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O HOMEM E A SOCIEDADE

Quando Aristóteles diz que "o homem é um animal social" não diz apenas que ele nasceu para
fazer parte de uma sociedade, como a abelha (que necessariamente integra sua colmeia e dela
participa) nem apenas no sentido de que "precisa" da sociedade, sem a qual não teria
condições de expandir-se como indivíduo ou pessoa, mas indica também que o homem é um
animal cívico - é um cidadão - isto é, um ser que constrói sua sociedade e a integra como
participante de seu governo. A colmeia tem nas leis imutáveis do instinto de cada membro um
modo de ser invariável, repetido milenarmente, sem qualquer nota de originalidade e
inovação. O homem, ao contrário, é um ser inteligente e livre. Se traz em sua natureza uma
postulação que o incapacita de viver só, é ele que dá a figura própria da sua sociedade e
participa criativamente de seu governo, não só no comando executivo da sua busca do bem
comum, mas na elaboração das leis - Constituição - que especificam e colocam em altura
impessoal de compromisso de reciprocidade a feição própria da sua convivência.

      Essas leis são radicadas na lei natural, isto é, na natureza das coisas (sem o que não seriam
leis, mas exorbitância ou injustiça). Ou serão explicitações ou aplicações dessa lei natural,
definindo especificações concretas e particulares, que estabelecem "a união moral de muitos"
(causa formal da sociedade) em vista da ação unida para o bem comum (fim ou causa final da
sociedade).

      Assim, o conjunto desses animais cívicos, antes (se não no tempo, mas na ordem lógica) de
ser sociedade, será uma nação (habitantes de uma região) ou uma comunidade (gente da
mesma língua e dos mesmos hábitos tradicionais). Somente será uma sociedade quando os
membros se entenderem entre si, isto é, introduzirem, por uma iniciativa de inteligência e
criação, determinações jurídicas que precisem a reciprocidade de direitos e deveres para
trabalharem para um bem comum.

      Constituição é uma palavra adequadamente escolhida para nome de Lei Maior de uma
nação ou país, pois é ela que transforma um agrupamento humano, dando-lhe forma (isto é,
sendo sua causa formal) em sociedade civil. Ela constitui esse agrupamento como sociedade
civil, definindo direitos e deveres fundamentais, estabelecendo a unio moralis plurium, pelo
vínculo da reciprocidade que relaciona os membros entre si. Por isso, a Constituição - Lei
Maior - deve ser suficientemente estável e, quanto possível, generosa, para dar espaço à
criatividade e à variedade, que serão objeto de leis menores e regulamentos.

      Pensando ainda na precedência, não de tempo (será simultânea) mas de natureza,


devemos considerar como primeira participação cívica desse animal cívico na construção da
sua cidade a elaboração de sua Constituição. Esta será a base do relacionamento moral da
reciprocidade de direitos e deveres. Como na união física de um corpo animal, os diversos
membros - olho e ouvido, circulação e respiração - contribuem, cada um com sua tarefa
específica, para a riqueza e a unidade desse corpo; assim, no corpo social, a lei fixa a união
moral, isto é, os serviços e os benefícios com que cada membro contribui e coopera para sua
grandeza e unidade e delas se beneficia. E aí começa um processo, também natural, de
transferência ou transmissão de poderes.
      Entre as determinações constitucionais, sobreleva a relativa à forma de governo. Caberia
lembrar aqui que toda autoridade vem de Deus. Deus, contudo, governa as coisas inferiores
pelas coisas superiores. Ao homem, particularmente, deu a dignidade do ser, de ser pessoa, de
ser essa pessoa singular - mas também a dignidade do agir e do causar - de ser o homem
cívico. O poder vem de Deus, pelos homens. Afirmando que o poder vem de Deus, não
negamos ou invalidamos o aforismo consagrado "todo o poder vem do povo". Ao povo cabe
construir sua Constituição. Acontece, porém, que não existe uma emanação rousseauniana
que faz surgir num golpe mágico uma constituição. O povo precisa escolher e delegar poderes,
precisa instituir legisladores. A experiência nos mostra que, por mais legítima e
fundamentalmente radicada na natureza que seja a tarefa, o problema não deixa de ter
percalços (como terá, ainda maiores, na eleição do executivo). A vida democrática (uso a
palavra, embora saiba que anda poluída), como diz Maritain, precisa, ao lado dos partidos, de
uma presença de profetismo, isto é, de homens sábios e sensíveis que conclamem o povo para
grandes causas ou grandes idéias. E onde há profeta, não tardam a surgir os falsos profetas. E
fica o povo a eleger um grande cantor ou um ídolo esportivo (bons na arte própria, mas
analfabetos em leis) para deputados.

      É o grande risco da democracia. Risco já temido por Platão, mas quase incontornável. O
risco se agrava nos dias de hoje, por dois outros ingredientes que se instalam em nossa vida
social. O primeiro é a televisão que deu à propaganda uma penetração traiçoeira, cujo limite é
o dinheiro e cujo charme é a imagem, cujo risco de baixar o nível intelectual e humano pode
ser exemplificado pela escola do professor Raimundo. Esse risco se intercruza ultimamente
com a atividade política vista como emprego de pequeno trabalho e grande salário. E isso se
alargando pelas câmaras de vereadores de pequenas cidades, que não só consomem suas
receitas como poluem a atividade política. Em terceiro lugar, o populismo, no seu lado mau,
que não só conduz às câmaras o cantor e o bom de bola, mas chega ao bicheiro e ao
contrabandista, que são exímios na arte de fraudar.

      Há dias, um de nossos grandes juízes escreveu um artigo, postulando uma formação
acadêmica para a atividade política. Ninguém exerce medicina ou engenharia, dizia ele, sem
uma titulação obtida em universidade. O cidadão é eleito para legislar sem qualquer formação
que o torne idôneo para o mister. Não penso que esse seja o caminho. O político não é um
profissional com formação universitária específica. Não é isso, mas é mais que isso. É o homem
de cultura menos específica e mais ampla, movido pelo interesse público e pelo gosto de
servir. É o homem suficientemente culto (não necessariamente doutor, com diploma superior)
e sensato, que conheça os seus limites, como acontecia, até há pouco tempo, antes da
nivelação igualitária. Um deputado tirava de sua experiência e sensatez a idéia de um projeto
de lei. Sabia que não conhecia a técnica para redigi-la. Ia a colega jurista, para solicitar ajuda: -
"tive essa idéia, penso num projeto com tal objetivo, como se pode formular isso? Quais as
suas contrapartidas?" E o jurista, depois de avaliar a idéia, discutiria com o colega as suas
ressonâncias e implicações e, finalmente, verificado o seu valor positivo, dar-lhe-ia a
indispensável linguagem e a formulação jurídicas, sem esquecer as possíveis cautelas que o
próprio texto do projeto não poderia omitir.

      Esse excurso pelos riscos da democracia na transferência do poder do povo, incapaz de


exercê-lo diretamente, para alguns deputados na área legislativa, não poderia ser fechado sem
ao menos uma alusão aos riscos ainda mais fortes que ocorrem em relação ao executivo, para
o qual a escolha se dirige quase sempre a uma só pessoa. 

OS ALICERCES DA VISAO DE MUNDO MODERNA

Os alicerces da visão de mundo moderna” é um capítulo do livro de Richard Tarnas,


a Epopéia do Pensamento Ocidental, no qual o autor apresenta uma narrativa da
história ocidental desde a Grécia Antiga até o pós-modernismo, fornecendo um
relato coerente da evolução do pensamento e de suas mudanças através dos
tempos.

Nesse capítulo, em especial, que é o nosso foco de estudo no momento, Tarnas


explica como as idéias modernas mudaram o mundo. Entre os séculos XV e XVI, o
ocidente foi palco para as idéias iluministas, cujos ideais revolucionários se
rebelaram contra a “Igreja Medieval e as antigas autoridades”. O pensamento
moderno culminou em tres momentos importantes: o Renascimento, a Reforma e a
Revolução Científica, que juntas encerraram a hegemonia da Igreja Católica na
Europa, dando início ao mundo moderno, no qual a Ciência emerge como a nova
crença do Ocidente.
O texto de Richard Tarnas explica como o pensamento contemporâneo chegou às
idéias fundamentais e os princípios funcionais que influenciam tão profundamente
as nossas sociedades.
Num mergulho histórico, o autor discute as idéias mais importantes da nossa
civilização – como Platão, Copérnico, Decartes, Newton, Kepler, Freud, entre outros
-, numa abrangente análise da história do pensamento ocidental. Seu livro tem a
característica de um épico e a grande tragédia desse épico é a Idade Média, tendo
como heróis as idéias modernas, que vieram para “salvar” o mundo.

A EPOPÉIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL


Para compreender as idéias que
moldaram nossa visão de mundo

Richard Tarnas

" A mais lúcida e concisa apresentação que já li acerca dos principais escritos que todo
estudiosa deveria saber sobre a história do pensamento ocidental. O texto é elegante e
conduz o leitor com o ímpeto de um romance... De fato, um resultado nobre."
Joseph Campbell

"A melhor história do pensamento ocidental que já li. (...) Magistral."


Robert A. McDermott, Universidade de Nova York

" A narrativa mais emocionante da odisséia de 3.000 anos do Ocidente em busca da


verdade, acessível para o vasto público, (...) Uma obra de gênio."
Harrison Sheppard, The Hellenic Journal

"Tarnas conseguiu avaliar milhares de fatos e fundi-los numa espetacular síntese


intelectual, apresentada numa prosa excepcional."
Georg Feurstein, Spectrum Review

"Uma vasta visão geral intelectual do surgimento e evolução do pensamento humano,


desde os primeiros tempos até os dias de hoje. (...) Com este livro, Richard Tarnas
percorre um longo caminho para se consolidar como um enciclopedista moderno."
The New England Review of Books

"Uma aventura intelectual, esta síntese fascinante lança uma luz intensa sobre idéias
fundamentais para a perspectiva humana."
Publishers Weekly

"Uma narrativa irresistível da história da evolução do mundo ocidental - sua mente e


espírito - através da interação fundamental entre filosofia, religião e ciência. (...) Escrita
com a percepção de um psicólogo e a maestria de um romancista."
Keith Thompson, Utne Reader

"Nenhuma outra visão geral oferece, na mesma escala, uma análise tão lúcida e
relevante. A erudição é impecável."
Huston Smith, Universidade da Califórnia, Berkley

"Uma extraordinária obra de erudição. Não apenas situa a história do pensamento


ocidental em perspectiva, mas oferece novas percepções sobre a evolução de nosso
pensamento e o futuro de todo empreendimento humano. (...) Um evento editorial da
maior importância."
John E. Mack, Escola de Medicina de Harvard

 Sinopse
Por que o mundo moderno é como é? Como o pensamento contemporâneo chegou às
idéias fundamentais e aos princípios funcionais que influenciam tão profundamente as
nossas sociedades? Neste livro, Richard Tarnas apresenta uma narrativa concisa da
história do mundo ocidental, da Grécia Antiga ao pós-modernismo, fornecendo um relato
coerente da evolução do pensamento e de suas mudanças através dos tempos.
Num fascinante mergulho na história, Tarnas discute as idéias mais importantes que
moldaram a nossa civilização, de Platão a Hegel, de Agostinho a Nietzsche, de Copérnico
a Freud, num tour de force intelectual que vem sendo apontado pela crítica como a mais
criativa e abrangente análise da história do pensamento ocidental.
Segundo o autor, além da necessidade de tornar esta história mais acessível ao público,
A Epopéia do Pensamento Ocidental narra uma história que merece ser contada ?por
possuir a dinâmica, a escala de ação e a beleza de um grande épico: a Grécia Antiga e
Clássica, a Era Helênica e a Roma Imperial, o Judaísmo e o surgimento do Cristianismo,
a Igreja Católica e a Idade Média (...) há uma grande tragédia aqui. E algo que
ultrapassa a tragédia?.
Segundo David Steindl-Rast, co-autor, ao lado de Tarnas, de Belonging to the Universe,
o autor acumulou uma quantidade impressionante de dados, mas poupou o leitor da
confusão que esse conhecimento poderia gerar em sua mente, criando uma história que
enfoca, acima de tudo, o êxtase do pensamento e o relacionamento do pensamento com
o mistério da vida, combinando uma visão profunda e persistente com impecável
erudição.

TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 6ª ed, 2003, 588 p.

...podemos considerar o espírito pós-moderno como sendo um conjunto de


atitudes abertas e indeterminadas que foi moldado por uma grande diversidade de
correntes intelectuais e culturais: pragmatismo, existencialismo, marxismo,
psicanálise, feminismo, hermenêutica, deconstrução e a filosofia pós-empirista da
Ciência.... p 422
Admite-se que o conhecimento é subjetivamente determinado por uma imensidão
de fatores; (...) e que o valor de todas as verdades e pressuposições devem estar
sempre sujeitos ao teste direto. A busca decisiva pela verdade está obrigada a ser
tolerante em relação à ambigüidade e ao pluralismo; seu resultado
necessariamente será um conhecimento relativo e falível, em vez de absoluto ou
seguro. P 423

A realidade não é um processo fechado e contido, mas um processo fluido em


permanente desdobramento, um “universo aberto”, sempre afetado e moldado
pelas ações e crenças do indivíduo. É mais possibilidade do que fato. P 423

Em certo sentido, a realidade é construída pela mente, não simplesmente


percebida por ela; são possíveis muitas construções, nenhuma das quais
necessariamente soberana. P 423

O mundo não existe como coisa em si, independente da interpretação; ao


contrário, ele somente passa a existir nas interpretações a através delas. (...).
Todo o conhecimento humano é mediado por signos e símbolos de proveniência
incerta, constituídos por predisposições histórica e culturalmente variáveis e
influenciados por interesses humanos muitas vezes inconscientes, P 424

O outro lado da abertura e da indeterminância do espírito pós-moderno é então a


ausência de qualquer base firme para uma visão de mundo. P 425

O conhecimento humano é o produto historicamente contingente de práticas


lingüísticas e sociais de determinadas comunidades locais de intérpretes, sem
nenhuma relação “mais próxima” co uma realidade não-histórica independente. P
426

“...a mente humana jamais poderá reivindicar acesso a qualquer realidade a não
ser a determinada por sua forma local de vida. A linguagem é uma gaiola”
(Wittgenstein). Além do mais, o próprio significado lingüístico pode mostra-se
instável em essência, porque os contextos que determinam esse significado jamais
são fixos.... p 426

Os textos referem-se apenas a outros texto, em uma regressão infinita, sem


nenhum fundamento seguro em algo exterior à linguagem. (...). Não se pode
afirmar nada com certeza a respeito da natureza da verdade, ... P 426

O destino da consciência humana é inevitavelmente nômade, um perambular


consciente através do erro. A história do pensamento humano é uma de planos
metafóricos idiossincráticos, de ambíguos vocabulários interpretativos sem base
alguma além do que já está saturado por suas próprias categorias metafóricas e
interpretativas. P 427

Mais precisamente, esse projeto tem sido condenado como algo inerentemente
alienador e opressivamente hierárquico – um procedimento intelectualmente
arrogante, que produziu um empobrecimento existencial e cultural e que
basicamente levou ao domínio tecnocrático da Natureza e ao domínio sócio-
político de outros. A compulsão tirânica do espírito ocidental em impor alguma
for,a de razão totalizadora – teológica, científica, econômica – a cada aspecto da
vida é acusada de não ser apenas auto-ilusória, mas destrutiva. P 427

...o único absoluto pós-moderno é a consciência crítica que, desconstruindo tudo,


parece forçado por sua própria lógica a descontruir também a si mesmo. Este é o
paradoxo instável que permeia o pensamento pós-moderno. P 429

Portanto, o ser humano deve escolher entre incontáveis opções potencialmente


viáveis, qualquer que seja a sua escolha afetará por sua vez tanto a natureza da
realidade como o sujeito que optou. P 433

Podemos então discernir dois impulsos opostos na situação intelectual


contemporânea; um exige uma total desconstrução e desmascaramento – do
conhecimento, das crenças, das visões de mundo – e o outro, uma total
integração e reconciliação. P 435

Na ausência de qualquer visão cultural viável e abrangente, os velhos


pressupostos continuam equivocadamente vigentes – proporcionando uma base
cad vez mais inviável e arriscada para o pensamento e a atividade humana. P 437

A questão intelectual que paira sobre nosso momento é saber se o presente


estado de profunda indecisão metafísica e epistemológica é algo que prosseguirá
indefinidamente, talvez assumindo formas bem mais viáveis ou mais radicalmente
desorientadas com o passar do tempo;.... p 437

Da mesma forma, o grande sociólogo Max Weber, que viu as inevitáveis


conseqüências do desencantamento do mundo do espírito moderno, viu também o
escancarado vazio de relativismo deixado com a dissolução da modernidade das
visões de mundo tradicionais e percebeu que a Razão moderna, em que o
Iluminismo colocara todas as suas esperanças de liberdade e progresso humano,
ainda que não pudesse em seus próprios termos justificar valores universais para
orientar a vida humana, de fato criara uma gaiola de ferro de racionalidade
burocrática que permeava todos os aspectos da existência moderna... p 439

O estudo da mente proporcionava o conhecimento da mente, não do mundo além


dela. Os arquétipos assim concebidos eram psicológicos e, de certo modo,
subjetivos. Como as formas e categorias axiomáticas de Kant, estruturavam a
experiência humana sem proporcionar à mente nenhum conhecimento direto da
realidade além dela própria... p 450

Os arquétipos eram mais misteriosos do que como categorias axiomáticas – mais


ambíguos em seu status ontológico, menos facilmente restritos a uma dimensão
específica, mais próximos da concepção original platônica e neoplatônica. P 451

... informavam a ter acesso a memórias de existência intra-uterina pré-natal, que


tipicamente emergiam associadas a experiências arquetípicas de paraíso, união
mística com a natureza, a divindade ou com a Grande Mãe, dissolução do ego no
êxtase de união ao Universo. P 451

O choque com essa experiência perinatal sempre trazia aos sujeitos uma sensação
de que a própria Natureza, inclusive o corpo humano, era o repositório e
receptáculo do arquetípico, de que os processos da Natureza eram processos
arquetípicos. P 454

...o reino do arquetípico não podia ser identificado na Filosofia, na Religião e na


Ciência da chamada cultura erudita, teria mesmo de voltar a emergir do mundo
subterrâneo da psique. P 458

Assim, a criança nasce e é abraçada pela mãe, o herói ascende do mundo


subterrâneo e volta para casa depois de sua grande odisséia. O individual e o
universal estão reconciliados. O sofrimento, a alienação e a morte são agora
entendidas como necessárias para o nascimento, para a criação do eu.... p 459

O problema do conhecimento científico legado por Hume e Kant foi brilhantemente


explicado por Popper. Para este, a mente moderna, o Homem aborda o mundo
como um estranho – mas um estranho sedento de explicação e com capacidade
de criar mitos, histórias, teorias e a vontade de testá-los. Às vezes, por sorte e
trabalho árduo, com muitos erros, descobre-se que um mito funciona. P 462

Se a mente humana não tem acesso a uma certa verdade axiomática, e se todas
as observações estão sempre já saturadas por pressupostos não comprovados
sobre o mundo, como poderia essa mente conceber uma legítima teoria bem-
sucedida? Popper respondeu essa questão dizendo que, no final das contas, é
“sorte”.

RESENHA 3
“Gênese do Pensamento Político”, do filósofo francês François
Châtelet, faz uma retomada ao passado para explicar a origem das
idéias políticas na civilização ocidental. Para Châtelet, uma das
principais fontes do pensamento político moderno é a civilização
grega; a outra fonte principal são os textos sagrados do povo
judaico (Velho Testamento), retomados pelos cristãos e pelo Islã.
Esse texto faz parte do livro “História das Idéias Políticas” e traz
uma reflexão sobre o desenvolvimento do pensamento político, e se
esforça para sistematizar de modo claro as principais doutrinas que
marcaram esse desenvolvimento.

A pólis grega – que eram as organizações politico-sociais tradicionais


-, o código de Sólon; a exigência draconiana de os juízes tornarem
públicos os argumentos que os levaram a tomar decisões; a lei como
princípio de organização política e social concebida como texto
elaborado (que influenciariam os romanos e todas as sociedades que
seguem a família romano-germânica); democracia, oligarquia e
monarquia; enfim, todos esses termos fazem parte da gênese do
pensamento político, cujos conceitos nos são tão atuais.
Châtelet cita Aristóteles, e sua obra “A Política”, em que explica a
cidade como lugar natural da sociedade dos homens. O autor
sublinhou três aspectos principais da concepção grega clássica:
1. os gregos consideravam sociabilidade como natural: não se
funda, se ordena;
2. o trabalho deprecia, o acúmulo de riquezas gera desconfiança e a
atividade do laser é produtiva;
3. a humanidade é a mais elevada espécie do gênero animal. O
“sobrenatural e divino” é a sua capacidade de raciocinar.

Entre outros conceitos, a democracia grega é uma das mais


importantes contribuições para o pensamento político atual. Para
Châtelet, que utiliza a classificação de Heródoto para os regimes
políticos (monarquia, oligarquia e democracia) a contribuição de
Atenas consiste em ter experimentado todos esses regimes,
inventando uma nova definição para esse último.

Com o passar do tempo, a Grécia foi decaindo e, simultaneamente,


o Império Romano ganhando forças. Apesar de a civilização romana
não ter a riqueza de invenção da grega, soube transportar para o
real as idéias da cultura helênica e construir instituições de uma
eficiência incontestável. O direito, a república e o império atuam
enquanto instituem a ordem militar e administrativa, estabelecida
pelo povo e pelo Senado.

Outra fonte importante para os conceitos utilizados hodiernamente


no pensamento político provém das crenças monoteístas, segundo
Châtelet. A Cristandade e o Islã foram os dois eventos mais
importantes nessa área da civilização. Suas visões do mundo irão
marcar duradouramente as idéias e os costumes. Uma e outra
encontram suas raízes nos textos sagrados do povo judaico.
Em comparação com a tradição greco-latina, o monoteísmo propõe
uma concepção de homem que mantém uma relação pessoal de
submissão com o criador e a de comunidade criada através de uma
aliança religiosa.

Conceitos Fundamentais
François Châtelet faz uma abordagem sobre o surgimento do Estado e sua soberania transcorrendo a
história desde a Cidade Grega até o Estado laico e a ética profana, passando pela democracia, pelo
cidadão na Cidade, Império Romano, República, a doutrina agostiniana a respeito da Cidade de Deus e
a Cidade dos homens e pelo conflito entre o poder espiritual e temporal.

O Império Romano
O Império Romano soube pegar as idéias gregas e produzir instituições eficazes. O pragmatismo do
pensamento romano e a prática política romana

“não aceita o compromisso e a oportunidade a não ser na medida em que concordem com a tradição de
grandeza e potência da cidade de Rômulo. Os enunciados jurídicos e as legitimações filosóficas intervêm
como quadro, como marca e como perpetuação da ação fundadora da comunidade cívica. Assim, o direito,
a república e o imperium atuam enquanto instituem a ordem militar e administrativa estabelecida de fato
pelo Povo e pelo Senado”.

Mesmo sob poder absoluto e autoritário Roma se refutava republicana. Quando se livra da realeza a
república se torna uma realidade e Roma define o direito em 450 a.C. quando fez gravar as leis das
Doze Tábuas. Enquanto isto as Instituições Republicanas iam se consolidando.

“O mérito das instituições romanas, contudo, consiste em ter definido a comunidade por elas regida com
base num vínculo jurídico e numa ordem política estritamente determinada”.

Roma é marcada indelevelmente pelo “Império”, forma política através da qual irá difundir
universalmente a sua civilização. É com César Augusto, o onipotente, que se equilibram, segundo a
hierarquia, as três forças construtivas da comunidade: os sacerdotes-reis, encarregados de administrar
a república, os guerreiros que a defendem e Quirino os agricultores e artesãos que provêem suas
necessidades materiais. E nele, o Imperador, se encontram reunidos estes atributos: a potestas
(senhoria política) e a auctoritas (senhoria espiritual), a chefia suprema das legiões e, por fim, o
princeps (empreendedor).

História das idéias políticas

História das idéias políticas, de François Châtelet, Olivier Duhamel e


Evelyne Pisier-Kouchner, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985
Embora escrito no início dos anos 80, antes da queda do muro de
Berlim, os conceitos da filosofia política clássica permanecem
consistentes neste grande compêndio dos autores franceses.
Sobretudo quando caracteriza a história das idéias políticas a partir
de suas várias teorias do Estado, como os estados teocráticos da
antiguidade, o estado dos principados da Renascença, o Estado-
nação dos nacionalismos românticos iluministas, o Estado-sociedade
dos socialistas utópicos, o Estado-partido dos comunistas etc, até
mesmo o Estado colocado em questão a partir das rebeliões e
contraculturas dos anos 60.É de se destacar que o confronto entre
estados despóticos ou tiranos e estados democráticos, que seriam
melhor chamados de nomocráticos (nomos = lei, governo da lei)
sempre existiu, mesmo que em teocracias pré-helênicas.
Portanto, de saída constatamos que a luta da cidadania contra os
governantes precede mesmo a constituição da pólis grega. Com o
advento do Império Romano, vemos se constituir o principal atributo
do imperador que é a auctoritas, a qualidade moral que lhe permite
julgar o que é mais conveniente para o bem público. Se na
Renascença temos de um lado Lutero rompendo com a autoridade
política do Pontífice romano (1517), temos de outro lado Maquiavel
teorizando sobre a correta conduta do Príncipe (1513) para manter
seu poder no principado, resumido na máxima de que os fins
justificam os meios.
Mais adiante, ainda no século XVI, teremos também um Étienne de
La Boétie com seu célebre Discurso da servidão voluntária (1549),
onde questiona pela primeira vez que a fonte de poder dos
governantes, na verdade, provém do consentimento dos cidadãos, o
que o torna, por natureza, limitado. Se poder é uma capacidade de
agir e produzir efeitos na sociedade, a autoridade é o poder político
instituído e controlado por esta mesma comunidade. Se Thomas
Hobbes (no início do século XVII e antes da revolução gloriosa
inglesa de 1688) nos adverte para a necessidade de um Leviatã para
proteger e proporcionar segurança aos cidadãos, John Locke, já no
final do século XVII, em 1690 escreve o Segundo tratado do governo
civil, onde vai priorizar a soberania dos próprios cidadãos como
poder legislativo sobre a própria autoridade dos governantes. Neste
instante é que se recupera na modernidade a correspondência entre
o princípio da propriedade e o direito político de participação na
gestão dos negócios públicos originária da pólis grega. Com o Bill of
Rights (1690) a Inglaterra constitui o valor da propriedade privada
da terra, e dos utensílios de trabalho, como direito individual de
apropriação do produto do trabalho humano, e limita a ação dos reis
e de seus direitos naturais e divinos ao próprio império das leis
emanadas dos cidadãos. O que dará margem a Montesquieu no
século XVIII construir a teoria da separação dos poderes: “a
corrupção dos governos começa quase sempre pela corrupção dos
próprios princípios”, citando o próprio quando se refere, por
exemplo, à honra como princípio de respeito indiscutível às leis e aos
contratos, e nobre atributo de alguns aristocratas e não
forçosamente de toda a nobreza.
Portanto, a missão ontológica dos governos é a garantia dos direitos
dos cidadãos a uma ordem legal (o poder legislativo delibera, o
poder judiciário julga e o executivo executa leis e sentenças),
garantia da vida, da segurança, de suas propriedades e contratos,
para que os cidadãos circulem livremente e seus bens também
circulem como mercadorias que produzirão a riqueza de toda a
sociedade. O que torna “a mão invisível” da economia de Adam
Smith não tão invisível assim, pois presente através do império da
lei. E se a França vai constituir a República baseada nos princípios
romântico-idealistas da liberdade (sem o limite da lei), da
fraternidade e igualdade (restritas à obediência da lei), acaba por
desencadear um processo político capaz de comprometer os valores
universais da tradição humanista como a vida, a segurança, a
legalidade, a propriedade e a própria liberdade de controlar os
governos.
É um político irlandês, o aristocrata Edmund Burke (1729 – 1797),
defensor da liberdade religiosa dos católicos e da independência
americana que, em suas Reflexões sobre a revolução francesa
(1790), fará a crítica da razão como único instrumento de
elaboração das leis, e não os costumes e tradições culturais e
sociais. Se o povo inglês é livre do terror dos governantes, é porque
aprendeu no curso da história a construir instituições diversificadas
que garantem liberdades concretas de se associar, empreender e se
apropriar do produto de seu trabalho, ao invés de reivindicar uma
liberdade geral baseada apenas em princípios idealistas. Tratava-se
na verdade da primeira crítica ao idealismo romântico de Rousseau
do contrato social pois a vontade geral pode sacrificar legítimos
direitos de minorias. Somente no século XIX, um pensador liberal
francês, Benjamin Constant (1767 – 1830), em sua obra Princípios
de Política (1815) afirmará: “defendi durante quarenta anos o
mesmo princípio: a liberdade na religião, na literatura, na filosofia,
na indústria, na política; e, por liberdade entendo o triunfo da
individualidade, tanto sobre a autoridade de quem pretendesse
governar pelo despotismo, quanto sobre as massas que
reclamassem o direito de subjugar a minoria.” Constant dá forma
concreta ao valor da liberdade, que é a de que tudo é permitido
desde que não proibido por força da lei, inclusive se empreender e
dispor de sobre suas propriedades, mesmo que abusando das
mesmas; enfim, legitimando pela propriedade pagadora de impostos
o direito de cada cidadão de influir na administração pública e nos
atos de poder dos governos.
Alexis de Tocqueville (1805 – 1859) escreve na mesma época A
democracia na América (1835) e defende a necessidade de os
governantes desenvolverem um poder judiciário forte e
independente, que possa garantir efetivamente a controvérsia
democrática, as associações civis e a constituição de uma
administração pública eficiente e centralizada: “é no município que
reside a força dos povos livres; as instituições dos governos
municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para
a ciência. Sem instituições municipais fortes e independentes uma
nação pode ter um governo livre, mas não possui de fato o espírito
da liberdade. E afirmo: para combater os males que o igualitarismo
pretende produzir há apenas um remédio eficaz, que é a própria
liberdade política do cidadão.” Tocqueville estava contraditando a
utopia dos proto-socialistas como Saint-Simon (1760 – 1825) que,
no Catecismo dos industriais (1823), pretende eliminar a mediação
dos políticos, sejam aristocratas ou cidadãos comuns, da
administração racional e positiva dos negócios públicos. Auguste
Comte (1798 – 1857), defensor ardoroso do progresso da
Humanidade através da ciência, radicalizará a proposta de uma
hierarquia das competências, onde os sábios produzem os
conhecimentos sobre a natureza física e social, os publicistas a
difundem em planos de ação, os governantes a executam e o povo
obedece, para seu maior proveito. O percurso para se chegar ao
bem da humanidade é a pátria que ensina a solidariedade e a família
que transmite os princípios morais. A sua filosofia da história
determina que só se alcança a era positiva dos valores da
humanidade quando se supera a era teológica, onde se elocubra a
partir dos desígnios dos deuses, e a era metafísica, onde se elocubra
sobre razões transcendentais. A construção de seu sistema
positivista, que culmina com a contradição da instituição da religião
da humanidade, de certa forma vai na mesma direção da construção
de outros grandes sistemas políticos de interpretação da história,
como por exemplo, quase na mesma época, o de Karl Marx (1818 –
1883), tributário e questionador das três grandes fontes do
pensamento político europeu: a filosofia iluminista alemã de Kant e
Hegel, a economia política inglesa de Adam Smith e David Ricardo, e
o socialismo francês de Fourier, Saint-Simon e Proudhon.
Executor testamentário de Engels, fundador da social-democracia
alemã, o político e pensador alemão Eduard Bernstein (1850 –
1932), nos Pressupostos do socialismo (1899) elabora a crítica
humanista e política do marxismo quando recusa assimilar a
democracia à dominação da classe burguesa e a inevitabilidade do
socialismo. Para ele, a democracia é a própria ausência da
dominação de classe, um estado social onde nenhuma classe pode
deter privilégio em face da comunidade, onde se pode superar a
dominação de classe, mesmo que não se suprimam as próprias
classes sociais. A exigência, portanto, de uma ordem legal, na
democracia, precede historicamente a própria afluência da burguesia
e é a garantia fundamental do Estado democrático de direito. Outro
pensador que fará contraponto a Karl Marx é Max Weber (1864 –
1920): Se Marx explica a história pela determinação econômica em
última instância, Weber vai contrapor com a determinação ideológica
e religiosa. Quando a limitação do consumo é combinada com a
liberação das atividades de busca de riqueza, o resultado prático
inevitável é o acúmulo de capital mediante a compulsão ascética
para a poupança, pois as restrições impostas ao gasto de dinheiro
servirão naturalmente para aumentá-lo, possibilitando o
reinvestimento produtivo do capital.
Por outro lado, a imobilização de capital na compra de terras, por
exemplo, é dispensável na medida mesma da honra da palavra
empenhada e da força e da firmeza dos contratos de arrendamento
mercantil, próprios do ascetismo laico protestante.
Pelo lado do capitalismo, em plena crise da grande depressão
americana, John Maynard Keynes (1883 – 1946), economista inglês
criador da macroeconomia, decreta o fim do laissez-faire clássico,
patrocinando a política de intervenção do Estado na economia,
visando, nem que seja temporariamente, a retomada do crescimento
da produção, o aumento da renda nacional e o volume de emprego.
Keynes se torna o grande fiador do New Deal de Roosevelt, dos
programas de assistência social aos trabalhadores como o Social
Relief e a profusão de agências federais reguladoras dos mercados.
Hayek resgata o valor universal da legalidade e da justiça através da
desmistificação esquerdista do valor da igualdade, afirmando a
posição liberal clássica da negação de todo privilégio concedido pelo
Estado que não a igualdade perante a lei e as condições de
oportunidade de ascensão social.
Friedrich Hayek (1899 – 1992), pensador da Escola Austríaca, vai
procurar resgatar durante toda a sua vida o sentido histórico do
liberalismo clássico inglês do século XVII contra a tempestade
romântica e utópica de todos as correntes socialistas que dominaram
corações e mentes a partir do século XVIII. Hayek desmonta a
“inevitabilidade” da planificação centralizada no Estado na medida
em que a mesma interfere na livre formação dos preços nos
mercados, condição fundamental para a própria racionalidade do
planejamento econômico. Norberto Bobbio (1909 – 2004) é um dos
grandes arautos do fim das ideologias no âmbito dos países mais
desenvolvidos, quando grandes conquistas até então ditas socialistas
são incorporadas às grandes economias de mercado européias e
americana, como universalização da previdência, monopólio do
Estado na emissão da moeda, controle do comércio exterior,
compensações à desigualdade de renda, livre negociação sindical,
tributação progressiva etc. Todavia, adverte a cidadania para a
condução dos negócios do Estado: o que torna moralmente ilícita
toda forma de corrupção política é a presunção de que o homem
político que se deixa corromper coloca o interesse individual à frente
do interesse coletivo, o bem próprio à frente do bem comum. E
assim fazendo falta ao dever de quem se dedica ao exercício da
atividade política. Milton Friedmann (1912 – 2006), discípulo de
Hayek e expoente da Escola de Chicago, retoma a crítica de que as
crises econômicas do século XX não são produto de excessos do
capitalismo mas, pelo contrário, dos excessos de políticas
intervencionistas e contesta os benefícios do Estado-Previdência
moderno e as políticas de planned society defendida por Keynes.
Refuta a legislação de proteção social do Estado como meio de
diminuição da exploração que, na verdade, só pode ser combatida
pelo livre mercado. Discussão que funda nos dias atuais o
questionamento do próprio Estado enquanto instrumento da
cidadania. Com a queda do muro de Berlim, o fim da guerra fria, cai
também a dualidade entre as propostas socialistas e as liberais,
aumentando a importância do terceiro setor para a mediação entre
as atribuições indelegáveis do Estado e das empresas. Assim como
perdura na atualidade a discussão sobre a crise da representação
política e do papel da cidadania.

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