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A EVOLUÇÃO DOS PROCESSOS DE

TRABALHO E A NATUREZA DA
MODERNA AUTOMAÇÃO
BENEDITO RODRIGUES DE MORAES NETO*

A reflexão aqui desenvolvida tem como ponto de automação. Minha tentativa será de discutir a questão a
partida a perplexidade ocasionada pelo revoluciona- partir dos diferentes "tipos"de processos produtivos
mento que atinge atualmente os processos produtivos industriais.
de natureza industrial. Afinal, encontramo-nos no final Vejamos inicialmente o que se passa na indústria
do Século XX (para Hobsbawn, até já deixamos o chamada de fluxo contínuo. Esse ramo industrial, antes
Século XX), e, neste momento da História, a automa- da automação de base microeletrônica, já havia
ção ainda consegue causar espanto (refiro-me à auto- alcançado um nível bastante avançado de automação.
mação de base microeletrônica). A mim assusta que a Para esclarecer esse aspecto, vale citar um trecho de
automação ainda assuste. Qual a razão pela qual, na um trabalho de docentes do Departamento de Enge-
transição para o Século XXI, a humanidade ainda nharia de Produção da Universidade Federal de São
consegue não só se assustar, como defrontar-se com Carlos:
sérios problemas para resolver, advindos da automa-
ção? Digo isto porque a automação, de acordo com as "Por suas características, a indústria de processo
características que veremos a seguir, é uma coisa bas- contínuo representa o estágio mais avançado, a
tante conhecida da humanidade. Para entender, portan- vanguarda mesmo, do processo de automação indus-
to, o susto pregado pela automação, no final do Século trial e gradativamente outros tipos de indústria vêm
XX, é necessário buscar os determinantes do caráter se assemelhando a ela devido ao aumento dos níveis
revolucionário da nova tecnologia, no caso a microele- de integração, interdependência e continuidade dos
trônica. Para tanto, tenho procurado, em alguns textos, processos produtivos (...) ". (Ferro, J.R., Toledo, J.C.
colocar de forma correta a caracterização da natureza & Truzzi, oms, sd).
específica dos processos produtivos industriais, evi-
A observação final do texto citado é crucial, carac-
tando aquilo que é bastante comum na literatura, qual
terizadora da indústria de fluxo contínuo: 'integração,
seja, o tratamento da indústria como algo homogêneo,
interdependência e continuidade'". A essa citação vou
Minha posição, desenvolvida em texto recente (Moraes
adicionar uma outra, do prof. Afonso Corrêa Fleury,
Neto, 1995b), é que, dentre os setores industriais
que nos esclarece o fato de que a automação de base
relevantes, a indústria metal-mecânica é responsável
microeletrônica estaria fazendo com que os diferentes
pelo caráter revolucionário da nova tecnologia. Isto é
setores industriais caminhassem no sentido de virem a
desdobramento de minha Tese de Doutoramento
ter uma natureza técnica análoga à já assentada para a
(Moraes Neto, 1989) e também de outras reflexões. O
indústria de fluxo contínuo:
que se procura é superar uma visão muito difundida,
na qual a introdução da tecnologia de base microele- "A tendência atual é uma concepção de sistemas em
trônica nos processos produtivos industriais é tratada fluxos para praticamente todos os tipos de produção,
de uma forma genérica, como se toda a indústria fosse mesmo quando as quantidades a serem produzidas
impactada de forma extremamente relevante pela nova são pequenas". (Fleury. A.C.C, 1985).

* Economista, professor do Departamento de Economia da UNESP/Araraquara.

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Os demais setores industriais podem, portanto, a natureza eletromecânica), o fundamental já estava


partir da automação de base microeletrônica. olhar a posto: o ser humano deixa de ser a unidade dominante
indústria de fluxo contínuo como a imagem de seu do processo de trabalho. Marx chega a dizer até que o
próprio futuro. Nesse sentido, o processo contínuo é processo de produção deixara de ser um processo de
paradigmático, dada sua já consolidada capacidade de trabalho, no sentido de que o trabalho deixara de ser
apresentar "integração, interdependência e continuida- sua unidade dominante. O processo de trabalho torna-se
de"dos processos produtivos, sob uma base técnica cientificizado, a máquina toma para si as atividades de
anterior à microeletrônica. A automação de processos produzir, de transformar as coisas, deixando ao ser
nessa indústria é já bastante desenvolvida sob a forma humano uma função apendicizada. Surge, portanto, a
pneumática. É evidente que a automação desses pro- famosa idéia de apendicização do homem ao sistema de
cessos pela via microeletrônica representa um avanço máquinas. O trabalho torna-se desqualificado, posto
sensível, um progresso, mas dentro de um mesmo que, de forma abrupta, sobre uma referência histórica
caminho já assentado há muito tempo. Fazendo uma de qualificação, lastreada no trabalho artesanal, manti-
tentativa de comprovação lógica dessa assertiva, vale da em grande medida sob a manufatura, introduz-se a
lembrar que é recorrente na literatura a idéia de que os produção objetivada e o trabalho torna-se um apêndice
processos produtivos de natureza discreta, especial- da máquina. Radicaliza-se, portanto, a divisão entre o
mente a metal-mecânica, com a nova automação ten- trabalho intelectual e o trabalho manual, através da
dem a adquirir um caráter análogo à indústria de fluxo utilização do conhecimento da natureza para a cons-
continuo, a qual, como vimos, caracterizaria, mesmo trução do sistema de maquinaria; a produção passa a
sob base técnica anterior, a imagem do futuro da constituir-se numa aplicação tecnológica da ciência.
indústria em geral. Ora, uma indústria que caracteriza, Todavia, vale ressaltar um aspecto referente à natureza
em seu passado recente, a imagem do futuro da indús- do trabalho sob a maquinaria para Marx: o trabalho não
tria como um todo, a partir da incorporação da auto- é apenas desqualificado, mas também, e funda-
mação de base microeletrônica, não pode ser mentalmente, supérfluo. Há, portanto, um movimento
fortemente impactada por esta mesma automação. É de superfluidade do trabalho imediatamente aplicado à
necessário ter em conta que não nego o avanço repre- produção, significando que ele pode ser substituído
sentado pela incorporação da nova automação nas com relativa facilidade por uma inovação adicional. Já
indústrias de fluxo contínuo; o que questiono é seu na manufatura, todavia, e Adam Smith preocupava-se
caráter revolucionário. com isso, havia desqualitlcação do trabalho, só que a
desqualitlcação não significava que o trabalho havia se
Outro setor relevante da indústria, não só por ra-
tornado supérfluo. Por mais desqualificado que fosse o
zões históricas, como, para mim em especial, por ra- trabalho de natureza parcelar característico da manufa-
zões teóricas, é a indústria têxtil. Foi essa indústria que tura, ele continuava se constituindo na unidade domi-
forneceu a Marx a visão da forma do ajustamento dos nante da produção. A indústria têxtil, portanto, permitiu
processos de trabalho às necessidades do capital. A a Marx, já no Século XIX, a visualização da forma
indústria têxtil do Século XIX possibilitava a Marx mais avançada da produção capitalista, a produção
olhar (e não antever, como gostam alguns) a forma cientificizada, realizada sob a égide da maquinaria.
teoricamente já acabada da máquina. Em outras pala- Ora, se nós verificarmos o que ocorreu com a indústria
vras, em termos de relacionamento dos elementos têxtil desde então, até os momentos mais recentes,
subjetivos e objetivos do processo de trabalho, já esta- incluindo todos os avanços tecnológicos havidos antes
va pronta e acabada a forma mais avançada da produ- da introdução da microeletrônica, vamos observar um
ção, significando a retirada das ferramentas das mãos movimento permanente de reforço de uma tendência já
dos trabalhadores e sua colocação numa engrenagem assentada. Por exemplo, recentemente houve a
comandada pelas forças da natureza. É nesse sentido introdução dos teares sem lançadeira, nos quais o fio é
que Marx trabalha o conceito de automação. Muito lançado através de pinças, de jatos d'água ou jatos de
embora saibamos hoje que se tratava de uma automa- ar, e dos filatórios "open-end". permitindo que, na
ção simples do ponto de vista tecnológico (e a auto- vigência da tecnologia de base eletromecânica,
mação é sempre simples, desde que mantenha sua

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a têxtil conseguisse desenvolver à perfeição a idéia de derna automação. Espero fazer jus à observação de
grande autômata que havia inspirado Marx. Sendo Cláudio Salm.
assim, o que teria ocorrido com a indústria têxtil, a A questão do impacto revolucionário da automação
partir da introdução da microeletrônica? De forma de base microeletrônica será tratada a seguir em dois
análoga ao que já se colocou para a indústria de fluxo níveis: no nível da famigerada linha de montagem que
contínuo, teria ocorrido um avanço, com a sofisticação nos levará a Taylor e a Ford, e no nível dos processos
dos processos de controle e a possibilidade de flexibi- mecânicos de fabricação, que nos levará às máquinas-
lização de padrões através do uso de CLPs, mas, ferramenta universais (MFU). Nada mais típico de uma
acredito, um avanço muito distante de um revolucio- planta metal-mecânica do que uma linha de montagem
namento. Nesse caso, fazemos nossas as palavras de e uma retaguarda de máquinas-ferramenta voltadas à
José Ricardo Tauile, que afirma o seguinte: fabricação mecânica. Iniciarei meus comentários pela
linha de montagem, segundo a ordem cronológica da
"No caso do setor têxtil o uso de dispositivos mi-
entrada desses dois momentos da produção industrial
croeletrônicos não altera a organização da produ-
em minha trajetória de pequisador.
ção radicalmente. Apenas acentua a tendência já
preexistente, mesmo na base eletromecânica, de as- Ao estudar o processo de trabalho à época do lan-
semelhá-la a um fluxo continuo de produção. çamento no Brasil do conhecido livro de Braverman
(Tauile. J.R. 1987) (Braverman, H., 1977), eu lia, além do próprio Bra-
verman, os capítulos pertinentes do Capital, de Marx e
Façamos agora um exercício bastante conhecido
alguns outros autores, como Coriat, por exemplo
dos economistas, que costumam denominá-lo de esta-
(Coriat, B., 1976). De repente, comecei a sentir que
belecimento de um "pressuposto heróico": suponhamos
alguma coisa não se "encaixava"; Coriat, por exemplo,
que a humanidade somente tivesse desenvolvido as
dizia o seguinte: Taylor havia posto em prática, efeti-
indústrias têxtil e de fluxo contínuo. De repente,
vado, coisas que Marx havia antevisto no Século XIX.
introduz-se a microeletrônica nos processos produti-
Atraiu-me a atenção, num primeiro momento, o fato de
vos. Tem-se como conseqüência um progresso, um
que a problemática de Taylor era a problemática da
avanço, mas nada de assustador, nada que causasse
dependência do capital frente à habilidade do trabalho
espanto e polêmica a respeito dos impactos da microe-
vivo, coisa que se depreende da célebre luta de Taylor
letrônica sobre o conteúdo do trabalho, e mesmo preo-
contra os torneiros mecânicos da Midvale Steel Works.
cupação com a questão do emprego. Isto porque o
Taylor havia sido torneiro (aliás bastante atípico, pois
nível de automação alcançado sob a base técnica pre-
de origem não-proletária), e dessa forma havia se
térita já era muito avançado. Então, se é assim, é pre-
informado das formas usadas pelos trabalhadores para
ciso buscar o "locus" responsável pelo caráter
controlar o ritmo de trabalho, escondendo do capital as
revolucionário da nova automação, no que se refere ao
peculiaridades do processo de trabalho. Para ilustrar
processo de trabalho. É importante realçar que toda a
esse fato, eu usei num texto a imagem de uma "redoma
reflexão aqui desenvolvida está centrada nos impactos
de vidro" que protege o trabalhador com seu saber das
da introdução da microeletrônica sobre os processos de
investidas do capital. (Moraes Neto, B.R.,1987)
trabalho, fazendo-se portanto abstração de outros
efeitos da microeletrônica, particularmente no nível Esta "redoma" adquiriu seu máximo desenvolvi-
gerencial. mento quando da etapa da subordinação formal do
trabalho ao capital, quando o trabalhador estava im-
Ao chegar neste ponto do raciocínio, ocorre-me
pregnado de savoir-faire (saber fazer). Há, portanto, no
uma observação de Cláudio Salm, na apresentação de
momento do surgimento de Taylor, na virada do século
meu livro Marx, Taylor, Ford: as forças produtivas
XIX para o Século XX, um ressurgimento dessa
em discussão, quando afirma que, ao tratar daquela
problemática. Todavia, esse fato apenas não se
forma particular os fenômenos do taylorismo e do
constitui num problema teórico significativo, porque
fordismo, eram gerados elementos que permitiam
poderia estar ocorrendo apenas um retardo temporal
caracterizar melhor a natureza revolucionária da mo-

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no ajustamento dessa atividade industrial ao princípio quinematômetro exoesqueletal, e eu tive acesso ao


da maquinaria estabelecido por Marx a partir da têxtil, texto no qual é relatada essa experiência; tratava-se de
quando então o capital se independentiza do trabalho um texto de uma revista de engenharia de produção, e
vivo. A siderurgia, por exemplo, na virada do século, não de medicina, dado que seria um trabalho muito
ajusta-se às determinações já postas por Marx, com a interessante para efeito de prótese. (Ramsey,
introdução do forno Siemens-Martin. (Stone, K., J.D.,1968). O que se faz é uma analogia entre as partes
1975) do membro superior humano com figuras geométricas,
O mais interessante, no caso de Taylor, não é tanto aplicando-se análise fatorial, com o objetivo de sofisti-
o problema, mas a forma de solução. A forma de solu- car a visualização dos movimentos do ser humano.
ção do problema para Taylor não implicou na introdu- Isto não me parece nada parecido com o que Marx
ção da máquina, máquina essa que significa falara; Marx não dissera nada semelhante a essa pers-
objetivação do processo de trabalho, que significa a crutação do homem como instrumento de trabalho.
incorporação tecnológica da ciência, mas sim a tenta- Como desdobramento das proposições de Taylor
tiva de manter o homem trabalhando com as ferramen- veio a linha de montagem; a literatura sempre consi-
tas e. ao mesmo tempo, "sugar-lhe o cérebro". As derou que Ford, ao desenvolver a linha de montagem,
informações provenientes dessa "sucção" dirigem-se realizou um desenvolvimento criativo do taylorismo. A
ao escritório, e de lá surgem as prescrições acerca dos leitura das experiências desenvolvidas por Henry Ford,
movimentos que o trabalhador deve efetuar, as famo- por ele mesmo descritas (Ford, H., 1926), teve o efeito
sas prescrições de tempos e movimentos. A proposição de reforçar minha perplexidade. Ao relatar as
de Taylor significava uma tentativa de transformar o experiências por ele desenvolvidas, a partir de 1913,
homem numa máquina, e não de substituir o trabalho para dar conta do desafio de produzir em massa um
humano pela máquina. Esclarecido esse ponto, achei produto fruto da montagem (à época, o automóvel
que isto não tinha nada a ver com Marx, pois, enquanto possuía cerca de 5000 componentes), Ford descreve
ele observava um processo de trabalho ajustado aos com clareza a natureza da linha de montagem. Diz ele
interesses do capital mas que, de forma contraditória, que cada trabalhador deve ficar parado, e o trabalho
apontava para uma forma social superior, a tentativa tem que vir até ele, que deve fazer, de preferência, um
de transformação do homem em uma máquina é ex- só movimento durante todo o tempo. Fica claro tam-
tremamente iníqua, independentemente da forma so- bém a importância do parcelamento das tarefas para o
cial. Além de iníqua, é medíocre. aumento da produtividade do trabalho. Temos, portan-
Marx havia colocado, de forma extremamente fe- to, a manutenção do trabalho manual e o recurso ao
liz, que o ser humano é "um instrumento muito imper- parcelamento das tarefas para a elevação da produtivi-
feito de produção quando se trata de conseguir dade; além disso, as experiências são feitas na oficina,
movimentos uniformes e contínuos". O que Taylor e a oficina é o laboratório dos experimentos, caracteri-
seus discípulos fazem é levar ao paroxismo a tentativa zando um processo de trabalho de natureza empírica.
de extrair desse imperfeito instrumento de produção Todos esses elementos, cotejados com a natureza da
movimentos uniformes e contínuos. Uma sofisticação manufatura, levaram-me à colocação de que a linha de
da tentativa de Taylor foi efetuada por seu discípulo, montagem tratava-se, na verdade, de uma reinvenção
Frank Gilbreth, que criou os chamados therbligs, que da manufatura, e não de aplicação de maquinaria. Essa
seriam medidas dos tempos e movimentos, ainda que idéia é até hoje bastante polêmica.
de forma discreta. Posteriormente, houve a introdução Já disse em outro momento, somente para reforço
de equipamentos que pudessem medir esses movimen-
do argumento, que Marx levaria um grande susto se
tos de forma contínua, e não mais discreta. Existe,
alguém lhe mostrasse a linha de montagem da indústria
inclusive, no livro de Braverman, uma referência a um
automobilística como caracterizadora da produção
equipamento desenvolvido para medir as característi-
industrial moderna (Moraes Neto, B.R., 1995 a). Ele
cas cinemáticas dos membros superiores do ser huma-
provavelmente diria que havia descrito em seus traba-
no. O nome dessa "geringonça" é muito esquisito:
lhos a forma por excelência da produção capitalista

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como aquela que punha a seu serviço as forças da uma porta que nos levasse do passado para o futuro,
natureza, e não que punha trabalhadores ao lado uns coisa evidentemente assustadora.
dos outros realizando movimentos repetitivos. Continuemos com os sustos pregados em Marx
Vale ressaltar que, como já se colocou para o caso pela indústria metal-mecânica no século XX. Cami-
da proposta de Taylor, a solução fordista, a linha de nhemos em direção à ferramentaria; aí, o ferramentei-
montagem, caracteriza algo imanentemente iníquo, ro, trabalhando com uma máquina-ferramenta
perverso. Marx referia-se à maquinaria como algo que universal, tem uma atividade de trabalho muito mais
a sociedade poderia (melhor seria dizer deveria) apro- parecida com a de um artesão do que com a de um
veitar numa situação futura, para além dos limites trabalhador apendicizado à máquina, segundo a con-
postos pelo capital. Já essa coisa medíocre que é colo- cepção de Marx. O interessante é que Marx era um
car homens ao lado uns dos outros fazendo entusiasta do desenvolvimento ocorrido no torno; ele
movimentos repetitivos é imanentemente iníqua, inde- diz que o slide-rest (descanso deslizante) fornecia ao
pendentemente da forma social, quer seja capitalista, tomo a mesma natureza que ele havia observado para
quer seja socialista (que nesse caso mereceria aspas). o caso da máquina têxtil. Todavia, como o torno com
Enfim, é como se a humanidade, no sentido das slide-rest não desapareceu, sendo utilizado até nossos
atividades produtivas, houvesse trilhado um caminho dias, foi possível conhecer com profundidade muito
não previsto por Marx, caminho esse não trilhado pela maior sua verdadeira natureza, o que nos é esclarecido
indústria têxtil e de fluxo contínuo, como já vimos, muito bem pela seguinte colocação de José Ricardo
mas sim fundamentalmente pela indústria metal- Tauile:
mecânica. Esse caminho aberto por Ford trouxe inú-
"Devido às freqüentes mudanças do produto de seu
meros problemas ao longo do tempo, inclusive para a
trabalho (pequenas séries, lotes e peças sob enco-
classe operária, pois um processo de trabalho atrasado
menda), os oficiais mecânicos precisam ter muita
pode muito bem ter colocado também questões atrasa-
destreza manual e experiência prática que se acumu-
das à luta do proletariado. É necessário deixar claro
lam através do tempo, tornando-se profissionais
aqui que, quando me refiro à linha de montagem como
melhores e mais valorizados. Junto à máquina-
atraso não quero dizer que se pudesse ter feito de outra
ferramenta, recebem de seus supervisores diretos os
maneira. Evidentemente não se poderia, pois a monta-
desenhos e instruções e dos serviços de apoio as pe-
gem só pode ser realizada sob o princípio da maqui-
ças em bruto e as respectivas ferramentas, carnes e
naria, a partir da introdução de robôs, coisa que em
dispositivos. Interpretam os desenhos, estudam as
nossos dias ainda é feita com dificuldades. A noção de
instruções e revêem o ferramental afim de verificar
um processo de trabalho avançado ou atrasado é de
se, de acordo com seu conhecimento prático e sua
ordem teórica, e tem referência em Marx, significando
própria conveniência, devem ser alterados ou cor-
a natureza do relacionamento que existe entre os ele-
rigidos (...). Após exercer suas habilidades quanto à
mentos subjetivo (homem) e objetivo (meios de pro-
concepção do próprio trabalho, eles passam efeti-
dução) no processo de trabalho.
vamente a executá-lo. Quando então fixam a peça e
A consideração da linha de montagem como uma as ferramentas na máquina, acionam alavancas,
reinvenção da manufatura esclarece bastante bem a manivelas e demais comandos que estabelecem as
natureza revolucionária da nova automação. A substi- posições relativas entre a peça e a ferramenta, in-
tuição dos trabalhadores parciais do fordismo por troduzem as velocidades de avanço e de corte, ligam
robôs significa a passagem abrupta de um processo de o fluido refrigerante, etc, e, durante a usinagem, no-
trabalho lastreado no trabalho humano (parcial, des- vamente anos de experiência são necessários para
qualificado), portanto carente de qualquer automação, visualizar potenciais problemas e responder corre-
para um processo de trabalho caracterizado por eleva- tamente quando surgem. Uma pequena mudança na
díssimo grau de automação, de cientificização. Como cor do cavaco pode significar que uma peça inteira
disse certa vez alguém que assistia a uma exposição irá depenar, uma breve diferença no som da màqui-
minha, é como se tivesse ocorrido a transposição de

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na-ferramenta pode resultar em uma peça refuga-da". da a união das atividades de operação stricto sensu e
(Tauile, J.R., 1983) preparação/ supervisão numa só pessoa. Essa tendência
foi fortemente reforçada quando da introdução das
A utilização da máquina-ferramenta universal
máquinas-ferramenta de controle numérico computa-
(MFU) era, sob a base técnica eletromecânica, a única
dorizado (MFCNC), que, ao introjetarem o computa-
forma de se conseguir flexibilidade produtiva nos
dor, permitem que a atividade de programação seja
processos mecânicos de fabricação, flexibilidade essa
efetuada no "chão de fábrica". Passam então a ser
lastreada no ser humano, o qual transformava as in-
unificadas numa só pessoa as atividades de operação
formações contidas num desenho numa peça efetiva. O
stricto sensu, preparação/ supervisão e programação, o
trabalho junto à MFU é impregnado de skill, e, nesse
que exige um nível sem dúvida mais elevado de quali-
sentido particular, altamente qualificado1. Não é por
ficação do tipo knowledge. Esse movimento, no sentido
outra razão que, com a substituição da máquina-
contrário ao da divisão parcelar do trabalho, resforça-se
ferramenta universal (MFU) pela máquina-ferramenta
ainda mais em função da natureza integra-dora da
de controle numérico, surgiu um importante debate
tecnologia de base microeletrônica. Essa tendência
sobre a questão da desqualificação ou qualificação do
levará, num primeiro momento, à FMS (sistema
trabalho com a automação de base microeletrônica.
flexível de manufatura), que integra vários tipos de
Afinal, se se substitui, numa ferramentaria, por exem-
MFCNC, através do uso de robôs, e é comandada por
plo, o torno universal por um de controle numérico, faz
um computador central. Observa-se claramente que a
sentido discutir a questão da desqualificação; isto
atividade de operação stricto sensu torna-se cada vez
porque o torneiro tradicional estava impregnado de
mais supérflua, e as atividades passam a ser
qualificação do tipo skill. Tal questão não se coloca,
supervisionadas no sentido mais amplo por um
por exemplo, quando da substituição dos trabalhadores
programador versátil. A tendência é, portanto, de uni-
das linhas de montagem por robôs, posto que o traba-
ficação das funções numa única, caracterizada como de
lhador da linha de montagem é trabalhador desqualifi-
gerenciamento de um sistema técnico de elevada
cado, como já o reconhecia amplamente Henry Ford.
complexidade.
Não é difícil perceber que, no caso da substituição da
MFU pela MFCN, também é transposta a porta que A natureza sistêmica da nova automação levará fi-
nos leva abruptamente do passado para o futuro. nalmente a uma planta metal-mecânica que unifique
processos mecânicos de fabricação realizados em FMS
Vejamos um pouco mais de perto as conseqüências
com linhas de montagem robotizadas. Chega-se nesse
da introdução das MFCN. Foram evidentemente su-
caso à Manufatura Integrada por Computador (C1M),
peradas as decisões que anteriormente eram tomadas também conhecida como unmanned factory, magnifi-
pelo operador da MFU, pois elas agora estarão introje- camente ilustrada por plantas industriais que trabalham
tadas num programa. Considerando esse fato, e tendo 24 horas por dia sem iluminação. Dessa forma, a in-
em conta a divisão que se estabeleceu entre o trabalho dústria metal-mecânica ajusta-se, de maneira abrupta e
no "chão de fábrica" e o trabalho de programação, revolucionária, ao princípio estabelecido por Marx para
realizado no escritório, houve uma forte tendência na a indústria moderna; a microeletrônica permite portanto
literatura de considerar a ocorrência de um processo que esse segmento extremamente significativo da
de desqualificação do trabalho de operação. Todavia, indústria no Século XX dirija-se ao leito da automação,
foi possível observar que, muito embora as ações no qual já caminham há muito tempo outros segmentos
humanas necessárias ao nível da relação homem- da indústria, como já vimos para os casos das indústrias
produto tivessem se tornado amplamente desprovidos de fluxo contínuo e têxtil. Pode-se considerar esse leito
de conteúdo (trata-se, na verdade, de colocar o tarugo, agora comum da automação como o leito teórico
ligar a máquina e retirar a peça), atividade que pode- marxista, na medida em que é respeitada integralmente
mos chamar de operação stricto sensu, a atividade de a caracterização feita por Marx para a produção à base
preparação/supervisão exigia um não desconsiderável de maquinaria; a automação in extremis, com seus
grau de knowledge. Em função da absoluta ausência de trabalhadores em número reduzido e impregnados de
conteúdo da atividade de operação, tornou-se difundi- knowledge2 não nega a

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proposição marxista, mas significa, isto sim. o máximo FERRO, J R., TOLEDO, J.C., TRUZZI, O.M.S. Au-
desenvolvimento da idéia crucial da superfluidade do tomação e trabalho em indústria de processo con-
tínuo. Universidade Federal de São Carlos,
trabalho imediatamente aplicado à produção.
Departamento de Engenharia de Produção, mimeo,
O encaminhamento de toda a atividade industrial p. 22 (sd).
ao leito comum da automação recoloca com toda a FLEURY, A.C.C. Organização do trabalho na indús-
força a noção marxista da autocontraditoriedade do tria: recolocando a questão nos anos 80. In:
capital. Em pouquíssimas palavras, a prescindibilidade FLEURY, M.T.L. & FISCHER, R. M. (Coord.).
do trabalho vivo pela via da cientificização dos pro- Processo e relações de trabalho no Brasil. São
cessos produtivos faz com que deixe de ter sentido a Paulo, Atlas, 1985, p. 57.
divisão da sociedade em classes burguesa e proletária. FORD, H. Minha vida e minha obra. Rio de Janeiro -
Como afirma Donald Weiss em texto particularmente São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1926.
feliz, "na medida em que o desenvolvimento do capi- KAPL1NSKY, R. Electronics-based automation te-
talismo torna o trabalho manual cada vez menos ne- chnologies and the onset of system facture: impli-
cessário, as classes perdem seu propósito e seu cations for third-world industrialization. World
Development, 13 (3), Dez. 1985, p. 435.
objetivo histórico" (Weiss, D., 1976). Nesse sentido,
vale a seguinte pergunta: e no caso da base técnica MARX, K. O Capital. Coleção Os Economistas, Abril
taylorista/ fordista, como se coloca a natureza autocon- Cultural, 1983.
traditória do capital? A resposta é: não se coloca; a MORAES NETO. B.R. A organização do trabalho sob
forma taylorista/ fordista de organizar o processo de o capitalismo e a "redoma de vidro". Revista de
Administração de Empresas, FGV, 27 (4): 19-30,
trabalho não é contraditória ao capital enquanto rela-
Out/Dez. 1987.
ção social; pelo contrário, o taylorismo/fordismo
chancela a forma social capitalista. Uma forma técnica MORAES NETO, B.R. "Automação e trabalho: Marx
igual a Adam Smith?" Estudos Econômicos, IPE/
lastreada no trabalho humano, que induz ao emprego
USP, 25 (1): 53-75, Jan-Abr, 1995 a.
de milhares de trabalhadores parciais/ desqualificados,
MORAES NETO, B.R. Microeletrônica e produção
é perfeitamente assentada à forma social capitalista; o
industrial: uma crítica à noção de "revolução ge-
sonho da eternidade capitalista teria encontrado sua neralizada". Texto para discussão, nº 24, Depar-
base técnica adequada. tamento de Economia, UNESP/ Araraquara,
setembro de 1995 b.
Pois bem; como já vimos, a microeletrônica veio
permitir ao capital superar esse momento de mediocri- MORAES NETO, B.R. Marx, Taylor. Ford: as forças
produtivas em discussão. São Paulo, Editora Bra-
dade no nível das forças produtivas constituído pelo
siliense, 1989.
taylorismo/ fordismo. Sendo assim, numa terrível
RAMSEY, J.D. "The quantification of human effort
ironia, a História faz com que, justamente num mo-
and motion for the upper limbs", International
mento de crise aguda das experiências socialistas, seja journal of production research, Londres. 7(1): 47-
recolocada com toda a força a célebre contradição 59, 1968. Citado em Braverman, H. op. cit, p. 155.
entre forças produtivas e relações de produção. Real- SALERNO, M. "Automação e luta dos trabalhadores".
mente é difícil imaginar desafio maior do que adminis- São Paulo em Perspectiva, Fundação SEADE, 2
trar a exacerbação dessa contradição tendo ao lado os (3),jul.-set. 1988.
escombros do socialismo real. STONE, K. "The origins of job structures in the steel
industry", In: EDWARDS, R., REICH, M. e
GORDON, D. (Orgs.) Labor market segmentation,
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DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA 1996

tura e conjuntura. Rio de Janeiro, 1EI/ UFRJ, Abril


1987, p. 115.
WEISS, D. "Marx versus Smith on the division of
labor". Monthly Review, 28 (3): 104-18, jul.-ago.,
1976.

1
Em colocação feliz, Kaplinsky diferencia da seguinte forma
skill de knowledge: "... é necessário discutir brevemente a
relação entre skill e knowledge, que s ã o conceitos relaciona-
dos m a s não idênticos. Knowledge abrange o entendimeto de
um processo ou informação a um nível abstrato, tais como
aqueles que podem ser transmitidos a outro indivíduo de
forma igualmente abstrata. Como tal, o conhecimento deve
ser explicitamente racionalizado em termos abstratos que
possam ser prontamente entendidos - um processo que
passamos a conhecer como ciência e tecnologia Skill com-
preende um conjunto de experiências exercitadas, que pode
envolver não apenas a aquisição de conhecimento, m a s
também um grau maior ou menor de aptidão natural e regras
implícitas de operação. Skills s ã o adquiridos individualmente
e envolvem uma combinação de aprendizagem abstrata,
aptidão e experiência, m a s o mesmo não é verdadeiro para o
knowledge, que é essencialmente abstrato e menos indivi-
dualizado". (KAPLINSKY, R., 1985).
2
Uma ilustração bastante boa d e s s a tendência nos é forneci-
da por Mário Salerno "Na fábrica de motores da Ferrari na
Itália a introdução de FMS levou à redução de 100 para 9
trabalhadores (8 engenheiros e 1 operário propriamente dito),
mantendo-se o volume de produção". (SALERNO, M., 1988).

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