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História da Geografia: A presença (e ausência) de Piotr

Kropotkin na história do pensamento geográfico.


AMIR EL HAKIM DE PAULA1

Resumo

Pensar as principais propostas de Piotr Kropotkin para a compreensão da relação entre a


sociedade e a Natureza em um período da história marcado pela hegemonia do pensamento
darwinista que priorizava a competição entre os seres vivos, incluso os seres humanos. Além
disso destacar as principais contribuições do geógrafo russo para a constituição de uma
geografia escolar pautada na diversidade, autonomia e que possibilitasse a construção de uma
sociedade menos desigual.

Palavras-chave: Geografia; Kropotkin; Apoio Mútuo; Ensino

Abstract

We want to think on PIotr Kropotkin´s main ideas for understanding the relantionship between
the society and the nature in a moment of history where it was a hegemony of darwinian
thought that priorized the competition among living beings, as mankind. It also seeks to
evidence the main proposals of the russian geographer to the constitution of a school
geography based on diversity, autonom and enabling the construction of a unequal society.

Key words: Geography; Kropotkin; Mutual Aid; Teaching

1- Introdução

Piotr Kropotkin, importante geógrafo russo, foi um dos principais


propagadores no século XIX de uma visão mais generosa do darwinismo,
defendendo que o apoio mútuo fosse o principal fator na evolução das
espécies.

Ainda que tivesse grande importância essas ideias, muito pouco delas
sobreviveu no século XX, quase sempre atrelada aos movimentos sociais de
matiz anarquista, sendo que a presença de seu pensamento no ambiente
acadêmico geográfico é praticamente inexistente, mais ainda nas áreas de
estudo que tratam da história ou mesmo epistemologia da Geografia.

1
Professor assistente doutor na Unesp. email: amir.paula@unesp.br
Isso ocorre porque o geógrafo russo sempre teve suas ideias obliteradas
pela comunidade científica (raramente era chamado para debates públicos) ao
se mostrar um áspero crítico da Geografia Clássica ou Tradicional, e quando
do aparecimento da escola marxista (final da década de 1960, principalmente)
se algum resgate histórico do pensamento libertário ocorreu, ele ficou quase
que restrito ao seu amigo de ideias Elisée Reclus.2

Nossa preocupação nesse artigo é demonstrar a singularidade das


ideias de Kropotkin, seja nas críticas à ciência do século XIX, bem como na sua
preocupação em apontar as principais deficiências da Geografia Escolar do
final do século XIX e início do século XX, no que tange à uma supremacia dos
aspectos mnemônicos, a defesa intransigente de um eurocentrismo
depredatório, que incutia nas crianças dos bancos escolares a existência de
uma falsa realidade nacional dos países de unificação recente e que foi uma
das molas propulsoras para um período de guerras imperialistas que culminaria
na chamada Primeira Guerra Mundial.

É importante frisar que muito embora a ciência geográfica fosse capaz


de relacionar aspectos físicos e humanos, instigando no aluno a preocupação
em debater as questões contemporâneas que vivenciava para Kropotkin o que
ocorria nesse período era a construção de uma disciplina preconceituosa,
enfadonha e desinteressante, que negava quase que completamente seus
aspectos fundantes e servia apenas aos interesses das elites econômicas e
políticas que tinham a beligerância como modus operanti.

Ao colocar Kropotkin nesse debate, estamos procurando divulgar um


pensamento crítico ainda necessário aos dias de hoje, visto que é pouquíssimo
conhecido ou mesmo quiça debatido na academia, bem como nas milhares
escolas que possuem em seu currículo oficial as aulas de Geografia.

2-Sociedade e Natureza nas análises de Piotr Kropotkin

2
Temos o caso da revista Herodote n.117 de 1981 que dedicou esse número ao geógrafo francês
O século XIX foi prenhe de diversas revoluções, sejam científicas ou
não. Podemos ilustrar esses significativos processos sociais nas grandes
mudanças econômicas ocorridas na Europa nesse período, como a primeira e
segunda revolução industrial; o aparecimento do positivismo de Comte que
tentaria colocar a débâcle a metafísica filosófica bem como a religião cristã; a
crítica social encabeçada por Marx e Engels, mas também por autores da
estirpe de Proudhon, Blanqui e Bakunin, entre outros.

Apesar dessa gama de acontecimentos e de mais inúmeros de caráter


histórico geográfico (como as revoluções de 1848 e a Comuna de Paris) é
inegável que um estrondo científico, de igual ou maior magnitude das
"revoluções" anteriores ocorreu em 1859 com a publicação do livro " A Origem
das Espécies" de Charles Darwin.3

Muito embora a discussão sobre a evolução das espécies já ocorresse


desde o início do século XIX com a "teoria dos caracteres adquiridos" proposta
pelo naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck, é fato que a versão
apresentada por Darwin (e também por Alfred Wallace) à sociedade Lineana de
Londres causou enorme impacto nos meios científicos.

Fortemente baseada nas ideias de Robert Malthus sobre o crescimento


populacional4, a teoria evolucionária darwinista quase que se pautou nas
análises que o naturalista britânico realizou nas regiões tropicais do planeta
(GOULD, 1988) sendo recebida por grande parte da sociedade europeia com
grande ceticismo, ocorrendo que em alguns países da Europa, casos da
Alemanha e da Rússia, a proposta foi muito rechaçada, por cientistas ou não,

3
Para mais detalhes da importância do lançamento do livro de Darwin ver: A Origem das espécies de
Darwin(uma biografia) de Janet Browne e a apresentação do seminal livro de Darwin feita por Pedro
Paulo Pimenta ( A Origem das Espécies, editora Ubu)
4
Sobre a influência de Malthus na obra de Darwin ver, entre outros: Geografia e Anarquismo: A
importância do pensamento de Piotr Kropotkin para a ciência. Editora Unesp Digital, 2019.
por ser considerada uma manobra britânica para expandir seus interesses
econômicos em outras partes do planeta.5

Podemos perceber então que, longe de serem unânimes, os princípios


malthusianianos aplicados ao ambiente natural não foram recebidos com
grande aclamação, sendo que se tornaram aceitos após grandes debates
científicos, o mais famoso e definidor ocorrido entre Thomas Huxley (amigo
pessoal de Darwin) e o arcebispo de Canterbury Wilbeforce. (Paula, 2019)

Se as ideias de Darwin mereceram respeito e admiração da


intelectualidade europeia, isso deveu-se, em parte, ao incessante trabalho de
Thomas Huxley, biólogo e antropólogo, que desde a primeira edição do livro
seminal apoiou fortemente as suas concepções evolucionárias.

Mais do que apoiar, Huxley passou abertamente a defender que não


apenas no ambiente estritamente natural as concepções darwinianas eram
definidoras. O amigo e colaborador incansável de Darwin (conhecido por causa
disso de " buldogue de Darwin") apresentou várias teses apontando que a "luta
pela sobrevivência" e a "sobrevivência do mais apto" eram constitutivas nos
seres humanos. Ou seja, os humanos mais "capazes", que conseguiam vencer
essa luta mortal e sanguinária, geravam descendentes. Já os "perdedores"
seriam eliminados para sempre.

É nesse contexto científico com implicações sociais e políticas que se


insere Kropotkin e a sua teoria pela qual não a competição mas o apoio mútuo
era o principal fator na evolução das espécies.

Enquanto chefe de uma expedição militar que mapeou as regiões da


Sibéria, o jovem geógrafo, lendo " A Origem das Espécies", ficava perplexo em

5
Embora a Rússia czarista vivesse no século XIX uma grande turbulência política, com a prisão e
deportação de inúmeros indivíduos apenas por suas concepções filosóficas, no caso do livro de Darwin,
sejam aqueles que defendiam o czar ou os chamados populistas russos socialistas, todos eram
contrários as teses evolucionárias apresentadas pelo naturalista britânico, acusando-a de ser uma
manobra inglesa para entrar na Europa Oriental. No caso alemão, podemos citar aqueles que, como
Nietzsche, afirmavam que essa discussão já tinha ocorrida em solo teuto com as considerações
desenvolvidas por Goethe no início do século XIX. Mais detalhes ver: John Richardson. Nietzsche´s New
Darwinism. Oxford University Press, 2004.
não encontrar evidências de uma luta pela sobrevivência nas regiões geladas
que percorria.

Tomando contato com as palestras do naturalista russo de origem alemã


Karl Kessler, defensor incansável de que a teoria darwiniana não poderia ser
discutida levando-se em consideração apenas a competição entre os seres
vivos, Kropotkin percebe que nos locais onde as intempéries climáticas são
extremamente hostis, se a competição vingar, corre-se o risco de não existir
nenhum ser vivo.

O fato é que Kropotkin se preocupa de que forma Huxley trabalha as


propostas darwinistas sobre a competição entre os seres vivos, incluso os
humanos, pois elas poderiam justificar os inúmeros conflitos dos europeus
contra os povos asiáticos e africanos, fruto das guerras imperialistas da
segunda metade do século XIX.

Tendo a experiência da chefia de uma expedição militar na Sibéria e o


contato com as propostas de Karl Kessler, Kropotkin, já exilado na Inglaterra
por suas ideias ácratas, escreve vários artigos ao The Nineteenth Century, que
posteriormente agrupados, tornam-se em 1902 uma de suas principais obras,
"Mutual Aid".

Nessa obra, o geógrafo russo procura demonstrar que não é a


competição o único fator de evolução entre os seres vivos. Nas regiões de alta
latitude, o clima hostil é o grande vilão para a sobrevivência de várias espécies.
Logo, o apoio mútuo torna-se uma prática natural, necessária à reprodução.

Mais ainda, ele começa a defender que entre vários seres vivos, incluso
insetos, há uma cooperação quase que instintiva inter-espécie e que se a
competição ocorre, ela está ligada a luta entre espécies diferentes.

Para exemplificar isso, ele aponta inúmeros casos, como das formigas,
abelhas, que comumente se auxiliam para a defesa de suas moradias e a
produção de alimentos. Ou seja, se existisse apenas a competição entre elas
como a comunidade se sustentaria?

Não se trata de negar totalmente a competição, mas limitá-la a uma luta


entre as espécies diferentes. Ao apontar isso, o geógrafo russo declara que a
solidariedade, a cooperação não é necessariamente uma construção histórica,
de constituição do ser humano, mas um traço natural, instintivo.

Na Natureza a competição e o apoio mútuo são traços basilares. Huxley


tenta justificar as guerras imperialistas tendo a competição entre os seres vivos
como modelo e Kropotkin condena-as.

. Kropotkin, ao alçar o apoio mútuo como um fator de evolução, procura


apresentar o anarquismo, na sua vertente anarco-comunista como algo
também "naturalizado".6

Percebe-se então que ao ler Huxley e a sua teoria da luta sanguinária


entre os seres humanos, Kropotkin procurou forjar uma antítese ao
pensamento único darwinista e assim alçar ao panteão das teorias
demonstradas cientificamente o anarco-comunismo.

O capitalismo e a competição têm uma justificativa científica com Huxley,


e o anarquismo possui também a sua com o trabalho seminal de Kropotkin. Na
Natureza e nas sociedades humanas, existe uma pluralidade de constitutivos
evolucionários (competiçãoxsolidariedade, por exemplo).

Ao lermos as críticas de Kropotkin aos evolucionistas darwinistas fica


evidente que a questão primordial é desenvolver uma análise radical da
sociedade capitalista, apontando as suas mazelas.

Outro fator importante é perceber que existe uma sutil geopolítica da


seleção natural, no qual a partir da teoria da evolução pretende-se tornar

6
É importante dizer que essa postura de tentar "naturalizar" as ideias anarco comunistas não foi uma
unanimidade entre os principais expoentes dessa ideia. Para uma crítica ao apoio mútuo como um
instinto natural ver: Malatesta (1931)
"Natural" o sistema industrial inglês e assim justificar a sua entrada em várias
partes do mundo.

Kropotkin, enquanto anarquista e naturalista russo preocupa-se não com


as implicações que o darwinismo poderia ter como modelo constitutivo dos
seres vivos. Para ele, a grande questão é entender como as implicações
sociais e econômicas derivadas da compreensão huxleyana naturalizavam o
imperialismo europeu.

Como o próprio Huxley afirmava:

Enquanto a multiplicação for ilimitada, será uma perda de tempo


idealizar uma organização social com distribuição de renda, livrar a
tendência da sociedade de se autodestruir na sua forma mais intensa,
visto que a luta pela sobrevivência é o objetivo da sociedade.
(HUXLEY in PAULA, 2019, não paginado)

Compreender o apoio mútuo como um dos sustentáculos das


sociedades humanas é para Kropotkin uma forma de combater a sociedade no
qual ele vivia e utopicamente construir outra mais solidária. Como ele próprio
afirma: "Society has not been created by man; it is anteior to man. 7
(KROPOTKIN in Paleo, 2012, p.69)

A questão que ele coloca é: Se a sociabilidade é algo inerente aos seres


vivos por que vivemos em uma sociedade que privilegia a competição?

Pensando nessas questões, Kropotkin percorrerá seus estudos


antropológicos e histórico-geográficos discutindo como a solidariedade aparece
entre as várias sociedades humanas.

Ele frisa que seja entre os chamados bárbaros da Idade Média, os


indígenas da América ou as vários tribos africanas, o predomínio da
solidariedade é evidente. Essa constituição natural dos seres humanos é que
possibilitou que ele ocupasse as regiões mais inóspitas do planeta.

7
Sociedade não é uma criação humana. Ela é anterior ao homem. Tradução livre de Amir El Hakim de
Paula
No século XIX, na Europa e, principalmente na Inglaterra onde ele vivia,
a solidariedade não era defendida com tanta veemência porque ao longo dos
séculos a elite econômica e política em conluio com a Igreja Católica destronou
as principais atividades comunalistas, fazendo com que "sobrevivessem"
apenas nas franjas da sociedade moderna.

Para tentar compreender como essas solidariedades apareciam na


Inglaterra vitoriana, Kropotkin se utilizou de um conceito: principio territorial. E
sobre ele, diz o geógrafo russo:

Esta institucion, a su vez, sirvó para unir a los hombres durante


muchos siglos, dándoles la posibilidad de desarrollar más y más sus
instituciones sociales, y junto con eso, ayudándolos a atravesar los
periodos mas sombrios de la historia. (KROPOTKIN, 1989, p.166)8

Desde tempos primevos, os homens procuram formas de viver em


harmonia. Percebem que a união de todos do clã e depois dos pequenos
agrupamentos aldeões é parte necessária para o surgimento de grandes
empreendimentos, como as cidades livres.

Somente no final da Idade Média com o surgimento de um sistema


pautado na propriedade privada que esse principio territorial foi sendo
subsumido. Logo, a lógica que determinou a construção das sociedades
posteriores compreendem a competição, a meritocracia, como valores
humanos inexoráveis.

A transformação dos valores capitalistas em valores universais permitiu


transparecer que desde o tempo da Idade da Pedra ou do Bronze os homens
se organizavam hierarquicamente, pautados na luta pela sobrevivência do mais
forte, e não que sempre houve uma disputa entre aqueles que queriam
organizar a sociedade sobre princípios competitivos contra aqueles que
defendiam a solidariedade.

8
Esta instituição, por sua vez, serviu para unir os homens durante muitos séculos, possibilitando que se
desenvolvesse cada vez mais suas instituições sociais e ajudando a atravessar os períodos mais
sombrios da história. Tradução livre de Amir El Hakim de Paula
Para que a competição e seus múltiplos valores se consolidassem, a
solidariedade foi sendo desacreditada, prevalecendo a ideia de que uma
sociedade no qual todos lutem contra todos era a única produtora de felicidade,
mesmo que a uma minúscula parcela dela.

Qualquer ideia comunalista deveria ser atacada, pois na sua mais


intrínseca estrutura interna, ela combatia o direito de existência do indivíduo,
que seria o único que livremente conquistaria melhores condições de vida,
servindo como exemplo aos demais.

O sistema capitalista seria o ideal, pois estaria apoiado filosoficamente


na lei da evolução dos seres vivos, demonstrando que, da mesma maneira que
os animais lutam para sobreviver, os seres humanos também fariam isso.
Qualquer crítica à esse modelo seria utópico, um projeto societário incapaz de
organizar as sociedades humanas.

Mas como vimos era um "principio territorial" que possibilitava a


organização societária mais igualitária. Ele, aos poucos, foi sendo substituído
por uma lógica nacionalista, patriótica que servia aos interesses dos mais
poderosos.

Sendo o apoio mútuo uma lei da sociedade, como Kropotkin


apresentava, onde poderíamos ainda encontrá-lo, mesmo que enfraquecido
pelos valores de uma sociedade baseada na exploração econômica? A partir
dessa indagação percebemos que o geógrafo russo começa a discutir a
organização sócio-espacial das cidades europeias e descobrir onde o espírito
de solidariedade.

Ao analisar Manchester, por exemplo, importante centro fabril da


Inglaterra no século XIX, nosso autor percebe que, muito embora a lógica
societal esteja dominada pela competição entre os indivíduos, sendo o
ambiente fabril seu ponto culminante, nas franjas da cidade, nos seus
arrabaldes, o cotidiano apresentava-se conflitante aos valores dominantes.
Ao realizar um estudo desse setor social, Kropotkin enquanto um
geógrafo urbano vai destacando as principais características existentes da
periferia de Manchester, demonstrando a presença da pequena empresa, os
cortiços, a vida da classe operária que no seu cotidiano de penúria
demonstrava uma grande força solidária.

Essa solidariedade aparecia quando o vizinho pedia o alimento que


faltava ou ainda quando outro cuidava da criança para que uma saída rápida
ao centro da cidade fosse possibilitada. Essa prática cotidiana não estava
eivada de valores capitalistas.

Mas também o apoio mútuo era constante na organização dos


trabalhadores, nas suas lutas contra a exploração econômica. Ele aparecia nas
greves, manifestações de rua, quando a luta de uns poucos tornava-se luta de
todos. Isso é bastante comum nesse período nas chamadas greves de
solidariedade, quando trabalhadores de um setor econômico recebiam o apoio
de outros. Por isso, o capitalista sempre relutou em reconhecer o sindicato
enquanto uma organização legítima!

E assim, Kropotkin nos mostra que se a competição é um valor supremo


na sociedade capitalista, ela continua a ter que conviver com seu oposto a
solidariedade. Mais do que uma opção, a solidariedade era um instrumento
legado pela evolução a todos os seres vivos, o único capaz de produzir uma
felicidade geral e irrestrita.

3-Geografia e ensino: Kropotkin e a crítica à escola autoritária

No mesmo período que a Geografia se institucionalizava como uma


ciência, aumentava significamente o interesse dos governos europeus,
principalmente aqueles que tinham vivenciado recentemente a sua unificação,
pelo ensino de Geografia.

Isso se devia, principalmente, ao fato de que essa disciplina ser


essencial para incutir nas crianças valores ligados ao discurso nacionalista,
patriótico, formando cidadãos obedientes para no futuro defenderem os
interesses da classe dominante.

Além disso, é na metade do século XIX que se constrói um ambiente


escolar hierárquico, no qual o professor é o único elemento dentro de uma
instituição de ensino que possui o saber, nunca deve ser questionado e
reprodutor dos valores ligados ao Estado Nacional.9

É contra essa escola nacionalista e hierárquica que vai se insurgir Piotr


Kropotkin. O nosso autor vai lutar cotidianamente para a construção de um
ambiente escolar mais dinâmico, no qual os interesses dos professores e
alunos sejam contemplados e que o saber seja compartilhado e não imposto.

Desta forma vai participar ativamente da elaboração de uma escola


libertária, pautada na autonomia, solidariedade e responsabilidade, buscando
assim um ambiente educacional profundamente antagônico ao comumente
existe na Europa na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do
século XX.

O embrião dessas escolas surge na Espanha e na França e uma delas


(Escola Moderna de Francisco Ferrer) terá grande apoio do geógrafo russo.

Para Kropotkin, a escola deve ser um ambiente prazeroso ao discente,


no qual a interelação ente estes e o professor seja pautada pelo respeito
mútuo, pela troca igualitária. Caso contrário, mesmo que o tema a ser
apresentado seja revolucionário, uma postura autoritária e conservadora do
docente prejudica a compreensão, e pior, alimenta uma falsa moralidade.

Uma escola libertária ensinando um conteúdo de Geografia prazeroso! É


assim que ele pensa a educação. Para isso, vai discutir esse ensino deveria
deixar de ser mnemônico e dual para ser dinâmico, que gere interesse, criativo,
etc.

9
Para mais detalhes sobre a construção de uma escola voltada aos interesses das classes dominantes
ver: Lacoste(1976)
Como ele afirma:

O ensino de Geografia deve pois perseguir um triplo objetivo:


despertar em nossas crianças o gosto por todas as ciências naturais;
precisa ensiná-las que todos os homens são irmãos, seja qual for sua
nacionalidade; e ensiná-la a respeitar as raças inferiores. Assim
entendida a reforma da educação geográfica é imensa: é nada menos
que uma reforma de todo o sistema de educação seguido em nossas
escolas. (RECLUS and KROPOTKIN, 2012, p.41-42)10

Então para ele não é apenas reformar o ensino de Geografia (algo que
ele vai destacar em suas obras). Mas que esse ensino estivesse sintonizado e
fosse debatidos de forma integrada pela(e para) autonomia intraclasse,
propiciando a formação de um ser humano menos individualista e competitivo.

Considerações Finais

Pensar a Geografia a partir de pressupostos mais humanos,


democráticos e baseados na solidariedade internacional. Era assim que
Kropotkin entendia uma ciência que ainda dava seus primeiros passos no seu
processo de institucionalização.

Ao realizar essa crítica ao pensamento geográfico, o geógrafo russo


demonstrou os equívocos que permeavam essa ciência e que posteriormente a
levaram a se transformar em uma ferramenta poderosa para a dominação.

Ao criticar tanto a geografia acadêmica quanto a escolar, ele lentamente


foi tendo o seu pensamento apagado dos anais científicos.

O papel relevante de Piotr Kropotkin na ciência foi enorme e um


pequeno fragmento dele está sendo demonstrado nesse artigo. Que as
próximas gerações de geógrafos e outros cientistas (sociais ou não) tenham
acesso às suas principais obras, descobrindo textos de suma importância que
possam resgatar uma disciplina menos enfadonha, mnemônica e mais
particip(ativa).
10
É interessante ressaltar que esse texto de Kropotkin foi uma resposta a um debate que ele travou na
Royal Geographical Society (RGS) contra Mackinder sobre o que deveria ser a Geografia, sendo que para
o geógrafo britânico a Geografia teria que contribuir para que se incutissem valores nacionais nas
crianças e assim possibilitasse que houvesse uma maior expansão territorial do Império Britânico. Ver
mais detalhes em Vesentini, 2008.
A Geografia e em especial a sua história do pensamento, podem colocá-
lo entre os maiores especialistas de seu tempo, e junto com seu amigo de
ideias e profissão Elisée Reclus, permitam que se revele uma "escola"
libertária, com suas conceituações, no qual a integração entre os aspectos
físicos e humanos seja o principal mote e que uma relação tão insana entre
docentes e discentes (no qual a violência em vários estabelecimentos
educacionais tornou-se algo comum) seja substituída pela solidariedade,
amizade e amor ao conhecimento.

Bibliografia

BROWNE, Janet. A origem das espécies de Darwin: uma biografia. São Paulo:
Zahar, 2007.

DARWIN, Charles. A origem das espécies por meio da seleção natural ou a


preservação das raças favorecidas na luta pela vida. Org: Pedro Paulo
Pimenta. São Paulo: Editora UBU, 2018.

GOULD, S.J. Kropotkin was not crackpot. In: Natural History, v.97,n.7, 1988,
p.12-21

KROPOTKIN, Piotr. El apoyo mutuo. Cali: Ediciones Madre Tierra, 1989.

. Apoio Mútuo - um fator de evolução. Porto Alegre:Deriva,


2012

MALATESTA, Errico. Pedro Kropotkin - recuerdos y criticas de uno de sus


viejos amigos. In: Revista Blanca, v.IX, n.192, 1931, p.571-594

PALEO, U.F. Cooperation versus competition in nature and society: The


contribution of Piotr Kropotkin to evolutionary theory, n.1, 2012, p.67-81.

PAULA, Amir El Hakim de Paula. Geografia e anarquismo: a importância do


pensamento de Piotr Kropotkin para a ciência. São Paulo: Editora Unesp
Digital, 2019.
VESENTINI, José Willian. Controvérsias geográficas: epistemologia e política.
Confins, n.2, 2008.

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