quadros
grandes que guarnecem os arcazes e que me parecem fracas pinturas, não descobri
assignatura. [Brito, 1889, p. 56].
Foi necessário passar quarenta anos, para em 1929, João Paulo Freire dedicar a estas telas
mais algumas linhas: Na antiga sacristia que fica por detrás do altar mor há ainda hoje dois
admiráveis arcazes de pau preto, e nas paredes oito telas, cinco grandes e três pequenas, já
muito estragadas pela acção do tempo, mas ainda de valor, e que é pena não serem retiradas
para melhor sítio [Freire, 1929, p. 172]. Apesar da simpatia que nutre por estas pinturas, este
autor não as conseguiu entender, nem tão pouco perceber a sua orgânica no local. Como se
pode observar pelos números que nos dá, as telas pequenas já tinham sido quase todas
retiradas, iniciando-se um processo que levaria à total dispersão do conjunto.
Na década de sessenta, as paredes da sacristia estavam nuas e estas telas amontoadas no
que foi considerado “o melhor sítio”, uma divisão perto da torre que ainda hoje contém algumas
pinturas de valor.20 O actual Juiz da Irmandade, Sr. Magalhães de Oliveira, recolocou algumas
destas telas na sacristia ignorando todavia o seu local de origem ou disposição, pelo que as
cinco telas que actualmente lá estão dispõem-se aleatoriamente. As outras foram dispersas por
várias dependências do convento que estão sob a dependência da Irmandade.
Apenas em 1988, surgiu mais uma linha, deste vez da autoria de Maria Maia Ataíde, que na
sua obra escreveu: Sobre estes (arcazes), aos lados do altar, vêem-se quadros de pintura a
óleo, em estado de difícil leitura. [Ataíde, 1988, p. 109].
Desde os inventariantes de 1887 que ninguém conseguira sequer perceber o que os quadros
representavam. O mérito da redescoberta coube ao investigador Luís de Moura Sobral. Em

20 Nesta sala da torre encontram-se os quadros que não foram considerados de valor e por isso escaparam ao seu
destino de se dispersarem. Muitas destas pinturas são de fraca qualidade, mas outras há que merecem destaque.
Destaca-se uma tela representado Santa Catarina de Siena morta envolta em rosas. Esta tela, que infelizmente está
em avançado estado de degradação é de grande valor, pelo que se pode ver no tratamento doce da luz num
claro/escuro barroco. A existência da representação desta freira dominica num convento feminino é explicada por
um livro de gravados dedicado inteiramente a Santa Catarina de Siena da autoria de Jan Swelinck e executadas por
Thomas de Leu que estava na livraria deste convento e que actualmente se encontra na Biblioteca Nacional, na
secção de reservados com a cota COD.7794. Estas gravuras destes autores holandeses serviram de base a
inúmeras telas dedicadas a esta santa, como sejam o exemplar pintado por Marcos da Cruz na Capela do Palácio
de Santos em Lisboa (Embaixada de França) e as telas de Bento Coelho da Silveira de Nossa Senhora do Rosário
com S. Domingos e S. Catarina de Siena, da Igreja da Madre Deus e a Santa Catarina de Siena trocando o coração
com o de Jesus, em que Luís de Moura Sobral considerou ser uma representação única pois inclui S. Paulo, S. João
Evangelista, S. Domingos e o rei David, já que tal iconografia não aparecia em nenhum livro de Bianchi e Giunta
[Sobral, 1998, p. 208]. No entanto, este quadro é inteiramente baseado na gravura de Jan Swelinck que Bento
Coelho terá copiado, possivelmente a partir do livro das Flamengas.

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1992, este investigador estudou o programa pictórico dos arcazes do Convento de S. Pedro de
Alcântara, no Bairro Alto, também ele dedicado ao Caminho da Perfeição e da autoria de Bento
Coelho.
Devido à proximidade iconográfica, este historiador comparou o seu objecto de estudo aos
exemplares das Flamengas: Bento Coelho pintou ainda outra série de alegorias da cruz
baseada nas mesmas gravuras flamengas, das quais apenas uma coincide com um dos temas
tratados em S. Pedro de Alcântara. As dez telas a necessitarem de urgente tratamento de
conservação, encontram-se dispersas por diversas dependências da igreja do antigo Convento
das Flamengas em Lisboa. A pintura que se inspira no salmo 32 é de qualidade muito superior à
da sacristia do Convento do Bairro Alto. As telas das Flamengas, de dimensões mais
consideráveis e de mais cuidada execução, indicam uma encomenda de maior importância. Este
convento era, de facto, uma fundação real e porventura as telas destinar-se-iam à decoração de
alguma sala de carácter oficial [Sobral, 1996, p. 88].
Apesar de desconhecer a proveniência das pinturas e o seu encomendante, este historiador
teve a consciência da unidade do conjunto, do valor das telas e proporcionou, em boa hora, o
restauro de duas delas com vista a figurarem na exposição Bento Coelho 1620 - 1708, e a
cultura do seu tempo, com os números 24 e 25.
No catálogo desta exposição, publicado em 1998, Luís de Moura Sobral dedica o primeiro
estudo inteiramente dedicado a estas telas, mas mantém as mesmas dúvidas: as pinturas
formavam uma série homogénea e provavelmente completa (…) ignorando-se a sua primitiva
localização e ordenamento, pelo que resulta hoje praticamente impossível a reconstituição do
respectivo programa [Sobral, 1998, p. 256].
Em 1998, tentámos fazer o que este investigador considerou praticamente impossível, ou
seja, descobrir a localização de cada uma das telas dentro da sacristia, perceber o seu
significado enquanto conjunto e identificar as telas que desapareceram, reconstituindo assim na
íntegra todo este conjunto há mais de cem anos disperso [Simões, 1998, pp. 63 a 81].
Os resultados foram, sinteticamente, publicados em 2002, nas actas do Congresso
Conversas à Volta dos Conventos [Simões, 2002, pp. 42 a 46 ], evento que se realizou em
2000. Contudo, descobrimos que tanto a disposição que demos no nosso trabalho curricular em
1998. Esta conclusão adveio da constatação que determinadas telas não encaixavam no local
onde as colocámos e, principalmente, por uma maior reflexão sobre os documentos disponíveis,
nomeadamente o testamento de João Vanvessem e o inventário de 1887.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Depois de uma leitura mais reflectida, chegámos à conclusão que as duas grandes telas
dedicadas à exaltação da Cruz, existentes na igreja Paroquial de São Pedro de Alcântara, e
também presentes na grande exposição sobre Bento Coelho, com os n.ºs 72 e 73, pertenciam
de facto a esta capela.

3.3.4. Reinserção das telas no espaço


Como referimos, os diversos autores desconheciam a localização deste conjunto no interior
do mosteiro. Tal problema foi solucionado através da consulta do processo de extinção do
convento [IAN/TT, AHMF Cx 1963, pilha 3, Doc. IV/I/88(17)] onde encontrámos uma descrição
do edifício e uma enumeração das pinturas a óleo existentes, referenciado-se este conjunto
disposto na sacristia: Onze quadros pintados a óleo com molduras que guarnecem as paredes
da Sanchristia, e que representam “O Caminho da Perfeição” avaliados – o que está junto à
porta de entrada pelo claustro em cem mil réis – os três eguaes em dimensão em noventa mil
réis cada um, bem como o que fica sobre a janella – e as seis restantes mais pequenos em
dezoito mil réis cada um, o que tudo prefaz a somma de quinhentos sessenta e oito mil réis.
[Idem, fl. 48]
Existiam assim, em 1887, 11 quadros. Um de grandes dimensões (único avaliado em
100.000 réis) que apanhava toda a parede do lado direito da capela, a que dá para o antigo
claustrim da portaria. Três de dimensões ligeiramente mais reduzidas, mas de formato igual (190
cm x 150 cm). Outro, que estava por cima da janela, de formato diferente, mas com as
dimensões semelhantes aos anteriores (160 cm x 180 cm). E finalmente, as seis telas de
pequenas dimensões (90 cm x 130 cm).
Conclui-se que todas as telas estão presentes, actualmente, nas instalações do convento,
excepto a grande tela que ocupava a parede do lado direito. Esta tela foi ainda vista por João
Paulo Freire, em 1929, pois o autor refere a existência de 5 telas grandes na sacristia das
Flamengas [Freire, 1929, p. 72].
Julgamos que a disposição original do conjunto seria: nas paredes laterais, por cima dos
arcazes, situavam-se duas telas de grandes dimensões, com cerca 2,375 m de comprimento
(que corresponde ao comprimento dos arcazes). Por de baixo destas, duas telas pequenas.
Ladeando o altar, duas telas com formato 190 x 150 cm, cada uma delas sobre uma tela
pequena (90 x 130 cm).
Na parede contrária ao altar, por cima da janela, a tela grande mas de formato diferente
(160x180cm) e a outra que falta de 190x150 cm.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Resta portanto identificar as duas grandes telas que desapareceram e que terão um
comprimento de quase três metros.
Em nosso entender, estes quadros tratam-se das duas grandes telas dedicadas à Exaltação
da Cruz, da autoria de Bento Coelho e existentes actualmente na igreja paroquial de São Pedro
de Alcântara, pelos argumentos que passaremos a expor:
Estas duas telas foram restauradas em 1998 para a exposição Bento Coelho da Silveira
1620 – 1708 e a Cultura do seu tempo (n.º cat.º 72 e 73), organizada pela Galeria de Pintura do
Rei D. Luís (IPPAR). Segundo Cyrillo Volkmar Machado, que terá visto uma delas, e volto a
frisar, apenas uma delas, estas telas seriam de 1702, como estaria datado na moldura da tela
observada em 1823, e que entretanto desapareceu [Machado, 1922, p. 68].
Como Luís de Moura Sobral bem observou, estas telas nunca puderam ter sido feitas para a
actual igreja de São Pedro de Alcântara, uma vez que o actual templo foi construído entre 1780
e 1788. O investigador adianta a hipótese destas telas terem provido da antiga paroquial de
Alfama, apesar de haver informação que esta igreja terá sido completamente arrasada com o
terramoto de 1755 [Sobral, 1998, p. 72].
Contudo, julgamos que estas telas vieram do Convento das Flamengas, mais concretamente
da Capela de João Vanvessem. Primeiro, porque a data de 1702 enquadra-se perfeitamente
com a campanha. Em 1699, João Vanvessem afirma no seu testamento que está fazendo a sua
capela sepulcral, tendo vindo a falecer apenas em Março de 1704.
Segundo, pela invocação das próprias telas. Os inventariantes de 1887 atribuem ao conjunto
a denominação de “Caminho da Perfeição”, e tal estaria correcto se só existissem as telas
baseadas nas gravuras do Régia Via Crucis, da autoria de Benedictus Van Haeften, publicada
em Antuérpia em 163521, como Luís de Moura Sobral identificou [Sobral, 1996, p. 86].
Mas, João Vanvessem, no seu testamento, não refere este orago, afirmando claramente que
a sua capela na sacristia do Convento das Flamengas é dedicada à Exaltação da Santa Cruz.
Ora, para que este orago fosse entendido, era essencial a presença dos episódios retrados nas
telas de São Pedro de Alcântara: a Invenção da Santa Cruz e ao Sonho de Constantino,
episódios onde a Cruz de Cristo ressuscitou mortos e fez ganhar batalhas. As telas dedicadas
ao Caminho da Perfeição seriam, assim, complementares a estas duas telas.
Terceiro, pelas dimensões das telas. Como dissemos, as duas grandes telas teriam de ter
uma dimensão de cerca 2,375 metros, pois este é o comprimento dos arcazes. Ora as telas de

21 Existe um exemplar desta edição na Biblioteca da Ajuda, cota 104-I-17.

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São Pedro de Alcântara têm um comprimento de 2,340 metros sem moldura. Há apenas uma
diferença de 25 cm que corresponderia à grossura da moldura (12,5cm de cada lado).
Quarto, a ser correcto que estas telas teriam vindo da paroquial de São Pedro de Alcântara
em Alfama, então Cyrilo Wolkmar Machado teria visto as duas, e não apenas uma. De facto, a
segunda tela permaneceu no Convento das Flamengas, até, pelo menos, 1929, data em que foi
vista por João Paulo Freire.
Depois da Concordata de 1940, foi decretado, que os bens que estivessem dentro das
igrejas paroquias não classificadas, reverteriam para a Igreja Católica. Esta decisão, levou a que
os párocos levassem das igrejas monacais da sua paróquia inúmeros bens móveis que estavam
à sua guarda para as igrejas paroquiais, sem obviamente deixarem qualquer registo escrito.
Desta forma inúmeros bens do Estado, provenientes dos conventos extintos, passaram para a
propriedade da paróquia/diocese sem a ela nunca terem pertencido. De facto, o interior da igreja
de São Pedro de Alfama está pejado de inúmeras pinturas de grande valor do século XVI, XVII e
XVIII muito anterior à fundação do templo. Julgamos que a segunda tela do conjunto foi levada
das flamengas por volta de 1940, talvez pela consciência que o pároco da época teve de que
ambas faziam um par.
Sexto, como Luís de Moura Sobral referiu, a paroquial de São Pedro de Alfama foi totalmente
arrasada com o Terramoto de 1755, pelo que é pouco provável que duas telas de grandes
dimensões tenham sobrevivido ao cataclismo. Assim, é muito mais provável que estas telas
tenham vindo das imediações da igreja paroquial, onde se encontra o Convento das Flamengas.
Finalmente, a sétima razão. Poder-se-ia pensar que a presença destas telas dedicadas à
Exaltação da Santa Cruz fariam sentido numa igreja dedicada a São Pedro de Alcântara, por ser
este um santo devoto deste orago. Contudo, a paroquial de Alcântara não é dedicada a este
santo Franciscano, mas sim a São Pedro Apóstolo, primeiro papa. O termo “Alcântara” é o
topónimo da paróquia e não o orago do santo, pelo que estas duas telas não têm qualquer
fundamento iconográfico aqui.
Julgamos ter demonstrado que ambas as telas terão pertencido à Capela de João
Vanvessem. Contudo, existe algo que necessita de explicação. Porque razão, estaria, em 1823,
muito antes da extinção das Ordens Religiosas, uma pintura do conjunto da Capela de João
Vanvessem na igreja paroquial de São Pedro, em Alcântara.
Apenas vemos duas explicações. Ou se trata de outra tela, o que aprece concordar com o
facto de nenhuma das pinturas apresentar a data escrita como Cirillo afirmou, ou, por qualquer
razão que desconhecemos, um membro da família Sínel de Cordes, que possuíam a

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propriedade sobre a capela, doou à paroquial recém construída uma das telas do conjunto, o
que apesar de aceitável necessita de maior fundamentação.

3.3.5. Análise das telas da Exaltação da Cruz.


A Capela de João Vanvessem era dedicada à Exaltação da Santa Cruz e as doze telas
faziam três conjuntos autónomos.
O primeiro, e mais importante, era composto pelas duas grandes telas que actualmente estão
na Igreja Paroquial de São Pedro de Alcântara. São dois episódios em que a Cruz
desempenhou um papel fundamental.
Do lado direito, junto à porta de acesso ao claustro da portaria, ficaria a tela Sonho de
Constantino no campo de batalha, levada para a Igreja Paroquial de São Pedro de Alcântara
apenas por volta de 1940. Luís de Moura Sobral dedicou-lhe algumas páginas no catálogo da
exposição Bento Coelho da Silveira, 1620-1708 e a Cultura de seu tempo [Sobral, 1998, pp. 386
a 389]. Este historiador reconheceu a influência de gravuras nesta composição, tal como
gravados de António Tempesta para a cena de batalha, o frontispício de Nicolas Tardieu do livro
Académie de l’espée para o cavalo e a Batalha de Constantino, gravura sobre composição de
Rubens, pintor flamengo que Bento Coelho utilizará ao longo de toda a sua vida.
Resta-nos portanto, e à luz da hipótese de que esta pintura pertenceu à capela de João
Vanvessem proceder a algumas considerações. Primeiro, julgamos interessante verificar que o
cavalo, ao contrário da gravura identificada, olha frontalmente o observador, mas, mais
interessante torna-se verificar que o rosto de Constantino se apresenta algo desfigurado se
observado frontalmente. Contudo, se pensarmos que o primeiro contacto com esta tela seria
para o visitante que, vindo da igreja, entrasse na capela de João Vanvessem, então o rosto
apresenta-se corrigido, já que era obrigado a observar a tela a partir do canto extremo esquerdo
da sala.
De igual forma, o soldado que, no extremo direito do quadro, ataca a cavalaria e que quando
observado frontalmente apresenta-se desformado, corrigir-se-ía se observado a partir da porta
de acesso à igreja. Desta forma, ganha ainda mais consistência a hipótese de que estas telas
tenham vindo da sacristia das Flamengas.
Também importa considerar a utilização de uma rara cena de batalhas num contexto
religiosos. Como Luís de Moura Sobral verificou, Bento Coelho não segue à risca o episódio
relatado por Santiago Voragines, misturando duas cenas: o “Sonho de Constantino” e a “Batalha
contra Maxêncio”. Há portanto uma valorização da cena da batalha de Constantino onde a

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

devoção pela Cruz foi um instrumento essencial à vitória. Não podemos deixar de fazer uma
ponte entre esta adaptação do episódio e a vida pessoal de João Vanvessem relatado no seu
testamento.
Este flamengo viveu inúmeros riscos de vida, nomeadamente na sua participação numa
“batalha” quando as costas portuguesas foram assediadas pela frota de Cromwell. No entender
do próprio João Vanvessem, apenas a Fé na Cruz de Cristo o poderá ter salvo ao longo de
tantas tribulações. Assim, irá adaptar o episódio para valorizar a ideia que a Cruz fez ganhar a
batalhas de Constantino sobre Maxêncio.
Na parede do lado esquerdo, junto à porta de acesso à igreja, situava-se a tela Descoberta
da Vera Cruz por Santa Helena. Segundo Santiago Voragine, Santa Helena, a mãe do
imperador Constantino, visitou a Terra Santa e os locais ligados à vida de Cristo. Terá sido ela e
encontrar a verdadeira cruz de Jesus, cuja autenticidade ficou atestada quando o simples
contacto fez ressuscitar um jovem defunto que por ali passava para ser enterrado. É esta a cena
que observamos na tela.
Terá sido esta pintura a que foi vista por Cyrillo Volkmar Machado, em 1823, já na sacristia
da igreja paroquial de São Pedro de Alcântara, facto que se coaduna com a monografia de João
Paulo Freire.
Desejamos contudo fazer uma observação. Luís de Moura Sobral identificou o homem que
está ao lado da Imperatriz Santa Helena como sendo o próprio imperador Constantino, apesar
de tal representação, como o próprio historiador afirma, ser contrária aos relatos escritos que
influenciaram a composição. [Idem, p. 390].
Pela constatação desta contradição, desejamos aqui colocar outra hipótese. Julgamos que o
homem que está ao lado de Santa Helena, em atitude de devoção, é o próprio João
Vanvessem. Esta conclusão advém da constatação de várias factos. Primeiro a já citada
contradição entre os escritos inspiradores da composição e a presença de Constantino.
Segundo, porque é a única personagem que tem as mãos unidas em sinal de oração, algo de
típico na representação dos encomendantes. E, finalmente, terceiro, porque se inserirmos a tela
no seu local original, vemos que a personagem está voltada para o altar da própria capela.
Contradizendo esta teoria aparece o rosto jovem do pseudo-Constantino, a coroa de louros e
as pinceladas largas que parecem contradizer a hipótese de se tratar de um retrato do próprio
João Vanvessem. Contudo, julgamos que se trata de um retrato idealizado e metafórico, pois,
João Vanvessem não se iria retratar com os oitenta anos de idade que na verdade possuía. Por
isso, deu total liberdade a Bento Coelho para idealizar o seu retrato enquanto jovem, daí que

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

surjam as típicas pinceladas rápidas e largas do pintor. A coroa de louros também não é atributo
exclusivo do imperador, como o diadema imperial, mas sim de algum que atingiu a glória pelas
suas acções. João Vanvessem, como nos deixou explícito no seu testamento, considera-se
glorificado pela sua actuação enquanto funcionário régio ao longo de cinquenta anos de
trabalho.
Finalmente, verificamos que estas duas pinturas, quando inseridas no seu local original, na
capela de João Vanvessem, ficam com uma leitura mais corrigida e uniforme, pois seriam
sempre observadas a partir de um extremo da sala.
As figuras de grandes dimensões que aparecem no primeiro plano, o “ressuscitado” na tela
Descoberta da Vera Cruz, e o “soldado em pé” na tela O Sonho de Constantino, ficariam
colocados próximo do altar da capela, ou seja, mais longe do angulo de observação do visitante
que entra na capela.
Enquanto isso, os grupos de pequenas dimensões, a saber, a mulher e as crianças na tela
Descoberta da Vera Cruz, e a cena da batalha na tela Sonho de Constantino, aparecem mais
próximo do observador. Desta forma pretendeu o pintor corrigir a deformação óptica que existia
quando o visitante entrava por uma das duas portas de acesso à capela.

3.3.6. Análise das telas do Caminho da Perfeição


O segundo e o terceiro conjuntos tinham por função complementar com doutrina as grandes
telas Estas dez telas são dedicados ao Caminho da Perfeição, e basearam-se quer na doutrina
quer nas gravuras do livro Régia Via Crucis, da autoria de Benedictus Van Haeften, publicado
em Antuérpia, em 1635.
Esta obra trata-se de um guia moral em que Cristo é o modelo para se chegar à perfeição
devido ao seu sacrifício. Para tal, os fiéis, personificados por Staurófila (amante da cruz) têm de
assumir a cruz com sacrifício para conseguir atingir a salvação. A história é desenrolada num
diálogo entre duas personagens, esta mulher e Cristo, numa versão mais jovem.
Staurófila aparece intencionalmente vestida de branco e vermelho, tal como Maria na Sala do
Rosário e o anjo condutor de Staurófila aparece vestido de cinzento com uma túnica vermelha,
tal e qual como Jesus no quadro da Elevação aos Céus que se encontra naquela mesma
divisão.
O autor do livro, de nome de baptismo Jacques Van Haeften (1588-1648) publicou em latim
esta obra que conheceu diversas traduções, para holandês em 1667 e para espanhol em 1721.
Foi também autor, em 1629, da obra Schola Cordis [Praz, 1975, p. 361].

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A edição que inspirou Bento Coelho para fazer as telas em estudo foi a primeira, ainda em
latim, mas com trinta e oito gravuras, mais o frontispício, todas de grande qualidade mas de
autor desconhecido. Van Haeften fez acompanhar estas gravuras com um versículo em latim
tirado da Bíblia e de um seu comentário de duas linhas que ajudam à interpretação da cena.
A Fortuna Estética destas gravuras deve ter sido muito fértil em Portugal nos séculos
seguintes. Lembremos o facto de, em finais do século XIX, os inventariantes identificarem sem
problemas este conjunto. No entanto, apenas são conhecidos quatro núcleos que utilizaram esta
obra como fonte, sendo todos originários de espaços conventuais, locais fechados e de
ambiente mais intelectual. A divulgação desta obra nas zonas populares deve de ter sido nula,
pois defendia um profundo rigor moral, quase ascético.
Contemporâneo ao conjunto da capela de João Vanvessem e do mesmo autor, existem as
telas dos espaldares dos arcazes da sacristia do convento de S. Pedro de Alcântara no Bairro
Alto. Este conjunto, que não prima pela qualidade do pincel, tem a característica de se encontrar
completo e in situ, o que possibilitou a sua leitura pelo investigador Luís de Moura Sobral em
1992.
Os outros dois conjuntos são de inferior qualidade e copiam integralmente as gravuras. São
uns painéis de azulejos do Convento do Grilo, agora reaplicados no claustro da Madre Deus e
uns azulejos da sacristia do Convento do Varatojo em Torres Vedras.
Todos os quatro conjuntos eram originários de espaços masculinos (o conjunto das
Flamengas estava fora da clausura pois pertencia à capela sepulcral de João Vanvessem).
Outra característica que os liga é o facto de três deles estarem em sacristias, exceptuando os
azulejos dos Grilos de localização desconhecida.
Através das gravuras que Bento Coelho utilizou podemos concluir que este pintor dá uma
maior dinamização às suas personagens e ao conjunto tendo introduzido glórias de anjos que
iluminam sempre um dos lados da tela.
Para se conseguir reconstituir totalmente a disposição das telas nas paredes da capela
sepulcral é necessário ler o versículo bíblico apontado no quadro e confrontá-lo com a
interpretação que Van Haeften lhe dá.

O segundo conjunto de pinturas da Capela de João Vanvessem é composto pelas telas de


grandes dimensões, quatro ao todo. O primeiro quadro desta série coincide com a primeira
gravura do livro. A sua posição original era na parede do altar, no lado direito.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Cristo está rodeado de anjos em frente a um cruzamento marcado no chão por uma cruz.
Staurófila tem de seguir por um caminho e é aconselhada por um anjo e por Cristo a percorrer a
estrada. Esta está marcada com cruzes e dirige-se a um arco florido que resguarda uma grande
cruz, coroada de espinhos e com uma coroa normal.
Podemos ler a passagem de Isaías [30:21]: Este é o caminho, segui por ele22 que é referido
num contexto em que Deus perdoa aos homens os seus desvios, colocando-os de volta no bom
caminho. É o que acontecerá a Staurófila que é convidada a seguir o caminho da cruz. Por cima
estão os santos que encontraram na cruz o seu martírio e consequentemente a felicidade nos
céus: S. Pedro, S. André, S. Filipe e outros cuja sujidade do quadro não deixa identificar.
As palavras de Van Haeften também exortam Staurófila a seguir o caminho da cruz, mas tem
de ser ela a faze-lo voluntariamente: Com custo esta cruz coroada foi cingida à volta com flores.
Vamos! Se por ventura agradar levantar, levanta a cruz!23, pois ela tem outros caminhos por
onde pode optar. A semelhança com a gravura de Van Haeften é flagrante. No entanto, Bento
Coelho dá um maior naturalismo às figuras, atenua os contornos e é mais subtil na mensagem.
Não optou por utilizar o nimbo que identificaria a personagem masculina como Cristo. Esta
identificação é feita pelos diversos anjos que estão sempre do seu lado. O anjo que aconselha
Staurófila também é uma inovação deste pintor.
Ainda na parede do altar, mas do lado esquerdo, iniciava-se o processo de ensinamento de
Staurófila através do esforço, sacrifício e disciplina. O segundo quadro desta segunda série está
actualmente no mirante, perto da Sala do Rosário e tem a legenda: Tome a cruz e siga-me24.
Este versículo de S. Mateus [16.24] torna-se numa ordem que Cristo dá a Staurófila. No chão
estão diversas cruzes e Cristo, do lado direito do quadro com os anjos, aponta para elas
obrigando Staurófila a pegar-lhes. A composição segue à risca a fornecida pela gravura tendo
apenas inovado Bento Coelho com uns anjinhos que imitam o gesto de Cristo de forma
caricatural.
Staurófila está ajoelhada no chão, tapando a cara com um lenço, temendo a violência do
mestre. Por detrás dela, está uma construção com grandes colunas e que é explicada pelas
linhas de Van Haeften: Não tua voluntariamente, a cruz é para quem manda. Porém esta

22 Texto no quadro: Haec est via, ambulate in ea. Isa 30.21.


23 No original o texto encontra-se em latim tendo sido directamente traduzido para português pelo autor. No entanto,
fica aqui registado o texto original para confrontar traduções: Ardua florisere crux cingitur orbe corone. Hanc, age, si
volup est tollere, tolle crucem [Haeften, 1635, p.8].
24 Texto no quadro: Tollat crucem suam. Matth 16.24.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

felicidade divina e eterna é para quem edificar o amor25. Staurófila não pode estar inerte à
espera da salvação. Deve tomar decisões firmes e sujeitar-se à vontade do condutor espiritual
que saberá quando ela estiver apta.
Depois de ter assumido a sua cruz, Staurófila irá ver o que acontece aos pecadores que a
recusaram. Por cima da janela da parede, no lado oposto ao altar situava-se a tela de médias
dimensões, que se encontra repetida em São Pedro de Alcântara, e que tem a inscrição Muitos
são os sofrimentos do ímpio26 [Salmos, 32:10].
Staurófila segura a cruz ao lado de Cristo que aponta para uma cena infernal. Os pecadores,
pessoas com ricas vestes, são subjugados pelos demónios que lhes impõem pesadas cruzes,
esmagando-os.
Na gravura apenas aparecem dois pecadores e um demónio. No entanto, Bento Coelho
exagera a cena e retrata uma multidão disforme. Esta leitura é auxiliada pela passagem de Van
Haeften: As mulheres perversas recusaram a mais pequena cruz. Quanto mais elas a evitam
mais pesada será a cruz que acabarão por levar27 [trad. Sobral, 1996, p. 87].
Pretende-se demonstrar a Staurófila e ao visitante as penas previstas para os que não
querem assumir a sua cruz.
Finalmente chegamos à última tela do segundo conjunto que ficava na mesma parede da
janela, perto da porta de acesso à igreja. Neste quadro, Staurófila conseguiu, com muito
esforço, seguir o Caminho da Perfeição. Agora terá os seus proveitos e recompensas. Do lado
direito, a mulher segura firmemente a cruz e vê um anjo que voa com uma coroa, símbolo do
carácter transcendente da realização conseguida por Staurófila. Cristo, no lado esquerdo,
rodeado de inúmeros anjos que lhe mostram devoção, aponta para a coroa, o dom vindo do céu
e a recompensa dada a Staurófila.
Na inscrição do quadro pode-se ler: Com os olhos fixos em Jesus, promotor e coroador da fé,
o qual, pelo gáudio que lhe era proposto, sofreu na cruz desprezando a ignomínia, e sentou-se à
direita do trono de Deus [Hebreus, 12:2]28, numa clara alusão às recompensas que advêm para
quem despreza as vantagens da vida terrena. O texto que acompanha a gravura no livro de

25 No original: Non tua, sponte tua, crux est quam deliges, ast hec Dius ab eterno quam tibi struxit amor [Idem, p.
128].
26 Texto no quadro: Multa flagella peccatorum Psalm 31.10.
27 No original: Spreuerunt miniam, grauiorem adiguntur inique. Quo magis exhonent, hoc mage ferre aucem [Idem, p.

80].
28 Texto no quadro: Proposito sibi gaudio sustinuit crucem. Herb. 12.

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Haeften vai no mesmo sentido: Deus concede uma agradável e estupenda vida eterna. Trabalho
e aplicação combate toda a cruz29.

O terceiro conjunto é composto pelas telas de pequenas dimensões dedicadas ao Caminho


da Perfeição. Basicamente, estas telas relatam novamente o mesmo esforço de Staurófila ao
assumir a sua cruz, visionando as recompensas que lhe esperam por esta sua coragem. Este
terceiro conjunto desenvolvia-se ao longo dos arcazes, à semelhança de perdelas, por de baixo
das telas de grandes dimensões.
Este conjunto iniciava-se com a tela que está no mirante perto da Sala do Rosário. Esta tela
pretendia demonstrar que a maioria das pessoas vive para os prazeres mundanos,
negligenciando a sua cruz. Por isso, situava-se esta tela junto à porta de saída da rua, o mundo
profano.
No centro da composição observa-se uma personagem feminina simbolizando a luxúria e o
orgulho com o seu teatral vestido amarelo de corte que lembra muito a Umbelina no quadro S.
Bernardo recebe a visita de sua irmã da Igreja do Convento de Salzedas. Ambas as
personagens estão vestidas à francesa, moda trazida para Portugal pela primeira mulher de D.
Pedro II, D. Maria Francisca de Sabóia. O traje desta mulher é uma total inovação de Bento
Coelho em relação à gravura e pretende retratar as mulheres de espírito fútil que se
movimentavam na corte de D. Pedro II.
A mulher luxuriosa pisa a cruz num total desrespeito para com o instrumento da Paixão de
Cristo. De facto, pela sua expressão, a mulher repudia as palavras de Cristo. Este tenta impedir
Staurófila de ter uma reacção brusca contra a luxuriosa mulher e um anjinho sai de perto dela
ofendido com as suas palavras. No lado direito, um demónio convida-a a entrar para um buraco
na rocha de onde sai uma luz vermelha infernal.
A inscrição deste quadro foi tirada da primeira Epístola aos Coríntios [1:18]: De facto, a
palavra da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para nós, que estamos no caminho
da salvação é força de Deus30. A condenação para a mulher vaidosa é reafirmada no livro de
Haeften: A cruz humilde não dá grandes conhecimentos aos sábios, por outro lado ela ousa e
será apanhada pelo inferno31.

29 No original: Aeterne tribuit que grata stupendia vit, et labor et studium miliet omne cruci [Idem, p.204].
30 Texto no quadro: Verbum crucis pereuntibus stultitia est 1 Corinth. 1.18.
31 No original: Crux humilis sapit haud altum sapientibus illam. Ast auide, celum cui sapit, ille capit [Idem, p. 70].

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Cristo mostrou o fim de perdição que é esperado para os orgulhosos que se julgam donos da
verdade e que não assumem a sua cruz. Staurófila ficou convencida e quer iniciar-se no
Caminho da Perfeição para não ter o mesmo fim que a pecadora que viu.
Staurófila, na segunda tela do terceiro conjunto, decide assumir a sua cruz, mas ignorando o
longo caminho de ensinamento e aprendizagem que tinha de percorrer tentou dar algo em troca.
É esta a cena que vemos na pequena tela que estaria ao lado da primeira, e que
actualmente está no coro-alto, por de traz de uma coluna de som, em risco de cair no
esquecimento e de se perder.
Nesta tela, Cristo está à esquerda, novamente rodeado por anjos. Perto dele está Staurófila
que abraçada à cruz dá o seu coração a Cristo como se de uma troca se tratasse. Na gravura,
Cristo aparece com um rosto inexpressivo, quase bizantino. Em contrapartida, neste quadro, o
pintor deu grande expressividade à figura que participa na cena.
A legenda do quadro é um versículo da primeira Epístola aos Tessalonicenses [5:18]: Dai
graças por todas as coisas32. A interpretação que Haeften deu à gravura que serviu para fazer
este quadro é a seguinte: Não é pelo que dás que a cruz é tua, pois a garantia é o amor.
Portanto, devolvo com gosto o teu coração33.
O significado reside em que não será assim tão fácil para Staurófila ficar no bom caminho.
Não pode comprar a cruz, terá de merecê-la.
A entrada no “Caminho da Perfeição” é conseguido apenas com aprendizagem, esforço e
muita disciplina. Este esforço é representado na tela seguinte, que actualmente está na
pequena sala da torre. Esta tela estaria na parede do altar, do lado direito.
Aqui, Staurófila apanha a cruz com esforço e de joelhos. A posição da mulher é alterada em
relação à gravura sendo muito mais teatral o seu esforço para apanhar a cruz. Cristo, do lado
direito, com um grupo de anjos que observam a pedagogia do seu mestre, ameaça a discípula
com uma cana verde. A legenda do quadro diz: Meu filho, não rejeites as lições do teu Deus
nem te apoquentes quando ele te corrigir34 [Provérbios 3:11].
Esta inscrição quer fazer crer que a disciplina rígida de Cristo é uma prova de amor do
mestre pela discípula e, por isso, Staurófila é castigada severamente. O mestre exige da aluna
entrega total, tal como explica Haeften: Rejeita para sempre a paixão, espera pela salvação,

32 Texto no quadro: In omnibus gratias agite 1 Thes 5.18.


33 No original: Non ea quam tribus crux est, sed pignus amoris. Cor tibi pro tanto munere reddo lubens [Idem, p. 238].
34 Texto no quadro: Disciplinam domini, fili mi, ne abycias, nec deficias cum ab eo corriperis. Prov 3.11.

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pois esta exige total entrega à cruz35. O caminho para se atingir a perfeição moral é doloroso e
cheio de punições, pois Deus exige a total abdicação das paixões e dedicação à salvação.
A quarta tela surge na consequência da anterior e situava-se na parede do altar, do lado
esquerdo. Esta tela foi restaurada em 1998 e figurou na exposição Bento Coelho 1620 - 1708 e
a cultura de seu tempo com o número 25.
A cena possui a legenda De resto, ao punir-nos, o Senhor nos corrige, para não ter que nos
condenar ao mundo [1 Coríntios, 11:32]36. A sua leitura completa-se com as palavras de
Haeften: Breve é a tua, cristã, mas aquela, como foge para os esconderijos supondo socorro,
terá cruz eterna nos Infernos37.
Cristo segura docemente a mão de Staurófila e aponta para um caminho envolto em luz.
Nesta tela pequena há um grande contraste entre a parte direita, envolta na escuridão donde sai
a boca escancarada de uma criatura infernal, libertando das goelas um bafo de fogo, e o lado
oposto, onde abundam a luz e os anjos e para onde se dirigem as duas personagens.
A gravura é muito semelhante ao quadro das Flamengas. No entanto, Bento Coelho
acrescentou-lhe os inúmeros anjos e uma expressão de doçura a Staurófila. Cristo mostrou à
sua discípula que o castigo e a dureza é necessária. Para aqueles que o não sigam esperam-
lhes dolorosos tormentos no inferno.
Com base na demonstração do mau caminho praticado pelos pecadores Staurófila fica
transtornada e quer enveredar rapidamente pelo Caminho da Perfeição. É esta a cena que
vemos na tela restaurada que participou com a sua congénere na exposição temporária atrás
citada, com o número 24.
No entanto, a iniciação não pode ser feita de forma precipitada, tal como diz a inscrição: A
paixão sem reflexão já não é coisa boa, mas aquele que é apressado nos seus movimentos
erra38 [Provérbios 19:2].
Staurófila tenta sair apressadamente pelo lado esquerdo do quadro para rapidamente pôr-se
no caminho da salvação. No entanto, Cristo impede-a segurando-a pela roupa, pois uma obra
precipitada não terá êxito.
Na gravura que fundamentou este quadro, o modo de prender as roupas de Staurófila é
muito rude, pormenor que Bento Coelho irá corrigir.

35 No original: Abycit eterne studium, spem, iusque salutis. Que volet impositam deservisse crucem [Idem, p.176].
36 Texto no quadro: A Domino corripimur, ut non cum hoc mundo damnemur 1 Cor 11.32.
37 No original: Crux eterna stygis, brevis est tua christe, sed, illam ut fugiam, huic humeros suppouisse iuuat.
38 Texto no quadro: Qui festinus est pedibus, offendit. Prov. 19.2.

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A solução para este dilema é apresentada no comentário à gravura do Regia Via Crucis: Um
imbecil que suplique salva-se: começa com gosto o caminho junto. Se carregares a cruz estarás
em condições de seguir o condutor39. Staurófila tem de se submeter a um guia espiritual que a
leve à salvação. O caminho não é fácil e ela tem de ser ajudada.
A função de “condutor espiritual” existia, de facto, na espiritualidade do século XVII.
Normalmente, era um padre ou religioso que encaminhava o crente através da leitura, iniciando-
o na fé por livros simples e evoluindo para obras cada vez mais complexas e profundas. O
objectivo era conduzir os fiéis no aprofundamento da fé, para que não caíssem nos desvios
heréticos provocados por leituras “inconvenientes”.
Depois de Cristo a ter colocado no caminho da perfeição moral através do sacrifício e da
disciplina, Staurófila está pronta para percorrer o seu caminho individual. O trabalho do mestre
terminou e foi bem concluído.
Por esta razão se vê, no último quadro Cristo, com a sua cruz, a entrar no Céu pelo lado
direito, rodeado de anjos. Enquanto isso, Staurófila caminha confiante no sentido oposto,
acompanhada por um anjo que toca uma trombeta, avisando todos do grande acontecimento.
Na gravura, a leitura foi invertida devido às necessidades de composição do conjunto, pois
pretendeu-se que Staurófila saia em direcção à porta de acesso à igreja, com obvias ligações
iconológicas e doutrinais entre a tela e o espaço para onde foi pensada.
Apesar de Staurófila ter atingido a perfeição, são-lhe dadas na hora da despedida algumas
recomendações: Não te jactes de sábio ao executar os teus trabalhos [Eclesiástico, 10:26]40.
Assim, na hora da partida, Cristo adverte Staurófila contra o orgulho, alertando-a para que ela
professe sempre a modéstia.
No comentário de Haeften à gravura que inspirou Bento Coelho pode-se ler: Porquê os
levianos te divertem perguntando tantas coisas? Somente levas de novo a cruz de Deu41.
Staurófila não se deve vangloriar por ter atingido o Caminho da Perfeição, e deve de ter a
consciência que esta escalada deverá ser obrigatória para todos.

O grande programa pictórico que Bento Coelho fez na Capela de João Vanvessem tornou o
espaço numa ante-câmara pedagógica que possibilitava ao fiel a hipótese de aprender a seguir
o Caminho da Perfeição moral antes de entrar na Igreja.

39 No orignal: Que preit, enat ouis: propriam lubet ordine recto. Si portare crucem, posse secuare ducem [Idem, p.
156].
40 Texto no quadro Noli extollere te in faciendo opere tuo. Eccle 10.
41 No original: Mobilis oblectant quid te preconia vulgi? In solum referas te que crucemq Deum [Idem, p.186].

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Apesar de utilizar o Regia Via Crucis como fonte iconográfica e doutrinal, Bento Coelho,
mandado por João Vanvessem, dá um sentido totalmente diferente às telas de S. Pedro de
Alcântara.
Neste convento, a primeira tela introduz a temática geral, as quatro seguintes referem a cruz
que cada um deve de carregar, símbolo das dificuldades e misérias da existência. As três
últimas têm um espírito optimista e cheio de esperança na fé como instrumento de salvação
[Sobral, 1996, p. 98].
Além do ordenamento das telas de acordo com a capela, Bento Coelho vai também
reorganizar as gravuras de Van Haeften de acordo com a mensagem do encomendante, e
incluir as duas grandes telas com composições e ideologia estranha ao livro holandês.
Além disto, o pintor vai também estruturar vias de leitura e conceber uma organização interna
dos quadros. Verificámos isto em relação às composições das grandes telas, onde se corrigiu a
deformação provocada pelo ângulo de visão e em relação a algumas telas do Caminho da
Perfeição, onde se inverteu a composição para interligar o significado teológico com o espaço.
Bento Coelho introduz também elementos novos que não estavam nas gravuras, como sejam
os anjos. Toda a multidão angelical que se observa nestes quadros é puro acrescento de Bento
Coelho, algo de muito comum para este pintor.
Toda esta organização da pintura vem provar que Bento Coelho, ao produzir as suas telas,
tem em conta imensos factores que irão condicionar o resultado final do quadro. Estes factores
são: a mensagem transmitida, a gravura utilizada, a vontade do encomendante, a localização
das telas no espaço arquitectónico, as vias de leitura, a sua relação com a visão humana, a sua
função e a orientação no espaço da capela.
Outra característica que concluímos deste conjunto é que o pintor dá um maior dinamismo às
personagens. As gravuras do livro holandês, apesar de serem de boa qualidade não têm
grandes movimentos. Bento Coelho inverte a situação, pinta com grande beleza o rosto de
Staurófila, dá perfeição aos seus panejamentos, dá importância ao contraste claro escuro no
quadro e concebe muitos fundos de paisagem, tudo isto inovações de sua criação e não
existentes nas gravuras.
A excelente qualidade destas telas quando comparadas com os outros exemplares do
Convento de S. Pedro de Alcântara, da mesma autoria, levam a concluir que os da Capela de
João Vanvessem são os melhores quadros dedicados a este tema conhecidos em Portugal.
Para justificar este fenómeno, temos de ter em conta que o pintor tinha a consciência de que

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

estas telas ficariam muito próximas do olhar e portanto não poderiam ter grandes erros de
desenho.
Outro factor que Bento Coelho terá levado em conta foi que estas telas estariam numa
capela privativa de um alto dignatário da corte aberta ao público e que, de certeza, seria visitada
por outras grandes individualidades, a começar pelo próprio Rei, ou seja, futura clientela que era
necessário cativar.
Finalmente, temos de ter em conta um terceiro factor para a qualidade do conjunto: a factura
apresentada a João Vanvessem, muitos mil cruzados como ele se “queixa” no testamento.
Vemos que Bento Coelho utilizou aqui o seu “pincel de ouro”, usando a bitola de Cirillo Wolkmar
Machado.
Devido à grande qualidade, à raridade do tema, e ao facto de se ter, com este trabalho,
devolvido a leitura, o significado e a integridade ao conjunto, julgamos ser de capital importância
para o património português um restauro total destas telas, que, por estarem dispersas, se
ameaçam perder.
Pelo menos seria conveniente recolocá-las na posição original para, de alguma forma,
facilitar a sua visualização e revalorizar o conjunto, a capela e o monumento, operação que, de
certo, não será muito dispendiosa.

3.3.7. O “Caminho da Perfeição” e a vida de João Vanvessem


Como vimos, este velho holandês gastou uma pequena fortuna com os quadros alusivos à
obra de Beneditus Van Haeften, Regia Via Crucis, um guia moral que obriga a uma austeridade
de vida muito rigorosa. O facto de ter dedicado um conjunto de doze telas a esta obra e ao seu
conteúdo mostra que ela teve um grande peso na mentalidade de João Vanvessem, pelo menos
na velhice.
Pelo seu testamento, feito em 1699, [IAN/TT, Registo Geral de Testamentos, Livro 103, fls.
138v a 141] documento contemporâneo à construção da capela da Sacristia das Flamengas,
podemos constatar passagens, actos, sentimentos e atitudes que de certeza se basearam neste
livro.
A primeira qualidade que logo observamos no testamento é a Castidade: não sou nem fui
casado o que segue as palavras de Van Haeften quando exige a ausência de paixões para se
seguir o caminho da perfeição.
De seguida, encontramos a Modéstia: he neçessario dispor deste pouco que tenho e da
Gratidão: E porque ainda que não me acho doente, senão com saude e entendimento, que

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Nosso Senhor foi servido dar-me. Também demonstra Caridade e auto sacrifício por ter cuidado
de uma irmã mais velha que estava entrevada. Aos seus sobrinhos, pediu que continuassem a
cuidar dela, dizendo com Humildade: não tenho mais que pedir. Seguidamente mostra Perdão
ao seu sobrinho se este não cumprir o estipulado no testamento.
É na sua vida de aventuras militares que encontramos mais qualidades dignas de quem
percorre o Caminho da Perfeição. Podemos ver o Esforço, a Dedicação, a Obediência e o
Sacrifício, servindo o rei e o país no ataque da armada da Inglaterra a Sintra e na rebelião do
Brasil.
De seguida, dedicou-se a trabalhos mais calmos de gabinete. Apesar de mexer em grandes
quantidades de dinheiro régio, afirma que nunca foi desonesto: e de nenhuma destas
occupações e dos serviços que nellas fiz, tirei çertidoens por attender somente à administração
da justiça e Serviço de Sua Magestade, nem requeri serviços.
Finalmente, volta a transparecer Humildade quando pede que o seu corpo seja amortalhado
no hábito de São Francisco e será levado à dita minha sepultura com vinte clérigos somente, a
cavalo por ser longe.
Eram estes os valores que João Vanvessem defendia e professava na velhice, pela mesma
altura que procedeu à concepção da sua capela sepulcral. Por esta razão, podemos fazer aqui
uma ponte entre a espiritualidade do velho homem, pautada por um guia que o cativou, e a
elaboração deste conjunto pictórico.
O percurso de Staurófila não é mais do que o mesmo de João Vanvessem que, percorrendo
os mesmos estádios, passou da sua vida profana à ascensão espiritual e moral. Este percurso
percorrido já na velhice é descrito nas pinturas de Bento Coelho que incentivam o observador a
seguir-lhe o exemplo.
Esta ponte entre literatura - obra de arte - espiritualidade é mais um motivo que nos leva a
realçar o valor do conjunto, a apelar à recolocação dos quadros no seu local original e a um
restauro que devolva à sala toda a cor e deslumbramento iniciais.
4 A CAMPANHA ROCOCÓ E OS AZULEJOS DA IGREJA
Entre 1780 e 1786, irão decorrer intensas obras na igreja e coro alto do Convento das
Flamengas. As obras começaram no ano de 1780 quando se procedeu às reparações
estruturais do convento, nomeadamente do telhado. Nesse ano, a Rainha D. Maria I contribuiu
para as obras. [BNL, Cod.7784, fl. 42v].
Em 1783, reformou-se a capela mor da igreja. Apesar das freiras terem solicitado o apoio
financeiro à Coroa, invocando o padroado régio do tempo de Filipe II, D. Maria I não as apoiou

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tendo a comunidade solicitando financiamento junto dos fieis que frequentavam a igreja. Esta
campanha custou mais de dois contos de réis. [Ibidem]
Em 1786, procedeu-se à obra de entalhamento das capelas laterais da igreja, teia de divisão
entre a capela-mor e a nave, obra hoje desaparecida, púlpito, guarda vento e azulejos, cujo
complexo programa iconográfico será por nós analisado com mais pormenor. Todas estas obras
fizeram-se às custas das freiras, sem qualquer apoio da Coroa. [BNL, Cod.7784, fl. 43v].
O pagamento desta empreitada fez-se com uma injecção de capital em 1785 com o dote de
mais duas noviças, quantia que ascendeu aos dois contos e seiscentos mil réis.
A razão pela qual foi destruído todo o recheio do interior da igreja é desconhecida. A
conjugação dos azulejos seiscentistas, do altar barroco e do tecto joanino não devem de ter
agradado à estética iluminista. Por isso, procedeu-se à total remodelação dos interiores evitando
porém aquelas superfluidades, que são feitos da vanglória e por isso contrários à verdadeira
devoção como consta dos estatutos da Irmandade de Nossa Senhora da Quietação de 1793.
Apesar de esta ser uma campanha Rococó, o exagero e o decorativismo não estão
presentes, pois opta-se pela calma e pela racionalidade, numa reacção mais sóbria contra o
Barroco.
A melhor obra que nos chegou desta campanha é o altar mor. Este altar segue a estética
iniciada com a capela de S. João Baptista de São Roque pois opta-se pelas madeiras que
imitam o mármore verde com as suas colunas enormes de capitel compósito rodeadas de um
filete imitando o bronze. O entablamento suporta duas figuras: a Fé e a Esperança. Ao centro, o
enorme camarim possui uma grande abóbada que imita o mármore e que protege um trono. Nas
paredes da capela mor, foram instalados apliques que também emitam o mármore antigo e o
bronze. As paredes da nave encontram-se despidas, sendo provável que estivesse previsto um
programa de pinturas nunca concretizado.
Em baixo, ao longo de todas as paredes da igreja, subsiste um grande conjunto de painéis
de azulejo, dezoito ao todo, que à primeira vista tem pouco valor.
O tecto é em estuques trabalhados com duas pinturas ao centro, a Adoração do Sacramento,
na capela mor, e a Coroação da Virgem na nave. Luís Gonzaga Pereira, por volta de 1840, por
informação das próprias freiras, atribui o trabalho de estuque a João Grossi e as pinturas a
Pedro Alexandrino. No entanto, em 1786, Grossi já tinha falecido e as pinturas são de qualidade
inferior para serem consideradas deste pintor. No entanto, Cirillo Volkmar Machado refere que o
colorido de Pedro Alexandrino por vezes desmaiava, o que pode explicar a má qualidade deste
tecto [Machado, 1922, p. 95].

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

O coro segue a mesma estética de simplicidade, tendo na bancada balaústres que imitam o
mármore. Os cadeirais que correm ao longo das suas paredes não tem qualquer decoração. As
paredes são inteiramente pintadas com cores leves (rosa e verde) sem qualquer decorativismo
exacerbado. O tecto é em masseira pintada com símbolos cristológicos. Actualmente, o arco que
dá para a igreja está coberto e as capelas laterais estão vazias. No entanto, por altura da
extinção, estes nichos possuíam capelas com talha dourada e o arco estava tapado por uma
grade em bronze dourado com dois comungatórios. Tudo foi retirado para permitir o acesso ao
coro e à Sala do Rosário que ficaram sob a tutela da Irmandade.
O enriquecimento artístico do convento, por volta de 1786, também envolveu a compra de
inúmeros objectos de ourivesaria, que após a extinção foram vendidos ou desapareceram.
As obras conjuntas de talha, pintura, azulejo, ourivesaria e estuques fizeram parte de uma
campanha concertada que teve, possivelmente, por objectivo a comemoração dos duzentos
anos da fundação do convento. A comprovar esta ideia temos os azulejos inteiramente
dedicados à fuga das freiras flamengas ocorrida em 1586.
Em 1786, precisamente duzentos anos após a fundação do convento, vai-se proceder à
elaboração de um programa de azulejos baseado nestes acontecimentos. Os dezoito painéis de
azulejos que revestem a capela-mor e a nave da Igreja do Convento das Flamengas fazem
parte de uma campanha de obras bastante intensa que teve por objectivo reformar a igreja.
Todos os painéis são iguais e consistem numa moldura arquitectónica decorada com
vistosos rocailles que abrem para uma boca de cena fingida em efeito de trompe l’oeil. O
segundo plano, imitando dois registos de mármore, é o pano de fundo de um palco cuja
perspectiva é dada por ladrilhos axadrezados. Dependurado da moldura encontra-se, em cada
um dos painéis, um medalhão, também ele em rocaille, com um bonito laço. Em cada um destes
pequenos medalhões encontramos uma cena diferente com citações em latim do Antigo
Testamento devidamente referenciadas.
À primeira vista, este conjunto é de fraca qualidade e, na verdade, do ponto de vista técnico,
fica muito aquém das movimentadas e aparatosas produções da segunda metade do século
XVIII. Talvez devido a este preconceito contra as ditas obras menores que afligiu a nossa
historiografia, nunca ninguém os tenha olhado com maior cuidado, nem tão pouco tenha tentado
compreender a sua mensagem.
A leitura do programa inicia-se pela capela mor do lado da Epístola onde podemos observar
um medalhão representando uma árvore. Na cartela tem escrito vinde e ponde-vos à minha

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sombra42 [Juizes, 9:15]. Este texto bíblico é uma alegoria ao fraco reinado que Abimelec
proporcionou. Alegoricamente, conta-se a história do espinheiro que, como queria ser a rainha
das árvores, comprometeu-se a dar sombra às suas súbditas, protegendo-as. No entanto, o
espinheiro é incapaz de produzir sombra e por isso antevê-se o fim do seu curto reinado.
Desta forma, este primeiro medalhão é uma alegoria à falsa e precária protecção do poder
político que falhou sempre no auxílio às religiosas flamengas. É uma crítica à impotência das
autoridades espanholas que não controlavam os tumultos na Flandres. De facto, nada fizeram
para evitar a revolta de Guilherme de Orange e a sua conquista da cidade de Alkmaar. Em
Haarlen foi o próprio governador espanhol que as convidou a sair por temer uma revolta popular,
e em Amsterdão as autoridades espanholas não mais puderam fazer do que esconde-las na
casa do governador e dar-lhes dinheiro para sair. [Espírito Santo, 1627, fls. 8 a 9v]
Este primeiro medalhão tem um erro que à partida poderíamos atribuir à ingenuidade do
pintor, pois em vez de estar figurado um espinheiro, como é referido no texto bíblico, optou-se
por representar uma árvore. A justificação deste “erro” será encontrada no decorrer da análise
deste conjunto.
No segundo painel a inscrição remete para o Eclesiástico 24:15, no entanto, o versículo
transcrito é 24:11, sendo este mais um de muitos erros na citação que dificultam a análise.
O capítulo 24 do Eclesiástico é o auto elogio da Sabedoria a qual se evoca cheia de glória
como a mais nobre criatura de Deus. Há uma intenção, por parte das freiras flamengas, de fazer
corresponder o auto-elogio da sabedoria com a história da sua fuga. Primeiro, há uma vontade
em enaltecer a sacralidade da sua condição e vocação: Eu saí da boca do Altíssimo [Eclo. 24:3],
evidenciando as dificuldades que passaram durante a fuga: percorri os abismos mais profundos,
as ondas do mar e a terra inteira, e de todos estes procurei onde pousar, junto de quem
pudesse estabelecer minha morada [Eclo. 24: 5 a 7]. Esta fuga e procura de refúgio decorre
ainda dentro da Flandres.
Como vimos, o primeiro painel de azulejos relatou-nos como o poder político espanhol foi
impotente para proteger as freiras flamengas de Alkmaar. Face a isto decidiram abandonar a
terra natal: Então me deu ordens o Criador de todas as coisas, e quem me criou levantou a
minha tenda e disse: Habita em Jacó e de Israel toma posse. [Eclo. 24:8].
Em Antuérpia, conseguiram a estabilidade necessária para angariarem dinheiro para
resgatarem as outras freiras clarissas que estavam em pior situação em Malines e Hoogstraten.
No Convento de Antuérpia reuniram-se cerca de duzentas freiras [Espírito Santo, 1627, fls. 17 a

42 Texto inscrito: Venite et sub umbra mea requiescite. Judic 9 vº 15.

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19] e estabeleceram um polo de resistência face às hostilidades protestantes, reafirmando a sua


imortalidade enquanto comunidade católica: Antes dos séculos, desde o princípio me criou e por
todos os séculos , não deixarei de existir [Eclo. 24:9].
Reunidas as freiras e longe dos ataques de Guilherme de Orange, as freiras puderam
reiniciar o seu culto em Antuérpia: No Tabernáculo Santo, na sua presença exerci meu
ministério, (…) Na Cidade Amada igualmente pousei43 e em Jerusalém está a minha
propriedade. Lancei raízes num povo ilustre (…) [Eclo. 24:10 a 12].
A “Cidade Amada” descrita no versículo transcrito e representada no segundo medalhão é
Antuérpia. O povo ilustre são os seus habitantes que, como viviam ainda sob o domínio
espanhol, comungavam do culto católico e ajudaram as freiras.
No entanto, na representação da cidade há um pormenor preocupante: uma barca vazia
espera ancorada na doca os seus passageiros que deverão chegar, a qualquer momento, por
umas escadas. Este pormenor é um símbolo de uma viagem com perigos que será realizada
[Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 245]. De facto, a estadia em Antuérpia será, como veremos
adiante, apenas provisória e mais perigos esperam as freiras flamengas.
Tal como na mentalidade medieval, em que o homem era um peregrino entre a Cidade de
Baixo (Terra) e a Cidade de Cima (Céu), as freiras também farão esta travessia, de uma cidade
pecadora apesar de amada (Alkmaar ou Antuérpia) para uma cidade católica mas desconhecida
(Lisboa).
O terceiro painel mostra-nos Soror Ana, uma freira com o corpo de menina de oito anos que,
segundo o livro de Madre Espírito Santo, terá previsto o fim da comunidade. Tendo contado a
sua visão à Madre Superior, que aqui aparece maior, foi desacreditada. Infelizmente, veio-se a
confirmar, mais tarde, os seus receios.
Cada uma delas aparece com a respectiva cruz, símbolo da mediação entre a Terra e o Céu,
o que dá validade à previsão da freira Ana. Mas a cruz é também a única esperança perante um
futuro adverso [Idem, p. 245]. A inscrição vai no mesmo sentido da previsão de um futuro difícil
não levada a sério pela despreocupação do presente, ao evocar o texto de Isaías 14:30: Os
filhos dos míseros apascentar-se-ão nos meus prados e os pobres ali descansarão
tranquilamente44. Este texto relata a despreocupação e felicidade dos judeus que confiavam na
sua neutralidade no conflito entre filisteus e assírios que, segundo eles, era suficiente para
manter a sua segurança. Este espírito de falsa segurança perante as alterações políticas foi o

43 Texto inscrito: In civitate sanctificata similiter requievi. Eccles 24 vº 15.


44 Texto inscrito: Pascentur primogeniti pauperum et pauperes fiducialiter requiescent. Isaias 14 vº 30.

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mesmo quando as freiras flamengas não acreditaram nas previsões de Soror Ana e pensaram
que as convulsões políticas que decorriam na Flandres em nada iriam afectar a sua segurança.
De facto, Guilherme de Orange conquistou em 1581 a cidade de Antuérpia onde as freiras
flamengas tinham o seu refúgio e onde podiam praticar o culto católico. Apesar da mudança de
regime, as freiras acreditaram que a sua neutralidade seria suficiente para salvaguardar a sua
segurança.
De início, a guerra na Flandres resumia-se apenas à questão política. O objectivo inicial de
Guilherme de Orange era apenas expulsar o domínio espanhol sem renegar a fé católica. Só
mais tarde, com as pressões da população e de alguma nobreza é que Guilherme irá proibir a fé
católica e instituir o protestantismo como religião de estado.
Após a conquista de Antuérpia, Guilherme de Orange prometeu publicamente proteger o
culto católico nos seus domínios [Espírito Santo, 1627, fl. 20]. Este pequeno e precário período
de repouso oferecido pelo novo poder político é representado no quarto painel. As freiras estão
sentadas, passivas e acomodadas à situação. No entanto, dois anjos encarregues de as
proteger incitam-nas à fuga, conselho que unanimemente recusam já que as freiras
representadas são três, número simbólico da unidade.
As efémeras benesses régias são evocadas pelo versículo concedeu um dia de repouso a
todas as províncias e deu muitos presentes com munificência régia45 [Ester 2:18]. Este texto
relata a escolha de Ester pelo rei Xerxes que, na festa do seu casamento, proclamou benesses,
festas e banquetes por todas as províncias do seu império. Mas este conforto e alegria são
proporcionados pelo poder político em ambiente de festa e apenas por pouco tempo, sendo por
isso efémeros e enganadores.
O quinto painel mostra o que é inevitável. As freiras têm de seguir o seu caminho previsto
nos desígnios de Deus. A população de Antuérpia revoltara-se contra os Católicos. Guilherme
de Orange, para evitar tumultos, proíbe o culto católico, expulsando os padres e suspendendo
os votos às freiras [Idem, fl. 20v]. O medalhão mostra um grupo de religiosas que caminham
com as suas cruzes às costas. As da frente olham para trás incitando a que vem atrasada. Este
incitamento a seguir uma via de sacrifício por amor a Deus é também dirigido ao leitor.
A cruz tem aqui uma simbologia de paixão, de ascensão através do sacrifício. No entanto,
elas não parecem contrariadas a avaliar pela passagem transcrita: Vede com vossos olhos

45 Texto inscrito: Et dedit requiem universis provinciis ac dona largitus est iuxta magnificentiam principalem. Ester 2
vº 18.

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como eu trabalhei pouco e encontrei para mim muito repouso46. Apesar dos suplícios que estão
a passar ao não poderem celebrar o culto católico, consideram essa situação uma benesse pois
foi ordenada por Deus. Com este pequeno sacrifício, conseguirão atingir o Reino dos Céus, por
isso carregam as suas cruzes com felicidade e contentamento.
Mais uma vez, aparece um erro na cartela, pois o versículo Eclesiástico 51:35 não existe,
sendo totalmente inventado. Esta situação parece-nos paradoxal pois o programa terá sido
idealizado pelas freiras, pessoas que conheceriam o suficiente dos textos bíblicos para
cometerem erros por ignorância.
O sexto painel da epopeia das freiras flamengas encontra-se quase escondido na entrada,
tapado pela pesada porta de ferrolhos em ferro. Nele, podemos ver uma freira com um bastão
de pastor que, pela posição do dedo, parece ensinar algo. É portanto uma condutora espiritual
que tem por tarefa conduzir as suas ovelhas, ou seja, as outras freiras [Chevalier e Gheerbrant,
1997, pp. 506 a 507]. O espinheiro que perto dela cresce tem também ele o seu significado, pois
evoca a ideia de obstáculo e de dificuldades que advirão da permanência no local.
Estas dificuldades estão presentes no versículo: Não desças ao Egipto, mas continua a
habitar nesta terra, no lugar que te indicarei47 [Génesis 26:2]. São estas as palavras ditas por
Deus a Isaac quando este sofreu com o seu povo uma fome inédita e pensava em abandonar a
Terra Prometida. Tal como Isaac, as freiras flamengas pensaram em abandonar a sua terra às
primeiras adversidades quando o culto foi proibido. No entanto, confiantes na mesma protecção
divina prometida a Isaac, as abadessas, que são também pastoras, optaram por ficar, apesar
dos obstáculos, mantendo-se fiéis à sua terra de origem.
As freiras permaneceram, assim, em Antuérpia por mais dois anos exercendo
clandestinamente o culto e vestindo-se como mulheres normais por imposição do novo regime
[Espírito Santo, 1627, fl. 21v].
O sétimo painel apresenta outro erro pois a frase nele inscrita: Vem comigo e refresca a tua
sede em Jerusalém48 não coincide com o versículo apresentado [2 Reis 19:33]. No entanto,
através da imagem e do texto é possível chegar à mensagem. A freira que está sentada, tem um
bastão, símbolo da liderança de um grupo. A sua expressão faz-nos perceber que está a ouvir e
irá acatar o conselho do anjo de Deus. Este aviso que está escrito na cartela é um incentivo a
partir para fora da Flandres. A situação em Antuérpia tinha-se tornado insustentável, por isso, a

46 Texto inscrito: Videte oculis vestris quia modicum laboravi, et inveni mihi multam requiem. Ecclis 51 vº 35.
47 Texto inscrito: Quiesce in terra quam dixeres tibi. Genes 26 vº 2.
48 Texto inscrito: Veni mecum, ut requiescas securis mecum in Jeruzalem 2.Reg. 19 vº 33.

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3 de Julho de 1581, o grupo de Alkmaar decide abandonar a Flandres e dirige-se à Espanha.


Inicia-se assim a fuga que as trará a Lisboa.
O oitavo painel inicia uma nova narrativa composta por quatro painéis, do 8 ao 11. Este
segundo período relata as dificuldades que as freiras sofreram e que lhes foram impostas pelos
protestantes. Iniciando este conjunto, aparece um medalhão representando as freiras a
entrarem para um cenóbio, cujo telhado tem uma curiosa cúpula com dois óculos. A passagem
da cartela é o versículo 14º do antigo Salmo 131, actual 132, que refere a escolha por Deus do
seu lugar de culto.
Deus prometera a David a sucessão da sua dinastia desde que este e os seus descendentes
se comprometessem a manter o culto num templo. A escolha do local foi feita por Deus e
expressa no versículo transcrito: Esta é, para sempre, minha morada estável, aqui hei de morar
porque a desejei49. Esta passagem tem por objectivo atestar a sacralidade da vontade das
freiras quando estas escolheram Alkmaar para prestar culto a Deus. O pecado de as ter expulso
é, assim, comparado a uma heresia que vai contra a vontade divina.
No entanto, tal como o templo de Jerusalém foi destruído, o destino do convento flamengo
estaria à partida traçado, sendo inevitável a sua destruição, prevista nos desígnios de Deus.
O último painel do lado da Epístola tem um medalhão aparentemente simples mas que pode
ter uma leitura muito complexa. As freiras aparecem em fuga dentro de um barco, símbolo de
uma viagem com perigos. No entanto, este medalhão aparece antes da destruição do convento.
A explicação aparece-nos na referência bíblica [Isaías 30:32], uma profecia de vingança contra
os assírios, metáfora para os hereges: Por onde passar a vara do castigo que o Senhor
descarregará sobre ele50. Mas este texto bíblico não corresponde com o texto latino inscrito. Se
atendermos apenas à inscrição é esta a leitura feita: E será estabelecida uma passagem para a
virgem, a quem o Senhor fará descansar [Lurvink, 1987, p.2]51.
Há portanto uma promessa de vingança contra os hereges, lembrada pela referência do texto
bíblico, ao mesmo tempo que o texto inscrito faz uma profecia quanto ao destino das freiras,
sempre assegurado pela vontade divina.

49 Texto inscrito: Haec requies mea in seculum saeculi: hic habitabo quoniam elegi eam. P. Salm. 131 vº 14.
50 Texto inscrito: Erit transitus virgae fundatos quam requiescere faciet Dominus. Isaías 30 vº 32.
51 Esta leitura alternativa devo-a a um pequeno estudo feito pelo padre Bertoldo Lurvink, um carmelita holandês,

pároco da Igreja das Flamengas, que foi o primeiro a olhar para estes azulejos com bastante atenção. O seu estudo
nunca publicado nem aprofundado por falecimento do autor está actualmente na posse da Irmandade de Nossa
Senhora da Quietação que gentilmente me cedeu uma cópia tipografada.

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Portanto, este medalhão deve ser lido como uma profecia de algo sempre previsto nos
desígnios divinos, pois, a verdadeira destruição do convento flamengo de Alkmaar e a
consequente fuga vêm no painel seguinte.
Tapado pelo primeiro confessionário, está um medalhão que se pode considerar excepção à
regra pela sua inquietude. Nele, podemos observar, à esquerda, uma igreja, certamente o
convento de Alkmaar, meio arruinado e em chamas. À direita, as freiras olham tristes para a sua
casa e uma delas chora.
Contra este choro levanta-se a inscrição: Reprime à tua voz o pranto e as lágrimas aos teus
olhos, porque terão sua recompensa as tuas aflições, diz o Senhor52 [Jeremias 31:16]. A
mensagem é evidente, transmite uma ideia de forte catolicismo, inabalável como a Virgem no
Calvário contra-reformista. Apesar das provações, as freiras devem ser corajosas, não mostrar
tristeza e, sobretudo, acreditar que Deus as irá recompensar pelo sofrimento passado.
Entre os dois confessionários, está a descoberto o décimo primeiro medalhão que narra a
fuga das freiras. Tal como conta a crónica de Madre Espírito Santo, as freiras flamengas
viajaram num carro de bois na fuga entre Alkmaar e Haarlen. Uma delas leva num saco algo de
brilhante e precioso, que devem ser as partículas do Santíssimo Sacramento, única coisa
resgatada do convento de Alkmaar antes do assalto dos hereges [Espírito Santo, 1627, fl.8v.].
Ao fundo, observam-se altas montanhas e algumas casas cujo reflexo se observa nas águas
de um lago. Para algumas populações norte europeias o lago simboliza perigosos paraísos
ilusórios que levam o homem a cair em ciladas [Chevalier e Gheerbrant, 1997, p.397], portanto,
o perigo espreita as freiras na sua fuga.
A citação é do primeiro Livro de Crónicas que enumera os descendentes de Levi, aqueles
destinados ao serviço do templo: Já que o Senhor Deus de Israel concedeu tranquilidade ao seu
povo e habitou em Jerusalém para sempre, também os levitas já não terão de transportar o
tabernáculo e os objectos destinados ao seu serviço53.[1Cron. 23:25].
Há aqui uma contradição, um engano, pois as freiras na sua fuga não têm tranquilidade e por
isso são obrigadas a transportar os objectos de culto, nomeadamente o Santíssimo Sacramento,
como observámos. Há portanto um sentido invertido da realidade, tão invertido como o reflexo
das casas observado no lago. Nesta cena, o lago toma também um papel de espelho, ou seja,
de elemento degenerador da palavra de Deus, pois dá uma imagem invertida da realidade

52 Texto inscrito: Quiescat vox tua a ploratu, et oculi tui a lacrymis: quia est merces operi tuo, ait Dominus. Jerem 31
vº 16.
53 Texto inscrito: Requiam dedit dominus Deus Israel populo suo, et habitacionem usque in aeternum. 1 Paralipom

23 vº 25.

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[Chevalier e Gheerbrant, 1997, p.301]. Desta forma se justifica como o versículo escolhido relata
uma situação precisamente oposta à cena retratada.
Tapado por mais um confessionário está um medalhão muito rico em significado. As freiras
repousam debaixo de uma árvore depois da viagem, tendo duas delas bastões de pastores.
Como pano de fundo, observa-se um bosque que não está isento de simbolismo. A floresta é
um santuário em estado natural que isola os santos do mundo, concedendo-lhes o repouso
[Idem, p.330]. O próprio descanso das freiras marca o fim de um ciclo e o início de outro. Ou
seja, acabou a fuga e inicia-se uma nova era de tranquilidade e segurança [Idem, p.567].
Este sentido de transição é reafirmado pelos bastões pois mostram que elas estão de
passagem. O bastão é o símbolo do apoio à caminhada do pastor e também do peregrino. Tal
como os pastores, as freiras são nómadas dado que foram obrigadas a viajar de terra em terra
sem destino [Idem, p.506]. A árvore dá-lhes abrigo com a sua sombra, mas também é a
figuração simbólica de Deus que lhes reafirma a protecção [Idem, p.88].
O acolhimento e a protecção nestes momentos de passagem e transição são reafirmados
pela inscrição do Livro de Génesis [Gen. 18:4]. Nesta passagem, Deus aparece sob forma
humana a Abraão que o recebe como um convidado de honra, dizendo-lhe: Mandarei vir água
para lavar os vossos pés, e repousai debaixo da árvore54. Há portanto uma mensagem de
mudança, de fim de perseguições e de início de um novo ciclo de segurança, atestada pelo
descanso proporcionado por Deus. É esta a mensagem global do terceiro conjunto de azulejos
compostos pelos sete últimos painéis.
Esta protecção divina simbolizada por uma árvore vai servir de contraste à falsa protecção
proporcionada pelo poder político cuja alegoria aparece no primeiro medalhão junto à capela-
mor.
Como vimos, neste primeiro medalhão, deveria figurar um espinheiro, como é referido no
Antigo Testamento, mas preferiu-se representar uma árvore. A razão deste aparente equívoco
prende-se com a vontade de fazer contrastar ambos os medalhões. Há uma vontade de colocar
este medalhão número 12 nos antípodas do primeiro, ou seja é o seu oposto e inverso. A razão
para esta ligação é simples. Pretende-se demostrar que a protecção divina estará sempre
presente, mesmo nas condições mais adversas, enquanto que a protecção política, por ser
falsa, pode faltar mesmo quando se vivem períodos calmos e tranquilos.

54 Texto inscrito: Requiescite sub arbore. Genes 18 vº 4.

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O primeiro medalhão do lado do Evangelho marca o reinício da ascensão das freiras. É o


primeiro painel com uma mensagem de triunfo e de vitória sobre as desgraças do passado, e
pode-se considerar o mais complexo devido à profusão de símbolos todos interligados entre si.
Nele observamos uma freira que caminha de costas voltadas para o observador tendo na
mão três cruzes. À sua esquerda estão duas palmeiras cruzadas, símbolo de uma intercepção
entre o Antigo e o Novo Testamento. A folha de palmeira tem um valor de vitória, de ascensão e
de imortalidade e, por essa razão, é atributo dos santos mártires prefigurando a Ressurreição de
Cristo após o drama do Calvário [Chevalier e Gheerbrant, 1997, p.502]. Tem portanto um valor
de ascensão conseguido pelo sacrifício e pela dor, simbolizados pelos choupos e nenúfares que
estão à beira rio [Idem, p.192].
A mesma ideia positiva está presente nos tufos de folhas no chão que simbolizam a
felicidade e a prosperidade. Um ramo de folhas designa o conjunto de uma colectividade unida
numa mesma acção e num mesmo pensamento [Idem, p.334], sendo por esta razão um
emblema da união numa comunidade monacal.
Estas folhas estão pintadas de forma tão nítida e até exagerada que não podemos
negligenciar o seu número e o respectivo significado. O tufo da direita tem cinco folhas, sendo
por isso o símbolo da vontade divina que só pode desejar a ordem e a perfeição [Idem, p.196].
Neste caso o desejo divino é a felicidade e a ascensão da comunidade como veremos adiante
na análise da cartela. Por sua vez, o tufo de três folhas da esquerda evoca a perfeição da
unidade divina [Idem, p.654] que se pode estender à unidade da comunidade e da fé contra todo
o tipo de heresias.
O fim da fuga traumática e o regresso à verdadeira ordem das coisas é simbolizado pelo rio
cuja corrente desce para o oceano numa reunião das águas em que se regressa à unidade.
Este emblema marca assim o reencontro das freiras fugidas com a comunidade católica [Idem,
pp.569 e 570].
As três cruzes que estão na mão da freira têm um significado que vêm ao encontro da palma,
ou seja, são cruzes de ressurreição que marcam a vitória sobre a morte, mas esta glória só foi
conseguida pelo sacrifício [Idem, p.247].
A cartela deste medalhão tem uma citação do Livro de Rute [Rut. 3:1]. Tal como as freiras
flamengas, Rute era uma estrangeira que, pela força das circunstâncias, se vê obrigada a
abandonar a sua terra e a sua família. No entanto, é bem acolhida no seu novo lar devido aos
sacrifícios que teve para com a sua sogra, Noemi. Apesar de ser estrangeira tem o direito à

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felicidade: Minha filha, porventura não devo buscar-te uma colocação para que sejas feliz?55. É
esta a preocupação que Noemi tem por Rute, igual à que Deus tem pelas freiras flamengas: a
felicidade após o sacrifício.
O décimo quarto medalhão evoca a submissão das freiras à vontade divina, a sua confiança
no modo como Deus lhes irá conduzir o seu caminho de futuro.
Em primeiro plano, vemos uma freira que adormece confiante em que nada lhe pode
acontecer. Por ela passa uma estrada que se dirige directamente a uma montanha. A estrada
simboliza a via directa para a ascensão da alma, sem qualquer atraso ou desvio, de tal forma
que será comparada com a vida monástica enquanto vida contemplativa estritamente orientada
por Deus [Chevalier e Gheerbrant, 1997, p.307]. Esta ascensão da alma é encarada como uma
escalada comparável ao subir de uma montanha, cujo cume encerra o termo da ascensão
humana que é ao mesmo tempo o destino da estrada, ou seja, a Jerusalém Celeste. Assim, vê-
se neste medalhão uma pequena cidade no cume da montanha.
A iniciar esta escalada está uma freira que já tem na mão o bastão de peregrino para a
ajudar na subida. Porém, esta caminhada não é activa, mas sim contemplativa e espiritual,
sendo feita pela freira que dorme. A comprovar está a cartela com o versículo tranquilo me deito
e também adormeço, porque vós, Senhor, a mim solitário pondes em segurança56 [Salmos 4:9]
A construção do novo convento em Alcântara é evocada no terceiro medalhão do lado do
Evangelho. Nele podemos observar um imóvel inacabado retratado com uma perspectiva muito
deficiente e situado perto de um tecido urbano. Encostado a uma parede, está um poste com
várias cordas que auxiliam a construção. Tanto o poste como as cordas tem um sentido de
auxiliar a ascensão aos céus, mas só daqueles que pela sua graça o merecem [Chevalier e
Gheerbrant, 1997, p.228]. Na ponta de uma corda está um gancho que aqui tem um significado
de anzol, o instrumento pelo qual Deus “pesca” os homens para o Reino dos Céus. Portanto, o
convento em construção será uma “rede” que terá por função capturar fiéis para os céus,
mensagem muito difundida pela contra-reforma da Igreja Católica após o Concílio de Trento.
A importância desta nova morada de Deus é realçada pela cartela com as palavras do Rei
Davi: Eu abrigava o projecto de edificar uma casa aonde a Arca da Aliança do Senhor pudesse
repousar57 [1 Crónicas 28:2].
Neste capítulo, Davi dá as últimas disposições no final do seu reinado em que pretende que
se construa um templo para Deus, aonde ficará a Arca da Aliança. Assim, a construção do

55 Texto inscrito: Filia mea, quaeram tibi requiem et providebo ut bene sit tibi. Ruth 3 vº 1.
56 Texto inscrito: In pace in idipsum dormiam et requiescam. P. Salm. 4 vº 9.

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convento de Alcântara é comparado ao templo de Jerusalém, pois ambos são moradias de


Deus.
Novamente, outro erro dificulta a leitura pois a cartela remete para o segundo livro de
Crónicas, enquanto que o versículo correcto está no primeiro.
Já dentro da capela-mor, ainda do lado do Evangelho, podemos observar o décimo sexto
medalhão desta série. Nele brota um grande lírio de fortes raízes presas ao chão. O lírio é o
símbolo da pureza, da inocência e da virgindade e por isso representa também o abandono à
vontade de Deus, sendo qualquer destas ideias próprias de um cenóbio feminino. No entanto, o
lírio é também o símbolo da geração e da continuação familiar [Chevalier e Gheerbrant, 1997,
p.413] o que se coaduna com os dois versículos inscritos: Despontará um rebento do tronco de
Jessé, e um renovo brotará da sua raiz. Sobre ele pousará o espírito do Senhor58 [Isaías, 11:1 e
2]. Está portanto representada uma invulgar árvore de Jessé com o significado de sucessão pela
virgindade. [Chevalier e Gheerbrant, 1997, p.92]. Assim, as freiras flamengas afirmam a
continuidade e a expansão do seu convento sob a protecção de Deus, tal como a linhagem de
Jessé que deu ao mundo reis entre eles o Salvador.
O penúltimo painel tem como tema o regresso e a reunião dos exilados, ou seja, a promessa
do reencontro futuro com as freiras flamengas dispersas pelo mundo católico durante a sua fuga
narrada pela Soror Catarina do Espírito Santo. Assim está escrito O Senhor estenderá de novo a
mão para resgatar o resto de seu povo sobrevivente da Assíria e das praias do mar59 [Isaías
11:11].
No entanto, entre a fuga das freiras e a produção dos azulejos passaram duzentos anos,
pelo que a tarefa de reunir as freiras fugidas dos vários conventos flamengos é totalmente
impossível. Por esta razão se coloca no medalhão um grande e bonito navio, pois de acordo
com uma lenda nórdica, que originou o célebre conto do “Navio Fantasma”, o navio é o símbolo
dos grandes sonhos de nobre inspiração, mas completamente impossíveis na realidade, ou seja,
retrata o ideal irrealizável [Chevalier e Gheerbrant, 1997, pp. 468 e 469].
Finalmente, o décimo oitavo medalhão tem uma mensagem de propaganda e de triunfo. Tem
inscrito a arca pousou nos montes60 [Génesis 8:4] e é precisamente o que tem representado. A
Arca de Noé está pousada nos montes de Ararat, embora esteja representada de uma forma

57 Texto inscrito: Cogitavi ut aedificarem domum, in qua requiesceret arca foederis Domini. 2 Palipom 28 vº 2.
58 Texto inscrito: Egredietur virga de radice Jesse et requiescet super eum spiritus Domini. Isaias 11 vº 1 et 3.
59 Texto inscrito: Adjiciet Dominus secundo manum suam adpossidendum residuum populi sui quod relinquetur ab

Asyriis et ab insulis maris. Isaias 11 vº 11.


60 Texto inscrito: Requievitque arca super montes. Gen 8 vº 4.

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muito ingénua com uma casa dentro de um barco, apesar de na Bíblia estar descrito que ela
tinha três andares. Serve no entanto para a finalidade desejada, pois representa o fim do dilúvio
e das trevas e o início da Nova e Eterna Aliança. A Arca de Noé é assim o símbolo da morada
protegida por Deus e da igreja aberta a todos para a salvação do mundo. Portanto, este
conjunto de azulejos fecha com chave de ouro os dezoito painéis com uma mensagem de
propaganda e de salvação assente na Igreja Católica.
Analisando agora o conjunto na sua totalidade podemos concluir que todos os textos latinos
transcritos têm, salvo uma excepção (o painel 17), uma forma do verbo “requiescere”, um caso
com o verbo “quiescere” ou do substantivo “requies”, palavras que significam repousar,
descansar, repouso, etc. Esta ideia está perfeitamente de acordo com o orago do convento:
Nossa Senhora da Quietação. A calma também é visível na composição dos painéis, onde as
freiras aparecem todas agrupadas, não havendo movimentos e onde tudo aparece estático,
apesar de se estar em plena época Rococó.
A escolha exclusiva pelo Antigo Testamento também não é ocasional, pois estes textos estão
cheios de exemplos, como Deus libertou o Seu povo sempre que este O invocava, concedendo-
lhe a tranquilidade, a paz e o fim das angústias. Desta forma, Deus deu igual protecção a estas
monjas que se tinham consagrado a Ele na vida religiosa, libertando-as dos perigos das
perseguições religiosas na Holanda, fazendo que chegassem sãs e salvas a Lisboa.
O conjunto pode ser também subdividido em duas linha direccionais de leitura, uma primeira
descendente e pessimista que se lê da capela-mor, o lugar mais importante da Igreja, para a
retaguarda do templo, o lugar menos importante, até à parede que tapou o antigo coro-baixo.
Neste conjunto de painéis, situados no lado da Epístola, caminha-se de uma relativa paz
para a mais completa destruição e consequente fuga das freiras. O ponto de viragem faz-se
precisamente na parede que foi criada para o efeito na campanha de obras de 1786, tapando o
velho coro-baixo.
A partir daí, no lado do Evangelho a mensagem é ascendente, de triunfo, optimismo e
propaganda fazendo-se a leitura em direcção à capela-mor, ou seja, à medida que o observador
avança também ele ascende dentro do espaço da igreja.
Desta forma, compreende-se como a mensagem dos azulejos funciona apenas de acordo
com o edifício para onde foram projectados, perdendo todo o seu valor se por qualquer razão
fossem retirados do local para onde foram concebidos.

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De facto, quando inseridos no espaço arquitectónico, os painéis de azulejos encontram-se


arrumados em seis grupos de três. Contudo, iconologicamente o conjunto divide-se em três
grupos.
O primeiro é composto pelos painéis 1 a 7 onde se pode estabelecer um paralelo com a
narrativa de Madre Soror Catarina do Espírito Santo. Este primeiro conjunto pretende narrar a
existência das freiras na Flandres, uma vida conturbada pontuada pela insegurança e pela falsa
esperança.
O segundo grupo compreende os painéis 8 a 11 e mostra as dificuldades e suplícios por que
passaram as freiras na sua fuga para Portugal. Consiste num pequeno intervalo que marca a
transição entre os dois ciclos de sete painéis.
Finalmente, o terceiro conjunto é composto pelos painéis 12 a 18 e tem um carácter
propagandístico e contra-reformista pois, através de emblemas, enaltece as qualidades da
comunidade em Portugal. Aqui as freiras adquirem segurança e força suficientes para durar
duzentos anos, aniversário que se comemora com este programa de azulejos.
A divisão do programa em três partes compostas num esquema de 7 - 4 - 7 não é desprovida
de simbolismo. O sete, número dos dias da semana, simboliza a totalidade e um ciclo completo
[Chevalier e Gheerbrant, 1997, pp. 603 a 606]. O quatro, número dos pontos cardeais, das
quatro partes do mundo e dos quatro ventos, é utilizado para simbolizar o terrestre, sendo por
isso um número material e sensível [Idem, pp. 554 a 556].
Tendo em conta estes dois simbolismos podemos definir que as freiras nos seus medalhões
da igreja pretenderam demonstrar que a vida da comunidade foi composta por dois ciclos
completos, o primeiro concretizado na Flandres e o segundo decorrente em Portugal. A fazer a
transição entre estes dois períodos distintos estão os quatro painéis que demonstram os perigos
por que passaram as freiras na sua fuga. Estas provações foram feitas pela mão do homem,
decorreram no mundo profano exterior ao convento, e reflectiram-se nas pessoas físicas das
freiras pelo que são simbolizados por quatro painéis evocando uma iconologia terrena.

Ao finalizarmos esta análise iconológica chegamos a um resultado inesperado. Através de


símbolos e de passagens bíblicas que remetem para a interpretação dos textos, é transmitida ao
espectador uma sucessão de ideias que estiveram presentes na história das freiras flamengas.
A angústia perante a impotência do poder político, o medo durante a fuga ou o alívio e
optimismo quando tiveram o acolhimento em Portugal, são sentimentos que estão bem
presentes nos azulejos da igreja das flamengas.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Como estes painéis, de difícil leitura, estavam no interior da igreja, destinavam-se ao público
em geral e não às freiras. Convém, por isso, definir qual a envolvência social que rodeava o
Convento das Flamengas ao Calvário em 1786. Não era, como é hoje, um imóvel colocado no
centro urbano. A igreja do convento era frequentada por uma aristocracia literata e culta que
vivia nos palácios vizinhos, alguns ainda hoje existentes. Era a esta camada restrita da
população que os azulejos se destinavam, pois decerto nunca seriam entendidos pelo grosso da
população de Lisboa.
Apesar dos azulejos se destinarem a uma classe erudita que na época vivia em Alcântara,
coloca-se a questão se esta mesma classe os compreendia. Este conjunto possui uma forte
componente erudita nos símbolos utilizados, tendo em contrapartida uma clara ingenuidade do
pintor nas questões técnicas.
É quase certo que o programa iconográfico dos medalhões foi idealizado pelas freiras que
informaram o pintor quais os símbolos que deveriam figurar nos painéis. Isto explica a falta de
criatividade pessoal na representação dos citados medalhões, mas também, a pouca
importância que o pintor lhes dá quando integrados no conjunto. Se analisarmos as molduras,
concluímos que a perspectiva em efeito de “trompe l’oeil” é cuidada e perfeita, o que contrasta
com as perspectivas das pequenas cenas retratadas nos medalhões.
Não é de excluir a hipótese de os cartões que serviram de guia para o pintor executar os
medalhões terem sido desenhados pelas próprias freiras justificando-se assim o contraste que
existe entre os emblemas, ingénuos mas iconograficamente complexos, e as molduras de
qualidade técnica muito superior mas sem significado.
Para aprofundar a análise deste conjunto convém fazer o inventário da biblioteca do
Convento das Flamengas e tentar encontrar os livros que deram origem aos símbolos utilizados.
Também importa fazer o levantamento da nobreza residente em Alcântara em 1786 e descobrir
os livros que existiam nas suas bibliotecas, analisando se algum deles coincidia na gramática
simbólica com os existentes no Convento.61
Após este trabalho, seria possível estipular qual o grau de entendimento que a nobreza de
Alcântara tinha destes azulejos. É provável que este entendimento fosse muito limitado e
restrito.

61 Este trabalho de inventariação está ainda por fazer. O inventário da Livraria conventual pode ser analisado no
processo de extinção do Convento em que se faz uma listagem dos livros que aí existiam e que deram entrada na
Biblioteca Nacional (IAN/TT, AHMF, Caixa 1963, Convento de Nossa Senhora da Quietação - Flamengas). Para se
analisar as livrarias da nobreza residente em Alcântara e também do próprio convento deve-se consultar as
listagens feitas em 1769 pela Real Mesa Censória [IAN/TT, Real Mesa Censória, Livrarias Particulares, Caixas 114 a
137).

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Assim, coloca-se outra grande questão. Porquê investiram as freiras num conjunto azulejar
de fraca qualidade e de difícil entendimento? Além da dificuldade provocada pela profusão de
símbolos, existe a dificuldade acrescida de muitos dos painéis terem erros na citação, versículos
inventados, citações inexistentes, etc. Ao todo existem cinco erros ao nível das citações bíblicas
mais concretamente nos painéis Nos 2, 5, 7, 9, e 15. Qual a razão para esta atitude ?
A resposta para a utilização de um programa tão complexo e difícil pode-se resumir à
vontade das freiras em despertar a curiosidade e provocar a discussão entre o público que se
interrogaria sobre os erros e significado dos vários medalhões. Esta atitude de provocar o
engano era muito frequente no Barroco, se bem que em ambientes mais profanos.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

5 O DECLÍNIO: DO LIBERALISMO À ACTUALIDADE


5.1. TEMPOS DIFÍCEIS 1834 - 1887
A extinção de 1834 não abrangeu os conventos femininos de forma imediata. O Convento
das Flamengas não tinha qualquer propriedade agrícola. Os seus rendimentos provinham dos
dotes das novas freiras, das doações particulares na hora da morte e das doações dos
monarcas, pois o convento era de fundação régia. Da coroa recebiam no início quatrocentos mil
réis, quantia posteriormente aumentada para seiscentos mil por ano. No entanto, nas vésperas
da Revolução Liberal, esta quantia em ouro valia apenas um terço da originalmente dada por
Filipe II.
Com a lei de 1834 e a impossibilidade de admitir novas freiras, as receitas provenientes dos
dotes e das doações régias acabam. O convento fica sujeito apenas às esmolas dos particulares
que, devido ao domínio da filosofia burguesa capitalista e tendencialmente anti-clerical, já não
doa tanto dinheiro como dantes. De facto, a velha nobreza de sangue que no passado fundara e
sustentara conventos entrou em declínio e o dinheiro era agora controlado por uma nova classe,
a burguesia.
O convento das Flamengas, tal como muitos outros entra em crise profunda. José Joaquim
Gomes de Brito, um “arqueólogo” de finais do século XIX, que conheceu directamente as últimas
freiras escreve assim poucos dias após a morte da última flamenga: (…) Um dia, porém, passou
por aquelle mosteiro, como por todos os outros, não menos repletos d’essas realengas
recordações, o sopro myrrhador da Liberdade trazendo irrisão atroz - nas azas a penúria, no
hálito a miséria (…) [Brito, 1887, nº 2259] e sobre os últimos dias do Convento das Flamengas
escreve que (…) Os voluntários jejuns monásticos duplicaram-se com forçados jejuns da fome,
as longas vigílias do coro tiveram como assíduos assistentes as torturas ainda mais longas da
miséria, e pelo portal por onde em tempos haviam sahído (…) os presentes com que se
agradeciam mundanos obséquios (…) começaram a sahir os móveis, as tapeçarias, as alfaias,
os mil objectos, enfim, convertíveis em dinheiro, os quaes por elle trocados a vil preço, mal
remediaram apuros, e mais mal ainda guarneceram precisões contra futuras agonias (…) [Brito,
1887, nº 2259].
As freiras flamengas necessitaram de alienar o seu próprio património para assegurar a
sobrevivência na velhice.
Num pequeno inventário [BNL Cod. 7784] em que inumeram as compras de ourivesaria que
faziam, uma das últimas freiras flamengas escreveu à margem do registo de certas peças já não

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

há, vendera-la para pagar dividas e sostentar-nos. Disto é exemplo uma banqueta de prata,
objecto imponente que tinha custado, em 1817, mais de um conto de réis. Destino idêntico
tiveram duas lâmpadas datadas de 1786 e de 1806.
As peças de ourivesaria eram os objectos que mais facilmente se vendiam sendo o seu
destino a fundição. As tapeçarias e os paramentos também foram vendidos a uma burguesia
recentemente enriquecida que gostava de ter na capela do seu palacete elementos antigos de
prestigio que lembravam a velha aristocracia, na qual ela se pretendia enquadrar.
Gomes de Brito dá-nos um exemplo: Presumimos que o Museu de Antiguidades pouca coisa
recolherá do espólio do Mosteiro das Flamengas. Segundo todas as apparências, o que ahi
havia de bom desapareceu de há muito, os armários e arcazes do convento, e até mesmo, hoje,
muitos dos artigos pelas freiras vendidos terão já tido mais de um possuidor. Ouvi que uns ricos
paramentos foram em tempo vendidos por um conto de réis para a capella dos marqueses de
Vianna, hoje pertença do senhor conde de Praia e de Monforte (…)[Brito, 1889, p.56].
O Estado nada fazia para evitar esta hemorragia de património, pois era controlado pela
mesma burguesia que beneficiava deste “antiquariato selvagem”. As preocupações
governamentais resumiam-se somente aos bens que entrariam no tesouro, quando o convento
fosse extinto.
Disto é prova o inventário que se faz em 1860, ainda antes da morte da última freira [IAN/TT,
AHMF, Cx 1963]. A ideia de se proceder à inventariação dos conventos femininos data de 1857,
sendo o objectivo saber a situação concreta dos conventos femininos do Patriarcado de Lisboa.
Esta acção foi organizada pelo Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça que
permanecia na mais completa ignorância sobre a riqueza e património destes edifícios. O
governo queria estar a par da situação de cada convento individualmente, para poder prever a
sua extinção, tomando as medidas adequadas.
A primeira medida foi contactar o Patriarcado que ficava encarregado de nomear o
inventariante, um religioso, pois os seculares não podiam entrar na clausura feminina. Ficou
estabelecido entre o Patriarcado e o Estado que o inventário seria feito pelo prelado da casa
religiosa, pela autoridade ou pessoa eclesiástica encarregue de fazer o inventário e pelo
empregado da Fazenda, portanto, dois religiosos e um laico, ficando o Estado claramente em
desvantagem.
Para o Patriarcado o inventário tinha como objectivo examinar a capacidade e estado do
edifício e da cerca, os livros e documentos do cartório e descrição dos objectos. Houve uma
preocupação da Igreja pelo arquivo e pelas alfaias enquanto objectos de culto.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Para o Estado, o inventário devia compreender a descrição do convento e edifícios anexos, o


seu estado material e avaliação, descrição e avaliação das propriedades rurais e urbanas,
descrição dos “títulos de crédito público”, descrição e avaliação das alfaias e objectos preciosos
pertencentes à comunidade, descrição das despesas de manutenção das religiosas e
rendimentos das terras. O Estado tem uma preocupação muito mais pecuniária e de índole
económica interessando-se por aquilo que o convento lhe poderia render.
Há portanto objectivos bem diferentes em ambas as partes. Esta descoordenação e
interesses distintos serão fatais à partida para o inventário que resulta muito pequeno,
imperfeito, deficiente e rudimentar na descrição, de pouco ou nada servindo para a análise
estilística do convento.
Este documento divide-se em três partes: o relato da história e descrição de todo o edifício
que fica arrumado numa página, a enumeração dos Títulos de Crédito Público e a descrição das
alfaias que limita a dezoito peças quando o convento possuía centenas. Desta forma, o
inventário de 1860 não correspondeu às expectativas nem do Patriarcado nem do Estado. Não
seguiu uma única directiva do Patriarcado, mas também não agradou ao Estado, pois avaliou o
conjunto em dez contos de réis, cinco vezes menos que o valor da posterior avaliação.
No entanto, apesar do mau resultado, o Estado não procedeu a nova inventariação e por
dezassete anos esqueceu o Convento das Flamengas com todo o seu espólio.
Portanto, a situação na última década de vida do convento foi de total penúria das freiras,
facto que ameaçou todo o seu espólio.

5.2. A INEVITÁVEL EXTINÇÃO E O DESTINO DO PATRIMÓNIO: 1887


Apesar de lei de 1834 ter em 1887 já mais de cinquenta anos, nunca foi revogada e a
inevitável extinção aconteceu. A última freira morreu a 9 de Janeiro de 1887 e foi sepultada
anonimamente num cemitério civil. As autoridades locais foram informadas e, a 11 de Janeiro de
1887, o Inspector da Repartição de Fazenda do Distrito de Lisboa informou o Director Geral dos
Próprios Nacionais, do Ministério da Fazenda, que o escrivão da Fazenda do 4º Bairro de Lisboa
lhe havia comunicado o referido falecimento.
No mesmo dia, o Governador Civil do Distrito de Lisboa informou o Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios da Fazenda da morte da última freira flamenga, pedindo a este que
tomasse as medidas necessárias.
Também no mesmo dia, a Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça
informou com urgência o mesmo ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

também referiu que se devia proceder à arrecadação e administração provisória dos bens e
rendimentos do mesmo convento, nos termos das Instruções de 31 de Maio de 1862. Enquanto
não fosse dado um destino ao Convento e aos seus bens, a Secretaria de Estado solicitou que o
Ministro procedesse à expedição necessária para esse efeito, devendo o funcionário nomeado
entender-se para isso com o Patriarcado que já havia sido informado.
Por estas missivas vemos que a instituição que ficou encarregue de proceder à arrecadação
dos bens do convento foi o Ministério da Fazenda que, em conjunto com o Patriarcado, procedia
à extinção. A sua maior preocupação resumia-se às questões financeiras e pecuniárias, ou seja,
de quanto o convento podia render ao Estado.
Dois dias depois, a 13 de Janeiro, o Cardeal nomeou o seu inventariante e no dia seguinte ,
a 14 de Janeiro, a Direcção Geral dos Próprios Nacionais, afecta ao Ministério da Fazenda,
mandou que a Repartição da Fazenda do Distrito de Lisboa procedesse a novo inventário com o
delegado nomeado pelo Patriarcado e que confirmasse a existência dos bens descritos no
inventário de 1860.
A grande preocupação do Ministério da Fazenda era os papéis de crédito e títulos de valor
que o convento possuía. Por isso, esta Direcção Geral mandou que estes documentos fossem
imediatamente remetidos para o Ministério.
A Academia de Belas Artes foi informada da extinção, empurrando-se para esta instituição
todas as responsabilidades sobre o património artístico.
Ao ter sido informado, o Director da Academia solicitou ao Director Geral dos Próprios
Nacionais que o autorizasse a proceder, juntamente com o Inspector de Fazenda, à inspecção
do Convento das Flamengas e escolher de entre os objectos aí existentes, aquelles que pelo
seu merecimento artístico devam ser recolhidos ao Museu Nacional de Belas Artes em
conformidade com o que se praticou com os suprimidos conventos de S. Salvador e S. José da
cidade de Évora [IAN/TT AHMF Cx 1963]
O inventário de 1887, que se prolongou até 1888, é muito maior, mais extenso e demorado
que o de 1860. Nele tiveram participação o Administrador do 4º Bairro, Dr. Manuel Joaquim
Carrilho Garcia, o reverendo padre Frei Francisco de Nossa Senhora da Conceição da Rocha,
nomeado pelo Cardeal Patriarca para assistir ao inventário dos bens do mosteiro e Henrique
Joaquim d’Abranches Bizarro, encarregue de fazer o inventário pelo Inspector da Fazenda do
Distrito de Lisboa, Henrique Francisco Bizarro. Apesar destes dois indivíduos estarem
certamente relacionados por algum grau de parentesco, temos de admitir que o trabalho feito

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

por Henrique Joaquim é de qualidade tornando este documento útil para os investigadores
devido à sua organização e pormenor.
O inventário de 1887/8 tem de início uma nota introdutória de explicações sobre o seu
manuseamento, dividindo-se posteriormente o corpo em várias secções: cópia de ofícios, auto
de posse do ministério, títulos de dívida interna, títulos da renda vitalícia, imagens, objectos
preciosos, alfaias, “flores”, ornamentos em tecido, ornamentos em madeira, armações, quadros
sacros, livros da biblioteca, móveis, descrição do edifício, enumeração dos documentos do
cartório, adicionamento de alguns objectos, termo de entrega dos objectos ao prelado, termo de
entrega dos objectos à Academia de Belas Artes e finalmente o termo de entrega dos livros à
Inspecção Geral das Bibliotecas.
Cada uma destas secções tem uma pequena descrição dos objectos e a sua avaliação. O
pormenor a que chega leva-o a enumerar oitocentos e oitenta e dois objectos o que é revelador
da qualidade deste inventário se o comprarmos com o de 1860 que apenas refere dezoito.
A qualidade do inventário necessitou de um largo período para a sua elaboração. Em cada
dia procedia-se à inventariação, descrição e avaliação de um certo tipo de objectos, havendo a
preocupação de escolher como “louvados” pessoas cuja profissão e honestidade ajudassem na
identificação e correcta avaliação dos objectos.
Para a avaliação das alfaias, imagens e paramentos foi chamado Ayres José Ferreira
d’Oliveira, armador, e Silvério António Marques, santeiro. A avaliação da pintura e do edifício
esteve a cargo de Manuel Victor Rodrigues, arquitecto e professor de desenho histórico. Para a
avaliação dos livros compareceu Luís Carlos Rebelo Trindade, conservador da Biblioteca
Nacional e, finalmente, para os móveis e loiças foi louvado de novo Silvério António Marques.
O resultado da avaliação pode-se medir pelo valor em que se orçou todo o convento, mais de
cinquenta contos de réis, quase seis vezes mais que o valor atingido no inventário de 1860.
Assim, o edifício e o seu recheio não foi vendido em hasta pública como anteriormente
ocorrera, mas sim entrou na sua totalidade para o Estado. O recheio teve o fim que na época foi
considerado o mais racional. Os livros foram para a Biblioteca Nacional, os objectos
considerados com valor artístico foram para o Museu de Arte Antiga e os restantes devolvidos
ao culto tendo permanecido no convento à guarda do pároco da freguesia de São Pedro de
Alcântara.
Seria fastidioso enumerar as largas dezenas de objectos que entraram nos depósitos da
Academia de Belas Artes, no entanto, podemos adiantar que a sua maioria eram móveis de
grande qualidade em pau santo, vinhático, casquinha e outras madeiras nobres, em couro e em

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

talha embutida a madre pérola e metais. Todos estes móveis foram posteriormente
redistribuídos por ministérios e instituições do estado, sendo o seu paradeiro actualmente
desconhecido.
Outros objectos que transitaram do Convento das Flamengas para o Museu de Arte Antiga
foram as loiças finas da Índia, Cantão, do Rato e das Caldas, algumas delas com o brasão do
convento, assim como cristais de Veneza.
A conclusão que podemos tirar desta redistribuição de bens é que houve a preocupação de
preservar materialmente o espólio do convento, ao contrário do que aconteceu no passado. No
entanto, a extinção do Convento implicou a deslocação dos objectos e a perda da sua
contextualidade, ficando o convento despojado das suas riquezas.
O que actualmente podemos ver neste cenóbio devemo-lo essencialmente à acção da
Irmandade de Nossa Senhora da Quietação que, em 1887, teve um papel importantíssimo na
salvaguarda dos tesouros que permaneceram no convento, sendo esta instituição que ainda
hoje preserva o remanescente do espólio conventual.
Logo em 31 de Janeiro de 1887, vinte dias após a morte da última freira, a Irmandade pede à
Direcção Geral dos Próprios Nacionais do Ministério da Fazenda que não seja incluído no
inventário, que se começava a fazer, os bens seus pertencentes. Este organismo do estado
responde que só a Autoridade Eclesiástica, detentora das alfaias e paramentos do convento
após a sua extinção, poderá deliberar sobre isto, necessitando para isso a Irmandade provar
quais eram os objectos exclusivos da sua posse.
A Irmandade não desistiu e procedeu à enumeração dos bens que queria que ficassem à sua
guarda. A 8 de Setembro de 1887, a Real Irmandade de Nossa Senhora da Quietação pediu
que a igreja, sacristia, “casa do despacho” e casas da residência do capelão permanecessem
juntamente com as alfaias, in perpetum sob a alçada da dita Irmandade.
No entanto, a pretensão é indeferida pelo Ministério da Fazenda, a 15 de Dezembro de 1887,
pois este pedido só poderia ser atendido pelo poder legislativo, ou seja, só as Cortes poderiam
legislar relativamente a este assunto.
O juiz da Irmandade, o Conde da Ribeira Grande, não descansou e, a 2 de Março de 1889,
procede ao mesmo pedido, mas a título provisório, enquanto as Cortes não decidissem em
definitivo.
Desta vez, a Irmandade é bem sucedida e, a 2 de Abril de 1889, o Director dos Bens
Nacionais concede este pedido, visto que a Irmandade mantinha no edifício a “religião do
Estado”. A 25 de Abril do mesmo ano as Cortes legislam a este respeito e a Irmandade fica

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

detentora para sempre destes bens. A tomada de posse oficial ocorre a 16 de Setembro de
1889 em que a Irmandade se responsabiliza pela conservação dos quadros e espólio do coro,
ante-coro, sacristia, casa do despacho da irmandade e das casa para a residência do capelão e
sacristão. Estas últimas dependências foram demolidas já no nosso século, mas as três
primeiras permanecem quase intactas graças à acção da Irmandade que até hoje tudo tem feito
ao seu alcance para preservar aquilo que ficou à sua guarda.
Após a redistribuição do espólio, e das dependências artísticas estarem entregues à
Irmandade, restava dar um fim próprio ao edifício do convento e à cerca. O edifício estava
ocupado pelas pupilas do convento. Apesar da lei de 1834 não permitir a entrada de novas
freiras, ela era torneada com a admissão de “pupilas” ou “irmãs de caridade”, esperança vã de
manter o convento. Mas a resposta não se fez esperar. A 26 de Janeiro de 1887, o Ministério da
Fazenda mandou que as pupilas saíssem do convento apenas com os seus objectos pessoais.
Após a expulsão das pupilas, o Estado não soube muito bem o que haveria de fazer ao
edifício. Surgem por iniciativas exteriores ao Ministério da Fazenda propostas de reutilização do
edifício. A primeira vem da Condessa de Sampaio e de outros moradores da zona que
requerem, a 27 de Dezembro de 1889, o edifício do convento para aí ser criado um instituto de
assistência operária. O Ministério e Secretaria de Estado da Fazenda concede o edifício a título
provisório, à excepção das partes concedidas à Irmandade por decreto de 25 de Abril de 1889,
desde que sejam aprovados os estatutos e fundada a dita sociedade, para que o poder
legislativo delibere a concessão definitiva. No entanto, talvez por desmembramento da dita
sociedade, o edifício permaneceu sem função definida.
A 14 de Maio de 1891, surge uma nova proposta. O Secretário dos Negócios do Reino
propõe ao Director Geral dos Próprios Nacionais a conversão do edifício do extinto convento das
flamengas num novo quartel da Guarda Municipal, já que o de Alcântara era insuficiente para o
crescente número de praças e cavalos. O edifício é considerado ideal devido à sua cerca própria
para a construção das cavalariças.
Contudo, a reutilização definitiva do edifício dá-se a 3 de Setembro de 1891 com o auto de
posse concedendo a cerca e o edifício do suprimido convento de Nossa Senhora da Quietação
ao Instituto Ultramarino, instituição criada pelo Decreto de 11 de Janeiro de 1891 destinado à
protecção das famílias dos oficiais e praças da armada e dos exércitos do Continente e das
Províncias Ultramarinas e dos funcionários civis que ficaram desprovidas de meios por terem os
seus chefes falecido ao serviço do Estado nos territórios portugueses de África, Ásia e Oceânia.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

Ficaram apenas excluídas as partes entregues à Irmandade. Muitos dos móveis do convento
foram fornecidos ao outro edifício da instituição, o antigo convento de Sant’Ana. As antigas
dependências do convento foram divididas em casa individuais para as famílias dos oficiais
mortos nas colónias, vivendo aí, ainda hoje, os seus descendentes.
A cerca conventual era muito apetecida pelo seu valor imobiliário numa cidade que cada vez
mais crescia. No entanto, por dois anos não se soube o que se lhe haveria de fazer. Só a 24 de
Maio de 1889 é que a 2ª Repartição da Direcção Geral dos Próprios Nacionais propôs que a
cerca do convento fosse dividida em pequenos talhões pois os terrenos eram muito disputados
para a construção, sendo a sua venda mais proveitosa para a Fazenda Nacional.
No entanto, este “loteamento” não se concretizou até ao dia 4 de Maio de 1891, quando o
Inspector da Fazenda pediu à Repartição da Fazenda do 4º Bairro que dividisse a cerca do
convento em talhões. A Repartição respondeu que iria medir, dividir em lotes e marcar a
passagem de uma nova rua.
Mas a 3 de Setembro de 1891 a cerca passa, juntamente com o edifício, para o Instituto
Ultramarino, ficando a partir daqui todo o convento redistribuído. O Estado deu assim, no
entender da época, o melhor destino a cada uma das parcelas do convento. Apesar do
património que se perdeu, temos de admitir que a solução, longe de ser boa, foi
incomparavelmente melhor e mais bem organizada do que as conturbadas extinções de 1834.

5.3. INTERVENÇÕES E ACTUAIS PROBLEMAS


A primeira preocupação do Instituto Ultramarino foi transformar as antigas divisões em casas
habitáveis e independentes, albergando cada uma delas uma família. A partir daí as
intervenções têm sido nulas. Na década de trinta, habitavam no convento vinte e quatro famílias
e só em 1961 se procede a uma alteração mais significativa devido à ruína e derrocada da velha
abóbada em tijolo em dois locais distintos [AHCML, Obra n.º 15401, Processo 580/1/61, fls. 1 a
6]. Esta foi demolida e substituída pois não oferecia qualquer segurança às famílias que aí
residiam.
Da parte que a Irmandade ficou detentora a obra mais significativa foi em 1947 com a
demolição da antiga Casa da Irmandade e Casa dos Capelães para permitir a passagem da rua
Leão de Oliveira [AHCML, Obra n.º 15401, Processo 1655, fl. 2]. A salvaguarda desta parcela
não foi possível devido ao seu estado avançado de ruína. A ideia inicial que assistiu a esta
demolição foi a de substituir a velha dependência por uma escola infantil que utilizaria a cerca

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

do convento para recreio. No entanto, o projecto foi considerado “inconveniente” e aproveitou-se


o terreno para a construção imobiliária.
No recheio artístico propriamente dito, a única intervenção que foi feita consistiu no restauro
dos azulejos da nave por volta de 1966. Estes encontravam-se dispersos, trocados, quebrados e
foram restaurados pela Fábrica de Louças Viúva Lamego. É provável que tenha havido algumas
reintegrações e cópia de azulejos perdidos. Isto levou Santos Simões a dizer que ultimamente,
em 1966, foi a igreja sensivelmente transformada nomeadamente com a colocação, na nave, de
um silhar de azulejos imitando os que se encontram na capela mor [Santos Simões, 1971,
p.104]. Discordamos inteiramente desta afirmação pois o programa iconológico e simbólico dos
medalhões é de tal forma complexo e coerente que seria impossível ser fruto de um revivalismo.
No decorrer destas obras procedeu-se ao levantamento das sepulturas que iam desde o coro
à capela mor sob a forma de um passadiço central tendo-se colocado as sete sepulturas na
retaguarda do templo, estando actualmente tapadas pelos confessionários o que impede a sua
leitura e visualização dos azulejos.
Mais recentemente, dois quadros do programa do Caminho da Perfeição de Bento Coelho da
Silveira foram restaurados pelo Atelier de Maria Antónia Costa para figurarem na exposição
patente ao público no Palácio da Ajuda. Falta agora alargar este restauro às restantes telas do
programa da Capela de João Vanvessem.
Como podemos observar, as intervenções pautam-se pela completa inexistência o que leva a
um acumular de problemas no edifício. Neste último capítulo do nosso trabalho iremos dar um
ponto da situação actual (1998) para que sirva de fonte a futuras investigações.
O problema principal prende-se com a instalação da Ponte 25 de Abril precisamente por cima
do convento, num total desrespeito pelo monumento, pela sua integração no espaço, pelo seu
passado e pelo seu presente pois continua a ser a moradia dos últimos descendentes dos
oficiais mortos no Ultramar. Este facto origina uma constante trepidação que se ouve em todas
as dependências do convento, particularmente na Sala do Rosário.
As obras de instalação do combóio na ponte, levaram à queda de constantes poeiras que
taparam os algerozes. Com as chuvadas rigorosas do Inverno de 1997/8 estes entupiram e a
água infiltrou-se na magnifica Sala do Rosário, tendo escorrido pelas telas.
Devido a isto, o telhado foi limpo pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais,
contudo, no decorrer desta intervenção, rompeu-se uma das telas triangulares com um anjo.
O segundo problema do Convento das Flamengas prende-se com o programa pictórico de
Bento Coelho da Silveira alusivo ao Caminho da Perfeição. Este programa composto

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

actualmente por dez telas de vários tamanhos encontra-se totalmente disperso pelo convento e
em risco de se perder. Algumas telas apresentam rompimentos, lacunas e sujidade o que
agrava o seu estado de conservação. Assim, com a publicação deste estudo e com a tomada de
consciência da importância deste conjunto, seria de todo conveniente restaurar as telas que
ainda não o foram e colocá-las no seu local original para readquirirem a totalidade na leitura.
O terceiro problema consiste na quantidade de pintura que se encontra acumulada numa
pequena dependência do convento, alguma dela de grande qualidade como uma Santa Catarina
de Siena de Bento Coelho da Silveira (?), uma Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães,
datada de 1649, e outras telas de menor qualidade, provavelmente pintadas pelas próprias
freiras. Algumas destas encontram-se rotas, com fungos e sem estarem à vista. A solução para
este problema passa, sem dúvida, pela retirada destes quadros daquele cubículo e colocá-los
numa sala mais apropriada. No entanto, a Irmandade não detém qualquer sala disponível, nem
mesmo possui sala própria. A solução passa por isso na ampliação do espaço ocupado pela
Irmandade, criando uma sala para as suas reuniões, escritório e colocação dos quadros. A
melhor hipótese reside na cedência pela Direcção Geral do Património que é detentora das
casas do convento, de uma das residências, em especial a que pega com a Sala do Rosário no
antigo dormitório.
Finalmente, o quarto grande problema está no coro alto, em particular na pintura mural da
parede. Devido ao mesmo problema de infiltrações humidade, esta está a desprender-se
havendo já grandes lacunas. Apesar desta divisão ser a nível artístico de um plano secundário,
não merece por isso menos cuidado que as outras sendo também urgente aí uma intervenção.
Além disto, não é de descurar que por baixo desta pintura “menor” setecentista, não haja pintura
de grande qualidade seiscentista. Veja-se a este propósito a recente descoberta na capela-mor
da igreja do Convento de Santa Marta.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

6 CONCLUSÃO
O Convento das Flamengas constitui um exemplo da riqueza patrimonial de Portugal e da
Lisboa pré-pombalina que permanece no mais profundo desconhecimento. Longe de tudo se ter
perdido com o Terramoto de 1755, com a conturbada situação política do século XIX ou com a
negligência e incompetência do século XX, subsistem na capital valiosos exemplares da arte
maneirista e barroca.
Como observámos ao longo deste estudo, o Convento das Flamengas foi um importante
monumento na Lisboa filipina, tendo o seu simbolismo sido reaproveitado pelos Braganças.
Além deste valor ideológico, o Convento das Flamengas guarda valiosos contributos do
chamado “Barroco Nacional”. A “Sala do Rosário”, valiosa obra de arte total intacta, e a capela
do velho flamengo João Vanvessem, com pinturas de primeira água do pintor bento Coelho da
Silveira, são peças que levam à reflexão quanto aos injustos critérios que levaram à depreciação
da arte seiscentista em Portugal.
Além disto, os painéis de azulejos da igreja constituem um valioso contributo do século XVIII
pela complexidade da mensagem e dos símbolos empregues. Trata-se, sem dúvida, de um dos
mais complexos conjuntos iconológicos do país, concebido pelas freiras flamengas em ambiente
erudito, e de difícil interpretação pelo observador. Constituem obras de arte que nos levam à
curiosidade, à investigação e ao doce sabor da descoberta.
Por este motivo, o Convento das Flamengas merece uma maior atenção e cuidado, para que
um tão valioso património não se perca pela repetição dos erros do passado. Urge restaurar a
Capela de João Vanvessem devolvendo-lhe a primazia que em tempos teve na Lisboa de D.
Pedro II. Urge dar uma reutilização ao Convento, sem condições de habitabilidade para as
famílias que lá se encontram, podendo ser reconvertido, à semelhança do Convento das
Bernardas, em habitação com qualidade associada a um polo cultural evocativo da longa
amizade Portugal / Holanda, onde o acolhimento das freiras de Alkmaar e a vida de João
Vanvessem constituem capítulos fundamentais.
Pretendemos, acima de tudo, que esta monografia seja um primeiro passo para a
redescoberta dos Conventos de Lisboa, da sua História, do seu património e da sua arte, pelos
lisboetas, recuperando, um pouco, aquele laço de séculos que em tempos vigorou entre
comunidade religiosa e comunidade leiga.

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João Miguel Simões O Convento das Flamengas ao Calvário

FONTES / BIBLIOGRAFIA

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Chancelaria de D. Filipe I
Livro 4, fl. 80. Padrão de duzentos mil réis de Juro de Gonçalo Pires de
Carvalho
Livro 11, fl. 363 Alvará de Segurança de Arras de Gonçalo Pires de Carvalho
Livro 18, fl. 231 Carta de Provedor de Todas as Obras Reaes de Gonçalo
Pires de Carvalho
Livro 30, fl. 18vº Alvará de vedor das Obras de Mazagão de Gonçalo Pires.

Chancelaria de D. Pedro II
Livro 26, fls. 455 e 455vº. Alvará de Ordenado de João Vanvessem.
Livro 49, fl. 357. Carta de Conselheiro de João Vanvessem.
Livro 64, fl. 4vº. Carta de Conselheiro de João Vanvessem

Registo Geral de Testamentos


Livro 39, fls 121 v a 124. Testamento do Simão Granaet
Livro 43, fls. 163 a 167 Testamento de Manoel da Silva Louzado
Livro 103, fls. 138v a 141. Testamento de João Vanvessem.
Livro 156, fls. 87 a 93. Testamento de António Luís de Cordes.

Desembargo do Paço, Corte Estremadura e Ilhas


Maço 2029, Doc. Nº. 5 Convento de Nossa Senhora da Quietação das
Religiosos Flamengas de Alcântara, 1770.

Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa


Obra n.º 15401

Arquivo Histórico da Irmandade de Nossa senhora da Quietação


Compromisso da Real Irmandade de Nossa Senhora da Quietação sito no Convento das
Religiosas Flamengas em Alcântara, Anno 1793.

Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas

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Direcção de Edifícios Públicos e Fornecimento de Materiais


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Direcção de Obras Públicas do Distrito de Lisboa


Mapa das despesas com obras em edifícios Públicos e Paços Reais, 1902-
1908, DOP Lisboa 2

Biblioteca Nacional de Lisboa, Secção de Reservados


Compromisso da Confraria das Sanctas onze mil Virgens, Erigida por a Excellentíssima
Soror Maria da Crus, Abbadessa deste convento das Flamengas de Alcântara, ano 1658
COD 7797, F 4697

Flamengas, Convento das, Aniversário de falecimentos (em holandês e português),


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Flamengas, Convento das, Lembrança das obrigações da casa das abadessas, COD
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