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Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira

Wellington Trotta

John William Waterhouse-Penelope and the Suitors(1912)

A HERANÇA DE PENÉLOPE
_______________________________________________

ESTUDOS PRELIMINARES PARA UMA


HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

RIO DE JANEIRO
agosto de 2008
2

Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira


Bacharel em Comunicação Social pela FACHA. Bacharel e Licenciada em Filosofia pela UERJ. Especialista e
Mestre em Filosofia pela UERJ Bacharel em Direito pela UNESA. Advogada e Professora de Filosofia do Direito,
Ética Geral e Profissional e Filosofia e Ética na Universidade Estácio de Sá

Wellington Trotta
Bacharel em Direito pela UGF. Licenciado em Direito pela FANIP. Licenciado em Filosofia pela UERJ. Mestre em
Ciência Política (Política e Epistemologia) pela UFRJ. Doutorando em Filosofia pelo IFCS-UFRJ. Advogado e
Professor de Filosofia do Direito e Filosofia e Ética na Universidade Estácio de Sá
3

Sumário
Pág.
Introdução – Filosofia: para quê?.........................................................................................
I. A Filosofia e o surgimento de uma nova consciência.................................................
II. Os filósofos pré-socráticos e o pensamento político.................................................
III. O período Socrático....................................................................................................
IV. A dimensão política em Platão e a crítica de Aristóteles...........................................
V. Estoicismo: a natureza como fundamento da Lei......................................................
VI. A cristandade medieval e a Filosofia..........................................................................
VII. O pensamento jusnaturalista.....................................................................................
VIII Thomas Hobbes: a garantia dos direitos individuais..................................................
IX Direitos civis como extensão dos direitos naturais: da liberdade à radicalidade
democrática................................................................................................................
X. A filosofia prática de Immanuel Kant..........................................................................
XI. O positivismo jurídico..................................................................................................
XII. A crítica tridimensional realeana ao normativismo-lógico de Kelsen.........................
Conclusão...............................................................................................................................
Referências Bibliográficas....................................................................................................
4

Prezado (a) leitor (a):

Este material foi elaborado para as aulas de Filosofia Geral e Jurídica do Curso de Direito
da Universidade Estácio de Sá. Nesse sentido, ressaltamos que se destina tão somente para uso
interno, sendo vedada a sua utilização sem autorização expressa dos autores. A obra encontra-
se depositada no Ministério da Cultura/Fundação da Biblioteca Nacional.

Clara Maria C.B. de Oliveira


Wellington Trotta
5
INTRODUÇÃO

Filosofia: Para quê?

Muitos indagam: por que estudar Filosofia? Qual a importância da Filosofia para o saber
de modo geral, seja ele jurídico, político ou social? Nem sempre as respostas que formulamos
são convincentes para esclarecer sobre as conseqüências desse saber. A grande maioria das
pessoas não tem contato com a Filosofia durante o ensino fundamental ou médio, o que torna
nossa tarefa ainda mais árdua. O que é pior, inúmeras vezes percebemos que a falta de
interesse pela leitura de maneira geral contribui também para certo desinteresse pelo estudo
de Filosofia.
Poucos se interessam por essa disciplina, geralmente ministrada em apenas um
semestre nos primeiros períodos da graduação. Todavia, muitos profissionais do Direito
descobrem a Filosofia em meio aos seus estudos de pós-graduação e experimentam certa
ansiedade em tentar suprir essa falta em sua formação intelectual. Nesse sentido, temos que
ressaltar que estudar Filosofia significa investigar os fundamentos de nossa própria cultura, nos
impondo, por sua vez, a necessidade de irmos ao que consideramos fonte inspiradora de nosso
patrimônio intelectual: a Grécia antiga. Logo, segundo Werner Jaeger (1888-1961):

“A Grécia representa, em face dos grandes povos do Oriente, um progresso


fundamental, um novo estádio em tudo o que se refere à vida dos homens na
comunidade. Esta se fundamenta em princípios completamente novos. Por
mais elevadas que julguemos as realizações artísticas, religiosas e políticas dos
povos anteriores, a história daquilo a que podemos com plena consciência
chamar cultura só começa com os gregos”.1

É preciso enfatizar que a Filosofia oferece uma abordagem singular para tratar dos
problemas fundamentais contemporâneos, em particular, aqueles relacionados ao nosso
cotidiano, centrados na eterna insociável–sociabilidade humana.
Ademais, insistimos em apontar que a história do pensamento filosófico, que se inicia
com o povo grego, por volta do séc. VII a.C. constitui as bases de nossa própria cultura, ou seja,
configura o nosso ponto de partida, ou o início do pensamento racional. Assim, ao lermos um
texto filosófico colocamos em ação todo o nosso sistema de valores, crenças e atitudes que
refletem o grupo social ou a classe social a qual pertencemos e no qual se deu nossa
socialização primária, isto é, o meio-valor em que fomos criados. Podemos então analisar como

1
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989: 4. [grifo nosso]
6
esse sistema de valores interfere em nossa visão de mundo. Nesse horizonte, a Filosofia nos
proporciona uma reflexão sobre nós mesmos e o nosso próprio pensamento. Nesse caso a
Filosofia ensina a estruturar o próprio pensamento a partir da formulação de perguntas
precisas cujo exame nos leva a considerações reflexivas.
Ingressar nos estudos filosóficos significa, fundamentalmente, assumir a árdua tarefa
do autoconhecimento que implica a transformação do próprio olhar, muitas vezes desatento,
em um olhar cuidadoso diante das obviedades. Significa abolir a pressa e o imediatismo. A
Filosofia significa, sobretudo, a formação de uma atitude crítica diante da vida. Como afirma
Immanuel Kant (1724-1804) em suas lições de Lógica: “filosofar é algo que só se pode aprender
pelo exercício, pelo uso próprio da razão. (...) O verdadeiro Filósofo, portanto, na qualidade de
quem pensa por si mesmo, tem que fazer um uso livre e pessoal de sua razão, não um uso
servilmente imitativo”. 2
Inicialmente deve-se compreender que Filosofia não se confunde com cultura geral, mas
estudar Filosofia implica estabelecer um diálogo com homens de notório saber, que viveram
em outras épocas, nesse sentido consideramos crucial não só conhecê-los como também
compreender seus costumes, pois assim podemos avaliar mais lucidamente os nossos.
Confirmando a presente tese, citamos as célebres palavras de René Descartes (1596-1965) na
obra Discurso do Método, enfatizando que:

“A leitura de todos os bons livros é qual uma conversação com as pessoas


mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma
conversação premeditada, na qual eles nos revelam tão-somente os melhores
de seus pensamentos. (...) É bom saber algo dos costumes de diversos povos,
a fim de que julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que tudo
quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão, como soem
proceder aos que nada viram”. 3

Assim, intencionalmente se cuidou de apresentar um trabalho propedêutico que


pudesse oferecer uma exposição clara e indispensável, capaz de configurar um apoio útil para
posteriores estudos de Filosofia. Nesse sentido, pesquisamos autores e doutrinas que julgamos
essenciais para o estudo jurídico-político. Gostaríamos ainda de esclarecer, preliminarmente,
que o presente trabalho tem objetivo modesto, pois se procurou, ao expor, dar certa
objetividade que não comprometesse a verdadeira complexidade da matéria. O ponto de
partida está na noção geral da Filosofia como um saber teórico e universal que fundamenta
toda a cultura ocidental, desvelando-se o imperativo de observar os diferentes problemas que

2
KANT, I. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, A26-27.
3
DESCARTES, R. Os Pensadores. In: “Discurso do Método”. São Paulo: Abril Cultural, 1973: 39.
7
a nossa cultura formulou ao longo dos tempos com suas respostas e terminologias acerca do
que consideravam relevantes.
Importa também ressaltar que a história apresentada focaliza um dos ramos da
Filosofia, em particular, aquela que estuda a relação entre direito e política. Isso porque a
pesquisa foi essencialmente motivada pelo desejo de compreender melhor a relação político-
social a partir do devir histórico. Nesse caso as informações apresentadas fundamentaram-se
em textos clássicos e comentadores consagrados pela tradição filosófica. Acreditamos não ter
incorrido em erros graves, buscando não esquecer que os filósofos são homens e que,
portanto, estão sujeitos às influências de sua origem, educação e singularidade histórica. É
preciso lembrar que todo pensador está fadado a ser de seu século, a seu contentamento ou
pesar, 4 com isso assinalamos desde já que os problemas filosóficos são tão antigos quanto às
inquietações conscientes dos homens sobre o problema da convivência humana, e se desvelam
nas concepções fundamentais acerca do Direito e do próprio Estado, a partir das realidades que
serviram como pano de fundo.
Destaca-se que a leitura de tais obras, a partir de uma abordagem filosófica, nos
permite vislumbrar que a transformação das sociedades não implica a superação pura e simples
de um passado, mas antes ressalta que esse passado existe e persiste no presente. Algumas
vezes é preciso apontar caminhos que não se devem mais seguir. Nosso interesse por uma
filosofia política ressalta a idéia segundo a qual a política, pertencendo à história humana,
participa do seu desenrolar gradual e do seu reencontro consigo mesma. Por conseguinte, que
importa nesse caminhar é a indispensável tarefa crítica que a Filosofia nos oferece, sem a qual
cairíamos inevitavelmente num dogmatismo feroz ou num ceticismo tedioso.
Nosso objetivo é também ampliar a crítica para com isso fornecer as condições de
possibilidade para uma reflexão filosófica sobre diversas áreas do saber e sobre nossa própria
ação. Por isso, indicamos outras leituras para que o interessado possa ampliar sua capacidade
de análise. Dessa forma é preciso não esquecer que somos como um espelho cuja imagem se
reflete para os demais. Influenciamos uns aos outros, somos mediação para outros seres
humanos e nessa inter-relação nos tornamos humanos. 5
É, portanto, inquestionável que nossa cultura pode ser considerada, em última análise,
herdeira das construções gregas, ou, como alguns preferem dizer, representamos o futuro
daquilo que costumamos assinalar como grecidade. Seja como futuro ou passado intelectual da

4
MARX, K. O capital. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1994: 68.
5
LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia na escola: o prazer da reflexão. RJ: Moderna, 2004: 7.
8
cultura grega, o que importa é que somos filiados ao imaginário político pensado, discutido e
belicamente defendido pelos gregos, ou melhor, nossa matriz teórica passa pelo pensamento
grego, que, segundo Jean-Pierre Vernant, tem sua origem no embate político. 6
É com esse profundo sentimento de gratidão que escolhemos o título fazendo menção a
uma personagem feminina, muitas vezes preterida, que aparece na Odisséia e que configura o
paradigma perfeito da lealdade absoluta ao herói da Guerra de Tróia. Talvez a única mulher do
mundo grego que não sucumbiu na solidão com a ausência de Ulisses e que suportou com
astúcia pretendentes que afrontaram sua casa e dilapidaram seus bens.
Penélope cujo nome etimologicamente significa “pato ou ganso selvagem”, porque na
cultura grega antiga era comum designar as mulheres com nomes de pássaros, casou-se com o
herói de Ítaca, aquele que concebera pela inteligência e não pela força a forma certa para
derrotar Tróia, o célebre Cavalo de Tróia. Este foi Ulisses ou podemos chamá-lo também de
Odisseu.
Mas atribuímos à Penélope o sentido da difícil trajetória da Filosofia. Penélope não
queria escolher um pretendente para ocupar o lugar do seu amado Ulisses que ficara 20 anos
na Guerra de Tróia. Para ganhar tempo usou a astúcia para afastar o assédio de seus
pretendentes. Prometeu-lhes que escolheria um novo consorte tão logo terminasse de tecer a
mortalha de Laertes, velho pai de Ulisses.
Assim, tecia durante o dia e desfazia todo o trabalho à noite para não ter que escolher
um pretendente para ocupar o lugar do seu amado. Penélope sabia que para tecer era preciso
ter paciência e manter acesa sua lealdade, pois sabia que era preciso inicialmente fiar, ou seja,
fazer fio enrolando as fibras de lã ou algodão. Tecer significa essencialmente entrelaçar a trama
na urdidura.
Assim como Penélope, em Filosofia é preciso aprender a ter paciência para fiar, ou seja,
trabalhar conceitos, conceber idéias - exercer a liberdade como a faculdade do pensar para
depois estabelecer as tessituras que resultarão no tecido das muitas teses que nossa tradição
concebeu.
Esse fazer paciente e solitário que desvelamos nos textos (do latim textu, tecido) que os
filósofos nos legaram, nos faz perceber a primeira lição que acreditamos importante para o
estudo na seara Filosófica: para elaborar um texto é preciso fiar; é preciso trabalhar as idéias
como se faz no ofício de quem tece.

6
VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. RJ: Bertrand Brasil: 1992.
9
Nesta dialética do fazer e desfazer de Penélope a Filosofia se desvela no sentido da
própria existência humana. E aqui nos revela o caminho da Filosofia do Direito que não pode
ser investigado sem o conhecimento da tradição filosófica. Sem dúvida, é preciso ouvir o
conselho daqueles que vieram antes de nós.
Na verdade, necessitamos nos aconselhar com os mais velhos; talvez pela necessidade
de ouvirmos a experiência daqueles que nos antecederam na experiência citadina; talvez, quem
sabe, nosso referencial teórico esteja por demais quantificados sob imagens burlescas,
pensando política a partir de jogos lógicos como a dança da galinha ou coisa análoga. Bem,
pensemos à moda da Filosofia: esse é o nosso maior desafio.
10
Capítulo I

A Filosofia e o surgimento de uma nova consciência

1.1 – O sentido de Filosofia.


Na obra Eutidemo de Platão (428-348 a.C.), destaca-se que a Filosofia do grego
Φιλοσοφία é o uso do saber em proveito do homem. Assinala, esse célebre filósofo, que não
teria utilidade alguma poder transformar as pedras em ouro se não tiver capacidade para valer-
se desse nobre metal. Nesse mesmo sentido, de nada serviria um saber a quem não sabe servir-
se dele. A Filosofia se desenha, portanto, como a colidência entre o fazer e o saber valer-se
daquilo que se faz. 7 Platão pretende, com isso, enfatizar que a Filosofia é, sobretudo, a posse
ou aquisição de um conhecimento, mas este em benefício do homem. Certamente se
encontrarão inúmeras definições para Filosofia forjadas em épocas diversas sob diferentes
pontos de vista.
Segundo Descartes, Filosofia seria o estudo da sabedoria, ou seja, um perfeito
8
conhecimento de todas as coisas que o homem é capaz de conhecer. Não foi diferente a
definição elaborada por Thomas Hobbes (1588-1679). Na visão hobbesiana, a Filosofia é, de um
lado, conhecimento causal e, de outro, a utilização desse saber em benefício do próprio
homem. Immanuel Kant (1724-1804), representante do Iluminismo alemão, a compreendeu
como uma ciência da relação de todo conhecimento com a finalidade essencial da razão
humana. Para este autor, “o filósofo não é um artista da razão humana, mas o legislador da
razão humana.” 9 Segundo Hegel (1770-1831), filosofia é um saber conceituante. Na verdade,
tais definições não se distanciam da mensagem platônica e, assim, esse conhecimento, ora
visto como revelação, ora como busca ou aquisição, é um privilégio próprio dos seres racionais.
Considerando os estudiosos contemporâneos, ressaltamos a definição elaborada por
Marilena Chauí, na obra Convite à Filosofia, certificando que a Filosofia não se confunde com
Ciência stricto sensu, mas pode ser entendida como reflexão crítica sobre os procedimentos e
conceitos científicos, pois se trata de um saber que é cronologicamente anterior ao surgimento
da própria ciência. Assim, acrescenta que não é tampouco Religião; antes, porém, reflexão
crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas; não se reduz à Arte, mas se vê diante de
uma reflexão crítica sobre os conteúdos, formas, significações da obra de arte e do trabalho
7
PLATÃO. Eutidemo, 288 e 290 d. Apud, ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. SP: Mestre Jou, 1982: 442.
8
DESCARTES, R . Apud, ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. SP: Mestre Jou, 1982: 442.
9
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994, A838/B866 – A839/B867.
11
artístico; também não pode ser considerada Sociologia ou Psicologia, mas reflexão crítica sobre
os fundamentos dessas ciências humanas de suma importância; a Filosofia não se limita à
esfera Política, mas se configura como possível interpretação, compreensão e reflexão sobre a
origem, a natureza e as formas do poder; por fim, Filosofia não é História, e sim interpretação
do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e no espaço e a compreensão do
que seja o próprio tempo. A Filosofia está na história, pois é produto cultural do homem; um
saber do homem situado, pretendendo desvelar as interpretações e limites de cada época.
Pode-se então, a partir da ótica desta ilustre professora, definir Filosofia como a busca
pela fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e práticas. Trata-se de um saber que
se volta para as origens, as causas, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos
e culturais. O seu olhar observa com cuidado as transformações históricas, a consciência em
suas várias modalidades: imaginação, percepção, memória, linguagem, inteligência,
experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo, paixões; busca compreender as idéias
ou significados gerais: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade,
objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição e mudança.
Nesse sentido, o olhar filosófico se afasta do senso comum, das crenças, sentimentos,
prejuízos, preconceitos; toma distância do mundo cotidiano para interrogar e não aceitar as
coisas passivamente. A Filosofia diz “não” ao senso comum, para indagar “o que é”, “como é” e
“por que é” – momentos que constituem o pensamento crítico. Sua ação se realiza por meio da
reflexão em que o pensamento volta-se para si mesmo a fim de indagar como é possível o
próprio pensamento. Assim, pode-se considerar que refletir significa tomar distância das coisas
10
para poder enxergar novos ângulos, experimentar a realidade em diversos sabores,
porquanto a reflexão filosófica é radical, isso porque investiga a raiz, a origem de tudo o que
11
existe. A Filosofia é um pensamento sistemático, o que significa dizer que não sendo mera
opinião, muito pelo contrário, na verdade a Filosofia segue uma lógica de enunciados precisos e
rigorosos, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de pura racionalização.
Nesse caso, a Filosofia na condição de saber exige fundamentação racional do que é enunciado
e pensado, e deve formar um conjunto coerente de idéias racionalmente examinadas e
demonstráveis.
Conclui-se, provisoriamente, que o saber filosófico é uma profunda refutação à opinião,
conhecido como senso comum. Um saber que exige consistência teórica. Conforme insiste o

10
LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia na escola: o prazer da reflexão. RJ: Moderna, 2004: 17.
11
MARX, K. Manuscritos económicos-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1993.
12
filósofo francês Luc Ferry e que sintetiza as idéias expostas acima: “o filósofo é antes de tudo
aquele que pensa que, se conhecemos o mundo, compreendemos a nós mesmos e
compreendendo os outros, tanto quanto nossa inteligência o permite, vamos conseguir, pela
lucidez e não por uma fé cega, vencer nossos medos.” 12
O valor da Filosofia repousa, portanto, na possibilidade de fundamentação ou
justificação do trabalho científico ao indagar “o que é o homem?”, “o que é a vontade?”, “o que
é a razão?”, “como nos tornamos livres?”, “o que é um valor?”. Pode-se estudar a Filosofia sob
o aspecto temático ou compreendê-la a partir de seu acontecer histórico, ou seja, a história da
Filosofia compreendendo períodos que exprimem e manifestam os problemas e as questões
que, em cada época, os homens colocaram para si mesmos. Será possível também perceber
que as transformações no modo de conhecer ampliaram os campos de investigação do filósofo.
Destaca-se que historicamente as abordagens filosóficas, em sua dinâmica, estão relacionadas
aos problemas historicamente definidos por sua temporalidade, e, por isso a Filosofia também
tem sua historicidade, logo os períodos foram classificados pela tradição da seguinte forma:
Antigüidade Clássica ou Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna e Filosofia
Contemporânea.

1.2. - Surgimento da Filosofia na Grécia Antiga


Como nos lembra José Américo M. Pessanha, buscar as razões que conduziram o
13
homem grego a fazer filosofia permanece ainda como um problema aberto. O que teria
fundamentado esse novo saber? Por que na Grécia, por volta do séc. VII ou VI a.C., surgiu uma
nova mentalidade diante do real? Quais os fatores que se entrecruzaram e propiciaram esse
fenômeno em uma cultura tão antiga? Sabe-se que na Grécia do séc. VI a C., Pitágoras de
Samos (571-496 a.C.) denominou-se “Filo-sophos” por ser amante do saber e não de “sophos”
(sábio). 14
15
Costuma-se lembrar de uma narrativa atribuída a Pitágoras, segundo a qual esse
filósofo teria dito aos seus discípulos que três tipos de pessoas participavam dos jogos
olímpicos na Grécia, a saber: as que trabalhavam no comércio, com interesses voltados para o
lucro; as que buscavam disputar os torneios, os atletas e artistas e aqueles que, sem interesses

12
FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007: 23.
13
PESSANHA, José Américo M. Os pensadores. In: “Pré-socráticos”. SP: Nova Cultural, 1983.
14
A palavra Filosofia formou-se da junção de “Filos-filia” (amigo) com “sophia”(sabedoria, saber), opondo-se ao
termo grego “polimathéia” que significa saber comum, desconexo, fragmentado.
15
É importante ressaltar que este pré-socrático nada escreveu. Seus ensinamentos foram transmitidos oralmente
e guardados em segredo por seus primeiros discípulos.
13
comerciais ou competitivos, buscavam compreender o significado das coisas e contemplando a
realidade, desinteressadamente. Este último é o filósofo, aquele que ama o saber. Essa teria
sido a origem da palavra Filosofia e da idéia de filósofo.
O que a tradição literária afirma é que a Filosofia foi um fenômeno específico do povo
grego e teve continuidade com os povos dominados por ele. O seu momento inicial estaria na
16
própria curiosidade humana (perplexidade), no instante em que algo desperta a nossa
admiração e exige uma explicação sobre a origem do mundo, dos povos e dos fenômenos da
natureza sem recorrer aos mitos ou explicações religiosas. Vale esclarecer que a palavra mito
do grego mythos e do latim mythus, aponta, além da acepção geral de narrativa, para três
significados distintos, a saber: 1. forma atenuada de intelectualidade; 2. forma autônoma de
pensamento ou de vida; 3. instrumento de controle social.. Para o pensamento grego, mito
significava um discurso ou narrativa considerada verdadeira para seus ouvintes; havia uma
relação de confiabilidade entre a pessoa do narrador e os ouvintes, ou melhor, uma crença na
autoridade do narrador, chamado de poeta-rapsodo. Os gregos acreditavam que ele fora
escolhido pelos deuses e que se tornara o transmissor de suas mensagens, carregadas de
valores compartilhados pelo grupo.
A palavra proferida pelo poeta, o mito, ganhava uma aura de divindade, portanto
inquestionável e incontestável, constituindo-se no ponto central de uma educação ainda por
via da oralidade. Sendo assim, a narrativa sobre a origem do mundo foi denominada como
genealogia que pode ser cosmologia ou teogonia. Será cosmologia quando tratar do
nascimento e da organização do mundo, pois gonia vem do verbo gennao e do substantivo
genos, assumindo a idéia de geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto.
Cosmo quer dizer mundo ordenado, organizado. Já teogonia é composta de gonia e theos que
significa em grego, seres divinos, coisas divinas, deuses. Será teogonia quando a narrativa tratar
da origem dos deuses. A Filosofia é vista como uma cosmologia, ou seja, uma explicação
racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações das coisas.
O sentido da narrativa mítica foi marcado por uma profunda formulação de valores cujo
fim era a formação do homem grego, levando em consideração uma explicação pedagógica
capaz de instituir laços integrativos entre os homens a partir de uma idealidade divina. O mito
carrega no som das palavras proferidas pelos poetas, oráculos dos deuses, as façanhas dos
heróis como formação moral dos homens: a supremacia do valor helênico como forma de
manter sua identidade ante a pluralidade de povos existentes. A autoridade do mito sucumbe

16
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
14
diante dessa nova explicação que não resulta de uma pessoa física com poderes místicos, como
no caso dos poetas-rapsodos, mas do poder da razão. Essa mitologia e suas figuras sobrevivem
enquanto se mantém viva na vida cotidiana. Memória, oralidade e tradição são os
componentes indispensáveis para a sua sobrevivência. Assim, a explicação filosófica, que era
apenas uma explicação de homens que buscavam o conhecimento racional, se desenvolveu
paulatinamente e permaneceu por muito tempo concomitante às explicações mitológicas que
povoavam o imaginário desse mundo antigo.
No pensamento de Platão e Aristóteles podemos ver que o mito se contrapõe à verdade
ou narrativa verdadeira, embora ao mesmo tempo guarde a verossimilhança que, em certos
pontos é a única validade a que o discurso é capaz de aspirar e passa a exprimir o que se pode
encontrar de melhor e de mais verdadeiro. Em outras palavras podemos dizer que a relação da
cultura grega com o mito é muito delicada, uma vez que o mito é visto em alguns momentos
como oposto à verdade e, em outros é forma aproximativa do conhecimento verdadeiro. 17
O advento do pensamento filosófico marcou o aparecimento de uma indagação que
passa a rejeitar narrativas mitológicas ou mágicas. No entanto, não se pode negar a íntima
relação da mitologia grega com a história da civilização grega, por isso o relato mítico não
resulta necessariamente da invenção individual, mas da transmissão de uma cultura por várias
gerações e da memória de um povo, o que ressalta a sua dignidade e importância. A Filosofia é,
portanto, um fenômeno cultural grego que surgiu no momento de estabilização da sociedade
com a consolidação das cidades-estados (pólis); um progressivo enriquecimento do comércio e
invenção da moeda; expansão marítima que propiciou o surgimento de uma classe mercantil
politicamente forte; a invenção do calendário; a própria invenção da política como idéia ética.
Na verdade, não há consenso sobre a origem da Filosofia na Grécia antiga, porque
muitos estudiosos entendem que os povos do oriente já sistematizavam doutrinas filosóficas
antes dos filósofos gregos. Todavia, o que se observa freqüentemente é que não se configurou
nesses povos o que ocorreu na Grécia: o processo de laicização do saber. Esse processo de
laicização apresentou características marcantes como, por exemplo, a noção de physis, a idéia
de causalidade interpretada a partir de termos naturais, o conceito de arché, a concepção de
cosmo racionalmente ordenado, o logos como possibilidade de se explicar o mundo, o caráter
crítico capaz de operar profundas mudanças no homem.
Segundo esforços de notáveis estudiosos da cultura clássica, pode-se então afirmar com
confiança que a civilização e a cultura gregas vivenciaram um ambiente completamente

17
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982: 644.
15
original. É interessante observar que foram os romanos que criaram o sentido atual do termo
“gregos” como versão depreciativa da palavra “Graeci”. O que a história nos relata é que os
gregos se denominavam “helenos”, aqueles que habitam a Hélade. A Hélade, num sentido
cultural e não necessariamente político, se estendia desde o estreito de Gibraltar até a atual
Geórgia, na extremidade do mar Negro. Definiam-se assim por uma ancestralidade e língua
comuns – falava-se o grego. Aqueles que não falavam o grego eram denominados bárbaros,
porque tais línguas eram constituídas de um balbuciar de sons ininteligíveis – “bar-bar”. 18

1.3 - A pólis grega e a formação de uma nova consciência


Antes do advento da Pólis, a Grécia já apresentava uma vida social intensa. Um dos
poetas mais importantes, Homero (séc. IX a.C.), autor dos famosos poemas (Ilíada e Odisséia)
que narram as guerras troianas (1260 a 1250 a.C.) e as aventuras de Ulisses (Odisseu), nos
desvela em suas narrativas o entrecruzamento de história, ficção, lenda, mitos e deuses, que
segundo pesquisadores exprimem traços da cultura dórica. Os dórios oriundos do norte,
séculos após as guerras troianas, construíram uma sociedade marcadamente aristocrática que
paulatinamente se transformou no que denominamos civilização grega. Segundo muitos
historiadores, Homero é considerado o pai da cultura grega por ter sido a sua obra fundamental
para a manutenção das tradições. Além de Homero, o pensamento de Hesíodo (séc. VIII a.C.) foi
igualmente importante, porquanto marcou uma nova fase da cultura grega. Em sua obra
denominada Teogonia, descreveu a criação do mundo, dos deuses e a organização do Olimpo.
Em Os trabalhos e Os Dias narrou o célebre mito das cinco idades da humanidade.
Por volta do séc. VIII a.C., com a invenção da moeda cunhada, a região vivenciou um
renascimento das relações comerciais que resultou na ruína das antigas linhagens tribais e no
surgimento de pequenas cidades de agricultores e artesãos. Lentamente se formou uma nova
organização sócio-política que, segundo J.P.Vernant, destacou a supremacia da razão. Assim, a
palavra, o discurso e a razão ganharam grande relevo nessa nova organização social. O discurso
tornou-se condição fundamental para a participação nos assuntos públicos. Tal mudança,
alinhada à uma revolução política, ensejou o desenvolvimento do pensamento humano.
Portanto, as discussões políticas, a elaboração das leis, deixaram de ser privilégio da
aristocracia grega.
A palavra polis, do plural póleis, é de origem grega que expressa a idéia de cidade-
estado autogovernada por um espírito que procura ir além das formas privadas de organização

18
CARTLEDGE, Paul. História Ilustrada da Grécia antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002: 17-19.
16
do espaço público. Cada polis tinha suas próprias leis de cidadania, cunhagem de moedas,
costumes, festivais, ritos etc. Segundo Jaeger, a polis desenhou um novo momento para os
gregos, uma nova forma de convivência humana: “A polis é o centro principal a partir do qual se
organiza historicamente o período mais importante da evolução grega. Situa-se, por isso, no
19
centro de todas as considerações históricas”. O termo polis propiciou o aparecimento de
palavras como político, política e, conseqüentemente, a idéia de justiça. Com a palavra polis
surgiu também o direito de cada cidadão de emitir, na esfera pública, o seu pensamento para
possível debate. E valorizou o humano, a discussão, a persuasão, a força do melhor argumento,
enfim o próprio desenvolvimento do discurso. Assim, o interesse pela justiça se desenvolveu na
vida da polis como um grande valor, semelhante em intensidade à força exercida pelo ideal
cavaleiresco dos primeiros estágios da cultura grega aristocrática. A idéia do homem justo
assumiu um novo locus no pensamento grego, isso porque aquele que se determina pela lei
cumpre o seu dever.
Observa-se que a pólis introduziu uma verdadeira revolução no pensamento: “O ideal
antigo e livre da Arete 20 heróica dos heróis homéricos converte-se em rigoroso dever para com
o Estado, ao qual todos os cidadãos sem exceção estão submetidos, tal como são obrigados a
respeitar a fronteira entre o próprio e o alheio”. 21 Nesse momento, com a mudança das formas
de vida, surgiu um novo espírito centrado na vida pública, e a literatura que testemunha a idéia
de justiça como fundamento da sociedade humana estende-se desde os tempos primitivos da
epopéia, ou seja, do séc. VIII até o séc. VI a.C.
Conforme explicação de Jaeger, nos tempos homéricos:

“Toda manifestação do direito ficou sem discussão na mão dos nobres que
administravam a justiça segundo a tradição, sem leis escritas. Contudo, o
aumento da oposição entre os nobres e os cidadãos livres, a qual deve ter
surgido em conseqüência do enriquecimento dos cidadãos alheios à nobreza,
gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a exigir leis
escritas”.22

A reclamação universal pela justiça já figura claramente em Hesíodo e, é através desse


poeta, que a palavra direito, dike, se converte no lema da luta entre as classes então existentes.
Não temos fonte sobre a história da codificação do direito grego, mas sabe-se ao menos que ao
ser escrito assumia o caráter de universalidade. Já em Homero temos o direito como Themis

19
JAEGER, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989: 73.
20
areté, aretai (pl.) – excelência, virtude.
21
JAEGER, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989: 94.
22
Idem, 1989: 91.
17
que etimologicamente significa lei. Segundo a narrativa homérica, Zeus ofertava aos reis o cetro
e themis. Esta última seria o símbolo da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres
homéricos. Na prática, significava que os nobres dos tempos patriarcais julgavam de acordo
com a lei procedente de Zeus. As normas que constituíam as leis de Zeus fundamentavam-se no
direito consuetudinário e no próprio saber do homem daquela época.
18

Capítulo II

Os Filósofos pré-socráticos e o pensamento político

2.1. Os filósofos pré-socráticos e a arché


Comumente tem-se por filósofos pré-socráticos aqueles pensadores que viveram antes
de Sócrates (470-399 a.C.), que se tornou marco histórico na Filosofia por inaugurar a reflexão
ético-política, diferentemente daqueles que dissertavam sobre o problema da causa primeira
na natureza. As obras dos filósofos pré-socráticos perderam-se na Antigüidade, restando
apenas fragmentos e uma extensa doxografia 23 disponível, que apresenta citações e passagens
desses pensadores como fonte para o conhecimento do primeiro momento do pensamento
filosófico como reflexão racional.
Estudiosos relatam que duas escolas dividiram-se em duas concepções filosóficas
diferentes. A Escola Jônica interessada na physis, ou seja, Filosofia da Natureza, também
chamada de Escola de Mileto cujos expoentes foram Tales (625 - 546 a.C.), Anaximandro (séc.
VII-VI a.C.), Anaxímenes (séc. VI a.C.) e Heráclito de Éfeso (séc. VI-V a.C.). A outra é a Escola
Italiana que apresentou uma visão de mundo mais abstrata, prenunciando o surgimento da
lógica e da metafísica, marcada pelos filósofos Pitágoras (séc. VI-V a.C.), Parmênides (510-470
a.C), Zenão (488-430 a.C) e Melisso de Samos, entre outros.
Num segundo momento dessa fase pré-socrática destacam-se os pensadores
Empédocles de Agrigento (484-424 a.C.), Anaxágoras de Clazômena (500-428 a.C.) e a Escola
Atomista, denominados pluralistas e ecléticos. Nosso intento nesta parte é tão-somente
mencionar os pré-socráticos mais conhecidos. Assim, para um maior aprofundamento no tema
sugerimos a obra de Gerd Bornheim. 24
Quando pensamos em Grécia Antiga, pensamos em uma região que compreende o
conjunto de várias cidades autônomas entre si. Sabe-se que o berço da Filosofia teria sido a
polis de Mileto, situada na região da Jônia, litoral ocidental da Ásia menor próspera do ponto
de vista econômico-comercial. Nessa cidade temos três pensadores pré-socráticos de grande
importância: Tales, Anaximadro e Anaxímenes. Esses primeiros filósofos, denominados filósofos
da physis, tinham por objetivo construir uma explicação racional e sistemática do universo,

23
Comentários proferidos por filósofos posteriores à Aristóteles a Simplício ( séc. VI d.C.).
24
BORNHEIM, G. (org) Os Filósofos Pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1997.
19
tendo por modelo a matemática, pois percebiam a existência de leis gerais e permanentes a
reger os fenômenos naturais. Tais pensadores buscavam a matéria-prima, a arché, existente em
todos os seres. Seria, portanto, a busca pelo princípio originário, ou substancial de todas as
coisas.
Tales de Mileto foi considerado efetivamente o primeiro filósofo e sabe-se que era
estudioso de astronomia que, segundo conta a tradição, chegou a prever um eclipse total do sol
ocorrido por volta do ano de 585 a.C. Esse pensador apresentou grande desempenho em
geometria e demonstrou que todos os ângulos inscritos no meio círculo são retos e que a soma
dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180º. Ademais, concluiu que o princípio
originário era a água, porque somente a água permanece a despeito de todas as
transformações. Infelizmente não conhecemos nenhum fragmento desse pensador, mas os
comentários de alguns filósofos posteriores, como Aristóteles – que menciona em passagem de
sua obra De Coelo:
“Outros julgavam que a terra repousa sobre a água. Esta é a mais antiga
doutrina por nós conhecida e teria sido defendida por Tales de Mileto. Ou
ainda na obra De Anima onde menciona: “E alguns sustentam que a alma
está misturada com o universo; talvez por isto chegou Tales à opinião de que
todas as coisas estão cheias de deuses.” 25

Anaximandro de Mileto, discípulo de Tales, concebeu que o princípio primordial


transcendia os limites do observável e que, logo, estaria fora do alcance dos sentidos.
Denominou de ápeiron, termo grego que significa o indeterminado, o infinito a massa geradora
de todos os seres. Anaximandro nos legou três fragmentos, são eles: “1. Todas as coisas se
dissipam onde tiveram a sua gênese, conforme a necessidade, pois pagam umas às outras
castigo e expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo. 2. O ilimitado é eterno. 3.
O ilimitado é imortal e indissolúvel.”26
Anaxímenes de Mileto, por sua vez, discípulo de Anaximandro, admitia que a origem de
todas as coisas fosse realmente algo indeterminado, mas não o concebia como inalcançável aos
sentidos. Segundo seu entendimento, o ar seria o princípio de todas as coisas, o elemento
invisível, imponderável e, no entanto, observável. Em seu único fragmento nos diz: “Como
nossa alma, que é ar, nos governa e sustém, assim também o sopro e o ar abraçam todo o
cosmo.” 27

25
Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filósofos Pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1997: 23.
26
Idem, 1997: 25.
27
Idem, 1997:28.
20
Pitágoras de Samos viveu na ilha de Samos e posteriormente deslocou-se para Crotona,
localizada no sul da Itália (Magna Grécia), onde fundou sua escola filosófica preocupada com
questões políticas e religiosas. Em seu modo de ver, a essência de todas as coisas residia nos
números que representavam a ordem e a harmonia. A arché teria uma estrutura matemática
que configuraria a origem do finito-infinito, par-ímpar, multiplicidade-unidade etc, enfim, para
Pitágoras, ao fim e a ao cabo, a diferença entre os seres repousava sobre os números. Suas
contribuições foram numerosas, além da matemática, as concepções da imortalidade da alma,
reencarnação, o rigor moral etc. Pitágoras não deixou obra escrita, porém, conforme Porfírio:
O que Pitágoras dizia a seus discípulos, ninguém pode saber com segurança,
pois nem o silêncio era causal entre eles. Contudo, eram especialmente
conhecidas, conforme o juízo de todos, as seguintes doutrinas: 1) a que afirma
ser a alma imortal; 2) que transmigra de uma a outra espécie de animal; 3) que
dentro de certos períodos, o que já aconteceu uma vez, torna a acontecer, e
nada é absolutamente novo, e 4) que é necessário julgar que todos os seres
animados estão unidos por laços de parentesco. De fato, parece ter sido
Pitágoras quem introduziu por primeira vez estas crenças na Grécia.28

Heráclito de Éfeso foi considerado um dos mais importantes filósofos pré-socráticos.


Sabe-se que floresceu pelo ano 500 a.C. e se tornou o representante do pensamento dialético.
Heráclito concebeu o mundo como dinâmico, em inesgotável transformação. Sua escola
filosófica foi denominada de mobilista, pois para ele a vida era fluxo constante, impulsionado
pela luta de forças contrárias. Acreditava que a luta dos contrários seria o princípio de todas as
coisas e por meio dessa luta o mundo se modifica e evolui. Entendeu que o fogo era a arché.
Dentre os 126 fragmentos existentes como de sua autoria, destaca-se: “Não se pode entrar
duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e reúne-se; avança e se retira”.29
Uma das marcas fundamentais da doutrina de Heráclito é o sentido dialético que deu ao
movimento do pensamento, capaz, por sua vez, de perceber a natureza dicotômica da
natureza, da vida, dos homens e de sua história. Essa visão inaugura, por assim dizer, uma
tradição de pensar problemas a partir de suas possibilidades contrárias, levando em
consideração que o verso faz parte do anverso, que a guerra faz parte da paz etc. Heráclito se
torna, dentro da filosofia, um autor preocupado com a ordem dicotômica.
Parmênides de Eléia foi um grande opositor de Heráclito. Acreditava que o ser era
eterno, único, imóvel e ilimitado. Essa era a ótica da razão, da essência, a via a ser buscada pela
filosofia. Por outro lado, a ótica da aparência, da doxa, não desvela a verdade, mas em função
do movimento ou vir-a-ser da realidade denota apenas uma aparência enganosa. Parmênides

28
Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filósofos Pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1997: 48.
29
Idem, 1997: 41.
21
afirmou que: “o ser é; o não-ser não é”.Pensava que o mundo é o lugar das aparências, o
mundo da ilusão e que, somente pela razão, no plano lógico, compreendemos a essência da
realidade. Para Parmênides “o ser é e o não-ser não é”. Diz-nos um dos seus fragmentos:
“Necessário é dizer e pensar que só o ser é; pois o ser é, e o nada, ao contrário, nada é. Pois
pensar e ser é o mesmo”30
Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, buscou argumentos capazes de legitimar as
afirmações de seu mestre e fortaleceu a idéia de que a noção de movimento era contraditória.
O mais célebre foi denominado Aquiles, que apresentava o complexo estudo dos conceitos de
movimento, espaço, tempo e infinito. Nesse argumento Zenão nega o movimento da seguinte
maneira: afirma que o mais lento em uma corrida jamais será alcançado pelo mais rápido, se e
somente se, o mais lento sair bem à frente, porque o mais rápido terá que primeiro alcançar o
ponto de onde partiu o mais lento que, por sua vez, continuaria se movendo. Para
entendermos melhor esse paradoxo de Zenão, é preciso compreender o exemplo que nos
forneceu e que, resumidamente, é o seguinte: em uma determinada corrida, se a tartaruga
(mais lenta) saísse à frente de Aquiles (de pés ligeiros), este herói não conseguiria alcançá-la,
em face da vantagem que a tartaruga obteve por ocasião da largada.
Uma das grandes contribuições dos estudos de Parmênides e, conseqüentemente, de
Zenão, está justamente dentro do campo da reflexão de uma linguagem fundamentada no
argumento lógico. Embora a problemática parmenídica pareça, a primeira vista,
eminentemente ontológica, o pano de fundo de sua problemática passa pelo rigor dos
enunciados, que, por sua vez, implica a mais profunda abstração, o que nos leva admitir
Parmênides como aquele filósofo que inaugura, de certa forma, o pensamento metafísico.
Empédocles de Agrigento tentou conciliar as idéias de Parmênides com o pensamento
de Heráclito, ou seja, conciliar a idéia de essência imutável obtida pela razão com a idéia de
movimento, o vir-a-ser, captado pelos sentidos. Acreditou que o elemento primordial era
constituído por quatro elementos: o fogo, a terra, a água e o ar. Tais elementos seriam
misturados de modos diversos a partir de dois princípios universais, a saber: de um lado, o
amor, personificando a idéia de força de atração ou harmonização das coisas; de outro, o ódio,
responsável pela desagregação ou separação das coisas. Em um dos seus fragmentos
menciona: “Não há nascimento para nenhuma das coisas mortais, como não há fim na morte

30
Idem, 1997: 55.
22
funesta, mas somente composição e dissociação dos elementos compostos: nascimento não é
mais do que um nome usado pelos homens”. 31
O leitor convirá conosco que resta claro que a Filosofia desde o seu nascedouro
apresentou posturas bem definidas quanto ao seu conteúdo, método e objeto de investigação.
Portanto, focalizou a realidade para compreender o verdadeiro sentido de todas as coisas a
partir de uma explicação racional sobre a realidade pelo puro desejo de conferir outro
significado a todas as coisas e a si mesmo, na medida em que realiza a reflexão. Os antigos
compreenderam esse movimento que, na verdade, está radicado na própria natureza humana.

2.2. – O sentido de justo no período pré-socrático


Para estudiosos como Jaeger e Rodolfo Mondolfo (1877-1976), a preocupação dos
primeiros filósofos teria sido com o universo, ou seja, os pré-socráticos inauguraram o
pensamento filosófico quando iniciaram um estudo racional sobre o homem, a vida e a
Natureza. Outros estudiosos do pensamento grego revisaram essa tese e concluíram que certa
reflexão acerca do mundo dos homens teria precedido a reflexão sobre o mundo físico.
Destarte Truyol y Serra apresenta, nesse sentido, o seguinte argumento:
“Isto é verdade se tivermos em conta a primitiva concepção helênica do
mundo e da vida em sua totalidade, ou seja, incluindo as teogonias míticas.
Efectivamente, estas, fundadas num politeísmo antropomórfico, concebem os
problemas cósmicos como problemas humanos, o que traz consigo a
personificação dos elementos e das forças naturais e a apreensão das suas
relações segundo a natureza das relações entre os homens”. 32

A filosofia do mundo natural precisou trabalhar com categorias nascidas da experiência


da vida humana, de uma forma ou de outra expressa na literatura disponível à época, a
mitologia. São categorias cuja origem é social: a noção de lei, por exemplo. A imagem da
comunidade foi útil para a representação da Natureza. O enigma que perturbava o espírito dos
pensadores pré-socráticos era o movimento, a mudança, o que justificou a necessidade de
buscar um elemento primordial que permanecesse sempre o mesmo. O homem dessa época
vivia em uma comunidade autárquica e sagrada, uma espécie de microcosmo. Cada cidade,
guardando sua autonomia, apresentava não só peculiaridades jurídico-política, como também
dispunha de proteção particular por parte de seus respectivos deuses, baseando-se em normas
e regulamentações 33 tradicionais de fundamento religioso.

31
Apud, BORNHEIM, G. (org) Os Filósofos Pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1997: 69.
32
SERRA, A. T. História da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profissões, 1985: 85-86.
33
Nomos
23
Para o preciso entendimento do sentido de justiça construído pelos gregos, é preciso
antes de tudo, compreender a sua relação com o cosmos. A cultura grega compreendia o
universo como um ente organizado e animado. Havia a concepção de uma ordem cósmica, uma
34
estrutura ordenada do universo que é perfeita e divina. Nesta ordem e harmonia há o
movimento regular dos planetas, a dinâmica da vida em sua mais completa perfeição, a própria
existência dos seres até o mais ínfimo dos insetos. Cada membro desse imenso Ser está
perfeitamente colocado em seu lugar em harmonia com os outros. Essa estrutura revela o
logos, ou seja, a lógica que permite e sustém a harmonia entre os seres. Esse cosmos é justo,
harmônico, lógico e racional porque podemos compreender seu movimento. Nesse sentido
esclarece Luc Ferry que:
“(...) se compreendermos bem os Antigos, o que queriam dizer não tem nada
de absurdo: ao afirmar o caráter divino do universo todo, eles exprimiam sua
convicção de que uma ordem “lógica” operava por trás do caos aparente das
coisas, e que a razão humana poderia trazê-lo à luz” 35

Trata-se da mesma idéia que será transportada para a dimensão moral do homem. Os
gregos viveram sob o imperativo de imitar a perfeição da Natureza enquanto justa e boa na
vida na polis anunciando uma teoria do justo que desvela a necessidade de uma conduta que
respeite essa harmonia, dando a cada um, o que lhe pertence, conforme o seu lugar natural no
36
cosmos. Esse é o modelo de beleza para alcançar a felicidade e a vida boa. Sob essa ótica,
podemos entender por nomos a idéia de ordem da polis, ou seja, as regras morais e os
preceitos jurídicos indistintamente misturados. O cuidado com os valores culturais de cada polis
garantia uma convivência pacífica. Não fica difícil perceber que a idéia de justiça significava
garantir essa convivência harmônica a partir de uma repressão a tudo que pudesse
comprometer a ordem estabelecida. Esse sentido seria alargado diante das novas necessidades
que a vida comunitária exigia: estabilidade visando soluções políticas diante de conflitos
resolvidos belicamente.
Truyol y Serra aponta, numa visão contrária, que Anaximandro teria deslocado a idéia
de justiça da polis para o universo, 37 constituído como uma grande polis, ou seja, uma grande
comunidade sujeita a uma lei ordenadora, invariável, afirmando a existência de uma justiça
cósmica de caráter imanente que preside a geração e a dissolução dos seres particulares. Para
este autor, idéias semelhantes seriam usadas mais tarde por Parmênides de Eléia e Empédocles

34
A idéia de divino não se relaciona com o sentido cristão de ser divino, mas antes com o significado de perfeição.
35
FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio e Janeiro: Objetiva, 2007: 41.
36
FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio e Janeiro: Objetiva, 2007: 41-43.
37
Esta idéia estaria presente no único fragmento existente da obra Sobre a Natureza.
24
de Agrigento nos poemas que cada qual escreveu, ambos intitulados Acerca da Natureza.
Parmênides teria personificado a Justiça nas deusas Themis e Dike entre o dia e a noite, entre a
verdade e a opinião. A justiça aparece no seu poema como um princípio estático que assegura a
imutabilidade do ser que ele afirma com vigor: “o ser é e o não-ser não é”. Empédocles usa a
idéia de justiça para tentar uma explicação do universo; o amor e o ódio como forças originais
fazem e desfazem as coisas; a lei estende-se sem alteração.
Sabe-se que Pitágoras e Heráclito apresentaram considerações mais explícitas sobre a
vida social. Com Pitágoras ganha relevo a preocupação ética e religiosa, crescendo o interesse
pela vida sócio-individual, tendo a Filosofia como especulação possível de uma purificação
interior. Pitágoras antecipa, também, a relação entre Filosofia e política, cabendo aos seus
discípulos, os pitagóricos, os primeiros a organizar uma teoria da justiça no interior de sua
doutrina dos números. Desse modo, concebeu os números como essência das coisas e
expressão de harmonia e regularidade no sentido específico de totalidade ordenada. Essa
harmonia, transposta para a esfera humana, assume o sentido de uma correlação de condutas.
Os pitagóricos formularam uma definição de justiça como “aquilo que alguém sofre por algo” –
a justiça como uma relação aritmética de igualdade entre dois termos. Esta igualdade aparece
como elemento essencial da justiça. Simbolizavam a justiça nos números 4 e 9, porque a
multiplicação de um número par (2) por ele mesmo daria 4; a multiplicação de um número
ímpar (3) por ele mesmo alcançaria o número 9. A justiça nessa concepção funda-se na ordem
natural presidida pelo número.
Heráclito de Éfeso associa justiça à ordem universal. Como concebeu a realidade em
perpétuo devir, afirmou ainda que o devir nasce dos contrastes e que este surge da luta, logo o
sentido de justiça é luta. Todavia esse perpétuo fluir é presidido por uma lei eterna e universal,
o logos, por sua vez o responsável pela harmonia invisível entre os opostos. Essa unidade
realizada pelo logos manifesta-se no fogo, que Heráclito evoca das Erínias, personagens
mitológicas servidoras de Dike, que, segundo a narrativa mítica, forçavam o Sol a voltar à órbita
se por acaso se afastasse. Assim, por analogia, o logos estaria oferecendo ao homem a norma
para a ação correta. Todos os homens participam dessa ordem, embora nem todos a revelem
em sua conduta. Essa lei única e divina alimenta a lei humana, conferindo o seu sentido de
sagrado e justificando qualquer sacrifício em seu nome. Importa perceber que a moralidade,
tanto para os pitagóricos como para Heráclito, fundamenta-se numa lei natural.
É preciso ressaltar que na fase pré-socrática se afigurou um suposto direito natural
cosmológico de cunho panteísta. Essa filosofia natural pré-socrática conferiu validade à
25
concepção helênica de justo percebida em Hesíodo e Homero. Sabe-se ainda que a idéia de
igualdade na reciprocidade, apresentada na narrativa hesiódica, superou o sentido de
autoridade expresso nos poemas homéricos na condição de sentido da justiça. Esse predomínio
da concepção de Hesíodo aconteceu por ocasião de profundas transformações políticas,
econômicas e sociais nos séc. VII e VI a.C., conduzindo as codificações legais pela liderança de
Sólon (640-558 a.C.), legislador e poeta, assinalando em suas Elegias, o conceito de eunomia,
ou seja, a ordem equilibrada fundada na justiça. Sólon observou a necessidade de
homogeneidade social que excluiria as desigualdades excessivas. A cidade deve ser comum a
todos e todos devem se interessar por sua conservação. Sólon fustigou a hybris como a máxima
negação da ordem.
No âmbito literário, os poetas trágicos como Eurípides (480-406 a.C.), Ésquilo (525-456
a.C.) e Sófocles (496-406 a.C.) foram os herdeiros dessa concepção de justiça pré-socrática. A lei
representa o equilíbrio e a hybris a desmedida. A negação da lei deve ser resolvida com uma
sanção conforme o princípio que conhecemos pelo nome de talião: “quem praticou a violência
sofrerá violência”. 38 Resgatar o equilíbrio entre o crime e o castigo é função da polis cuja idéia
de retribuição está fundada na mais antiga tradição e configura uma legalidade cósmica que
para os homens assumia o caráter de férreo destino. Sófocles acrescenta um problema novo: o
do antagonismo entre as leis humanas e as leis divinas. Este conflito constitui o núcleo
dramático da tragédia Antígona. Ao apresentar esse conflito, Sófocles conduz-nos, de certo
modo, à filosofia jurídica da sofística, todavia reconheça e enfatize o caráter sagrado das leis
não escritas. 39
Heródoto de Halicarnasso (484-420 a.C.) transpôs para o âmbito da história a concepção
de justiça oferecida pela tradição. Trata-se de uma concepção religiosa de justiça em que os
deuses, ansiosos por justiça, procuram manter os homens longe da demasia e dos excessos do
orgulho, longe da desmedida. Esse pensador, considerado “pai da história”, apresenta um novo
problema: a diversidade das convicções e instituições humanas, ou seja, a relatividade dos
costumes, a não universalidade das leis entre as polis, o que de certa forma conduz à
problemática sofística.
Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), Demócrito de Abdera (460-370 a.C.) foi o último dos
pré-socráticos, ou filósofos da physis. A importância de mencioná-lo separado dos demais é que

38
ÉSQUILO. Agamenon.
39
Chamamos a atenção para um ponto interessante: a figura do coro na tragédia Antígona desvela certo vestígio
da antropologia sofística que exalta o homem e suas obras, embora apresente a advertência que a obra humana
também poderá gerar um grande mal.
26
ele inaugura o que denominamos de período sistemático da filosofia helênica que, por sua vez,
culminará no pensamento de Platão e Aristóteles. Um estudo através dos fragmentos de
Demócrito permite perceber que sua reflexão ética apresenta um desenvolvimento
independente de sua filosofia natural.
Sabe-se que Demócrito professou um materialismo mecanicista que considerava os
átomos, móveis no vazio, os elementos últimos da realidade. A tradição atribui a Leucipo a
inspiração deste pensamento que a rigor despoja o universo de qualquer concepção divina. Sua
ética apresenta o que podemos denominar de hedonismo esclarecido, ou seja, concebia a
felicidade na moderação, na preeminência da alma sobre os sentidos, cuja meta era a eutimia
que significava um estado de alma sereno e alegre, de tranqüilidade e equilíbrio. O seu
individualismo se refletia na esfera da família e, nesse sentido, combatia o casamento e a
paternidade, isso porque acreditava que tais coisas perturbavam o espírito. Essa concepção
não se estendia ao âmbito político, pois compreendia que a prosperidade do indivíduo está
vinculada à vida na polis. Daí preocupar-se com questões sobre o bom governo e sobre normas.
Como Sócrates, Demócrito inclina-se para uma aristocracia vinculada ao conceito de sabedoria:
em seu modo de ver os melhores deveriam governar.
27

Capítulo III

O período Socrático

3.1. O advento da democracia ateniense e suas implicações políticas

A democracia ateniense não foi obra de um único homem, sabe-se que esteve presente
por pelo menos dois séculos de existência no mundo grego-ateniense (508 a 322 a.C.).
Tradicionalmente, comentamos que Clístenes desenvolveu um sistema de democracia, em 508-
7 a.C., entendido como isonomia, ou seja, igualdade perante a lei, mas observa-se que a palavra
democracia foi inventada tardiamente para expressar tal princípio. Demokratía é considerada
uma palavra ambígua no universo grego; nesse sentido, krátos significa literalmente poder
soberano do demos. Demos tinha acepções diversas na Atenas do séc. V e poderia significar o
povo como um todo; o conjunto dos cidadãos adultos do sexo masculino; a maioria pobre do
corpo dos cidadãos, ou ainda uma denominação dada a pequenas áreas dentro da pólis
(espécie de divisão em bairros ou comunidades). Demokratía poderia significar também
constituição, ou o próprio povo de Atenas na ekklesía (assembléia). Demokratía poderia ser
vista como o governo do povo como um todo ou, para um opositor, como o governo das
pessoas comuns que estabelecem uma ditadura da maioria sobre os melhores cidadãos.
As fontes fidedignas não revelam quem inventou a palavra demokratía ou quando
começou a ser efetivamente utilizada, todavia acredita-se em uma aparição indireta ou virtual,
registrada em Ésquilo, na tragédia A suplicante, a partir de um equivalente poético: demou
kratousa kheir, que significa “a mão soberana do demos”. A palavra demokratía somente
aparece em Histórias de Heródoto e na Constituição de Atenas de Xenofonte,
aproximadamente em 420 a.C. Afirma-se que os ideais democráticos não eram aceitos por
todos, havendo inúmeros adversários. Muito dos opositores defendiam um retorno ao sentido
de democracia de Sólon, outros pretendiam uma volta à forma oferecida por Clístenes e alguns
defendiam ferozmente uma oligarquia. A teoria democrática tal como se desenvolveu em
Atenas viu-se diante da tarefa de uma reconstrução, sobretudo em face das críticas elaboradas
por Aristóteles na obra Política.
Sem dúvida a Antigüidade nos legou um rico acervo sobre política, igualdade,
despotismo e liberdade. Muitas vezes não fica claro para o estudante interessado no
pensamento político da Antigüidade, como compatibilizar o sentido de cidadania ou a idéia de
28
liberdade dentro de uma visão aristocrática que vigorava na época. Muitas são as críticas, por
exemplo, ao pensamento de Aristóteles na Política, em que apresenta a dialética senhor-
escravo. O fato é que precisamos compreender o sentido desses termos naquele contexto
histórico, ou seja, compreender o próprio nascimento da liberdade do cidadão numa Atenas
arcaica, marcadamente aristocrática. Em seu Ensaio sobre a mobilização política na Grécia
Antiga, José Antônio Dabad Trabulsi relata que a idéia de liberdade grega comportava um
aspecto positivo e outro negativo. No sentido positivo, implicava a possibilidade de
participação na direção dos assuntos da polis; no negativo, estaria diretamente relacionado à
situação de não ser dependente de outrem, não ser escravo, nem estrangeiro.
A origem da liberdade do cidadão estaria no período conhecido como Grécia Arcaica
(800-500 a.C.), 40 momento da formação das cidades-estados. As reformas operadas por Sólon
teriam contribuído para a criação dessa idéia de liberdade no momento em que este legislador
proíbe a escravidão por dívidas de atenienses em razão de dívidas. Na ocasião, havia o instituto
da escravidão por dívida e o endividamento de inúmeros camponeses colocava a possibilidade
de vários atenienses experimentarem esse tipo de exploração interna. Essa modificação
conduziu a uma importante separação entre o cidadão e o escravo, esvaziando o sentido de
uma exploração da própria comunidade em favor da difusão da escravidão-mercadoria.
Entretanto que motivos teriam levado a nobreza grega a não reagir de forma eficiente para
evitar o desconforto de ter que conceder às camadas inferiores da pólis privilégios que
monopolizavam? Pode-se pensar que tal “aceitação” encontra fundamento na própria idéia de
polis, ou melhor, na fragilidade ou instabilidade da polis grega. Com o seu advento surge
também um demos que, paulatinamente, adquire certa consciência política e passa a
reivindicar alguns direitos. Essa transformação decorre de avanços sociais que naturalmente
ampliam o sentido de igualdade até então restrita à classe dos nobres, ou seja, àqueles a quem
de direito pertencia a partilha do espólio de guerra.
Segundo Trabulsi, nesse aspecto, o modelo grego se destacou do modelo oriental de
acordo com o qual as crises internas eram sufocadas pelas elites. Na Grécia, as crises internas
deviam ser evitadas, pois fragilizavam a cidade diante do estrangeiro. Nesse sentido, era
necessário “garantir um máximo de coesão interna para fazer face à ameaça exterior. Donde a
41
busca da harmonia que uma boa constituição poderia criar”. Na obra de Heródoto

40
TRABULSI, José Antônio D. Ensaio sobre a mobilização política na Grécia Antiga. BH: UFMG, 2001.A tradição
abraçou a seguinte divisão: Período Pré-Homérico (2500-1100 a.C.); Período Homérico (1100 – 800 a.C.); Período
Arcaico (800- 500 a.C.); Período Clássico ( 500-400 a.C.); período Helenístico ( 336-146 a.C.)
41
Idem, 2001: 54.
29
encontramos alguns exemplos para esta tese, como o da cidade de Samos que, fragilizada
42
internamente, caiu em domínio persa. Nesse sentido afirma o autor que: “É, portanto, pela
necessidade de manter essa coesão interna da polis, para poder defender a comunidade contra
os eventuais agressores, que as concessões são feitas. Em caso de tal agressão, os aristocratas
se arriscavam a perder tudo de uma vez.” 43 Em suma, foi a necessidade premente de garantir
aquele modelo de vida social e política que provocou o alargamento da idéia grega de liberdade
e o conseqüente sentido de cidadania em Atenas, isto é, buscou-se na representação
democrática a constituição de laços integrativos face aos perigos externos de nações com base
territorial e populacional numerosas.
O período mais conhecido ou famoso da demokratía ateniense é o da segunda metade
do século V a.C. Todavia, as fontes disponíveis que tratam do tema remontam ao século IV a.C,
o que compromete seu estudo, visto que esse sistema aperfeiçoou-se ao longo do tempo. A
democracia descrita por Aristóteles na obra Constituição de Atenas (Athenaion Politeía) não é,
portanto, a democracia de Péricles. 44
A democracia ateniense, participativa, difere da democracia moderna, representativa.
As decisões eram tomadas e executadas diretamente pelos cidadãos de Atenas. Duas
instituições eram fundamentais para configurar a imediatez dos procedimentos políticos de
Atenas: a ekklesia (Assembléia) e a boulé (conselho dos 500) com seu subcomitê de prutáneis
(presidentes). Segundo alguns historiadores, todos os problemas da cidade eram observados
primeiramente pelos cinqüenta prutáneis, que viviam em constante vigilância. Se constatada a
relevância do problema, os prutáneis convocavam uma reunião plenária da boulé dos 500 e, se
necessário, convocar-se-ia a ekklesia, órgão encarregado da tomada de decisões da democracia
direta ateniense. A palavra ekklesia significa, literalmente, “um grupo que é chamado”; esse
grupo se reunia em uma colina chamada Pnix a sudoeste da agorá que era o centro cívico de
Atenas.
Os cidadãos de mais de vinte anos que estivessem inscritos nos registros do seu demo
(comunidade) poderiam integrar a ekklesia. O assunto principal era a política externa. Esse
órgão não só deliberava sobre as políticas a serem seguidas, como também legislava. Tal função
foi posteriormente delegada a um órgão menor de legisladores (nomothétai), por volta de 403
a.C. De acordo com os relatos de Aristóteles, na década de 320 a ekklesia realizava quatro
42
Heródoto, III, 143-144 apud TRABULSI, José Antônio D. Ensaio sobre a mobilização política na Grécia Antiga. BH:
UFMG, 2001: 55.
43
TRABULSI, José Antônio D. Ensaio sobre a mobilização política na Grécia Antiga. BH: UFMG, 2001: 55.
44
Péricles: estadista e general, incentivador da democracia ateniense. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma
introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
30
reuniões fixas em cada um dos meses que constituíam os dez meses civis. A primeira reunião
era denominada de ekklesia soberana (Kúria). Cada participante era inicialmente verificado, em
seguida iniciavam as oferendas de purificação, pronunciavam maldições contra traidores e, a
partir de então, começavam as sessões. Sabe-se que uma reunião ordinária durava menos do
que um dia. Outro fator importante a ser destacado é que na prática nem todos os cidadãos
participavam da ekklesia ou poderiam subir à tribuna.
Acreditam alguns historiadores que a população de cidadãos de Atenas flutuava em
torno de 20 ou 50 mil pessoas, mas que somente cinco mil efetivamente participavam da
ekklesia. Isso porque, além de o local não comportar um grande número de cidadãos, muitos
não se sentiam atraídos pelo debate, ou ainda viviam desmotivados pela longa distância que
teriam que percorrer dos demos até a Pnix. Portanto, no séc. IV introduziram uma espécie de
pagamento para compensar o comparecimento que implicava perda de horas de trabalho. Por
razões não difíceis de compreender, entre 400 e 330 a.C. a Pnix sofreu reformas para acomodar
um número cada vez crescente de cidadãos alcançando o quorum de 13 mil participantes.
A ekklesia exigia qualidades especiais de seus oradores, que lançavam mão da
persuasão para obter êxito em relação aos seus interesses. Essa habilidade imperiosa para o
cidadão ateniense proporcionou um grande desenvolvimento da educação sofística. Os
cidadãos que falavam à tribuna eram denominados de rhetores, ou seja, oradores ou ainda
politeuómenoi, os políticos. Esses rhetores falavam na ekklesia na qualidade de líderes de
pequenos grupos políticos ou pessoas com idéias parecidas (não confundir com o que
chamamos hodiernamente de partidos políticos). Eram agrupamentos informais, em que
aquele que expressava com maior clareza suas idéias freqüentemente tornava-se o porta-voz.
Alguns desses oradores foram também denominados de demagogós que significa
45
literalmente, “o condutor do demos”. A condução da justiça em Atenas era responsabilidade
dos thesmothétai, seis funcionários. A democracia ateniense implicava também uma grande
participação do cidadão nos tribunais. Em Atenas, ou melhor, na antiga Grécia não havia a
separação dos poderes. Foi Aristóteles em sua obra Política que ressaltou que o cidadão de
uma democracia não só participava da boulé e ekklesia, como também, participava nos
tribunais.

3.2. Os tribunais em Atenas: graphé paranómom

45
JONES, P.(org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. SP: Martins Fontes, 1997: 210.
31
O surgimento de um tribunal popular como recurso contra as decisões das autoridades
se deu com Sólon em 594 a.C, denominado de Eliaia. Após 462-61, todos os tribunais do júri
passaram a figurar como Eliaia, não só como fase recursal, mas como primeira instância. Tais
tribunais eram constituídos por jurados em um número que poderia variar entre 201 a 2.501
membros e, nesse caso, também foram chamados de dikastéria. Sabe-se que o júri era
escolhido de acordo com a necessidade a partir de uma lista anual de seis mil jurados e, mais
tarde no séc. IV a.C, eram escolhidos dentre os que se ofereciam para tal. Observa Peter V.
Jones, na obra supramencionada, que o termo “jurado” é inapropriado para designar os
dikastai, pois não havia juízes no sentido moderno, mas “jurados”, que eram, ao mesmo
tempo, juízes. Os dikastai eram pagos por cada dia de sessão; pagamento que fora introduzido
por Péricles. 46 Pode-se presumir que o cidadão que comparecia para ser “jurado” era o mesmo
que tinha o hábito de comparecer às ekklesias.
Muitas vezes a ekklesia funcionava como tribunal. Observa-se ainda a inexistência de
um órgão que funcionasse como Ministério Público ou força policial específica. O procedimento
específico desses órgãos ficava a cargo da iniciativa particular, embora houvesse a distinção
entre casos públicos e casos particulares. Neste último, somente a parte ofendida poderia
mover a ação, que por sua vez era denominada de díke. Nos casos públicos, a iniciativa ficava a
cargo de quem quisesse emitir uma intimação por escrito (graphé).
O homicídio, por exemplo, era considerado como díke por prejudicar o papel da família.
Se um orador na ekklesia apresentasse uma proposta inconstitucional, configuraria um caso
público para quem quisesse salvaguardar a democracia. Rumores de subversão e problemas de
desafeto político também possibilitariam uma graphé. Uma vez emitida a intimação, graphé
47
paranómom, ao orador com proposta de lei inconstitucional, esta ficaria suspensa até o
julgamento e, sendo considerado culpado, pagaria uma multa e seu projeto seria
imediatamente cancelado. Em Atenas, o povo como jurado julgava o próprio povo na ekklesia o
que assinala, em certo sentido, o princípio da responsabilidade democrática alcançando a
todos.
Na obra Apologia de Sócrates, que narra a versão platônica sobre o julgamento de
Sócrates, condenado à morte em 399 a.C., percebemos as peculiaridades do tribunal ateniense.
Não havia advogados; os querelantes falavam em causa própria, sem regras para apresentação

46
Cf. As vespas (422) de Aristófanes que constitui uma sátira sobre os tribunais.
47
O primeiro uso da graphé paranómom foi verificado em 415, momento em que houve rumores de subversão.
Também foi utilizada na competição pelo sucesso político. A graphé paranómom substituiu o ostracismo que foi
abandonado por volta de 416.
32
de provas e sem juiz. As testemunhas, embora fundamentais, não eram ouvidas pelas duas
partes e os jurados reagiam conforme suas emoções e preconceitos morais. Os jurados
votavam imediatamente após o discurso dos querelantes, sem fazer uso de recintos reservados
ou de conselhos de juiz. O testemunho de escravos somente poderia ser aceito se obtido sob
tortura, porque eram considerados objetos sem alma, coisas. Na verdade, o escravo era tido
como um bem familiar valioso para o senhor que preferia não submetê-lo a qualquer tortura, o
que contribuiu como argumento válido para a limitação de testemunhos considerados pouco
confiáveis.
Sabe-se que no século IV a.C. havia o recurso da arbitragem. Ambas as partes
concordavam com a participação de árbitros particulares e se comprometiam a aceitar as
decisões. Segundo os historiadores, as partes poderiam invocar a arbitragem a qualquer tempo
em um processo civil. Se tal método não fosse eficaz, procedia-se a uma intimação. A parte
ofendida se dirigia à agora e verificava se as leis que lá estavam expostas apoiavam seus
interesses e qual o procedimento adequado à sua causa. Inicialmente, a intimação era feita
verbalmente, o réu comunicado perante testemunhas deveria apresentar-se ao árkhon,
conselho judiciário em dia estabelecido. Na data prevista, tal conselho decidia sobre a
possibilidade ou não do processo. Se viável, a queixa era registrada por escrito e ambas as
partes depositavam um sinal referente as custas que o perdedor pagava por inteiro após o
julgamento. O conselho judiciário fixava um dia para a audiência e determinava que uma cópia
da queixa fosse exposta publicamente na agorá.
No caso de uma dike, a aplicação da sentença era função do ofendido. A recusa em fazer
um acerto ou acordo poderia ensejar mais processos e até mesmo a perda dos direitos civis
(atímia). Se o condenado se recusasse a pagar a quantia estipulada, o querelante vencedor
poderia apossar-se de suas propriedades no valor referente à quantia imposta. Os julgamentos
em uma graphé e as sentenças de morte proferidas eram atribuições de funcionários da cidade.
Atenas tinha um grande número de funcionários com mandatos anuais, embora a cidade não
possuísse uma burocracia, no sentido moderno do termo. Segundo Aristóteles, na segunda
metade do séc. V a.C., Atenas contava com setecentos funcionários, o que ressalta o sentido
democrático na oportunidade de ocupar cargos públicos por turnos.
A situação de atimía equivalia a estar fora da lei e, nesse sentido, o homem na condição
de átimos poderia ser morto ou roubado sem ter direito à reparação legal. A atimía não
acarretava a perda das propriedades ou o exílio; antes, porém, equiparava-se à morte no
sentido político, a privação absoluta dos direitos civis: falar na ekklesia, participar nos tribunais,
33
integrar a boulé, entrar nos templos e na agorá. Em geral, a perda dos direitos civis era de
caráter perpétuo, sobretudo nos casos considerados, particularmente graves e era até mesmo
dirigida aos descendentes. Peter Jones nos relata um caso curioso, o de Andócides, em 415 a.C.,
que sofreu a perda parcial dos direitos civis por se envolver na profanação dos Mistérios de
Elêusis. Segundo seus relatos, tal sentença foi revogada por ocasião de uma anistia geral
48
extraordinária concedida em 403. Enfim, Atenas foi a polis grega que mais contribuiu
intelectualmente para o desenvolvimento das ciências e artes. A sua importância envolve a
matemática, a retórica, a história, a ética, a política, a lingüística, a lógica e as artes (poesia,
escultura e arquitetura). Seus pensadores desenvolveram teorias que permaneceram válidas
durante milhares de anos e algumas perduram até hoje.

3.4. O advento da Sofística: do cosmo para o homem.


O século V vivenciou um esplêndido apogeu cultural na cidade de Atenas, considerada a
capital intelectual do mundo helênico. Essa cidade-estado experimentou um verdadeiro
entrecruzamento de pensamentos filosóficos que contribuiu para a passagem do período
cosmológico para a fase antropológica. Foi nesse contexto que surgiram os sofistas. O
movimento sofístico em Atenas mobilizou um grande número de professores e causou um
efeito perturbador na antiga educação do jovem grego, construindo um novo tipo de instrução
no interior do sistema até então existente. Pode-se observar a educação grega antes do
aparecimento da sofística a partir das obras de Aristófanes e dos diálogos República e
Protágoras de Platão. A educação ateniense se dividia em duas partes fundamentais: a
gymnastiké (educação física) e a mousiké (intelectual).49 Na verdade, não havia um sistema
elaborado, mas a escolaridade não ultrapassava o estágio elementar. Consistia simplesmente
nos rudimentos da gymnastiké e da mousiké e dependia da iniciativa individual, dependia da
capacidade financeira da família. 50
Nesse sentido, não havia número obrigatório de anos de estudo e para cada ramo de
saber havia professores específicos. Para a mousiké tinham o kitharistés e para a gymnastiké, os
paidotribés que vem do grego paidéia, jogos para crianças dos 7 aos 14 anos. Todos recebiam
honorários e eram contratados diretamente pelas famílias. Quando alcançavam a adolescência
eram dispensados do acompanhamento formal, pois se acreditava que a própria vivência na

48
JONES, P (org). O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. SP: Martins Fontes, 1997: 231-
2.
49
PLATÃO. República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: 1993: 376 e.
50
PLATÂO. Protágoras. Belém: Edufra, 2002: 326 c.
34
pólis iria complementar a educação. Segundo Aristófanes, na obra As Nuvens, o objetivo da
educação grega era atingir a excelência moral, a transformação em boas pessoas, ou seja, bons
cidadãos, ou cidadãos úteis. Na fase da adolescência o jovem experimentava o tempo de ócio,
do grego scholé como complemento à sua primeira formação. Dos 18 aos 20 anos os jovens do
sexo masculino, epheboi, experimentavam o serviço militar obrigatório.
O movimento sofístico ganhou expressão nesse vácuo da formação do jovem grego.
Construía um novo tipo de instrução no interior de um sistema que não se estendia além do
nível elementar. Os sofistas criaram um nível secundário valorizando temas de natureza
intelectual em detrimento da gymnastiké. Não precisamos mencionar que os conteúdos
variavam de acordo com a visão educacional de cada sofista ou da família. 51 Assim, ensinavam
como tutores privados, competindo entre si, formando grupos com certa identidade,
profissionalizando as idéias de scholé e diatribe. Protágoras foi considerado o primeiro a
ensinar mediante pagamento. Nas palavras de Isócrates, quando fala de seu mestre Górgias,
percebe-se essa nova realidade:

“Ele ensinava na área da Tessália onde os gregos mais prósperos viviam e


onde dedicavam a maior parte da sua vida ao trabalho. Não estabeleceu
residência fixa em nenhuma cidade e, portanto, não gastou dinheiro nos
interesses da comunidade nem foi obrigado a pagar impostos.” 52

Buscando outra leitura da sofística, podemos pensar que Sócrates, Platão e Aristóteles,
como para muitos dos seus coetâneos, seriam mais um dentre uma grande variedade de
sofistas. A possível distinção estaria num certo ponto de vista platônico. Platão se considerava
mais philosophoi do que sophistai, mas temos que desconfiar que nos séc. V e IV a.C. não havia
tal distinção. Ademais, Platão nos chamou a atenção para a diferença de método entre Sócrates
e os sofistas. Sócrates não havia desenvolvido um currículo secundário à moda sofista. Tanto
Platão como Xenofonte nos relatam o pensamento socrático mais próximo da educação antiga
grega. Segundo relatos de Xenofonte, Sócrates saía ao amanhecer e freqüentava o que eles
chamavam de peripatoi, gymnasium, àgora. Assim, ganhou muitos discípulos e teria fundado
uma escola, mas não aceitava pagamento. Sua paidéia tratava de uma educação para a vida em
cidade.53 Outro relato interessante que nos permite visualizar a diferença entre Sócrates e os
sofistas está nas palavras de um discípulo de Aristóteles quando menciona:

51
Isócrates, Antidosis, 304, apud PATRICK, John.. Aristotle' s School. A study of a Greek Educational Institution
(1972) Londres: University of California Press, p. 32-67.
52
Ibidem.
53
XENOFONTE. Os pensadores. “Ditos e feitos memoráveis de Sócrates”. SP: Abril, 1973, p, 33ª-b.
35
“Sócrates era, de qualquer maneira, um filósofo embora não tenha assentado
ou não se tenha estabelecido a si mesmo num trono ou mesmo fixado uma
hora para conversar (diatribe), ou para caminhar (peripatos) com seus
conhecidos (gnonimoi). Ao invés, estava com eles sempre que podia e servia
no exército ou ia para o àgora com alguns deles.” 54

A sofística se tornara uma exigência da própria democracia ateniense: formar cidadãos


capazes de viabilização de idéias políticas nas assembléias. Esses senhores cultivaram a
retórica, qualidade pedagógica de convencer pela argumentação o que se concebia como
verdade. Tratava-se de uma tendência para institucionalizar a educação grega. Interessante
observar que na visão de Aristófanes, Sócrates e os sofistas promoveram uma transformação
na educação do jovem grego: desenvolveram uma educação secundária com forte conteúdo
intelectual. Muitos estudiosos denominaram essa fase como o Iluminismo grego, pois a
tendência à retórica baseava-se num racionalismo de espírito crítico sobre a tradição helênica.
Ressaltaram a contraposição entre o natural e o convencional, ou seja, é o costume, o arbítrio
dos homens que estabelece o que é justo ou injusto, certo ou errado.
Os sofistas, com suas teses acerca da relativização da verdade, causaram receio e
escândalo que se refletiram nas comédias de Aristófanes e nos diálogos de Platão. Na verdade,
as informações que temos dos sofistas foram obtidas através dos diálogos de Platão, seu
opositor declarado. O único estudo da sofística repousa na existência de alguns fragmentos ou
fontes indiretas, além de não constituir uma unidade sistemática. Nos diálogos de Platão os
sofistas figuram como os interlocutores de Sócrates. Nesse sentido, resta-nos a máxima
prudência possível ao tentar compreendê-los.
Mas o que fizeram tais homens? Os sofistas freqüentemente criticavam o fundamento
que conferia validade às leis e costumes da tradição. Atacavam o aspecto sagrado da tradição
helênica. Eles observavam a diversidade cultural de sua época e percebiam a mudança na
esfera das instituições. A lei e os costumes assumiam um caráter essencialmente humano,
convencional, vinculado à vontade dos homens. Assim como nos pensadores jônicos, o ponto
de partida dos sofistas foi o movimento e a procura de uma realidade única capaz de
permanecer idêntica a si mesma. Sendo assim, surgiu com os sofistas a dicotomia natureza
(physis) e lei (nomos) ou convenção. A moralidade passa a estar desligada da ordem natural e o
interesse pela conveniência assume o status de pilares da vida social. É preciso mencionar que
o termo sofista significa “sábio” ou “especialista do saber”, por isso a palavra em sua origem
apresentou um sentido positivo, mas ganhou conotação negativa a partir do pensamento

54
Plutarco. An seni res publica gerenda sit, XXVI, 796d.
36
platônico, vinculando-a ao saber aparente e não efetivo. Esses especialistas do saber
promoveram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando a reflexão filosófica da physis
para o homem e a pólis. Ganhavam relevo problemas éticos, políticos, lingüísticos, religiosos e a
própria educação como objeto do pensamento. Os sofistas constituíram, na verdade, o
primeiro e efetivo movimento intelectual de cunho político.
Alguns autores costumam dizer que podemos experimentar o advento de uma fase
humanista da filosofia grega, um movimento com dois momentos bem distintos. O primeiro foi
com a filosofia da physis e a emergência da vida urbana acompanhada de uma crise de valores
da aristocracia grega, com afluxo de estrangeiros na pólis e a ampliação do comércio. Assim, as
cidades gregas passavam por uma mudança de olhar provocada pela difusão dos
conhecimentos e experiências dos viajantes e a virtude passava então a ser adquirida, não mais
ligada ao nascimento nobre. O segundo com o advento da sofística. O problema educacional
assumiu lugar de destaque quando enfatizou que a nova areté se desvinculara da nobreza e se
fundara no saber. Nas lições de Giovanni Reale e Dario Antiseri, tivemos três grupos de
sofistas: os que formaram a primeira geração, os mais famosos; os que podem ser
denominados de críticos, porque estavam mais preocupados com o método em detrimento do
conteúdo; e os políticos que trabalhavam o aspecto teórico da linguagem com propósitos
políticos. 55
Trasímaco da Calcedônia que figura como personagem na República, livro I, afirmava
que a origem do nomos estaria no interesse do mais forte. Cada governo promulga leis que lhe
são favoráveis. O justo é o que interessa ao governo estabelecido, Trasímaco, como leitor da
realidade, pretendia descrever aquilo que de fato acontecia Já Cálicles, por sua vez,
personagem do diálogo Górgias de Platão, concebe o nomos como estabelecido em benefício
da massa dos fracos como um limite ao excesso de superioridade dos mais fortes, embora
discordasse do número sobre a qualidade. Cálicles assemelhava os mais fortes com os
melhores. Em seu modo de ver, a injustiça consistiria em alguém se destacar dos demais. Há na
sua doutrina uma clara oposição entre um estado de natureza e o estado civil, regido por um
direito positivo que limita a liberdade natural. O seu conceito de natureza se reduz aos instintos
irracionais primitivos e espontâneos no homem.
A oposição entre natureza e convenção criou as condições de possibilidades para uma
crítica das instituições políticas até aquele momento, atacando os privilégios de cidadania e de

55
REALE, G e ANTISERI, D. História da Filosofia. Vol. I. São Paulo: Paulus, 1990.
37
56
classe, a escravidão, a subordinação da mulher ao marido e a discriminação entre gregos e
bárbaros. Sabe-se que um sofista chamado Antifonte escrevera a obra Sobre a Verdade, da qual
restou apenas um fragmento, em que afirmava a igualdade natural de todos os homens,
asseverando que as leis estabelecidas pelos homens eram leis contrárias à natureza que, na
verdade, deveriam conduzir a um igualitarismo democrático. Em outro tratado atribuído a
Antifonte, Sobre a Concórdia, os fragmentos que se conservaram afirmavam a obediência às
leis fundamentadas em um egoísmo enraizado numa educação criadora de hábitos socialmente
aceitos.
Crítias, parente de Platão e que fora membro do governo tirânico dos Trinta em Atenas,
atribuiu a uma argúcia a origem da obediência às leis e a crença nos deuses. No seu modo de
ver como um crime só pode ser punido se a infração for conhecida, o homem teria inventado
um ser divino que tudo vê conhecedor das infrações mais ocultas.
Outro sofista importante foi Protágoras de Abdera que, ao lado de Górgias de Leontini,
se destaca como um dos mais antigos representantes da sofística. Sabe-se que Protágoras fora
amigo de Péricles e que recebera deste a tarefa de elaborar a redação das leis da colônia
ateniense de Turioi, no Sul da Itália, por volta de 444 ou 443 a.C. Observa-se também que
Platão tratou-o de forma diferenciada. No mito platônico, Protágoras fundamenta a coesão
social nas virtudes do pudor e da justiça, ofertadas aos homens por Zeus. Como os homens
viviam em incessantes lutas, Zeus concedeu o dom que iria permitir a edificação das cidades.
Esse mito retrata o problema do desenvolvimento das aptidões sociais a partir de uma dura e
lenta aquisição do gênero humano prevalecendo sobre as tendências egoístas.
Segundo Protágoras, quem não possuísse as duas virtudes mencionadas deveria ser
eliminado da sociedade, justificando desse modo a supressão dos insociáveis mediante uma
teoria da pena como função intimidatória em nome da defesa social. Há a crença numa virtude
social média que o esforço pedagógico seria capaz de aperfeiçoar – certo otimismo
antropológico. È em Protágoras que se encontra um relativismo ético que converte em regra
desejável a utilidade social, transformando o nomos em conseqüência de um acordo de todos
os membros da sociedade. O justo será o conveniente em cada caso, desvelando assim, a lei
como interesse do bem comum, tendo em vista a sua aplicabilidade ao interesse político.
O relativismo político de Protágoras é uma conseqüência do seu relativismo
gnosiológico, expresso magistralmente em sua mais famosa frase: “o homem é a medida de
todas as coisas: das que são enquanto são; das que não são, enquanto não são”. Com este

56
Os defensores de certo feminismo foram ridicularizados por Aristófanes na obra O congresso das mulheres.
38
axioma negou a possibilidade de um critério absoluto sobre o ser e o não-ser. O homem é a
medida, o critério, a fonte de todas as experiências em geral. O homem torna-se o centro de si
mesmo como fonte única de valor, combatendo toda moral tradicional que fundava os seus
pressupostos conforme os interesses dos deuses, favoráveis às velhas famílias aristocráticas.
Portanto, vale enfatizar que a sofística contribuiu para a reflexão filosófica na medida em que
estimulou os debates sobre os valores partilhados e introduziu novas idéias.
O racionalismo que marca suas considerações críticas inspirou projetos de reformas
institucionais que conduziram à formulação de constituições supostamente perfeitas. Para
alguns estudiosos do helenismo, esse teria sido o momento do surgimento de um gênero
literário que, para outros, só aconteceria muito mais tarde: a utopia. As duas primeiras utopias
seriam as de Hipodamo de Mileto e de Fáleas da Calcedônia que foram analisadas por
Aristóteles no livro II da Política. Assim, a sofística pretendia dissolver os velhos preconceitos da
casta da aristocracia, abrindo caminho para uma filosofia moral.
O mundo grego vivenciou diversos tipos de regimes constitucionais, isto é, de
organizações de governos da monarquia tradicional à democracia. Com o surgimento de uma
classe média mercantil se deu a passagem de uma economia natural para uma de cunho
mercantil, transformando assim a vida ateniense. No livro III, de sua obra História, Heródoto
oferece-nos uma ficção em que há uma séria discussão sobre as diversas formas políticas de
governo. Heródoto as observa e as classifica de acordo com o exercício do poder: monarquia, o
poder supremo pertence a um indivíduo; oligarquia, o poder pertence a um grupo reduzido de
homens que receberam uma educação específica; isonomia, que pertence ao conjunto dos
cidadãos, o demos. Esta classificação será sistematicamente observada por Platão, no diálogo o
Político e, em Aristóteles, na Política.
Na época que estamos a considerar dois nomes são importantes para o debate sobre as
formas de governo: Isócrates e Demóstenes. Ambos trataram de um problema fundamental à
democracia: a chefia desse regime democrático. Combateram a demagogia e a corrupção dos
tribunais populares. A despeito dos vícios desse regime Demóstenes o considerava o único
legítimo. Já Isócrates 57 propôs uma reforma que significaria a substituição de uma democracia
direta por uma indireta e, nesse sentido, os melhores estariam encarregados da gestão dos
negócios públicos. Foi esse pensador que distinguiu o sentido de justiça de “dar a cada um o
que merece” do sentido “dar a todos o mesmo sem discriminação”. Mais tarde na obra
Panegírio de Atenas (380 a.C.) ressaltou a problemática da política externa e apresentou a idéia

57
Na obra Areopagítico (354 a.C.) e Panatenaico (340 a.C.)
39
de uma confederação pan-helênica que pusesse fim a atomização política da Grécia. Pode-se
acreditar que Isócrates tenha pressentido a possibilidade da caducidade da pólis grega.
Ressalta-se que o advento do movimento sofístico não se deu por homens interessados
em desvendar o mundo natural e nele perceber uma impossibilidade de fundamentar os novos
problemas de ordem política. Os sofistas surgem no bojo de uma transformação sócio-política
da Grécia e, especialmente de Atenas, que se destaca em razão de sua prosperidade
econômica. Com o advento de ricos comerciantes e de uma classe média de pequenos homens
de negócios, os cidadãos procuraram uma maior participação nas instituições políticas daquele
tempo, tanto assim que a participação dos cidadãos aumenta, quer pela espontaneidade ou
pelo estímulo governamental de pagar pelas horas dedicadas aos interesses da cidade.
Interesses da cidade ou não, com a participação política dos novos interessados viu-se a
necessidade de uma educação voltada para os embates no interior da ekklesia, portanto a
sofistica representa o esteio teórico dos novos promitentes homens do poder. Os sofistas
legitimam com sua teoria esse novo elemento ateniense: o indivíduo sem linhagem que deseja
se destacar na cidade a partir da participação política.

2.3. - Sócrates (469-399 a.C.)


Sócrates, contemporâneo e opositor mais importante dos sofistas, tornou-se o ponto de
partida de várias correntes teóricas. Sua existência nos foi transmitida por Platão, que ao
colocá-lo como personagem principal em vários de seus diálogos, tornou axial os postulados
socráticos, erigindo assim uma nova perspectiva de filosofar: a busca da verdade através do
autoconhecimento. Sócrates se tornou a figura mais significativa da Filosofia Antiga e isso se
deu de tal forma, que muitas vezes uma linha tênue separa o homem lendário do histórico. Na
verdade, Sócrates nada escreveu, mas na condição de personagem platônico expressou o
pensamento de seu discípulo e supostamente o seu próprio, de forma que não fica claro, à
primeira vista, a diferença entre o pensamento de um e o do outro.
Os diálogos platônicos considerados pela tradição como “diálogos socráticos”, são:
Apologia de Sócrates, Eutífron, Críton, Protágoras, Górgias e o livro I da República. Foram
considerados como socráticos porque os diálogos posteriores apresentam mais
acentuadamente a personalidade de Platão. O que se deve advertir é que se torna
recomendável comparar a figura de Sócrates traçada por Platão e a apresentada por
40
Xenofonte58, além das referências feitas por Aristóteles. Sócrates, assim como os sofistas,
orienta sua investigação para os problemas humanos, observa a necessidade de substituir a
obediência cega ao nomos por uma explicação racional convincente.
Sócrates difere dos sofistas quanto ao conceito de verdade e o método em conhecê-la.
Difere, ainda, no tocante a exposição dos problemas – como não era orador não se preocupava
com grandes discursos, antes, porém, priorizava a clareza dos conceitos, a simplicidade na
exposição e introduziu os temas mediante o uso de perguntas e respostas que pouco a pouco
rodeavam o objeto, descobrindo seus diferentes aspectos até desnudar a superficialidade e
imprecisão de certas opiniões ou juízos proferidos pelo senso comum acerca do objeto em
discussão. Seu método enfatizava a necessidade de definições rigorosamente formuladas,
porque a verdade deve ser intuída no interior do diálogo. Nesse caso, Sócrates personifica a
figura do homem insubornável, cujo espírito prefere demonstrar uma ignorância confessa a
apresentar um falso saber. Segundo nos relata Xenofonte:

“Sócrates sempre viveu à luz pública. pela manhã saía a passeio e aos ginásios,
mostrava-se na ágora à hora em que regurgitava de gente e passava o resto
do dia nos locais de maior concorrência, o mais das vezes falava, podendo
ouví-lo quem quisesse..”59

Sócrates introduziu na filosofia, por meio do seu método, aquilo que comumente os
estudiosos do seu pensamento chamam de intelectualismo ético. Para esse filósofo a moral
pode ser reduzida ao conhecimento do bem, pois concebia que todos poderiam conhecer a
verdade se interrogassem a si mesmos e comparassem seus juízos com os dos demais. O
conhecimento se torna uma virtude e, nesse sentido, o homem pratica o mal por ignorância do
bem. Como sua mãe, Sócrates se considerava uma parteira, só que, ao contrário de sua
genitora, ajudava as pessoas a parirem idéias, ou seja, pela introspecção os homens
conseguiriam vislumbrar a verdade mediante a superação das opiniões. Seu intelectualismo
ético impõe uma discussão teórica acerca dos valores que deveriam nortear os indivíduos,
negando, por assim dizer, condutas baseadas no senso comum.
No âmbito da filosofia político-jurídica, se opôs à tese sofística da moral do mais forte e
do relativismo, ensinando em seu lugar o princípio segundo o qual é mais digno sofrer a
injustiça do que cometê-la e, se por uma fatalidade a cometeu, é preferível aceitar a sanção
correspondente. Nesse sentido, no interior de uma racionalidade ética comprometida com o

58
Xenofonte (430-354 a.C.) – suas obras foram conservadas na íntegra: Hierão, República dos Lecedemônios,
República de Atenas, Ciropédia e Econômico.
59
XENOFONTE. Os pensadores. In: “Ditos e feitos memoráveis de Sócrates”. São Paulo: Abril, 1973: 58.
41
aperfeiçoamento da alma humana, a pena figuraria como um remédio para o homem. No seu
modo de ver, a temperança e a justiça são condições indispensáveis para a maior felicidade
humana. A Filosofia assume, portanto, o papel de tornar possível essa perfeição. Sócrates
ensinava que as leis eram necessárias e correspondiam a uma exigência da natureza humana.
Isso implica dizer que a obediência às leis é um dever sem excusas. É a pólis que torna possível
60
a vida do cidadão, logo há um acordo tácito pelo qual o cidadão deve a sua obediência.
Ressalte-se que essa postura de Sócrates não torna lícitas considerações de que ele teria sido
um positivista que tenha separado o Direito da Justiça. A esse respeito Truyol y Serra chama
atenção que:

“Sócrates vê na cidade uma realidade ética, fundamentada na ordem divina


das coisas. Esta legitimidade essencial não é destruída por erros acidentais. O
próprio Sócrates alega que, em certa ocasião, ofereceu resistência passiva a
uma ordem injusta, sob o governo dos Trinta Tiranos. Também se opusera a
um acordo ilegal feito em assembléia popular. Mas essa desobediência não
pode ir ao extremo de pôr em perigo os alicerces da ordem social, sem os
quais é inconcebível uma vida humana digna de tal nome”. 61

Ademais, Sócrates concebia a existência de leis não escritas advindas da vontade reta da
Divindade. Essas leis estariam na consciência humana fundamentando, sobretudo as leis
positivas. Todavia não ignorava os conflitos que na realidade aconteciam entre ambas. Por isso
preconizava a necessidade do homem evolver-se por meio da reflexão.
Um fator muito importante no espectro do pensamento político socrático é a sua
oposição ao regime democrático de Atenas. Sua crítica à democracia passa por um problema
simples e ao mesmo tempo complexo: quem tem competência para erigir os negócios públicos
da cidade. Sócrates não compreendia como uma multidão poderia conduzir corretamente os
negócios públicos com a devida competência, ainda mais uma multidão desprovida de
conhecimentos verdadeiros e mergulhada no senso comum. Foi exatamente em função de sua
crítica ao regime democrático, em conjunto a um método que denunciava a superficialidade
intelectual de alguns homens importantes do cenário político ateniense que concitou inimigos
poderosos. Sócrates foi acusado de introduzir novos deuses e de corromper a juventude; sendo
condenado à morte. Sua condenação causou grande constrangimento aos seus fiéis discípulos.
Indignado relata Xenofonte:
“Admira-me, pois, hajam crido os atenienses alimentasse Sócrates opiniões
extravagantes sobre os deuses, ele que jamais coisa alguma disse nem

60
Cf. o diálogo Críton.
61
SERRA, A. T. História da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profissões, 1985, p. 111.
42
praticou de ímpio, ele cujas palavras e ações sempre foram tais que quem
falasse e se portasse do mesmo modo seria reputado o mais pio dos
humanos”.62

Nas obras Apologia e Fédon, Platão traça um pouco dessa morte trágica imposta a
Sócrates. Percebe-se Sócrates como um verdadeiro homem virtuoso que não fugiu à morte;
que acreditava na imortalidade da alma e na justiça divina. O seu imperativo ético impelia-o à
prática do bem, a jamais retribuir uma injustiça com outra injustiça.

62
XENOFONTE. Os pensadores. In: “Ditos e feitos memoráveis de Sócrates”. São Paulo: Abril, 1973: 59.
43
Capítulo IV

A dimensão política em Platão e a crítica de Aristóteles.

4.1. Platão (428 – 347 a.C.)


Platão nasceu em 427 a.C. e faleceu na mesma cidade, Atenas, em 347 a.C . Filho de uma
família da aristocracia ateniense dedicada à política, foi discípulo de Crátilo (séc. V a.C.) que por
sua vez foi seguidor de Heráclito de Éfeso; posteriormente, Platão tornou-se discípulo de
Sócrates. O seu pensamento filosófico apresentou a influência das tradições eleática,
heraclitiana e pitagórica. Na verdade, Platão chamava-se Arístocles, mas ficou conhecido como
Platão por conta de sua compleição física em razão de ter sido atleta olímpico, daí, pois platô
em grego significava amplitude, largueza. Fundou sua Academia em 387 a.C., nos arredores de
Atenas, em cujo pórtico figurava o lema: “Não passe destes portões quem não tiver estudado
geometria”. A Academia durou cerca de um milênio, até o momento em que Justiniano a
dissolveu em 529 d.C. Em Ménom, primeiro diálogo de Platão, sabemos maiores detalhes sobre
sua escola.
Segundo Serra, Platão foi o verdadeiro artífice de um saber inaugurado por Sócrates:
“Sócrates ultrapassou o relativismo e o individualismo dos sofistas, ao afirmar a
existência de uma ordem moral objetiva de validade absoluta, não deixou, apesar
de tudo, um sistema, que desenvolvesse os seus postulados. Por sua vez, as escolas
socráticas limitaram-se a destacar unilateralmente aspectos, ocasionalmente
antinômicos do seu ensino. A tarefa de desdobrar em vasta síntese o que em
Sócrates era apenas gérmen, viria a caber a Platão”. 63

É partindo dessa premissa que se pode assinalar no pensamento de Platão a primeira


formulação clássica da Filosofia, ou seja, a problemática do conhecimento como possibilidade
de tomada da realidade. Para isso, apresentou uma preocupação direta sobre o método,
indagando se é possível o conhecimento; numa verificação se o conhecimento passa pelos
sentidos ou pela razão; os mundos sensível e inteligível como objetos de conhecimento. Platão
reproduziu em suas obras o jogo dialógico de Sócrates convidando o leitor a uma verdadeira
investigação filosófica, inserindo-o na tarefa maiêutica de buscar a verdade pelo procedimento
dialético.
A partir dessa perspectiva, em que constrói o seu pensamento filosófico, ancorado na
crítica do conhecimento verdadeiro, Platão toma a Filosofia como um conjunto de princípios
cuja função é pensar os fundamentos de sua cultura no intuito de reformá-la; portanto, sua

63
SERRA T. História da Filosofia do Direito e do Estado. Lisboa: Novas Profissões, 1985: 119.
44
obra é uma longa reflexão sobre a decadência dos costumes atenienses, tanto no sentido
político como os valores e ideais que, historicamente, condenaram seu mestre Sócrates à
morte. Por isso, afirma-se que o pensamento platônico é essencialmente político, isso
considerando a tradição em que se situa e a crise política de seu tempo. Em suas reflexões
analisa as estruturas múltiplas de sua cidade e suas respectivas interferências na vida dos
homens. Tal análise é realizada por meio do diálogo, cuja função seria denunciar a fragilidade e
a ausência de fundamentos das opiniões dos homens. Assim, o papel do filósofo seria o de levar
seu interlocutor, dialeticamente, a dar à luz idéias, uma vez que aprender é recordar as formas
puras contempladas pela alma quando livre do corpo. Percebe-se, então, que Platão abraça o
problema socrático da superação do cepticismo gnosiológico (impossibilidade do
conhecimento) dos sofistas, isso a partir da aplicação da maiêutica, fonte de sua dialética.
No processo de buscar a essência pelo método dialético, Platão apela para o mito como
recurso. E, sendo assim, qual seria a função do mito no pensamento platônico? Nos dizeres de
Truyol y Serra “O eros filosófico de Platão voa jubilosamente nas asas do mito, comprazendo-se
64
no símbolo e na fábula”, logo o mito exerce função pedagógica em seus diálogos, uma vez
que a tradição mitológica mantém-se como referência cultural importante. Trata-se de um
discurso indireto, enriquecido por símbolos para ajudar na compreensão dos objetos, coisas e
idéias complexas. Interessante observar que Hegel, por exemplo, enxergou o mito platônico
como um obstáculo ao pensamento, embora outros autores tenham compreendido o mito em
Platão como a mais autêntica expressão do filósofo. Assim, o mito forneceu condições para dar
significados à vida onde o logos não conseguia alcançar.
E, sendo um construtor de mitos, Platão concebeu o mundo em uma realidade dualista:
de um lado, o mundo material visível com objetos particulares, imperfeitos, mutáveis,
perecíveis. Mundo este que denominou de mundo das sombras, em que o conhecimento é
superficial, imediato e incompleto; de outro lado, concebeu o que chamou de mundo inteligível
ou mundo das idéias com realidades abstratas, perfeitas, eternas, imutáveis, inteligíveis. Nesse
mundo inteligível das idéias (formas puras), a natureza essencial é a-histórica por se tratar de
uma dimensão permanente na qual persiste às mudanças em que a essência possui existência
prévia aos objetos, isso porque quando pretendemos conhecer algo, descobrimos a
imutabilidade da essência investigada. Porém, em contrapartida, as coisas singulares existentes
no mundo, sombras das idéias que configuram formas primordiais ou arquétipos eternos, os
sentidos, não oferecem a menor possibilidade de conhecimento verdadeiro e sim aparências

64
SERRA T. História da Filosofia do Direito e do Estado. Lisboa: Novas Profissões, 1985: 120.
45
enganosas, apenas doxa. Logo, mesmo sendo o ponto de partida, o senso comum não passa de
mera opinião quando posto diante de um reexame crítico. A esse respeito o próprio Platão
assevera que:
“A Filosofia corresponderia a um método para se atingir o ideal em todas as áreas
pela superação do senso comum, estabelecendo o que deve ser aceito por todos,
independente de origem, classe ou função. É isso que significa a universalidade da
razão. A prática filosófica envolve assim, em certo sentido, o abandono do mundo
sensível e a busca do mundo das idéias” 65

As idéias (formas puras) constituem a verdadeira realidade e na sua hierarquia, coroam-


se na idéia do Bem. O fim supremo do homem é realizar, o quanto possível, o Bem, vencendo
os sentidos por intermédio de uma vida virtuosa forjada no autêntico saber. Importa
subordinar os sentidos à razão, porque essa hierarquia ontológica existe também na esfera
axiológica, conseqüentemente. Essa relação hierárquica influenciará seu pensamento político e
diretamente em suas construções éticas. A República (Politeia), o Político (Politikós) e As Leis
(Nomoi) são diálogos que nos oferecem a medida da importância da filosofia político-jurídica de
Platão. O tema da justiça, da melhor forma de vida em comunidade, constitui o eixo em torno
do qual gira sua especulação filosófica, revelada pela sua Carta VII. Essa famosa epístola
descreve o processo da vocação político–filosófica de Platão e sua desilusão com a vida pública,
visto que os homens públicos são dominados pelos interesses particulares.
A realidade política de Atenas estava marcada pela injustiça e pela corrupção, fazendo
com que Platão desistisse de ingressar na vida pública, o que fez, pois percebeu que a
corrupção era um fenômeno desintegrador da cidade, mas que caberia à Filosofia resgatar a
ordem e a justiça nas relações sociais. O seu programa pedagógico visava instaurar uma política
fundamentada no saber cujo fim primeiro era norteado pelo princípio de justiça. A obra a
República contempla a idéia de uma comunidade alternativa àquelas existentes, daí a
relevância da educação no seu pensamento como marca singular de sua filosofia, que buscava
edificar uma sociedade a partir de novos laços integrativos, implicando, logicamente, a criação
de uma identidade cultural cujo sentido passasse por uma unidade comunitária. Nessa
perspectiva, Platão é o primeiro pensador a defender o caráter público da educação,
entregando ao poder comunitário a responsabilidade não só de sua execução como também
sua formulação teórica.
Portanto, como o fundamento da educação é comunitário, e a política visa por meio
daquela estabelecer laços integrativos, no interior da polis, a razão é a medida de tudo que

65
PLATÃO. República, Cap. VI e VII.
46
possa ser perceptível pela inteligência e, nesse contexto, a justiça afigura-se como a virtude
suprema do cidadão, o fundamento da polis, pois, se para Platão sua carência propicia a
degeneração dos regimes políticos, a obediência às leis configura um quanto de harmonia
como cópia da ordem cósmica. Partindo dessa premissa temos que compreender o paralelo
que o autor do Banquete estabeleceu entre a tripartição da alma e sua teoria sobre a polis.

4.3. Relação entre alma e cidade: o governo da razão


Na República, livro IV, Platão concebe a alma como tripartite, ou seja, a mesma se
divide em uma parte racional, e outra irracional que, ao seu turno se subdivide em irascível
(impulsos e afetos) e concupiscente (necessidades elementares). A parte racional é regida pela
sabedoria ou prudência, capaz de estabelecer o que convém a cada um. A parte irascível
corresponde à fortaleza e coragem que permite seguir os imperativos da razão. Já a parte da
concupiscência está relacionada ao sentido das necessidades elementares. As duas dimensões
da parte irracional da alma devem se submeter à parte racional através da virtude da
temperança ou moderação. Com tais virtudes surge a virtude da justiça que estabelece o
equilíbrio de cada uma das faculdades em seu âmbito próprio e função específica.
Estabelecendo uma analogia da alma com a cidade, Platão apresenta o que podemos
chamar de concepção organicista de sociedade, na qual a Cidade constaria de três classes
diferenciadas por suas funções próprias. A primeira seria a dos magistrados (filósofos) ou
governantes, guiados pela sabedoria; a segunda dos guerreiros que defenderiam a polis interna
e externamente, cultivando a fortaleza; a terceira seria constituída pelos artesãos (artífices),
comerciantes, agricultores e aqueles que formavam a base econômica da cidade. As classes dos
guerreiros e dos artífices aceitam o domínio dos governantes pela ação da temperança ou
moderação. Assim como na alma, a justiça, na cidade, apresenta-se primordialmente para
garantia do funcionamento do todo e da manutenção da hierarquia baseada nas tarefas
específicas de cada classe.
O pensamento político de Platão inspirou-se no postulado segundo o qual a parte se
subordina ao todo, o que significa dizer que as classes se subordinariam ao bem comum da
cidade, dado pela razão divina, que por sua vez é contemplada pela dialética ascendente, o que
leva Platão a operar uma inversão na concepção individualista da sofística quanto à relatividade
das coisas, buscando a universalidade pela superação da individualidade absoluta. Nesse modo
de ver, o indivíduo se situa no plano coletivo e não em uma autonomia absoluta perante a
polis, que por sua vez existe para tornar possível a vida humana. Destarte, o horizonte do
47
indivíduo seria o horizonte do cidadão. Ressalte-se que as classes da República não se baseiam
em uma ordem hereditária, já que o ponto fulcral repousa sobre as aptidões pessoais dos
membros da polis, desenvolvidas pela cidade através do processo educacional.
A aristocracia de Platão, diferentemente daquela calcada na propriedade fundiária ou
na riqueza advinda do comércio, é uma aristocracia do espírito cujo saber legitima o poder,
porque só pode governar a cidade aquele que é justo por conhecer as implicações e
mecanismos das ações justas, fornecidas, obviamente, pelo conhecimento filosófico. Ademais,
Platão, preocupado com as bases integrativas de sua sociedade, não admitia que o poder
estivesse nas mãos daqueles que manipulavam a vida econômica ou a estrutura bélica, pois a
cidade se constituiria em uma verdadeira tirania, ao passo que uma sociedade comandada por
filósofos estaria ordenada sob princípios universais dados pela razão.
É bom lembrar que os governantes, submetidos a esse conjunto de princípios, deveriam
ter por escopo, através do seu projeto político-pedagógico, suprimir a instituição família como
também a propriedade privada para as duas classes superiores dos magistrados e dos
guerreiros, isso a fim de afastar interesses particulares que pudessem conduzir à corrupção.
Somente as duas classes superiores teriam participação na vida pública, enquanto que o
complexo dos artífices estaria limitado à vida na esfera privada. Na cidade platônica, governada
pelo sentido da filosofia, não seria necessário o direito positivo, pois os magistrados (filósofos)
deveriam decidir, em cada caso particular, o que a justiça exigiria segundo as circunstâncias.
Esse pensamento não perdura nos diálogos considerados tardios, O Político e As leis, em que
Platão, mais velho e desiludido com as experiências na Sicília, admite a necessidade de fixar
princípios de governo em leis positivas. Reconhece ainda a importância da família e da
propriedade privada, evitando-se o excesso de riqueza e de pobreza, pois, no seu entender,
seria essa relação de contradição a causa de toda a discórdia civil.
Assim, a cidade descrita na obra As Leis se afigura como uma teocracia em que os
magistrados (filósofos) assumem a dignidade de intérpretes da vontade divina. No diálogo
Político, apresenta a necessidade de uma legalidade como ordem estável da cidade, muito
embora confirme a aristocracia como sistema ideal na administração da coisa pública.

4.4. A organização política da Cidade


Platão nos oferece duas classificações distintas das formas de governo, uma na
República, livros VIII e IX e outra no Político. Na República descreve cinco formas. Entretanto,
somente uma assume o caráter de justa e legítima: a aristocracia do espírito ou governo dos
48
sábios. Todas as restantes são formas corruptas que não permitem a realização da justiça. Se os
guerreiros tomarem o poder, teremos uma timocracia ou timarquia que significa governo da
honra, caracterizado pela ambição do espírito belicoso. Esta forma poderia conduzir a uma
oligarquia que liga o poder à fortuna. Todavia, o enriquecimento de poucos e a extrema
pobreza de muitos poderá gerar a democracia, o governo da multidão, que aspira à igualdade
absoluta, desrespeitando hierarquias naturais e legítimas. Dessa forma, a democracia,
desemboca na desordem, que acaba por ser aproveitada por algum indivíduo ambicioso e
audacioso, capaz de instaurar uma tirania que desvelaria um caráter violento e desenfreado. Os
seus excessos provocariam a reação dos mais decididos e com seu derrube encerra-se o ciclo
constitucional, ou seja, a dinâmica política.
No Político apresenta dois critérios de formas de governo: o número dos que participam
do governo e a legalidade ou ilegalidade dos mesmos. Encontramos três formas legais e três
ilegais de governo. As legais são a monarquia ou realeza, a aristocracia e a democracia. As
formas corruptas das formas legais, respectivamente, são: a tirania, a oligarquia e a democracia
(demagogia). Na verdade, Platão confere maior rigor sistemático às teorias de Heródoto e
Eurípides. Nas Leis, acrescenta um novo termo: uma forma mista de governo, ou seja, uma
mistura de monarquia e democracia que se apresenta como a única capaz de assegurar a paz
social. Esta concepção assimilada por Aristóteles influenciará seu pensamento político.

4.5. A idéia de Justiça


A idéia socrática de que a Cidade (o poder político), na qual a família e o indivíduo
formavam um todo harmônico, permanece na obra República e se torna o fundamento da idéia
de justiça como virtude, que significa a observância permanente da lei e, ao mesmo tempo,
como idéia da razão. O sentido de ordem política ideal é o de justiça que correlaciona
intrinsecamente lei e justiça. As leis são justas porque são editadas por quem pratica a virtude
da justiça e a conhece em sua estrutura para além do plano das aparências, isto é, numa
imagem divina. Nesse sentido, encontramos a ligação entre as duas perspectivas do conceito de
justiça em Platão: justiça como idéia (forma pura) e justiça como virtude, ação do homem
virtuoso.
66
Segundo Joaquim Carlos Salgado, o pensamento platônico sobre a justiça é o ponto
de partida para uma reflexão sobre a idéia de justiça como igualdade. Platão apresenta duas

66
SALGADO, Joaquim C. A Idéia de Justiça em Kant. Belo Horizonte: UFMG, 1995, pp. 24-29.
49
perspectivas de sua concepção de justiça na obra República, a saber: a justiça como idéia e a
justiça como virtude ou prática individual. Nas primeiras obras, Platão apresenta o conceito de
justiça comprometido com a idéia de virtude do cidadão ou do filósofo. Ao relacionar o célebre
livro VII, da República, que narra a Alegoria da Caverna em conjunto com sua teoria da
reminiscência, compreendemos com maior clareza o que o fundador da Academia assinala na
Carta VII, isto é, “só conhece a justiça àquele que é justo”, ou seja, só conhece a justiça aquele
que a compreende na perspectiva divina, pelo conhecimento da alma e não dos sentidos, o
conhecimento verdadeiro dado pela matriz dialética e desenvolvido pela educação..
Platão enfatiza o agir justo na medida em que considera o outro como portador dos
mesmos direitos para a superação da ótica individualista dos sofistas, assinalando para a
alteridade como descoberta de si numa dimensão exterior ao comprometimento do homem
com a sua polis. Tanto na República quanto no Górgias, Platão enfatiza através de seu
personagem, Sócrates, que fazer a justiça é melhor que recebê-la, e sofrer a injustiça é melhor
que praticá-la. Na República, exprime que o melhor modo de viver é o viver praticando a
justiça, correlacionando, desse modo, os atos justos com uma alma sadia. A justiça é uma
virtude que fundamenta e fortifica a alma. Embora no Críton, a concepção de justiça se
apresente como a conformidade das ações com a lei, a essência da idéia de justiça platônica
não se limita somente a esse entendimento.
Na República, livro I, Platão expressa a difusa idéia de justiça em um conceito preciso a
partir do entendimento do poeta Simônides, 67 que afirmava a idéia de justiça como dar a cada
um o que lhe é devido. Platão amplia essa idéia para além da simples relação entre particulares
e a relaciona diretamente com a estrutura de sua cidade. No dizer de Salgado: “O que é devido
a cada um, o que lhe pertence por natureza é o posto que corresponde às suas aptidões e a
função que cada um, por força dessas mesmas aptidões, pode desempenhar no Estado”.68
Platão concebe a justiça como uma preocupação política que repousa na idéia de
igualdade; uma igualdade geométrica, na medida em que garante a cada um o que lhe é
devido, segundo suas aptidões. O seu conceito de justiça assume também o caráter de
universalidade enquanto se vincula à idéia de representação da harmonia do cosmos. A justiça
é um compromisso do cidadão com a Cidade, na dedicação ao bom funcionamento da vida
coletiva a partir das aptidões naturais de cada um. Sendo assim, repetindo, Platão elabora duas

67 a
PLATÃO. República, 332c, 433 , 433e. Simônides foi considerado o maior poeta lírico grego, depois de Píndaro.
Era conhecido como homem moralista e austero. Platão o considerava homem sábio e divino.
68
SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. BH: UFMG,
ª
1995, p. 27 e Platão. A República, 433
50
vertentes do conceito de justiça: a justiça como idéia norteadora do direito e da lei, e a justiça
como virtude norteada e determinada pela lei. Ou, dizendo de outro modo, a idéia de justiça
como hábito de cumprir o direito. Por fim, Platão desenvolve um conceito de justiça retributiva
e transcendente. Vejamos. Na República, livro X, encontra-se o mito de Er que consagra o
sentido de justiça retributiva e transcendente. O mito narra a história de um guerreiro
chamado Er que vivencia a experiência da justiça como recompensa no além-túmulo.
Er, natural da Panfília, na Ásia Menor, bravo soldado que morreu em combate,
estendido na pira funerária dez dias após sua morte. Subitamente, volta à vida e narra o que viu
no mundo além-túmulo. Disse que, depois de morto, viajou até uma terra estranha onde o solo
era rasgado por dois grandes abismos. Por cima, havia dois buracos correspondentes no Céu.
Entre os abismos estavam sentados os juízes que julgavam todas as almas e as marcavam com
um sinal: os justos entravam pelo abismo da direita, para o Céu; os injustos entravam pelo
abismo da esquerda, que conduzia ao mundo subterrâneo. Er não foi autorizado a entrar em
qualquer um dos dois buracos, mas foi escolhido para levar uma mensagem aos mortais.
Observou que as almas dos injustos passavam por uma longa experiência vivenciando dez vezes
mais todo o mal que causaram. Este é o sentido retributivo da justiça em Platão.
As almas dos justos falavam em felicidade e alegria, recompensas de uma vida virtuosa.
As almas vindas dos subterrâneos, após expiarem todo o mal que praticaram, vivenciam as
dores do arrependimento, eram encaminhadas ao trono das Parcas: Láquesis, Átropo e Cloto
para receberem novas vidas como mortais. Cada alma poderia escolher a vida que desejasse,
algumas eram sensatas outras tolas. Todas as almas, após suas escolhas, bebiam a água do rio
do esquecimento, de modo que perdessem todas as recordações da vida passada, para
renascer em novas vidas. Muitas praticavam os mesmos erros. Assim, podemos concluir que a
justiça para Platão não é deste mundo, mas se configura como a recompensa para aquele que
escolhe a vida moral e conforme ao direito. Considerando o mito acima descrito, pode-se
compreender o sentido das palavras que Platão, colocadas por Sócrates no final da Apologia,
onde este após beber cicuta se dirige aos que estavam presentes e assevera: “Mas, está na
hora de irmos: eu, para morrer; vós para viverdes. A quem tocou a melhor sorte, é o que
nenhum de nós pode saber, exceto a divindade.” 69

4.6. Aristóteles (384-322 a.C.) e a filosofia peripatética

69
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Belém: Edufpa, 2001.
51
Aristóteles é considerado pelos estudiosos da História das idéias como sistematizador
do pensamento ocidental, tendo contribuído, ainda, no campo das Ciências Naturais, História
da Filosofia, Psicologia, as leis da argumentação e da Lógica. Esse pensador nasceu em Estagira,
colônia grega da Cálcida, mar da Trácia. Seu pai Nicômaco foi médico da corte de Amintas II, em
Pela, capital da Macedônia. Aos 18 anos ingressou na Academia de Platão, em Atenas. Por essa
ocasião já possuía grande saber e era conhecido por justamente apresentar o que hoje
denominamos de conhecimento enciclopédico.
Após a morte de Platão decidiu partir de Atenas. Em 342 a.C. foi nomeado tutor de
Alexandre, o Grande, pelo Rei Filipe da Macedônia. Durante esse período estudou política e
assuntos de governo. Embora esse pensador tenha sido tutor de Alexandre, surgiram
divergências políticas que se tornaram cada vez maiores entre o discípulo e o mestre, pois
Alexandre sonhava com a unificação do seu império asiático com a Grécia, uma espécie de
fusão cultural. Por outro lado, Aristóteles defendia a estrutura da pólis tradicional bem como a
supremacia grega. Narra a tradição que foi o assassinato de Calístenes, sobrinho de Aristóteles,
a pedido de Alexandre, que pôs fim à relação entre ambos.
Por volta de 335 a.C., fundou o seu liceu no bosque sagrado de Apolo – nordeste de
Atenas. Ensinava passeando à sombra das árvores do liceu, daí seus discípulos serem chamados
de peripatéticos, derivado da palavra peripatos que significa um claustro 70 que rodeava o liceu.
Aristóteles escreveu em torno de 400 trabalhos sobre os diversos temas. Dessa enorme
produção sobreviveram apenas 50 ou 49 obras. Quando faleceu, em Cálcis, na Ilha de Eubeia,
seus escritos e sua biblioteca passaram às mãos do discípulo Teofrastos e, posteriormente, ao
aluno deste, Neleu e, por conseguinte, aos herdeiros de Neleu, que, temendo o ataque dos
príncipes tiranos de Pérgamo, enterraram os escritos em um subterrâneo. Quando morreram,
perderam-se os manuscritos de Aristóteles.
Aristóteles iniciou o que entendemos por estudo dos problemas filosóficos através do
exame crítico das opiniões de seus antecessores e contemporâneos, destacando
essencialmente a doutrina de Platão, embora tenha sido seu mestre por muitos anos, sempre
manteve grande independência doutrinal em relação ao fundador da Academia. Pode-se
considerar sua Metafísica como uma obra também voltada à história da filosofia, abordagem
que também aparece na Política, quando analisa as teorias anteriores acerca da convivência
coletiva.

70
Casa religiosa com clausura, ou seja, recinto fechado.
52
Rejeitando o dualismo platônico pela dificuldade em explicá-lo, apresentou uma
concepção diferente da realidade enfatizando um realismo moderado e um espírito analítico
71
atrelado aos fatos. Platão havia separado as essências dos objetos; Aristóteles, por sua vez,
compreendia que as essências só existiam na inteligência, ou seja, no entendimento humano
sobre as coisas, em nosso espírito que abstrai das coisas em estado de individualidade. Nesse
sentido, invertendo o mundo platônico, assinala que as coisas individuais e perecíveis deixam
de ser meras “sombras ilusórias” e tornam-se reais. Aristóteles substituiu o idealismo de Platão
por um realismo que buscava seu ideal numa concepção de felicidade alcançável pela ação,
reflexão e experiência que se configurava no conceito de justiça. Ao contrário de Platão, não
define o direito a partir da idéia de justiça, mas define a justiça em função do direito, que por
sua vez, torna-se objeto da justiça e é somente possível no interior da polis.
Ao apresentar sua concepção de conhecimento, o entende como processo cumulativo.
Assim, partindo da sensação (prazer-sentidos) em direção à memória (retenção dos dados), em
seguida à experiência (capacidade de estabelecer relações entre os dados sensoriais), à arte-
técnica (regras – capacidade de ensinar), alcançando, por fim, o nível da teoria-ciência que
chamou de episteme (conhecimento de conceitos e princípios), esse conhecimento estaria
subdividido em: conhecimento prático (praxis) e nesse campo estão os estudos sobre ética e
política; conhecimento produtivo (poiesis), estudo da estética; conhecimento teórico que por
sua vez se divide em física, que estuda o mundo natural e estudos matemáticos, que trata da
72
quantidade e do número; a filosofia primeira (metafísica) estuda o ser primeiro ou causa
primeira. Já em sua Lógica (analytika) lança mão desse saber como um saber instrumental,
desvelando a importância do método.
Para Aristóteles, a realidade sensível é também inteligível e, sendo assim, o
entendimento humano é capaz de descobrir a idéia oculta no objeto sensível, por meio da
abstração. Dentro dessa concepção da inteligibilidade da realidade sensível, formulou sua
teoria teleológica segundo a qual todas as coisas existem para um fim e todas as coisas
alcançam a perfeição na medida em que cumprem esse fim. Esta idéia resulta no princípio de
que o todo é anterior às partes, no sentido lógico e metafísico, pois cada objeto particular é
compreensível em função do todo que o pressupõe. Esse finalismo refletirá em sua concepção
ética e política, influenciada, sem dúvida, pela obra de Platão.

71
Essência, forma – mundo inteligível.
72
Metafísica: palavra de origem grega, usada para nomear o conjunto de textos de Aristóteles que tratava de uma
Filosofia Primeira, que compreende a ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas.
53
4.7. A política, a ética e a justiça
Segundo o entendimento de Aristóteles, a política é ciência da felicidade humana, uma
ciência prática que busca o conhecimento como meio para a ação e que se divide em ética e
política. A felicidade, em seu modo de ver, significa certa maneira de viver específica do
homem, ser social por natureza, destinado a desenvolver suas potencialidades na vida em
sociedade. O objetivo dessa ciência é refletir sobre as formas de governo e as instituições
políticas capazes de assegurar o bem comum, atentando para o dado de que o bem é a
plenitude e todo ser tende para esta plenitude. O homem ao longo da vida encontra uma
hierarquia de bens até alcançar o bem supremo que coincide com o seu fim último, a felicidade.
O meio para consegui-la são os hábitos ou disposições do homem graças aos quais saberá
realizar as suas obras, as virtudes, e nesse caso a virtude consiste no meio entre a falta e o
excesso, ou seja, consiste em disposições resultantes do esforço do homem para submeter os
seus atos à razão e aos fins supremos de sua natureza.
O objeto de pesquisa da do seu livro Política é o estudo das constituições das pólis. 73 A
obra está dividida em três partes, a saber: os livros I, II e III, que tratam da teoria do Estado em
geral e da classificação das várias espécies de constituições; os livros IV, V e VI, em que se
analisa a política prática, ou seja, estuda a natureza das constituições existentes e dos
princípios para seu bom funcionamento; e os livros VII e VIII, em que se examina a política ideal.
74
Na obra Ética a Nicômaco, aprofunda os ensinamentos que retira de Platão (República),
elabora sua teoria ética a partir das estruturas morais vigentes na comunidade grega do séc. V
a.C. De um modo geral, podemos dizer que a sua teoria apresenta o procedimento do homem
prudente como um valor, cuja opinião da experiência da vida e os costumes da cidade são
condições objetivas para se filosofar politicamente. Diferentemente de Platão, Aristóteles
humanizou o fim último na medida em que o tornou terreno, por isso, o ético em Aristóteles é
entendido a partir do ethos (do costume), da maneira concreta de viver vigente na sociedade.
75
O ethos funciona como elo entre as esferas jurídica e política, uma vez que as
dimensões jurídica e política pressupõem o ethos. A reflexão aristotélica quanto à ética

73
Polis ou cidade-estado: nova forma de convivência centrada na ágora (praça pública) para o debate sobre
interesses comuns. Surge a figura do cidadão, aquele que fazendo uso público de sua razão, delibera
conjuntamente aos seus pares os destinos da cidade.
74
A Ética a Nicômaco ou Nicomaquéia foi assim chamada por ter sido, provavelmente editada por Nicômaco, filho
de Aristóteles. Ética a Eudemo, por ter sido editada ou redigida pelo seu discípulo deste nome, uma refundição da
anterior. A Grande Ética ou Ética Maior, um resumo posterior. Truyol y Serra, p.132.
75
Ethos: costume, uso, característica. Significa caráter, modo de vida habitual que é característico predominante
nas atitudes e sentimentos dos indivíduos pertencentes à comunidade, marcando suas manifestações culturais.
54
compreende duas categorias de virtudes: as virtudes morais, fundamentadas na vontade, e as
virtudes intelectuais, baseadas na razão. Como exemplo de virtudes morais: a coragem, a
generosidade, a magnificência, a doçura, a amizade e a justiça. As virtudes intelectuais ou
dianoéticas76 são: a sabedoria, a temperança, a inteligência e a verdade. Uma ação pode ser
considerada como justa quando realiza o equilíbrio das virtudes morais e quando alcança as
virtudes intelectuais. O objetivo da ação moral é a justiça, assim como, a verdade é o objetivo
da ação intelectual. Em sentido lato, a justiça77 configura o exercício de todas as virtudes,
observando-se a instância da alteridade, ao passo que em sentido estrito, encontra-se como
uma virtude ética que implica o princípio da igualdade.
Tendo por base tal premissa, Aristóteles inicia sua ética a partir da realidade social de
sua época. O ponto central torna-se o conceito de atividade; atividade no sentido de que o
homem deve realizar ao máximo suas disposições naturais (aptidões). O homem deve buscar
esse aperfeiçoamento para com isso alcançar a felicidade. Esse pensador assinala que o cultivo
da inteligência é o bem supremo, o summum bonum, logo sua concepção ética é denominada
de ética das virtudes ou ética eudemônica, isso porque enfatiza a busca pelo bem viver e pela
felicidade, no sentido estrito de pleno desenvolvimento das disposições naturais como
possibilidades potenciais. O homem deve desenvolver suas aptidões para alcançar o seu fim
(télos), sua perfeição, por isso que eudemonia e télos estão intrinsecamente ligados, formando
uma ética imanente da felicidade política, nesse caso terrena: na imanência.
O conceito de eudemonia vincula-se ao conceito de justiça apresentado por Platão na
República, que também compreende a noção de justiça como uma virtude que precisa ser
78
praticada constantemente e não pode ser tomada como aquisição contínua, mas como um
exercício político, assim expresso no livro II-6, da Ética a Nicômaco. Aristóteles apresenta o
sentido do conceito de virtude como hábito, ou seja, algo que existe em potência, mas que
precisa ser desenvolvido para que se torne um ato, concretamente. Nesse caso a natureza
oferece as condições de possibilidades para que o homem possa desenvolver suas aptidões
conforme sua essência racional, assim a justiça como um valor ético se desvela em nossos atos,
logo “toda virtude e toda técnica nascem e se desenvolvem pelo exercício”.79

a
Em Platão é o resultado do hábito (Leis, 792e); em Aristóteles (Ética a Nicômaco, 1139 ) é mais moral do que
intelectual.
76
Diánoia: entendimento. Em Aristóteles é usada como um termo geral para atividade intelectual. Noético (gr)
relativo ao pensamento; noetikos – inteligente.
77
Cf. livro V da Ética a Nicômaco.
78
O conceito de justiça como virtude não implica o caráter ontológico-transcendente como acontece em Platão.
79
SALGADO, J C. A Idéia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. BH: UFMG, 1995:.33.
55
Observa-se que a prática da virtude não se confunde com um mero saber técnico, não
basta a conformidade, exige-se a consciência do ato virtuoso. O homem considerado justo deve
agir por força de sua vontade racional. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles enumera três
condições para que um ato seja virtuoso, a saber: primeiro, o homem deve ter consciência da
justiça de seu ato; segundo, a vontade deve agir motivada pela própria ação; terceiro, deve-se
agir com inabalável certeza da justeza do ato. As virtudes são disposições ou hábitos adquiridos
ao longo da vida e se fundamentam na idéia de que o homem deve sempre realizar o melhor de
si. A virtude será uma espécie de meio termo, termo médio entre os extremos, evitando, assim
por dizer, o excesso e a deficiência, uma vez que a justiça é uma virtude que só pode ser
praticada em relação ao outro e de modo consciente. O objeto da justiça é realizar a felicidade
na pólis, o seu oposto, a injustiça, poderá ocorrer por falta ou por excesso.
Dessa premissa Aristóteles distingue duas classes de justiça: a universal e a particular. A
justiça universal significa a justiça em sentido amplo que pode ser definida como conformidade
ao nomos (norma jurídica, costume, convenção social, tradição). Esta norma constituinte do
nomos é dirigida a todos, e assim sendo toda ação deve corresponder a um tipo de justo que é
o justo legal. O membro da polis se relaciona com todos os demais, ainda que virtualmente, e
compartilha com todos os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça universal ressalta a
importância da legalidade como um dos aspectos que fundamenta a coesão social. Logo a
comunidade existe virtualmente na pessoa de cada membro, e o homem virtuoso é aquele cujo
agir necessariamente observa o princípio neminem laedere (não prejudique a ninguém).
A justiça particular significa em sentido estrito o hábito de realizar a igualdade como
uma relação direta entre as partes, típica da experiência citadina. Esse tipo de justiça vincula-se
com a justiça universal, pois o transgressor da justiça particular se compromete também diante
do nomos. O justo particular apresenta-se em duas formas distintas: o justo particular
distributivo que assinala a justiça distributiva e o justo particular corretivo que apresenta a
justiça corretiva. A idéia de justiça distributiva surge no sentido de igualdade na devida
proporção. Essa modalidade de justiça regula as ações da sociedade política com seus membros
e tem por objeto a justa distribuição dos bens públicos: honras, riquezas, encargos sociais e
obrigações. Essa prática também se fundamenta na igualdade que não se confunde com uma
igualdade matemática e rígida, mas proporcional na medida em que observa o dever de dar a
cada um o que lhe é devido; observa os dotes naturais do cidadão, sua dignidade, o nível de
suas funções, sua formação e posição na hierarquia organizacional da polis. O princípio de
56
igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma desigualdade de tratamento, pois sendo
diferentes segundo o mérito, os benefícios a serem atribuídos também devem ser diferentes.
A outra modalidade de justiça particular é a justiça corretiva ou sinalagmática, que se
divide em comutativa e judicial. Trata-se de um tipo de justiça que regula as relações entre
cidadãos e utiliza o critério do justo meio aritmético ou igualdade. Observa-se que este tipo não
focaliza em primeiro plano as pessoas, mas sim as coisas. Medem-se os benefícios ou prejuízos
que as pessoas podem experimentar, ou seja, as coisas e os atos no seu valor efetivo. Nos casos
de ações que geram constrangimento para uma das partes, caberá ao juiz restabelecer a
igualdade rompida através de uma sentença. Quando há a vontade dos interessados como
elemento principal, chama-se justo comutativo (sinalagma)80 e, quando por decisão do juiz a
vontade de um deles é contrariada, como o caso dos crimes, chama-se justo judicial ou justo
reparativo. Neste último caso, o sujeito de uma injustiça é sancionado a reparar o dano
81
provocado indevidamente a outrem. Pode-se perceber que o princípio de igualdade que
figura em seu pensamento recorda as especulações pitagóricas acerca da justiça.
Segundo o pensamento político-jurídico de Aristóteles, a idéia de justiça política se
refere aquela que organiza a vida comunitária e que, em particular, deve observar o processo
deliberativo social. Nesse sentido, o justo político abrange duas outras formas de justiça: o justo
natural e o justo legal. O justo natural significa o que será sempre o mesmo em toda parte,
independe da vontade humana, ou melhor, para existir não precisa de qualquer decisão ou ato
de positividade. O justo legal, que em princípio poderia ser cumprido de maneiras diferentes,
passa a ser obrigatório por ser assumido pelo nomos vigente em uma pólis. 82 Esse tipo de justo
decorre do ato legislativo e configura-se no conjunto de disposições vigentes na pólis. Tanto o
justo natural como o justo legal constituem a ordem normativa da cidade. O justo natural é
constituído por noções e princípios comuns que encontram fundamento na própria natureza
racional do homem. Há uma lei natural ou direito natural que desvela a natureza da
comunidade política. O ponto de partida é o princípio da naturalidade da sociedade política; o
homem, animal político é chamado a viver na pólis por força de sua própria essência, e dessa
forma sendo a cidade-estado uma realidade natural, exige-se, logicamente, que toda relação
política esteja vinculada aos preceitos da razão, da legalidade e da igualdade.

80
Bilateral.
81
Aqui percebemos a idéia que fundamenta a responsabilidade civil existente na experiência da pólis grega.
82
Decretos, sentenças, as decisões do poder administrativo, caracterizam-se por circunstancialidade ou
especialidade.
57
Temos que observar que o justo legal encontra sua origem no justo natural. Essa relação
se esclarece quando se percebe que se caminha do geral para o particular, ou seja, um princípio
geral pode acarretar uma lei específica. O princípio neminem laedere que significa que não
devemos prejudicar as pessoas, um preceito da justiça natural, pode ser positivado em norma
que prevê uma punição para atos como o homicídio, a injúria e etc. Os conflitos entre preceitos
jurídicos legais e jurídicos naturais, segundo Aristóteles, não deveriam invalidar a ordem
jurídica da pólis, exceto em um sistema corrompido. Por isso que a eventual tensão entre a
generalidade abstrata da lei e a singularidade concreta dos casos reais era mediada pela
eqüidade (epieikéia), em atenção à justiça natural. A eqüidade é pensada como forma corretiva
da justiça legal quando esta engendra certa injustiça pela própria generalidade de seus
preceitos normativos. Conforme esse princípio, o julgador coloca-se como legislador, e opera a
adaptação da lei ao caso concreto, portanto, o julgador assumindo a postura do legislador
torna-se um homem preocupado com a correção ética da justiça, um homem équo, definido
como aquele que não é rigoroso na aplicação da justiça, quando esta se configura como a pior
solução, mas que fundamenta seus juízos nos preceitos de uma ação justa racional.
O grego reverenciava o nomos porque era fundamental para a existência da própria
pólis como comunidade ético-política. Nesse particular, “a ordem é a lei e o governo da lei é
preferível ao de qualquer cidadão, porque a lei é a razão sem apetites”, 83 pondera Aristóteles
na Política. Se o objetivo da atividade humana é a vida na pólis, esta deve ser anterior ao
indivíduo. Aristóteles assevera que há no homem um impulso social que se desvela
primeiramente na família, em seguida na aldeia, até alcançar a estrutura equivalente a uma
pólis. A cidade é por sua natureza uma unidade na diversidade, cuja lei escrita ou não escrita, o
nomos, surge da experiência citadina e, portanto, é intrinsecamente superior a qualquer
decisão individual por mais sábia que seja. Por ser o nomos, a razão desprovida de paixão, deve
ser a suprema autoridade da sociedade política, e no Direito da pólis há elementos naturais e
permanentes, convencionais e mutáveis, pois sendo a razão comum a todos os homens, todos
serão iguais, até porque o nomos é razão que realiza a igualdade jurídica formal. Destarte a lei
comum seria uma lei natural-original, tendo validade geral, independente da opinião dos
homens.
A conformidade com a lei apresenta a relação que o sentido de justiça particular
mantém com a idéia de eqüidade, que em si aponta para o fato de que o justo ultrapassa a
simples dimensão da lei escrita, ou seja, vai além da razão de ser da lei escrita e se liga

83
ARISTÓTELES. Política. Brasília: UNB, 1997.
58
diretamente ao sentido de lei natural na medida em que pode ser compreendido como um
critério de ajuizamento da igualdade ditada pela razão conforme a lei natural. Observa-se que a
razão significa uma forma superior da natureza humana em que a eqüidade surge para corrigir
os lapsos da lei convencional, sobretudo quando a lei, aplicada mecanicamente, não
corresponde à essência da justiça. As circunstâncias particulares exigem a aplicação da
eqüidade para dirimir um caso concreto, buscando uma igualdade entre as partes.
É a partir desse corolário que o homem équo, aquele que busca a igualdade no
momento concreto da relação de justiça, o bem comum, o fim da polis, tem por pressuposto
fundamental pensar a igualdade como idéia de que o homem é um ser destinado naturalmente
à vida em comunidade. Enfim, o sentido de eqüidade em Aristóteles passa pelo aspecto da
igualdade, pelo espírito da alteridade, que em última instância marca sua visão de justiça:
mecanismos políticos que vislumbrem o bem comum.
Em seu livro a Política, parte II, Aristóteles apresenta uma reflexão em que refuta as
considerações platônicas contidas na República e em As Leis, acusando-as de projeto de cidade
perfeita e as relacionando com utopias pertencentes a Hipodamo de Mileto (séc. a.C.) e Fáleas
da Calcedônia. Entretanto, a bem da verdade, deve-se ressaltar que a intenção de Platão não
era edificar um mundo social irreal, utópico, mas construir uma crítica aos fundamentos de sua
cultura, que dentro dos limites de sua análise, a pretensão era descrever uma comunidade
possível na perspectiva de novos valores comandados pela retificação dialética da educação,
levando-se em consideração o outro como dimensão da justiça.
Essa noção de alteridade, fundamental ao pensamento político grego, sobretudo aos
impulsos democráticos atenienses, é um conceito de justiça que tem início com Sócrates e
levado adiante pelas análises políticas posteriores, ao que se justifica porque justiça é uma
virtude que só pode ser praticada em relação ao outro de modo consciente, na medida em que
essa prática se destina à realização do seu elemento fundamental: a igualdade, ou a
conformidade com a lei. Os elementos que compõem os conceitos de justiça tanto para Platão
quanto para Aristóteles, respectivamente são: harmonia da polis como extensão do Cosmo,
fundamento primário de uma comunidade política, e, por fim, o outro, a consciência do ato, a
legalidade e o bem comum. A dimensão da alteridade é o outro, observado como ser racional e
fundamental para a realização da justiça, visto que esta se afigura em como fazer o bem dentro
da ordem coletiva. Esse ato de justiça exige a mediação da vontade que só se realiza
voluntariamente ou conscientemente. Segundo Aristóteles, ato voluntário significa aquele “cuja
59
origem se acha no agente que conhece todas as circunstâncias da ação” 84 A moralidade do ato
fundamenta-se no critério da premeditação ou escolha deliberada, já que somente o homem é
capaz de possuir uma faculdade da vontade apta a discernir o que deve ou não fazer.
Hoje essa noção de alteridade parece estar perdida em meio ao complexo mundo das
relações de troca, que se perdeu em detrimento de valores puramente utilitários, envolvida por
uma lógica individualista alicerçada nos princípios liberais. Platão e Aristóteles, principalmente
o autor de Fédon, que apostou todos os esforços de mudanças no processo educacional, não
restringiu sua ação à transmissão do código cultural e manutenção de hierarquias sócio-
econômicas. Tomou a educação como esforço político e a situou dentro do interesse público
como ação-dever do Estado, logo percebeu, ao contrário de muitos, que transformações
políticas só são possíveis mediante reformas individuais-estruturais, o que de alguma forma
implica uma tomada de consciência dos agentes envolvidos no processo de mudança.
Aristóteles, ao contrário de Platão, defende, no conjunto de suas pesquisas, que uma
cidade administrada do ponto de vista político passa pela implementação de instituições que
visam aos interesses dos cidadãos mediante a prestação de serviços condizentes. Isso não quer
dizer que Platão não levasse em conta à necessidade de instituições políticas, muito pelo
contrário, tanto a República como As Leis atestam tal preocupação. O que Platão enfatiza é a
necessidade de se atentar para o fato de que instituições são criadas e comandadas por
homens, e, se esses homens que comandam instituições são os mesmos velhacos, velhacaria
será o produto de si. Portanto, não bastam novas leis e instituições, porém uma nova
mentalidade que possa criar um novo homem e uma nova perspectiva de sociedade. Nesse
sentido, sua afirmação é impar: é preciso que as cidades sejam comandadas por filósofos ou
que os governantes se transformem em filósofos, ou que todos se instruam no conhecimento
perfeito para uma perfeita ciência da administração da coisa pública. Não é suficiente fazer, é
preciso saber fazer.
Não se pode olvidar, entretanto, a capital importância das teorizações aristotélicas,
sendo uma delas a teoria das formas de governo. Para o autor da Metafísica, as formas de
governo que, classicamente se desdobram daquelas apresentadas por Platão, no Político, são
três as formas puras: monarquia, aristocracia, democracia moderada ou política; e três impuras
respectivamente: tirania, oligarquia e democracia radical que equivale à demagogia. Nesse
particular Aristóteles avança em relação ao seu antigo mestre, pois usa o critério econômico

84
ARISTÓTELES. Política. Brasília: UNB, 1997.
60
para distinguir tais formas. Observa que o princípio de autoridade em cada um dos regimes
repousa sobre a situação econômica: a oligarquia, na riqueza de uma minoria; a democracia
radical, uma maioria pobre; na monarquia e aristocracia, uma virtude superior; tirania, na
fraude e violência.
Aristóteles também compreende que o melhor governo seria um governo misto. Cada
pólis necessita de um governo que corresponda ao seu caráter e necessidades, o que vale dizer
que o estagirita relaciona estrutura político-jurídica às condições objetivas de ordem social
próprias. Aristóteles também distinguiu as atividades do governo em deliberativas ou
legislativas, executiva e judicial, preocupando-se, do ponto de vista técnico-político, com a
conservação do poder atrelado aos princípios éticos.
Não está aqui, em hipótese alguma, a pretensão de esgotar as contribuições desses dois
grandes teóricos do mundo político, isso se constituiria em um absurdo. O que se pretende é
resgatar, pelo estudo da história das idéias, uma preocupação que ultrapasse o restrito mundo
do indivíduo ao mundo do cidadão. Tanto Platão como Aristóteles são intérpretes do seu
tempo, mas que devidamente lidos são fontes inesgotáveis de profundas reflexões. Embora
estejam distantes de nossa realidade, longe deste mundo nada simples, complexo por
mecanismos até em certa medida desnecessários, pode-se, através de seus olhares idealistas,
vislumbrar uma possibilidade meio que perdida: a reconstrução de uma nova ordem social a
partir da reestruturação do homem em vista dessa nova sociedade, tendo por fundamento o
ideal de justiça para além das aparências e do sentido mesquinho que por ora corrói o tecido de
nossa vida coletiva.
61
CAPÍTULO V
Estoicismo: a natureza como fundamento da lei

5. Introdução
O presente trabalho pretende cumprir uma tarefa quase que ingrata: apresentar, em
linhas gerais, os princípios básicos do pensamento estóico e sua relação com o Jusnaturalismo.
A tarefa é quase ingrata por dois motivos, a saber: primeiro pelo fato de levar o leitor para um
contexto histórico fora do seu tempo e de sua dimensão valorativa; segundo, positivamente, a
tarefa é quase ingrata porque o que poderá salvar o nosso objetivo é o fato do estoicismo se
constituir em uma das correntes mais generosas da história da filosofia, isso pelo dado de
privilegiar o homem como ser dotado de virtudes, que pelo ensino traria à tona o
desocultamento do melhor de cada um. Ao mesmo tempo em que o estoicismo se funda em
princípios profundamente metafísicos, parece que suas lições tocam, intimamente, a alma
humana; não sabemos se por influência da cultura cristã ou pelo discurso poético dos estóicos,
o fato é que observamos em nossas aulas uma simpatia por parte dos alunos aos postulados
dos velhos filósofos do Pórtico.
Com o fim de levar adiante a apresentação do presente trabalho, procurou-se
apresentá-lo em três estágios. O primeiro diz respeito a um breve relato histórico com o
propósito de situar o pensamento estóico em seu contexto sócio-cultural, isso para poder
enfatizar a força de suas reflexões, ressaltando que o filosofar é sempre uma atitude sobre o
real concreto. O segundo estágio de nossa pesquisa é apresentado sob o título de O conjunto
teórico do estoicismo, em que se buscou uma síntese dos mais importantes postulados da
escola, destacando os três elementos constitutivos (ética, lógica e física) da escola como um
conjunto necessariamente compactado e não hierarquizado, destacando o ideal do sábio como
um homem que vive bem consigo mesmo, se submetendo à determinação da vida natureza
dada pelos imperativos da razão. O último estágio da pesquisa analisou a teorização que os
estóicos fazem acerca do direito e sua influência no pensamento jusnaturalista do século XVII. A
conclusão se deteve em pequenas considerações dispensáveis, ou que pode ser lida pelo
espírito de generosidade do leitor.

5. 1. Elementos históricos
62
É difícil precisar quando surgiu o estoicismo no cenário histórico-filosófico, isso pelo fato
da obra do seu fundador não ter chegado ao nosso conhecimento como também somente a
conhecemos por meio de outros autores, assim mesmo extratos. O que sabemos é que Zenão de
Cicio (336-264 a.C.), natural da ilha de Chipre, se transferiu para Atenas por volta de 314 a.C.
ainda jovem, atraído pelo debate filosófico e pela possibilidade de desenvolver suas idéias em
meio a inúmeras escolas filosóficas. Sabe-se que Zenão tomou, inicialmente, lições do filósofo
Crates ( ), pertencente à escola cínica fundada por Antístenes ( ), depois também ouviu
palestras de outros filósofos como Stilpon da escola megárica constituída por Euclídes, e
Xenócrates filiado ao platonismo.
O nome estoicismo não foi cunhado por Zenão, mas pela tradição em razão de um
aspecto bastante curioso que seria contestada por sua escola: o estrangeirismo. Sendo Zenão
estrangeiro em Atenas, não poderia ser proprietário de um imóvel, com isso estava impedido de
ter uma sede própria para ministrar suas aulas. Diante dessa dificuldade o filósofo resolveu
lecionar num pórtico pintado por Polinhoto. Com o passar do tempo, Zenão e seus discípulos
85
foram apelidados de os da estoa, isso porque em grego estoa quer dizer pórtico; por essa
razão os ensinamentos ali proferidos foram denominados, no seu conjunto, de estoicismo, isto
é, conjunto de princípios construídos a partir dos ensinamentos de Zenão, sem sombra de
dúvida a mais importante de sua época, emprestando uma crítica consistente aos costumes e
valores pós-alexandrino.
Todo acontecimento histórico está vinculado a um conjunto de determinações materiais
que implica em uma dada realidade, isso porque as realizações humanas não são atos isolados,
mas acontecimentos que expressam uma síntese entre os plano concreto e abstrato, fático e
teórico. Se o pensamento se determina por condições objetivas, essa mesma objetividade é
influenciada pelas elaborações teóricas dos homens, portanto, o estoicismo não pode ser
analisado fora do seu contexto, pois mesmo sendo uma especulação metafísica, sua elaboração
teórica visa dar conta dos problemas existentes à época, um deles, talvez o mais grave, a
desagregação política da vida grega após a morte de Alexandre, o que decisivamente foi a
representação impar para o desaparecimento da pólis grega.
Alexandre Magno ( -322 a.C) com seu projeto político-militar de expansão territorial,
impôs aos gregos uma unidade política diferente daquela pensada pelos entusiastas de uma
Grécia unida em torno dos seus valores. Com sua morte o império alexandrino entrou em

85
Local coberto à entrada de um edifício, de um templo; galeria cujo teto ou abóbada são sustentados por colunas
ou por arcada, geralmente à entrada de um edifício; porta principal, portal, entrada, ingresso, acesso a algo difícil e
grandioso.
63
colapso e foi dividido entre os seus generais, causando turbulências políticas e um afastamento
do homem comum da vida da cidade. O desaparecimento da importância sócio-política da pólis
e a efetiva participação no rumo da cidade, deixa de ser interesse central para o conjunto dos
86
cidadãos, se tornando algo relativamente circunscrito aos que da vida pública têm apenas
interesses particulares, desvinculados da moralidade cidadã. Nesse período promove-se no
grego, particularmente no ateniense e na sua área de influência, um afastamento da vida
pública para um movimento de introspecção, uma guinada para a privacidade. Passa-se a pensar
que a saída não está relacionada à reforma da comunidade, mas no aprimoramento das
qualidades do indivíduo, capaz de buscar a partir de si mesmo, referência tanto para os seus
problemas quanto para os da coletividade. Nesse sentido, o estoicismo, dentro desse cenário, é
uma dessas respostas, entre outras, que surgiu naquele momento riquíssimo da cultura grega, o
qual é conhecido por helenismo. 87
A escola estóica como um resultado histórico, como um acontecimento político, como
um esforço teórico dentro de suas condições, foi o mais significativo olhar lançado sobre aquele
momento. Sua perspectiva é uma verdadeira resposta aos desafios da época, pretendendo uma
nova idéia de homem, pelo menos um homem visto como gênero e não como uma expressão
étnica. Esse novo entendimento de homem é um traço espetacular da contribuição estóica na
história da filosofia, sobretudo da filosofia política, no momento precioso no qual a filosofia se
mostra como uma crítica poderosa aos costumes e às intenções de um ideal comprometido com
a sabedoria. O estoicismo é um apelo ao sentido de razão existente no homem, talvez seja essa
a característica marcante dessa corrente filosófica do mundo antigo que marcou
definitivamente a cultura ocidental.
Assinalamos que o estoicismo enquanto corpo teórico se desdobrou através de cinco
séculos, desde Zenão no final do século IV a.C., passando por Panécio (185-112 a.C) e Possidônio
(135-51 a.C), séculos II e I a.C. até o imperador Marco Aurélio, século II d.C. Esse
desdobramento não implicou em uma descontinuidade, muito pelo contrário, com a influência
romana o estoicismo ganhou um contorno mais decisivamente ético-político, pois seus grandes
nomes como Sêneca (4 a.C-65) e Marco Aurélio (121-180), ratificaram e ampliaram a dimensão
ética da escola. Se com Zenão o antigo estoicismo é marcadamente lógico, isto é, tem na teoria
do conhecimento o problema fundamental, tendo por seus grandes seguidores Cleanto (331-
232 a.C.) seu discípulo direto e este mestre de Crisipo (280-210 a.C), um dos maiores lógicos da

86
Polítes em grego quer dizer político, o que vulgarmente chamamos hoje de cidadão.
87
Civilização e cultura que se desenvolveram fora da Grécia por influência do pensamento e cultura gregos
64
Antiguidade, fica patente que a escola participou do debate ciente da dificuldades teóricas.
Segundo Raquel Gazolla, “Crisipo, o grande sistematizador da escola, um dos maiores lógicos da
88
Antiguidade, tratou de ampliar as curtas frases de Zenão” com o fito de responder aos
adversários e elaborar um sistema teórico maciço.

5.2. O conjunto teórico do estoicismo


O estoicismo, ao contrário de outras correntes filosóficas, não encontra em seu nome
uma indicação de definição, ou mesmo uma relação de identidade entre substantivo e
predicado. Ao ler a palavra estoicismo o leitor de primeira não associa o nome a nenhum
significado específico, somente com o aprofundamento da leitura é que percebe seus
fundamentos e sua importância no conjunto da história das idéias. Se o estoicismo não traz em
si, uma relação de identidade entre sujeito e predicado, por sua vez apresenta uma visão de
mundo sofisticada.
Conforme estabelecido pela Academia de Platão (427-348 a.C), Zenão aceita a divisão da
filosofia em três partes, a saber: lógica, física e ética. Para os estóicos a filosofia pode ser
comparada a um pomar. A lógica teria a função de circundar e proteger o pomar como um
muro; as árvores como realidade do pomar, em si, seria representada pela física como estrutura
necessária; os frutos, resultado de todo pomar, têm na ética o seu sentido de essência à
existência da realidade. Nesse caso, os estóicos atribuem à lógica o sentido de teoria do
conhecimento, critério de verdade que viabiliza a compreensão das coisas, ou seja, a posse do
objeto pelo espírito, 89 ou ainda, como pondera Fílon ( ), “a percepção sólida e estável,
inabalável pela razão”. 90
O estoicismo é uma escola maciça cujas partes estão interligadas necessariamente como
um sendo o esteio do outro, portanto na hierarquia entre lógica, física e ética. Outro detalhe
importante a ser considerado é o dado de o estoicismo ser considerado, do ponto de vista
teorético, um racionalismo dogmático, pois ao contrário da concepção platônica procura fechar
os problemas a partir de construções solidamente lógicas, em que o lógos se impõe ao sensível.
O dogmatismo estóico se caracteriza pela exatidão das respostas aos problemas enunciados, e
nesse sentido, o estoicismo se constitui como uma escola solidamente constituída, porém não
estática, pois embora seus princípios sejam firmemente elaborados, no processo do tempo seus
seguidores o atualizam conforme o surgimento dos problemas.

88
GAZOLLA, Raquel. O ofício do filósofo estóico. SP: Edições Loyola, 1999: 15.
89
BERGSON Henri. Curso sobre a filosofia grega. SP: Martin Fontes, 2005: 145.
90
BRÉHIER, Émile. História da filosofia. Vol. II. SP: Ed. Mestre Jou, 1978: 43
65
Não se deve esquecer que os estóicos estão num contexto filosófico em que a
argumentação conduz ao conhecimento como domínio do objeto, por isso é a lógica o seu
postulado mais importante; se para nós que estamos acostumados ao convite moral estóico em
toda sua beleza, ao contrário, para os seus fundadores a ética é apenas o corolário, a
conseqüência de uma postura intelectual perante a vida. A lógica estóica é o pressuposto de
toda validade especulativa, sem ela não se compreende o rigor estóico, muito menos o seu
intelectualismo-moral, base de toda filosofia grega desde Sócrates (470-399 a.C.). Segundo Jean
Brun, “a lógica não é, pois, para os estóicos, o que é para Aristóteles, um ‘organon’, um
instrumento, uma técnica, uma arte de pensar, ela é, pelo contrário, a expressão de uma
91
adesão”, um bastar-se a si mesmo, isso porque o conhecimento não tem outro fim senão se
conhecer para ser conforme ao lógos como princípio do assentimento. 92 Dessa forma também
compreende Émile Bréhier, assinalando que o conhecimento, segundo os estóicos é “desde o
começo, penetrado de razão e pronto a abrandar-se ante o trabalho sistemático da razão”, por
isso as noções têm sua origem na espontaneidade dos raciocínios vindos da percepção, nesse
sentido a noção de bem “promana de uma comparação, pela razão, de coisas percebidas
imediatamente como boas”. 93 Assim, o conhecimento pode ser entendido como percepção pelo
fato de representação total, isso em razão de ser sistemático e racional, constituindo ato de
94
captar o objeto sensível. Dessa forma pode-se tomar o estoicismo como um empirismo cujo
objeto exterior provoca sensações no sujeito que o percebe.
Compreendendo a unicidade da filosofia, a concepção estóica do sentido de física nada
tem a ver com a física moderna como ciência que investiga as leis do universo no que diz
respeito à matéria, à energia e ao movimento dos corpos e seus elementos constituintes-
interativos. Para a filosofia de Zenão, física esta relacionada à physis, (natureza) que deriva do
verbo phuein com o sentido de crescer, tomando a natureza como movimento em si mesmo.
Conforme Brun:

“Para os estóicos, natureza, Deus e fogo são termos sinônimos;


divinizar a natureza, ou antes, naturalizar Deus, é dar ao homem a
possibilidade de entrar em contato com ele e de encontrar, na

91
BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986: 81.
92
“O assentimento é uma adesão ao verdadeiro que nós dá a compreensão donde deriva a ciência. Esta ciência é o
ponto de partida de uma sabedoria que se exprime por uma adesão consentida ao que acontece segundo o tempo
da natureza.” BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986: 42. Ação ou efeito de assentir; assenso,
concordância, anuência.
93
BRÉHIER, Émile. História da filosofia. Vol. II. SP: Ed. Mestre Jou, 1978: 44.
94
Ibidem.
66
realidade que o envolve, a consistência susceptível de dar a sua vida
uma significação ordenada” 95

Essa física estóica é o espaço em que os indivíduos transitam a partir de uma ordenação
dada. Esse sentido de espaço é pensado como parte integrante da vida de todos os seres que se
sentem uns aos outros, que se percebem como necessariamente vinculados mesmo que se
reconheçam como unidades próprias, nesse particular os estóicos alimentam o carácter do
indivíduo sem, com isso, torná-los indiferentes entre si, pois a física estóica não distancia
estaticamente os seres envolvidos, pelo contrário, os aproxima na medida em que toma a
natureza como movimento racional. É nesse movimento racional que a unidade entre os
indivíduos é posta, sustentando, por assim dizer, o corolário de simpatia universal como
pressuposto do cosmopolitismo defendido por Zenão.
Segundo Henri Bergson (1859-1941), o princípio fundamental da física estóica repousa
96
sobre o corpóreo: “tudo que é, é corporal [sendo] a forma inseparável da matéria.” Nesse
caso, os corpos são penetráveis como relação necessária, isso quer dizer que a forma é tão
extensão como a matéria, portanto há uma relação mútua em que o corporal é fundamento do
existir na relação direta dos corpos existirem na mesma dimensão espaço-tempo sem se
confundirem, guardando entre si suas respectivas qualidades como diferença. Assim se percebe
que o pensamento estóico pode ter influenciado os jusnaturalitas, ressaltando o empirismo de
John Loche (1632-1704), o fato de que “o mundo é composto de indivíduos e nenhum deles se
assemelha entre si: não há dois ovos que sejam rigorosamente semelhantes; cada um possui
uma ‘qualidade própria’ (...) A individualidade é uma força fundamental e constitutiva.” 97 Dessa
forma a totalidade estóica preceitua que mesmo sendo diferentes os indivíduos, a natureza, por
força de sua razão divina, torna os homens iguais pelo fato de todos serem da mesma origem e
capaz de perceber o lógos como supremo bem. Destaca-se, ainda, que o sentido de
individualidade atrela-se ao de qualidade, pois essa individualidade não se resume em um
princípio exclusivamente egoístico, mas no dado de que o um é o simples, e nesse caso se
determina pela distinção, por isso é qualidade em si.
O pensamento estóico é uma intrínseca relação entre lógica-física-ética como conjunto
de elementos indissociáveis. E como bem assinala Bergson, valendo também para o postulado
lógico, a física estóica busca uma base aceitável e universal para o projeto moral. 98 Esse projeto

95
BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986: 48.
96
BERGSON Henri. Curso sobre a filosofia grega. SP: Martin Fontes, 2005: 137.
97
BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986: 50
98
BERGSON Henri. Curso sobre a filosofia grega. SP: Martins Fontes, 2005: 136.
67
moral é compreendido como uma adequação ético-política, tornando o estoicismo uma música
audível nos dias de hoje. Nesse discurso ético encontra-se uma tentativa de validar novos
paradigmas para uma época que viu desmoronar tentativas de construção social a partir do
indivíduo determinado pela pólis. O estoicismo não se apresenta como uma continuidade
socrática quanto aos problemas relacionados ao homem e seu projeto, a estoa carrega na ética
toda sua visão corajosa de mundo e o papel do sábio como aquele capaz de superar os
obstáculos, as adversidades dentro de uma racionalidade existente com o plano de fazer com
que o homem viva segundo a natureza, ou seja, conforme a razão. Admite, o estoicismo, que o
homem vivendo sob os ditames da razão, viva uma existência longe das perturbações e perto do
99
ideal de sábio: a submissão das paixões à determinação do lógos com o fim de encontrar a
100
ataraxía (ataraxia), ou seja, a serenidade como ideal em que o filósofo se torna, por ofício,
isento de sentimentos contrários à sua natureza divina.
O estoicismo tem na razão a fundamentação do seu discurso; é com ela e através dela
que a estoa promove o homem como um ente capaz de discernimento, detentor das condições
101
mínimas necessárias à autarchéia (autarquia), governante e responsável por si mesmo. A
autarquia no lócus estóico apresenta o homem como ser livre, independente das vontades de
um sistema ou das vicissitudes humanas. Ser livre para um estóico tem duplo sentido: primeiro
o homem é livre porque a natureza se basta a si mesma, é nela que ele encontra sua origem;
segundo pelo fato do homem reconhecendo tal verdade, submete toda sua vida ao que é
natural, racional, portanto divino. O estoicismo assevera que a natureza é justa porque é divina.
Essa divindade não é algo incorpóreo, aquilo que não se sente ou mesmo não se compreende;
Deus é corpóreo e sua materialização está na natureza, sendo conhecida pela razão. Logo essa
vinculação do homem com a natureza lhe confere a condição de cidadão do kósmos (cosmos),
102
homem que nascendo nesta ou naquela cultura, pertecente a qualquer cidadania permanece
cidadão do mundo, de uma humanidade na qual ele é a própria condição de ser porque sua
condição é cosmopolita (cosmopolitismo). 103
Esse cosmopolitismo estóico rompe com a tese de que o homem encontra seu
significado, sua humanidade em bases estreitamente étnicas. Para o estoicismo, essa suposta

99
Força criadora e mantenedora do universo, agindo como princípio ativo que anima, organiza e guia a matéria,
além de determinar a lei moral, o destino e a faculdade racional dos homens. (discurso compreensivo-congruente;
calculo exato)
100
Ataraxia quer dizer o princípio da imperturbabilidade.
101
Governo sobre si mesmo através de princípios próprios.
102
Sentido de ordem dada no mundo, estabilidade universal;
103
A idéia de uma cidade universal em que todos são cidadão, cosmópolis.
68
natureza étnica do homem retira de si sua origem divina e o escraviza por acidente, o que é um
absurdo quando se tem o homem como senhor de si mesmo. Se a natureza não faz distinção de
homens, para ela todos são iguais, portanto, qual o motivo da separação entre os homens por
nascimento, origem, sexo ou credo? Mediante tal indagação os estóicos atingem o centro do
problema mostrando as organizações sociais à época como verdadeira irracionalidade. No
estoicismo a irracionalidade leva o homem a ser prisioneiro das paixões e dos vícios, e o ideal do
sábio estóico é viver conforme a natureza, suprimindo as paixões por maio da apátheia (apatia),
104
tornando o sábio estóico um homem capaz de realizar um plano divino no seio da
humanidade, visto que superaria todas as corrupções e anomalias existentes em todas as
cidades. O ideal do sábio estóico não é outro senão a superação daquilo que lhe é apresentado
como bom, para ele o bom deve relacionar-se ao plano da natureza, somente nessa perspectiva
o homem encontraria sua perfeita liberdade e sua verdadeira identidade, seu vínculo com o
divino, um projeto de existência que superaria as nocivas formas de organização social. O bom
no estoicismo é procurar o bem, ou seja, viver sob a apatia, o mal configuraria toda e qualquer
submissão à paixão, causa das grandes perturbações morais, embora essa concepção de mal
seja muito diferente daquela instruída pelo cristianismo. É bom que se frise que o mal para o
estoicismo é um plano ilógico, e não uma força corpórea-inteligente competindo com a natureza
sobre o homem.
O projeto estóico é uma clara contestação ao ideal do mundo antigo que separava os
homens em virtude de sua etnia. Sua fundamentação teórica não poderia ser outra senão a
divina, ao que antecede à própria organização política, onde o homem está preso e
mentalmente subordinado. Segundo a lógica, sustenta-se que o conhecimento é o resultado de
uma impressão que o objeto nos causa criando representação, que por sua vez será “assentida”
pelo lógos que existe na nossa alma. Sob tal critério de verdade observa-se o papel da
subjetividade no processo de conhecimento, que seria uma construção do indivíduo contrário a
uma determinação estranha à intelecção. Se o critério de verdade no estoicismo passa pela
apreciação do indivíduo, sua ação efetivamente boa é um ato solitário, individual, não necessita
da pólis para o seu sucesso, mas da ação daquele que estabelece por meta, viver de acordo com
a natureza. É necessário perceber que em filosofia não existe departamentalização do
conhecimento, todos os elos estão ligados uns aos outros mesmos que B não venha
imediatamente após A.

104
Pathos em grego quer dizer paixão, o que significa que a paixão é uma idéia falsa, um impulso sem a medida da
razão.
69
O estoicismo não vacila na relação vício e virtude, aquele deve ser combatido pelo modo
racionalmente correto, vale dizer, cumprir as determinações da natureza, vivendo indiferente ao
que não estiver de acordo com o lógos. Lógos não é propriamente razão como é conhecido pela
tradução do conceito grego para o latim; seu significado implica numa estrutura muito mais
complexa além de uma simples racionalidade. Constitui, isso sim, uma relação de verdade e
ação verdadeira: se for o certo então devo viver como certo, o lógos é viver moralmente dentro
do dever assumido como bom, justo, de acordo com o prescrito na natureza, em nossa alma que
é centelha da divindade. Portanto a vida perfeita para um estóico pode ser resumida na firme
vontade de executar uma determinação natural existente no homem, viver sua humanidade.
Viver sua humanidade seria uma importante constatação existencial de que o homem é homem
em qualquer circunstância e em qualquer lugar, independente de sua origem e relação política.
Assim, o perfeito para o estoicismo não se resumia aos planos lógico, político ou ético, mas
acima de tudo ao estético, isto é, pela própria forma humana que mostra o plano da natureza na
cosmopolitização das relações sociais.

5.3. Estoicismos e o direito natural


Segundo Giovanni Reale, os estóicos apresentaram uma nova visão acerca da lei e do
direito calcada na “perspectiva metapolítica e universalista”, 105 isso após a derrocada da pólis e
a inversão do sentido de lógos ontológico para o deontológico. Para a filosofia estóica, a lei
humana deveria ser a expressão da lei natural como lei eterna plasmando todas as coisas,
derivadas do lógos, isso porque é expressão da própria razão. Conforme depoimento de Cícero,
para os estóicos “a lei é suma razão, inata na natureza, que ordena o que deve ser feito e proíbe
106
o contrário: essa mesma razão, reforçada e aperfeiçoada pela mente humana, é lei”
Portanto, para a estoa, a natureza tem em si a razão como fundamento da natureza porque ela
em última instância é eterna, imutável e universalmente necessária, exercendo o papel de
unificadora na relação humano e divino, buscando com isso uma nova reflexão na consecução
de um novo homem. 107
A leitura de Rachel Gazolla acerca do significado de natureza marca uma posição
instigante para pensar o que determina o fundamento do pensamento estóico no plano do
direito. Para a estudiosa brasileira, “a natureza será lida de forma dogmática, afirmada em seus
princípios aos quais todos se submetem. Ao modo arcaico, para a Stoa o que a natureza

105
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Vol. III. SP: Loyaola, 1994: 353.
106
CÍCERO, De legibus, apud REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Vol. III. SP: Loyaola, 1994: 353.
107
GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estóico. SP: Loyola, 1999: 46.
70
determina é o que somos. E agimos como somos. Segui-la será, portanto, a suprema arete”
(virtude). 108 Nesse particular a natureza é uma determinação onto-deontológica, isto é, um ente
de determinações que pauta a vida daqueles que buscam a racionalidade como critério de vida
e norte nas relações sociais, pois viver conforme a natureza, segundo Zenão, é “viver uma vida
harmoniosa”. 109
Partindo desse princípio a influência do pensamento grego é algo incontestável nas
formas e nos conteúdos existentes no mundo ocidental, somos o que somos como resultado
histórico a partir da experiência grega no que diz respeito ao seu ideário de homem político. O
mundo grego está impregnado da mentalidade do homem enquanto ser individual, ser que
encontra sua humanidade na pólis pela associação necessária de interesses comuns. O grego
clássico via na pólis toda sua expectativa de encontro consigo mesmo, por isso sua experiência
política é fundamental enquanto exercício da valoração de si mesmo como instância decisiva
nos negócios da cidade, visto que, em última análise, o público interfere no privado e determina
o seu modo de ser. Configurava uma moralidade o exercício público, a assembléia, a votação, o
debate; talvez esteja nessa moralidade todo o nosso interesse em conhecer a mentalidade
daquele povo que mesmo sendo dominado pelos romanos, seria em pouco tempo dominador e
esteio da própria cultura romana, que pelo seu gênio prático adotaria inúmeras criações
helênicas, transferindo mais tarde seu legado a toda Europa. Se o nosso direito tem raízes
profundamente romanas, sua racionalidade associa-se ao pensamento grego com suas
contradições e múltiplas originalidades em meio às correntes filosóficas.
A influência estóica no mundo do Direito parece ser interessante sob o ponto de vista
não da positividade, mas pelos fundamentos, que estudados e relacionados se percebe
claramente o legado da estoa de Zenão. É bem verdade que os estóicos não apresentaram
nenhum conceito de lei estritamente positiva, aquela emanada pelo poder estatal, mas de
alguma forma contribuíram na tese de que o verdadeiro direito tem por fundamento a natureza,
o lógos, que é justo e bom em si mesmo, que não depende da chancela de nenhuma autoridade
humana para ser válido. Entende-se que esse conceito de direito posto na antiguidade teve em
si uma argumentação poderosa contra o arbítrio dos que supunham ser predestinados em
detrimento dos que não poderiam sobre si mesmos, elaborar nenhuma afirmativa de
convencimento. A mensagem estóica relativa ao direito natural é uma oposição ao direito

108
Idem, 1999: 39.
109
BRUM, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986: 76.
71
positivo conhecido a época, que não levava em consideração os interesses subjetivos, senão os
dos iguais em distinção.
Para os estóicos a lei deriva diretamente do lógos, que na verdade é quem rege o
cosmos, sendo assim, o direito positivo seria um dado da natureza, uma exteriorização do
direito natural. As leis positivas não são meras convenções, no julgamento estóico são
exteriorizações de uma lei eterna, emanações do lógos que estabelece o que é bom e o que é
mau. Ao que parece lei e natureza no estoicismo se confundem pela própria relação de
necessidade. Gaius, jurisconsulto de grande importância dentro do Direito Romano, influenciado
pelo estoicismo, ponderava que o jus naturalis estava inserido no jus gentium, fazia parte do
principio de que o direito natural pertencia ao direito das gentes. Ulpianos, outro expoente da
cultura jurídica romana, entendia que a justiça é vontade constante de dar a cada um o seu
direito. Verifica-se que a influência estóica no Direito Romano foi além de uma mera relação de
formalidade, esteve presente na dogmática jurídica enquanto nova metodologia: a idéia de uma
razão universal que repercutiu na própria jurisprudência. A lei humana é a expressão de uma lei
natural, que nascendo do lógos, imediatamente se insere em todas as coisas norteando o direito
como uma vontade natural a ser executada no plano das relações humanas com o fim de
estabelecer o que é justo aos olhos da racionalidade. Dessa forma, o direito no estoicismo
obedece ao principio de que a natureza por ser racional é superior a qualquer organização
humana, e assim capaz de dar a cada um o que lhe pertence, pois o suposto direito humano é
eivado de paixão, corrupção e irracionalidade.
O mesmo princípio universalista que animou os juristas romanos empolgou os
jusnaturalistas do mundo moderno; estes buscam um sentido de universalidade inspirados pelo
projeto burguês, aqueles o cosmopolitismo como esteio da expansão dos interesses romanos.
Na verdade, o direito natural substitui não só nominalmente como também, essencialmente, o
sentido de direito posto como contrário ao suposto direito divino das monarquias européias no
início da era moderna, seu corolário se baseia na idéia de uma ordem universal que precede às
ordens convencionais por leis parciais, subjetivas e quando não envolvidas pelas paixões
humanas. O direito natural, sendo anterior e superior aos direitos positivos postos pela cultura,
é norteado pela razão, e nesse caso a razão e direito natural são duas faces da mesma moeda,
ou melhor, direitos naturais e racionais querem dizer a mesma coisa a partir do mesmo
princípio: a absolutez da eficácia da vontade da norma em se impor como critério de
razoabilidade, legítima expressão do contrato político que ensejou o sentido do Estado moderno
como realidade política a contemplar os direitos naturais .
72
O direito natural que no mundo antigo-medieval, mutatis mutandi, era entendido como
uma ordem necessária ao mundo dos homens, passa a ser compreendido, a partir do século
XVII, como um conjunto de direitos intersubjetivos em virtude da própria condição humana, se
tornando princípios-pressupostos inspirador de dada ordem legal cujo fim seria proteger os
direitos concernentes à pessoa, nesse sentido, o jusnaturalismo busca na razão esse elemento
universal necessariamente válido.
O pensamento jusnaturalista é variado é múltiplo, nele existem diversas matizes desde o
catolicismo de Francisco Suárez (1548-1617) passando pelo protestantismo de Hugo Grotius
(1583-1645) e o atomismo de Samuel Pufendorf (1632-1694) até o materialismo de Thomas
Hobbes (1588-1679). É curioso notar certa confusão feita por alguns estudiosos quando afirmam
a existência de um jusnaturalismo antigo. Na verdade o que há é uma concepção de direito
natural que data do pensamento grego pré-socrático até o direito natural influenciado pelos
filósofos da estoa. O sentido de jusnaturalismo passa definitivamente por uma concepção
medieval, sobretudo moderna, cuja temática principal é o poder político como natureza pública
e não privada, portanto os fundamentos são pensados a partir de uma racionalidade não
transcendente e muito menos imanente particularizada, mas sobre a razão como instância
cognitiva capaz de captar o necessariamente universal e materializar-se como direitos
inalienáveis. Sendo esse direito não dado pela ordem política, mas protegido por essa ordem
como extensão do lócus da razão natural. Por isso os jusnaturalistas podem ser considerados os
verdadeiros teóricos do Estado moderno, ou se quisermos ser precisos, do Estado pensado
modernamente.
O direito natural pode ter suas raízes platônico-aristotélicas se pensado sob a ótica
da influência católica desde Santo Agostinho (354-430) até São Thomaz de Aquino (1221-1274)
passando por Suárez, mas como bem assinala Ernest Cassirer (1874-1945), “o racionalismo
110
político do século XVII foi um renascimento das idéias estóica” pelo dado de se buscar a
razão como elemento essencial, uma vez que o pensamento estóico estava descolado tanto da
Reforma protestante como da Contra-Reforma católica, buscando ligação direta com as
investigações de Galileo Galilei e René Descartes (1596-1650), que privilegiavam em suas
pesquisas a linguagem matemática como decifração dos princípios gerais que regem o
universo.

110
CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. SP: Códex, 2003: 200.
73
Na visão de Quentin Skinner, a influência do estoicismo nos primórdios do pensamento
111
ainda não foi devidamente estudada, sobretudo o papel do estóicos romanos. Ressalta o
pesquisador inglês, na mesma perspectiva investigativa de Cassirer, que ao estudar
objetivamente o estoicismo, se verificará a notável influência dessa escola como base do
pensamento moderno, verificando o quanto as raízes do pensamento são mais profundas do
que parecem. Na verdade as correntes teóricas são apenas desproblematizadas por conta de
muitos aspectos, dentre eles os interesses.
Para os estóicos o fim da vida é a felicidade, mas para tal fim deve-se viver conforme à
natureza, isto é, a razão (lógos), logo, o sentido de se viver, segundo a natureza, significa a
realização plena de si, ou seja, deve-se apropriar do ser quanto à ação-conservação, pois o
homem não é um ser apenas vivente como os vegetais e os animais, mas um ser racional que
deve reconciliar-se com sua racionalidade, conservando ativamente sua essência, o principio da
oikéiosis: apropriação-conciliação. Os estóicos assinalam que a felicidade consiste em viver
indiferente aos acontecimentos externos, pois podemos ser felizes em meio aos tormentos,
posto que a felicidade procede da indiferença ao externo (adiáphora). Assim, o sábio deve viver
conforme o lógos, livre e não segundo o tolo, escravo dos seus preconceitos, por isso o ideal do
sábio passa pela ética do dever como imposição moral (kathékon): o bem por ser vantajoso é
um incremento do lógos, ao passo que o mal só causa dano. Nesse sentido, o bem é virtude,
sendo o mal um vicio, algo que não é devidamente tomado pela razão.
Para o estoicismo a vida virtuosa deveria ser pautada pelo mais profundo assentimento
de conformidade à retidão racional, visto que as ações são, em si, um movimento das nossas
inclinações. Para os estóicos, “a virtude é uma linha reta, que não pode deformar-se sem deixar
112
inteiramente de ser aquilo que é” por ser um bem, identificada com tudo que é louvável e
naturalmente bom. Nesse sentido, a virtude na óptica estóica é o mais profundo sentimento de
dever pelo dever em que a razão só se satisfaz com o indispensavelmente necessário ao lógos.
Pode-se ponderar que a eticidade pretendida pela estoa está bem próxima de um conteúdo
estético. A moralidade propugnada por essa escola é um conjunto de versos entoado ao som
de uma sinfonia pintada pelas cores do mais belo sentido de um homem preocupado não só
consigo, como também com o outro, visto que o outro deve ser tomado como expressão de
simpatia. E essa simpatia é a universalização do homem na humanidade.

111
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia sas Letras, 1996: 14.
112
Sêneca apud BERGSON Henri. Curso sobre a filosofia grega. SP: Martin Fontes, 2005: 154.
74
É identificando os homens como seres naturalmente iguais pelo imperativo do lógos,
que os filósofos estóicos afirmam a necessidade de se cultivar uma meditação do ponto de vista
individual ao mesmo tempo em que inclina-se para um agir coletivo virtuoso, isso porque o
sábio deve adquirir o estágio de perfeição pela beleza do agir perfeito: sabiamente.
Ao terminar o presente texto não poderíamos esquecer-nos de vaticinar que o ideal
estóico perdurou meio que escondido na Igreja antigo-medieval, mesmo que enfrentando o
platonismo agostiniano até a assunção do aristotelismo como instrumento político-teórico do
catolicismo a partir do século XIII. É o estoicismo que inspira, meio que despercebido pelo
próprio momento, as construções racionais do pensamento político moderno quando se busca
um justo por natureza de valor universal. É o estoicismo, em linhas gerais, a escola filosófica
que sonhou por meio de estruturas lógicas, a possibilidades dos direitos serem oferecidas pela
razão, eliminando a concessão política como um favor do Estado para com o indivíduo. Pena
não termos herdados a integralidade dos textos dos estóicos, com certeza nossas reflexões
seria mais profundas.
75
Capítulo VI
A cristandade medieval e a filosofia

6.1. O helenismo e o cristianismo


O cristianismo nasceu em um mundo helenizado em que recebe da filosofia grega forte
influência, ao mesmo tempo impregnado de elementos religiosos orientais. No entender de
Truyol y Serra, o cristianismo, pelas suas origens e suas primeiras lutas, pertence à Antigüidade.
Durante seis séculos firmou seus passos com êxito crescente até ser reconhecido oficialmente
no Império Romano. Na sua fase inicial, o pensamento cristão desenvolve-se paralelamente ao
pensamento pagão da última fase. Dentro desse período antigo e depois medieval do
cristianismo, a tradição estabelece os seguintes limites: o pensamento patrístico e o
escolástico. A Patrística tem seu lugar nos séculos II ao VI e a Escolástica, do XII ao XIV. O
período compreendido entre essas duas épocas se define por uma crescente afirmação social,
política e cultural da cristandade medieval.
O mundo antigo nos ofereceu o espetáculo da competição entre duas sabedorias: a
grega e a hebraica. Esse conflito marcou o fim do período antigo e o esforço da Idade Média em
articular a sabedoria divina com a sabedoria humana. A sabedoria grega apresentava um
interesse direcionado para o mundo. Nesse sentido, o seu paganismo lançava raízes no
pensamento mágico. A razão grega acreditava no destino, na boa ou má sorte, nas inspirações
superiores e na adivinhação. A razão grega partia da realidade tangível e visível, do vir-a-ser, do
comportamento humano. Na sabedoria hebraica ou da salvação, Deus é quem concebe a
sabedoria ao homem, 113 não havendo autonomia.
O cristianismo promoveu, por conseguinte, uma modificação nos valores: operou a
transcendência do fim último, em que Deus se torna o valor supremo. Surge o Deus pessoal,
criador do mundo, sendo ele perfeito, independente e livre. A transfiguração da felicidade em
bem-aventurança significa que não é por meio da razão, mas da fé que o homem alcança a
felicidade expressa no sentido de posse ou visão intuitiva de Deus. Essa modificação se refletiu
na arte medieval que se separou da realidade, sendo certo que o velho mundo e a alegria dos
sentidos foram substituídos por uma transcendência – uma representação do mundo espiritual
e não do mundo sensível. Segundo Arnold Hauser, houve grande semelhança entre as últimas
obras pagãs e os trabalhos dos primeiros cristãos medievais. Sob o ponto de vista externo as

113
Vide os Livros Reis cap. 3 e Provérbios cap. 1, por exemplo. Bíblia hebraica. SP: Séfer, 2006.
76
formas de arte não se alteraram, mas a sua função social assumiu outro papel na cristandade:
passou a figurar como importante instrumento da doutrina cristã. Para o autor:
O novo ideal de vida cristã a princípio não alterou exteriormente as formas de arte,
mas alterou a sua função social. Para o mundo antigo uma obra de arte tinha um
significado, que, antes de mais nada, era estético, mas para a cristandade o seu
significado era completamente diverso. (...) como instrumento de educação
eclesiástica, a arte era a mais valiosa (...) os gregos e os romanos muitas vezes se
serviam dela como instrumento de propaganda, mas nunca a usaram como simples
114
veículo de doutrina.

Acentua ainda Arnold Hauser que o conceito de Idade média é puramente artificial, pois
na realidade esse longo período apresentou três momentos diferentes. O primeiro momento
de uma economia natural em sua fase primitiva; o segundo concernente a uma cavalaria
galante da alta Idade Média, e a cultura burguesa urbana da última fase da Idade Média. 115
O cristianismo medieval apresentou muitos pontos em comum com o paganismo, uma
vez que seus fundadores haviam sido influenciados pelo neoplatonismo. Basta lembrarmos as
sete virtudes cardeais estabelecidas pelo papa Gregório, no séc VI, apenas três eram cristãs (fé,
esperança e caridade), as demais foram retiradas do pensamento de Platão e Pitágoras
(sabedoria, justiça, coragem e temperança). É forçoso admitir que, por volta do ano 500 d. C., o
platonismo, o mitraísmo, o estoicismo, o cinismo e cultos locais continuavam enraizados nas
mentes dos homens de então. Tribos bárbaras, sofistas nas cidades de Atenas, Alexandria,
Esmira, Antióquia e Roma, mantinham vivas as tradições pagãs a despeito de se converterem
ao cristianismo. 116 Assim assinala o historiador William Manchester que
Os deuses pagãos permaneceram vivos apesar da cristandade medieval. Os
homens medievais desenvolviam a adoração de ídolos que atendiam às
necessidades que a Igreja não alcançava. Seus rituais, mitos, lendas e milagres
eram adequados ao estilo de vida medieval. Poucos viam nisso incongruência
ou traição (...) As igrejas foram construídas sobre as bases dos templos
pagãos; nomes de santos bíblicos foram atribuídos a bosques considerados
sagrados séculos antes do nascimento de Jesus. As festas pagãs ainda eram
muito populares (...) Pentecostes suplantou a Florália, o Dia de Todos os
Santos substituiu um festival para os mortos, a festa da purificação de Ìsis e a
Lupercália romana foram transformadas na festa da Natividade. A Saturnália,
quando até os escravos desfrutavam grande liberdade, tornou-se o Natal; a
ressurreição de Átis, a Páscoa.117

Segundo o referido autor, por volta de 336 d.C., os romanos convertidos ao cristianismo
teriam celebrado pela primeira vez o nascimento de Jesus, sendo certo que inicialmente o

114
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da arte. Tomo I. SP: Editora Mestre Jou, 1972: 188.
115
Idem, 1972: 181.
116
MANCHESTER, William. Fogo sobre a terra. A mentalidade medieval e o renascimento. RJ: Ediouro, 2004: 30.
117
Idem, 2004: 34.
77
Império Romano do Oriente escolhera o dia 6 de janeiro, depois passou a adotar a data do dia
25 de dezembro, ambas escolhidas aleatoriamente. Na verdade, ninguém conhecia a data de
nascimento de Jesus, muito menos a data de sua ressurreição. Sabe-se que os primeiros
cristãos acreditavam na volta de Jesus como algo iminente, celebrando a Páscoa todos os
domingos. Trezentos anos depois, acrescenta Manchester, vários descendentes desses
primeiros cristãos compreenderam que a volta poderia demorar e passaram a relacionar a
Páscoa com a Paixão, inicialmente agendada junto com a Páscoa Judaica que celebrava o Êxodo
do Egito no séc. XIII a.C. 118
A Idade Média foi considerada, portanto a época intermediária entre a Antigüidade e os
tempos modernos, é o período compreendido entre a queda do Império Romano do Ocidente,
119 120
ano 476, e a tomada de Constantinopla no ano 1453. O medievalista Alain de Libera
afirma em sua obra A Filosofia Medieval, que a história da filosofia medieval é escrita, em geral,
do ponto de vista do cristianismo ocidental. E que, portanto, esse gesto não é isento de
conseqüências, pois fixa os objetos, os problemas, os campos de investigação, avaliam, podam,
repartem segundo suas perspectivas, interesses, tradições, impõem esquecimentos, imprimem
suas diretrizes e direções. Na verdade, a história da filosofia medieval é constituída por várias
fases: a latina, a grega, a árabe-muçulmana e a judaica.
O período da Idade Média é, para alguns, conquista de um só grupo, os cristãos
ocidentais. Mas para outros pensadores árabe-muçulmanos, a Idade Média desenhou o
nascimento, o impulso e o apogeu de uma cultura. Uma idéia aceita na visão de Alain de Libera
é a de que a Idade Média viu a teologia cristã tomar definitivamente o lugar da filosofia grega.
Este autor entende que o ocidente cristão foi filosoficamente estéril e só despertou do seu
longo sono a partir das influências do oriente muçulmano para o ocidente muçulmano e depois
para o ocidente cristão. Mencionou que:

“O século de Justiniano é, para nós, um período crucial: é o século da


reconquista, da suprema afirmação da romanidade bizantina, da reconstrução
da unidade do Império de Constantino. Ora, é nessa época que o poder
político cristão decide erradicar a filosofia pagã. (...) O espaço histórico em
que se situa Justiniano não é medieval nem tardo-antigo: o tempo em que sua
ação se inscreve é o da romanidade. Justiniano é um romano. É um imperador
romano que se esforça por acabar com a filosofia como instituição e realidade
social. (...) Portanto, o conflito entre o helenismo e o cristianismo não termina
com o suposto exílio dos filósofos na Pérsia, nem a filosofia está morta, nessa
época. Ao contrário, inicia-se um movimento de deslocamento ou de

118
MANCHESTER, William. Fogo sobre a terra. A mentalidade medieval e o renascimento. RJ: Ediouro, 2004: 34.
119
Deposição do imperador Rômulo Augústulo.
120
A vitória de Maomé II contra Constantino XII.
78
translação da ciência: a translatio studiorum, que vai durar até o final da Idade
Média”. 121

O cristianismo triunfou a partir de Flavius Valerius Constantinus, conhecido como


Constantino I (272-337), permitindo a liberdade de culto aos cristãos e reconhecendo a
competência da autoridade episcopal nos processos civis. Na prática o cristianismo já possuía
estrutura organizada denominada Igreja. Com o edito de Milão no ano de 313, a Igreja de Roma
foi erigida em centro da cristandade o que engendrou inúmeras disputas sobre divergências na
interpretação da mensagem de Jesus. O confronto de opiniões fortaleceu a Igreja católica. Foi
nesse contexto que surgiu a Filosofia Patrística com a missão de apresentar uma única versão
do Evangelho, não só como revelação divina, mas também como resultado de juízos racionais.
Tentou-se munir a fé com argumentos racionais. Dentre os inúmeros padres da Igreja,
destacou-se Santo Agostinho, considerado “o pai da filosofia cristã”.
Segundo Etienne Gilson, compreendemos por literatura patrística o conjunto de obras
eclesiásticas da Antigüidade que configuraram o momento inicial de construção da doutrina da
Igreja. Na ocasião nem todos os autores eram padres da Igreja primitiva, mas recebiam o título
de doutor da Igreja caso representassem de maneira eminente a doutrina desejada. Alguns
padres antigos receberam o título de sancti. Nesse caso, quando os medievais atribuíram esses
títulos, queriam distingui-los dos filósofos pagãos. Assim, abaixo dos doutores da Igreja
encontramos os escritores eclesiásticos, testemunhas de sua tradição. 122
De acordo com alguns autores, esse momento da história foi marcado pelo
enfraquecimento da vida intelectual para não falar num significativo analfabetismo. Sabe-se
que Carlos Magno (747-814), rei dos francos a partir de 771, mais tarde coroado em 800 pelo
Papa Leão III, imperador do Sacro Império Romano Germano era analfabeto, mas com tudo isso
se preocupou em cunhar o seu reino dentro de uma perspectiva voltada a construção de
instituições que pudessem viabilizar o seu poderio político-militar. Não é à toa que convida para
a tarefa de instrução do reino (seus filhos e nobres), o monge Flaccus Albinus Alcuin ou Alcuíno
de Iorque (735-804), que funda por volta 781 a Escola Palatina, que mais tarde nela também
ensinaram os homens mais famosos da época, tais como o historiador Paulo Diácono, o
gramático Pedro de Pisa, o teólogo Paulino de Aquiléia, o poeta espanhol Teodulfo, entre
outros.

121
LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p.14-5.
122
GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1995: XX-XXI.
79
Desse período em diante assiste-se a muitos avanços dentro das transações comerciais,
e um largo interesse em se buscar alternativas para uma possível estabilidade política, que de
certa forma engendraria o que mais tarde foi reconhecido como revolução comercial-urbana.
Mas mesmo assim, apesar desses esforços implementados por Carlos Magno, que de certa
forma pôs fim a Alta Idade Média, a fome, a peste, pandemias, raquitismo, estradas em
péssimo estado, violências cotidianas, batalhas e disputas cruéis, continuaram existindo. Nesse
contexto, as pessoas viviam em casas comunais e se limitavam a uma vida insular. A pena
escolhida para vários delitos diferentes era sempre a mesma: a morte, demonstração clara de
ausência de leis, 123
A nova perspectiva religiosa cristã propiciou o que alguns compreendem como filosofia
cristã, um pensamento que se desenvolve nos limites das verdades estabelecidas pela fé, na
busca de fundamentos racionais. Essa novidade é bastante radical em sua concepção de
Divindade, quando não perdemos de vista os povos primitivos e depois os gregos. Que se
recordem as palavras de Etienne Gilson 124 segundo a qual o cristianismo medieval se apropriou
de vários termos filosóficos para exprimir sua fé, substituindo o sentido filosófico original por
um sentido religioso novo. Surgiu, assim, uma nova relação entre Deus e criatura, uma nova
concepção acerca da criação que engendra uma absoluta dependência de tudo e todos para
com a Divindade. O sentimento da grandeza de Deus, próprio do judaísmo, é transposto para o
cristão e contribuiu para fortalecer o sentido da humildade como virtude. Isso fica claro quando
comparamos duas tradições: o sábio estóico com o santo cristão. O sábio estóico se orgulha de
se assemelhar à divindade, o santo cristão, que não é um ser autônomo e sim criatura, nada
pode fazer sem a graça divina. É nesse sentido que a criação do homem à imagem e
semelhança de Deus lhe confere certo esplendor por possuir uma dignidade intrínseca. Aquela
concepção grega do homem integrado na Natureza ou na pólis cede lugar à interioridade do
individuo.
Deus para a cristandade medieval emergente não seria somente o Senhor dos Hebreus,
mas o Pai, conjugando em um só o poder e o amor sobre tudo e todos. A idéia de filiação divina
fortaleceu a idéia de solidariedade essencial para a comunidade que passou a ser vista como
uma pessoa moral inserida numa história universal. E, dessa forma, pode-se afirmar que se
buscou um só destino para o gênero humano, enfatizando que o homem vive o drama da

123
MANCHESTER, William. Fogo sobre a terra. A mentalidade medieval e o renascimento. RJ: Ediouro, 2004: 22.
124
GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1995: XV.
80
queda e da redenção como fatos históricos, transformando o mundo no lugar da experiência
sofredora que permitirá a superação espiritual para a salvação.
Estudiosos ressaltam que, a partir do séc II da era cristã, surgiram vários padres
apologetas ou apologistas que procuraram em suas obras justificar a nova fé em um império
pagão. Podemos citar Aristides, Pastor de Hermas e Justino, convertido ao cristianismo em 132,
que antes de sua conversão freqüentara as escolas estóicas, peripatética, pitagórica e
platônica. Contudo, antes de qualquer coisa, temos que refletir sobre esse movimento que
abraçara filósofos ou estudantes de filosofia e os tornara cristãos. Como essa nova religião
pôde assimilar tais pensadores pagãos? Alguns se converteram após terem experimentado uma
educação filosófica grega, muitas vezes incompatível com a revelação cristã. Etienne Gilson
arrisca a dizer que o cristianismo então emergente oferecia uma nova solução aos problemas
filosóficos: “Uma religião baseada na fé numa revelação divina mostrava-se capaz de resolver
125
os problemas filosóficos melhor que a própria filosofia” , mas não encontramos ainda uma
resposta segura.
O cristianismo operou um deslocamento no sentido da liberdade. Enquanto para os
antigos a liberdade era um conceito essencialmente político, passa a figurar para os medievais
somente no interior de cada ser humano e se articula com a idéia de vontade dividida entre
bem e mal. A liberdade afigura-se, agora, como livre-arbítrio. Percebemos, portanto, a
despolitização da liberdade e a sua moralização junto à concepção de culpa originária. Surge a
idéia do dever e da obrigação que exige a submissão à vontade divina. A noção de
responsabilidade assume um papel novo: a responsabilidade individual.

6. 2 - Aurélio de Agostinho (354-430)


A influência da filosofia cristã de Agostinho perdurou até o século XIII, momento da
redescoberta do pensamento de Aristóteles pela Europa através dos árabes.. Agostinho pregou
uma aproximação entre o pensamento platônico e o pensamento cristão. É preciso lembrar que
esse pensador conheceu a filosofia de Platão através dos filósofos neoplatônicos de Alexandria
e de traduções latinas. Vivenciou os últimos anos do Império Romano e após sua conversão
compreendeu essa decadência como a mão de Deus castigando os homens da cidade terrena e
anunciando o triunfo do cristianismo. Antes de se dedicar às questões religiosas, teve uma vida
bastante profana. Aurélio de Agostinho nasceu no Norte da África, na cidade de Tagaste,
província romana em 354 e faleceu como bispo de Hipona em 430, aos 72 anos de idade.

125
Idem, 1995: 5.
81
Segundo José Américo M. Pessanha, Agostinho não se destacou nos estudos, detestava a língua
grega, língua mais culta da época, o que o distanciou dos clássicos e impossibilitou-o de estudar
nos melhores centros como Atenas ou Alexandria. Relata Agostinho, nas Confissões, que:

“Neste período da infância, cujo perigo temiam menos para mim do que o da
adolescência, não gostava do estudo, e tinha horror de ser a ele obrigado (...)
Não conhecia nenhuma palavra daquela língua [grega], e, para me fazerem
aprender, ameaçavam-me com terríveis castigos e crueldades.” 126

Agostinho tornou-se professor de retórica, sem muito entusiasmo pela juventude de sua
127
época que encarava suas aulas como uma espécie de obrigação familiar e social. Segundo
relata em suas Confissões, a leitura de um determinado diálogo de Cícero, Hortensius, que
exprimia um verdadeiro elogio à filosofia, o despertou para os estudos filosóficos, aos quais
aderiu pelas mãos do maniqueísmo, religião de origem Persa, fundada por Mani, no séc. III, que
apresentava uma visão dualista do mundo: o bem versus o mal. Mais tarde interessou-se pelo
sermão de Santo Ambrósio (340-397), bispo de Milão, que o incentivou ao estudou dos
filósofos neoplatônicos, em particular Plotino (205-270). Em 386 converteu-se ao cristianismo.
Escreveu os diálogos De magistro, Contra os Acadêmicos, Contra os Maniqueus e as Confissões.
Quando assumiu a diocese de Hipona redigiu Sobre a doutrina cristã, Sobre a trindade e Cidade
de Deus. Sua contribuição para o desenvolvimento de uma filosofia cristã se deve à sua
formulação relacionando teologia e filosofia, sua teoria do conhecimento com ênfase na
subjetividade e uma teoria da história expressa na obra Cidade de Deus. 128
A sua filosofia foi elaborada a partir de uma aproximação entre o neoplatonismo de
Plotino e Porfírio (232-304), com os ensinamentos de São Paulo e o evangelho de São João. Na
escola de Alexandria, o platonismo era interpretado como uma antecipação do cristianismo.
Para Agostinho a filosofia antiga consistia em uma preparação da alma para a contemplação da
verdade revelada. Dessa concepção surgiu uma forte desvalorização do mundo. Agostinho
apresentou uma teoria do conhecimento na mesma direção da filosofia platônica, inatista, ou
seja, há um conhecimento prévio, independente da experiência que permite o processo do
conhecer. No entanto Agostinho rejeitou a doutrina platônica da anamnese, desenvolvendo
uma teoria da interioridade (iluminação). Essa noção de interioridade se configura como um
prenúncio do conceito de subjetividade que surge no período moderno (In interiore homine
habitat veritas). Essa interioridade permite acessar a Verdade. A mente humana que é mutável

126
AGOSTINHO, Aurélio. Confissões. In: Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1996: 50-53.
127
PESSANHA, José Américo Motta. Os Pensadores. In: “Agostinho”. São Paulo: Abril Cultural, 1996: 6-7.
128
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. SP: Unicamp-Boitempo, 2002: 60.
82
e falível possui a centelha divina que é o seu intelecto – imagem e semelhança a Deus. Com
esse pensamento Agostinho explica o ponto de partida do conhecimento humano.
No que se refere à sua teoria do conhecimento, Agostinho afirmou que o erro está em
querer que as sensações possam expressar uma verdade ao sujeito. Com esta idéia na Cidade
de Deus, Agostinho antecipou a reflexão do cogito cartesiano ao formular a seguinte frase: “eu
129
me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado”. A primeira certeza é
destacada como o homem sendo algo essencial, ser pensante em que o seu pensar o difere da
materialidade do corpo. Ocorre, ainda, que essa idéia já estava presente em Platão e chegou a
Agostinho através de Plotino. No diálogo Alcebíades, Platão define o homem como uma alma
que serve do corpo. Agostinho assimilou essa transcendência hierárquica da alma sobre o
corpo e, nesse sentido, enfatizou que a alma possui funções importantes dentre as quais a de
permitir o conhecimento verdadeiro, excluindo-se, portanto, a percepção sensível. Assim,
temos dois tipos diferentes de conhecimento: um limitado aos sentidos, e outro conhecimento
necessário, imutável e eterno. Mas como o homem, sendo mutável e falível, pode ser capaz de
acessar a Verdade? Para Agostinho, somente através de algo que transcende a própria alma
humana: Deus. Nesse particular, Agostinho utilizou a metáfora platônica da alegoria da caverna
e apresentou o conhecimento verdadeiro como aquele que previamente foi iluminado pela luz
divina. Há um saber prévio existindo de modo infuso que cria as condições de possibilidade
para o conhecimento humano. A percepção de um conteúdo na alma decorre da irradiação
divina. Importa perceber que Deus não substitui o intelecto humano, na verdade precisa dele.
O que se percebe é a defesa da tese de que o conhecimento verdadeiro é resultado de um
processo de iluminação divina. Deus é Ser transcendente que daria fundamento à Verdade.
Para Agostinho, o mal é o não-ser, a privação do bem, não existe como um princípio poderoso a
reger o mundo.
O homem é réprobo, miserável e condenado à danação eterna e só recuperável
mediante a graça divina em razão de ser criatura privilegiada porquanto feito à semelhança de
Deus. Essa especificidade se desvela nas faculdades da Alma: a memória, a inteligência e a
vontade. Esta última é a mais importante porque é o centro da personalidade humana: é livre e
nela reside também a essência do pecado que é a transgressão da Lei Divina criada por Deus. A
queda do homem decorre do seu livre-arbítrio e, portanto, a salvação depende de Deus. 130

129
AGOSTINHO, Aurélio. Os pnsadores. In: “onfissões”. São Paulo: Abril Cultural, 1996: 50-53.
130
Calvino (1509-1564) levou as teses agostinianas às últimas conseqüências.
83
Ainda na obra Cidade de Deus, nosso autor interpreta a história da humanidade desde o
gênesis até o juízo final e a redenção. Assim, formula a noção histórica através de um fio
condutor de natureza teleológica, rompendo com a concepção grega de visão cíclica, em que
não há início e nem fim. Esse sentido de historicidade deveria incutir na mente humana que a
história é aquela que exprime o triunfo da Cidade Divina, daí resulta a necessidade da fé como
um novo ânimo para viver. Agostinho representa o momento da cristianização da Europa
Ocidental e ressalta a supremacia do poder espiritual sobre o poder temporal, ou seja, o Papa
acima dos Reis e da nobreza secular. Nessa obra Agostinho apresenta a felicidade como
motivação do pensar filosófico e formula a tese segundo a qual o homem não tem razão para
filosofar, exceto para atingir a felicidade. A filosofia, por conseguinte, passa a ser vista como
indagação humana à procura da beatitude presente nas Sagradas Escrituras, que ao seu turno
tem a felicidade como possível na esfera humana se o homem levar em consideração o sentido
de justiça expresso no evangelho. Com Agostinho, surge uma nova concepção de justiça: a
justiça divina.
Nessa nova concepção, todos os homens são filhos de Deus e, portanto iguais. Se todos
são iguais, a justiça consistirá à moda aristotélica da justiça distributiva, assegurando que a
cada um será dado segundo o seu mérito conforme a observância da lei de Deus, a lei natural e,
depois, a lei humana. Segundo postulado defendido por Joaquim Salgado, o sentido de
igualdade perante a lei se apresenta no próprio princípio de justiça que preside o ato de
criação. Todavia essa igualdade não esgota a idéia de justiça. Há que se falar também na graça
como um tipo de justiça em sua doutrina da iluminação, influenciada pela concepção estóica da
existência de uma lei natural universal dividida em Lex aeterna, lex naturalis e lex humana,
onde figura a idéia de dar a cada um o que é seu. A própria divindade, criadora do Céu e da
Terra, está no horizonte desse princípio ou fórmula, pois o homem deve dar-Lhe amor
incondicionado. Assim a suma justiça é a adequação do agir humano com a vontade divina, é a
submissão absoluta a Deus. Nesse sentido, afirma Joaquim Salgado:
“Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César é um princípio que
fundamenta a doutrina da diferença entre o inteligível e o sensível, a cidade
de Deus e a cidade dos homens em Santo Agostinho. A igualdade dos homens
entre si é posta por santo Agostinho como absoluta, mas somente na esfera
da cidade de Deus”. 131

A finalidade última do homem é Deus e, nesse sentido, a cidade que não observa essa
ordem pratica a injustiça, e nesse caso combater esse mal é um dever sem piedade. Assim,

131
SALGADO, J C. A Idéia de Justiça em Kant. BH: UFMG, 1995:58.
84
Agostinho justifica o castigo infligido aos maus, para que a justiça perfeita se opere na cidade.
Essa concepção legitimou a servidão, pois a servidão nasce do pecado e serve ao propósito de
expiação dos males praticados. O homem tornado escravo não deve subverter a ordem social.
A justiça, portanto, consiste em dar a cada um o que é seu, que, por sua vez, é ditado pela
vontade de Deus. Como os homens não são perfeitos e se tornam pecadores, a justiça perfeita,
como igualdade de todos, só acontece na cidade de Deus. A lei eterna liga a criatura a Deus e a
justiça se configura na submissão à vontade divina. Na ordem natural, a lei natural prescreve a
harmonia do homem com ele mesmo, com a natureza e com o sobrenatural. A justiça está no
reconhecimento do homem como imagem de Deus, desprezando a carne e valorizando a alma,
conferindo dignidade, logo o equilíbrio. No que se refere à Lei humana, Agostinho enfatizou
que esta deve ter como fonte de referência a Lei natural.
A Patrística de Agostinho foi marcadamente um período em que predominou o Novo
Testamento como doutrina constituída por regras morais e pela crença na salvação através do
sacrifício de Cristo. Segundo Pessanha, a nova fé não apresentava fundamentação filosófica,
mas uma religião que servia de contestação da ordem imperial vigente (os romanos). Essa nova
132
religião buscava no campo dos filósofos gregos os conteúdos para uma filosofia cristã.
Predominaram nesta fase os escritos que apresentavam o cristianismo em sintonia com as
verdades racionais. O problema central da Patrística foi, portanto o problema da relação entre
razão e fé, entre o que se sabe pela convicção interior e o que se demonstra racionalmente.
Além de Agostinho destacaram-se Justino, Clemente de Alexandria e Orígenes.

6.3 - O século XIII


O século XIII foi denominado de “século da escolástica”. Esse momento é o período da
quinta, sexta, sétima e oitava cruzadas. O período entre 1200 e 1300 é marcado pelo
surgimento de duas ordens mendicantes: os dominicanos ou “irmãos pregadores” de Domingo
de Gusmão, os franciscanos ou “irmãos menores” de Francisco de Assis, assim como, também,
a criação das Universidades, e as novas traduções de Aristóteles e de Averróis (1126-1198)
apogeu das formas literárias criadas no final do séc. XII com os comentários de sentenças,
sumas de teologia e a assimilação da filosofia natural peripatética. No início do séc. XIII, as
únicas obras de Platão acessíveis eram: o fragmento do Timeu traduzido por Calcídio, o Mênon
e o Fédon traduzidos por Henrique Aristipo da Catânia. Tais textos não tiveram grande

132
PESSANHA, José A. M. Os Pensadores. “In: Agostinho”.. São Paulo: Abril Cultural, 1996.
85
repercussão no séc. XIII, pois a verdadeira difusão do pensamento de Platão ocorrerá no séc. XV
com a tradução da República pelo emigrado bizantino Manuel Crisóloras, prosseguindo com
Leonardo Bruni que traduzirá o Fédon, Górgias, Crítias, Apologia de Sócrates e Banquete.
Termina com as traduções de Platão e Plotino realizadas por Marsílio Ficino. 133
A obra de Aristóteles só foi conhecida em parte por volta do séc. XII o que gerou
conseqüências para a história do aristotelismo medieval, pois a obra de Avicena, seu
comentador, fora conhecida antes. Tal fato ressalta que os tradutores de Toledo interessavam-
se mais pela filosofia árabe-muçulmana e judaica do que pelo corpus aristotelicum. O ingresso
do pensamento de Aristóteles foi preparado pelo trabalho dos peripatéticos árabes. Nesse
sentido, podemos dizer junto com Alain de Libera que nunca existiu o aristotelismo em estado
puro e que Tomás de Aquino realizou certa desplatonização do pensamento aristotélico.
Segundo Libera:
“Os medievais, em geral, pensaram que Aristóteles compusera orgânica e
completamente suas obras. Eles não imaginaram a gênese interior do corpus
nem as condições concretas de sua composição. Com Averróis e Tomás de
Aquino, o método do grande comentário, fundamentado em recortes do
texto e na sua recomposição por divisões e subdivisões lógicas, impôs a idéia
que as obras do Estagirita apresentavam um plano perfeitamente ordenado,
quando, pelo contrário, a composição nada tinha de intrinsecamente
ligado”.134

Para a maioria dos historiadores da filosofia medieval, o séc. XII, em particular,


corresponde aos anos sombrios de uma verdadeira ditadura intelectual de Aristóteles. Ledo
engano. Para compreender o lugar exato de Aristóteles no pensamento medieval latinófono é
preciso ter em mente três fatos elementares: 1. o conhecimento de Aristóteles pelos latinos é
fenômeno tardio, começa aproximadamente setecentos anos após a queda do Império romano
do Ocidente; 2. é um fenômeno ambíguo, levando em conta os numerosos apócrifos,
incorporados pela tradição interpretativa; 3. é um fenômeno supradeterminado, levando em
consideração a redescoberta do texto aristotélico pelos comentários ou pelas leituras do
peripatetismo árabe, na verdade, um aristotelismo neoplatonizante. Ademais, a própria
categoria aristotelismo é desconhecida na Idade Média e o avanço de Aristóteles foi
institucionalmente combatido desde o final do séc. XII até a segunda metade do século XIII, e
intelectualmente trazido à cena a partir da segunda metade do séc. XIV. Somente a Lógica de
Aristóteles, reduzida ao estritamente necessário se relacionou com a teologia da época.

133
REALE, G e ANTISERI, D. História da Filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990.
134
LIBERA, Alain de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998: 359.
86
Acreditava-se que a Lógica era neutra. As proibições se dirigiam à Metafísica, aos livros naturais
e às sumas extraídas dessa.
Em 1230, a querela do aristotelismo é transposta para o interior da faculdade de
Teologia, onde o papa Gregório IX previne os teólogos contra as novidades profanas, pois
entendia que a fé não teria mérito quando a razão humana estivesse a emprestar seus
recursos. Somente na Universidade de Toulouse, Aristóteles é lido sem restrição, o que não
dura muito, pois o para Inocêncio IV estende, também, sua proibição até a Universidade de
Toulouse, sendo esta restrição reeditada em 1263, todavia tornando-se letra morta. O papado
não teve poder para impedir a difusão do aristotelismo através de Averróis, no interior das
Universidades. As obras de Aristóteles começaram a ser divulgadas por intermédio dos árabes
que continuavam instalados em Espanha, conhecidamente como comentadores, constituíam
ameaça para o acordo entre a reflexão filosófica e a fé cristã.
Sobre as universidades é importante relembrar as lições de Etienne Gilson quando trata
da influência greco-árabe no século XIII, em particular quando menciona a organização do
ensino filosófico e teológico neste século. Adverte que o termo universidade, universitas, não
assumia nessa ocasião o sentido hodierno de faculdades estabelecidas num mesmo local, mas o
conjunto de pessoas, professores e alunos co-participando do ensino dado na mesma cidade.
Nesse momento surge a Universidade de Bolonha como a primeira universitas a se tornar um
corpo organizado próximo de nossa concepção atual, mas dirigida somente para os estudos
jurídicos. O seu curso de teologia foi criado somente em 1352 pelo papa Inocêncio VI. Nessa
ocasião, a universidade de Paris com seus cursos de filosofia e teologia ofuscava
completamente a influência das universidades de Bolonha e de Oxford recentemente criada. 135
A prosperidade no ensino francês se devia a ilustres professores como Pedro Abelardo (1079-
1142), à proteção dos reis de França interessados em ressaltar a urbanidade dos costumes e a
aparência de independência espiritual que habitava a atmosfera francesa, mesmo sabendo que
a Universidade de Paris fora criada por Inocêncio III e continuada por Gregório IX, logo havia a
necessidade de subordinar tais estudos às finalidades religiosas. 136
Do século XI ao século XIII, o problema que apaixonou a Idade Média e que orientou a
reflexão filosófica foi o problema dos universais, levantado, a propósito, pela obra Isagoge de

135
GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1995: 483-484.
136
Idem, 1995: 484.
87
137
Porfírio, discípulo de Plotino. A preocupação da Escolástica com as palavras resulta da
investigação (exegese) da Bíblia como portadora de verdades. Importa perceber a diferença
entre o sentido literal e o saber simbólico. Portanto, nesse período desenvolveu-se grande
estudo da linguagem para depois examinar a realidade das coisas. A indagação era: qual a
relação entre as palavras e as coisas? Nesse sentido, retomando essa discussão
contemporaneamente, o romancista Umberto Eco escreveu o livro O nome da rosa para
colocar essa questão medieval dos universais. Veja-se a Rosa como símbolo de perfeição. A
palavra rosa subsiste à morte da própria flor – qual seria a relação entre o nome e a coisa?
Linguagem e realidade? Diante de tais indagações os medievais tomaram duas direções: o
nominalismo e o realismo. Os nominalistas compreendiam que os universais eram termos que
designam idéias gerais, meras palavras sem existência real; pura abstração que o intelecto faz.
Os realistas sustentam que há uma existência efetiva dos universais; essa existência pode ser à
maneira platônica ou à moda aristotélica. 138

6.4 – Tomás de Aquino: a filosofia como preambula fidei (1221-1274)


Tomás de Aquino nasceu em 1225, seu pai foi conde de Aquino. Aos cinco anos foi
oferecido como oblato139 à abadia beneditina de Monte Cassino permanecendo até quatorze
anos. Por volta de 1239 retorna à casa dos pais antes de ingressar na Universidade de Nápoles,
fundada por Frederico II. Em 1244, ingressando como noviço na ordem dos Irmãos pregadores,
renuncia ao abadado do Monte Cassino, contra os projetos de sua família. Por ocasião de sua
ida a Paris em companhia do mestre geral da ordem, seus irmãos o levam para a casa de sua
família, sob escolta. Libertado por suas irmãs em 1245 foi para Universidade de Paris em busca
do mestre Alberto Magno que empreendia a reforma dos estudos teológicos. De 1248 a 1252
viveu em Colônia sob a orientação de Alberto Magno (1206-1280), para organizar um studium
generale, um centro de estudos teológicos. Regressa a Paris em 1252 e obtém o título de
bacharel bíblico e sentenciário, ou seja, encarregado de comentar o livro das sentenças de
Pedro Lombardo. Começa a lecionar na Universidade de Paris aos 27 anos.
Em 1256 obtém de seu protetor, o papa Alexandre IV, o título de mestre. Em 1259 é
chamado à Itália por Alexandre e torna-se o teólogo da cúria pontifícia. Aquino escreve obras a
pedido do papado com vistas a observar o Novo Testamento e o pensamento grego. Elabora
137
Disse Porfírio: “enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na sua pura inteligência, nem,
no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou
nestes objetos, formando parte dos mesmos” Apud, REALE, G e ANTISERI, D. História da Filosofia. 1990: 107.
138
REALE, G. et ali. História da Filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990.
139
Oblato: leigo que se oferece para o serviço monástico.
88
seus comentários sobre as obras de Aristóteles a partir da tradução de Guilherme de
Moeberke. Em 1269, encontra a Universidade de Paris dividida por lutas doutrinais. De um
lado, o averroísmo latino que negava a individualidade da alma humana e professava que o
universo era tirado de Deus por necessidade e, de outro, os franciscanos, agostinianos,
conservadores, inimigos de todas as novidades e, por conseqüência, do aristotelismo. Em 1272,
o papa Gregório X envia Aquino para a Universidade de Nápoles. Por ocasião de uma viagem
com o objetivo de assistir o concílio de Lyon, morre de uma doença (1274) aos 49 anos. Em
1277, o tomismo é condenado simultaneamente pelo bispo de Paris, Etienne Tempier e pelo
primaz de Inglaterra, Robert Kildwarby. Sua doutrina encontra inimigos entre os franciscanos e
dominicanos. Todavia, o papa João XXII encerra o processo de canonização de Tomás de Aquino
em 1323 e afirma que seus escritos são milagres. 140
Tomás de Aquino estava firmemente agarrado ao princípio da não-contradição
estabelecido pela lógica aristotélica, com isso confiante no poder da razão relacionado à
autoridade da fé, convencido, assim, da unicidade da Verdade, certamente do ponto de vista da
razão não ser contrária à fé. Segundo seu entendimento nenhuma verdade de fé pode negar
uma verdade natural, logo a verdade é só uma, embora existam duas vias para atingi-la. No
entanto, a fé ultrapassa a razão, e nesse passo coloca-se o seguinte problema: qual a
verdadeira relação entre razão e fé? Diante desse problema pode-se salientar que o tomismo
não é uma simples justaposição filosofia-teologia, pois sua originalidade reside no equilíbrio
interior que realiza entre a supremacia da teologia e a autonomia da filosofia. Todavia,
estabelece uma relação que mostra a filosofia servindo tanto melhor à teologia quanto mais
rigorosamente filosófica ela for, e a teologia revela tanto melhor o caráter sobrenatural da fé
quanto mais respeitar a luz natural da razão.

6.5 – Razão e fé
Para Tomás de Aquino, a fé significa obediência e confiança na Palavra de Deus; mas
não é um impulso cego da sensibilidade, e, menos ainda, um sacrificium intellectus. Pela adesão
total que ela exige de um ser dotado de razão e vontade, suscita por si própria a pesquisa
teológica. Com a expressão Fides quaerens intellectus de Santo Anselmo (1033-1109), se define
no trabalho da teologia: a fé em busca da inteligência. Para Aquino, a fé não está ligada a uma
pesquisa da razão natural para demonstrar aquilo em que se acredita. O teólogo apela para a
razão natural, não para provar este ou aquele artigo de fé, por exemplo, a criação do mundo ou

140
MATTOS, Carlos Lopes. Os pensadores. In: “Vida e obra. Tomás de Aquino”. SP: Abril Cultural, 1996.
89
o mistério de um Deus em três pessoas, mas para explicitar o conteúdo desses artigos e captar
a ordem dos argumentos pelos quais se passa de um para outro. Não existe fé para um ser
privado de razão, tal como não há conhecimento sobrenatural sem a possibilidade de um
conhecimento natural. 141
A necessidade duma inclusão do conhecimento natural no conhecimento sobrenatural
não significa a necessidade de uma anterioridade histórica do conhecimento filosófico de Deus
relativamente ao ato de fé. O conhecimento da fé pressupõe e pré-exige a validade do
conhecimento natural de Deus, não somente para dar um mínimo de sentido intelectual à
palavra Deus, mas também porque é o mesmo Deus que é visado pela razão e pela fé. Não há
um Deus para a fé e outro para a razão: só a afirmação de Deus pela fé difere da afirmação de
Deus pela razão. Deus, objeto adequado da fé, transcende o objeto próprio da razão, mas é o
próprio Deus o objeto real – objectum ut res – da fé e da razão. A priori é impossível saber e
crer uma mesma coisa sob o mesmo ponto de vista. O que é objeto da fé não é da ciência. Mas
Aquino acredita que para um mesmo objeto poderá haver fé e saber, ao mesmo tempo, e no
mesmo indivíduo, todavia sob perspectivas diferentes. O mérito do tomismo é manter assim,
entre a fé e a razão, uma distinção sem separação e uma união sem confusão. Nem a fé está
subordinada à razão, nem a razão é anexada pela fé, e, no entanto, elas vivem uma da outra e
realizam-se numa promoção mútua e nessa relação recíproca, encontram-se a si mesmas. O
tomismo caracteriza-se na crença inabalável no acordo entre a verdade terrestre evidenciada
pela razão e a verdade de fé recebida pela revelação. 142
A especulação teológica depende diretamente da fé, a reflexão filosófica é
essencialmente obra da razão. O filósofo considera as criaturas em si mesmas, o teólogo
encara-as na sua relação com Deus. O teólogo aprecia as causas primeiras; o filósofo, as causas
segundas. Nesse sentido, a Teologia é mais perfeita que a filosofia, devido à sua maior
semelhança com a Ciência Divina, uma vez que Deus conhece primeiramente a si mesmo e vê
em si próprio todo o resto. A teologia que é iluminada pela luz natural da fé, não recebe os seus
princípios da filosofia, mas diretamente de Deus, graças à revelação. Para Tomás somos feitos
de tal modo que o nosso intelecto deve partir dos conhecimentos obtidos através da luz natural
da razão para ser encaminhado para os conhecimentos que ultrapassam a razão e formam o
objeto da teologia. Não cabe à Filosofia procurar para a teologia essa evidência do seu objeto
que a tornaria uma ciência perfeita mesmo para nós. Filosofia constitui simplesmente a pré-

141
RASSAM, Joseph. Tomás de Aquino. Lisboa: Edições 70, 1988.
142
REALE, G. e ANTISERI, D. História da Filosofia. Vol. I. São Paulo: Paulinas, 1990.
90
compreensão ou o preâmbulo necessário à inteligibilidade das verdades reveladas. Há uma
inclusão do conhecimento natural no conhecimento sobrenatural. E segundo Gilson, o acordo
da Filosofia com a Teologia, no tomismo, é conseqüência necessária das exigências da razão e
não simples desejo.
Na visão de Édouard Hugon, a grandeza filosófica de Tomás de Aquino muitas vezes é
esquecida ao denominá-la de “filosofia aristotélico-tomista”. De fato, Tomás de Aquino seguiu
as trilhas de Aristóteles, mas, segundo esse autor, reformulou-as de tal modo que arquitetou
uma nova filosofia. Introduziu na filosofia peripatética os conceitos de Deus como criador das
coisas, temporalidade da matéria-prima, do próprio ser, levando às últimas conseqüências
aquilo que Aristóteles apresentara em sua filosofia pagã. O ponto fundamental de seu
pensamento é o realismo. O seu ponto de partida é a realidade das coisas e não das idéias
imaginadas; origina-se, portanto, da percepção sensível do mundo para dela tirar no âmbito da
143
inteligência um conjunto conseqüente e harmonioso de teses. O que torna claro a
concepção tomista segundo a qual a filosofia é um preâmbulo necessário à fé.
Tomás de Aquino buscou as razões principais das coisas existentes, apreendidas pelos
sentidos, conceituadas pela inteligência, dirigindo-se às explicações últimas das mesmas. Nessa
trajetória partia das percepções mais primitivas até alcançar a certeza do Ser Supremo: das
mudanças, da causalidade existente entre elas, da contingência, das perfeições e da ordem
harmoniosa das coisas. Deus, seu objeto de investigação, seria a explicação de todas as coisas,
por conseguinte seu realismo é a filosofia do ser e da verdade; verdade que seria a
correspondência da mente com as coisas. Em primeiro lugar, as coisas, depois a mente, ou,
dizendo de outro modo, em primeiro lugar o objeto e depois o sujeito. “O critério supremo do
tomismo é a verdade imparcialmente aceita”, 144 que segundo, nas próprias palavras de Tomás
de Aquino, “O estudo da filosofia não é para se saber o que os homens pensaram, mas para que
se manifeste a verdade”. A noção de ser é o fundamento primeiro das coisas e a última
determinação da perfeição das mesmas. A noção do ser é a primeira que afeta nossa
inteligência e perpassa todos os nossos conhecimentos. O ser é a própria natureza de Deus, ou
seja, sabemos através de uma operação lógica que Deus é e o conhecemos por meio de uma
analogia.

143
HUGON, Édouard. Os Princípios da Filosofia de Tomás de Aquino: as vinte e quatro teses fundamentais. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1998.
144
AQUINO (De Coelo et Mundo, I, 22) apud HUGON, Édouard. Os Princípios da Filosofia de Tomás de Aquino: as
vinte e quatro teses fundamentais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p.14.
91
“Se o Tomismo admite entes de razão, cuja realidade objetiva está tão
somente na inteligência, os seres de razão nada mais são que idéias
formuladas pela razão, para que melhor se atinja a realidade existencial das
coisas. Somente em Deus o ser atinge a sua suprema perfeição. Deus une
todas as perfeições na infinitude de um ser que vem de si mesmo e que
desconhece mudanças e sucessão. Deus é o ser de ato puro destituído de
qualquer imperfeição ou potência – a perfeita posse e simultânea de todas as
perfeições: é o ser eterno (Boécio)”. 145

A concepção ética de Tomás de Aquino elaborada no corpo de sua teologia é de clara


inspiração aristotélica adaptada aos valores cristãos. Difere da concepção dos gregos porque se
inscreve no horizonte metafísico em que todas as coisas encontram a sua origem e perfeição
em Deus. O ser humano como ser dotado de razão procura a divindade através do
conhecimento e do amor. Nesse sentido aponta Olinto Pegoraro que

“A ética de Tomás e dos medievais em geral, certamente se inscreve no


âmbito da antropologia, da política e da metafísica, não, porém como fizeram
os gregos, mas como procedem os cristãos que crêem num cosmos criado por
Deus e orientado para eternidade.”146

O ser humano tende para Deus como princípio primeiro e fim último de sua existência e,
nessa relação intrínseca entre criador e criatura, o bom cristão também será visto como o bom
cidadão. O bom cristão acredita que uma vida virtuosa será a esperança de uma vida feliz no
transcendente. Uma vida virtuosa que compatibiliza o seu agir às normas morais que refletem a
vontade divina expressa no evangelho.

145
Idem ibidem, p.14.
146
PEGORARO, Olinto. Ética: os maiores mestres através da história. Petrópolis: Vozes, 2006: 82-83.
92
Capitulo VII

O pensamento jusnaturalista
1 - O jusnaturalismo no pensamento antigo e medieval
As primeiras teses referentes ao direito natural tem sua origem na Grécia antiga, em
que se afirma o conceito de “justo por natureza”, se contrapondo ao sentido de “justo por lei”,
enfatizado pelos sofistas que entendiam a expressão “justo por natureza” de forma distinta e
com conseqüências políticas também diversas. O mundo grego antigo desenvolveu uma
concepção de direito natural cosmológica, isso porque se buscava na natureza inspiração
permanente ao sentido de universal, percebendo que na natureza havia o que mais tarde se
compreenderia por lei: a permanência, o equilíbrio, o que faltava à ordem política, numa
palavra: estabilidade.
O direito natural presente nos pensamentos de Platão e de Aristóteles, posteriormente
retomado pelos estóicos, compreendia a Natureza como se fosse governada por uma lei
universal, racional e imanente. Essa concepção mais tarde apresentada em Roma por Túlio
Cícero (106-43 a.C.), em versão racionalista, exerceu grande influência no pensamento cristão
147
dos primeiros séculos. Na obra De Republica, Cícero defendeu a existência de uma lei
verdadeira, conforme a razão, imutável e eterna, que não muda com as nações e com os
tempos e que o homem não pode violar sem renegar a sua própria natureza humana. Os
padres da igreja, ao acolherem as idéias de Cícero, se viram diante de uma grande tarefa: a de
conciliar esse direito natural com a idéia de lei revelada.
Os juristas romanos, como por exemplo, Domitiu Ulpianus (170-228), também buscaram
no estoicismo a idéia de um direito natural, definindo-o como aquilo que a natureza havia
ensinado a todos os seres animados. Essa idéia acabou por reduzir o direito natural ao mero
instinto, uma vez que incluía também como seres animados os seres irracionais. Tal concepção,
que se configura em uma versão naturalista, oposta à de Cícero, foi adotada por muitos
escritores medievais. Têm-se, portanto, duas versões do direito natural: a versão naturalista de
Ulpianus e a versão racionalista de Cícero.
A Idade Média foi influenciada pela doutrina de um suposto direito natural revelado por
Deus a Moisés (Graciniano – séc. XII), tendo como seu grande expoente Tomás de Aquino, que
compreendeu a lei natural como aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus,
governador do universo, que se acha presente na razão humana – uma norma racional. O seu

147
Os pensadores. In: “Epicuro”. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
93
enfoque quanto ao direito natural foi de grande importância, pois constituiu a base do
jusnaturalismo católico. Tomás de Aquino foi severamente criticado por seus coetâneos, mas
hoje é considerado um dos filósofos medievais mais importantes. A doutrina tomista foi
entendida, por muitos comentadores, como uma retomada do pensamento estóico-ciceroniano
da lei verdadeira enquanto racional. Enfim, na época clássica, o direito natural não era
concebido como superior ao direito positivo, mas somente considerado como um direito
comum. O direito positivo como um direito especial ou particular de uma dada civitas,
baseando-se no princípio de que o direito particular prevalece sobre o direito geral – “lex
specialis derogat generali”.
Não podemos esquecer que a sociedade medieval era marcadamente pluralista, ou seja,
inúmeros agrupamentos sociais cada qual dispondo do seu próprio ordenamento jurídico. Por
conseguinte, nesse contexto, o direito positivo assumiria um caráter de fenômeno social, posto
pela sociedade. Por outro lado, o direito natural passaria a ocupar status privilegiado, uma vez
que adquiriria o status de norma fundada na própria vontade de Deus – como a lei escrita por
Deus no coração dos homens. O direito natural é percebido como aquele contido na lei
mosaica, no Velho Testamento e no Evangelho. Desta concepção derivou a idéia jusnaturalista
do direito natural como superior ao direito positivo. A esse respeito, ressalta Norberto Bobbio
(1909-2004) que se trata de uma distinção de grau e não de qualificação, pois tanto um como
outro se configuram como direito na mesma acepção do termo, ou seja, tanto o direito natural
quanto o direito positivo guardavam o status de norma jurídica. Somente com o advento do
positivismo jurídico é que o direito natural é excluído da categoria do direito.

2 - Jusnaturalismo no pensamento renascentista e moderno


Segundo os estudiosos, o termo Renascimento significou um movimento intelectual que
se iniciou por volta do final do século XV. O objetivo perseguido por esses intelectuais era
abandonar as idéias medievais, para um retorno à Antigüidade Clássica. No sentido amplo,
Renascimento configura, sob o aspecto político, um momento de tensão entre duas
autoridades: a papal e as monarquias. O historiador da arte Jacob Burkhardt (1860) foi o
primeiro a utilizar o termo Renascimento no sentido de um período histórico determinado.
Muito antes, o italiano Giorgio Vasari (1550) empregara o termo Renascitá como o movimento
de retomada do estilo clássico na pintura, rompendo com a arte gótica do final do período
medieval. Trata-se, portanto, de uma época de grande crise da consciência européia, devastada
por inúmeras dissensões e uma esplêndida florescência do humanismo a partir do estudo da
94
cultura greco-romana, a exaltação do homem, a valorização da razão e da liberdade. Foi um
momento em que o homem perdeu suas certezas e verdades, afinal, a Terra não era mais o
148
centro do universo, o céu não era finito e o homem deixava de ser criatura miserável.
Podem-se destacar três concepções que predominaram no período do Renascimento, a
saber: 1. O pensamento platônico, a partir do neoplatonismo e a descoberta do hermetismo
que compreendiam a Natureza como um grande ser vivo, o homem como microcosmo e o
conhecimento da Natureza através da magia natural (alquimia e astrologia); 2. Os pensadores
florentinos, que valorizavam a política e defendiam os ideais republicanos das cidades italianas
contra o império romano-germânico, aumentando a tensão entre os imperadores e o papado
(liberdade política versus autoridade eclesiástica); 3. A concepção do homem como artífice de
seu próprio destino através do conhecimento, da política, das técnicas e das artes.
Essa fase marcou também o momento inicial de uma filosofia do direito e do Estado
explícita como resultado do homem em seu novo papel de criador no mundo social. No âmbito
religioso, a “Reforma Protestante”, para alguns pensadores, foi responsável pelo surgimento e
fortalecimento da idéia de tolerância religiosa e, com isso, o individualismo intelectual e
estético desse humanismo crescente. Esses reformadores protestantes voltaram as costas à
tradição medieval, pretendendo com isso reatar a Antigüidade cristã, um retorno ao
pensamento paulino- agostiniano. Mas, o que importa perceber é que, num plano mais vasto,
fortaleceram a oposição à Escolástica medieval.
149
Como ressalta Truyol y Serra, dentre os acontecimentos mais importantes desta
etapa do pensamento ocidental, um alterou profundamente o cenário europeu: o advento do
Estado soberano. Na verdade, vários acontecimentos contribuíram para essa mudança: o
combate ao pluralismo feudal; a tentativa de enfraquecer o papado; a expansão da economia
pelo incipiente capitalismo comercial; o descobrimento da América; as viagens de exploração
ultramarina deslocando o Ocidente, pondo-o em contato com outros povos; a criação da
imprensa; e, sob o aspecto terminológico, o surgimento do Estado, designando a idéia de coisa
pública. Esse é o momento de crise, crise que caracteriza a transição da Cristandade medieval
para o mundo moderno laico.
150
O direito natural moderno assumiu no séc. XVII, características laicas e, no campo
político, características liberais. Alguns autores entendem que a origem do jusnaturalismo

148
KOYRÉ, Alexander. Do mundo fechado ao universo infinito. Forense Universitária, 2006.
149
SERRA, A. T. História da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profissões, 1985, p. 5.
150
A palavra Estado decorre da palavra latina status, significando “estar firme”, situação de permanência ou
convivência. Apareceu pela primeira vez na obra O Príncipe de Maquiavel (1513). Nos séculos seguintes, em
95
estaria na doutrina de Hugo Grócio (1583-1645), enunciada na obra De iure belli ac pacis,151 de
1625, e se deve à grande disputa entre as alas extremas do voluntarismo calvinista e o
pensamento tomista de influência estóica-ciceroniana. Grócio diferenciou o direito natural da
seguinte maneira: “O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um
ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme à própria
152
natureza racional do homem”. Hugo Grócio afirmou que o direito natural é ditado pela
razão, independentemente de qualquer interferência divina. Essa sua idéia anuncia o modo de
ver da época que estaria por vir, a época do Iluminismo, momento do surgimento de uma nova
cultura; uma cultura laica e antiteológica. Nesse sentido, o pensamento de Grócio teria
fortalecido o caminho para esse pensamento laicizado no âmbito da moral e da política,
sustentando que o direito natural é imutável e independente de Deus como legislador
supremo. Na verdade o direito possui uma dupla origem, a saber: a recta ratio e a appetitus
societatis (desejo de uma sociedade tranqüila e ordenada). A obra de Grócio difundiu, com
grande sucesso, a idéia de um direito natural cuja fonte repousa exclusivamente na validade da
sua conformidade com a razão.
A conseqüência mais relevante do seu pensamento foi a idéia de adequar a lei positiva e
a Constituição a esse direito natural e legitimar a possibilidade de resistência e desobediência
153
civil em caso de conflito. Segundo Paulo Nader, o pensamento racionalista de Hugo Grócio
forneceu as condições de possibilidades para o advento da Escola Clássica do Direito Natural,
que defendeu algumas idéias como: a valorização da natureza humana como fonte do direito
natural; a crença num suposto estado de natureza; a idéia de um contrato originário como
154
origem da sociedade; a existência de direito naturais inatos. Tais idéias, no seu conjunto,
contribuíram para o processo de laicização do direito, como também conduziram ao sentido de
um direito natural imutável, universal e eterno.
O jusnaturalismo de Grócio e o jusnaturalismo do séc. XVII foram de grande
importância, pois fundamentaram teoricamente o que entendemos por direito internacional
daquela época que, por sua vez, apresentava-se sob o nome: Do direito natural e das gentes.

particular no séc. XVII fora utilizado no sentido de grandes propriedades rurais privadas. Assim, a palavra Estado,
indicando sociedade política, somente aparece a partir do séc. XVI, cujo elemento central foi a crescente
centralização de poder. Não eclesiásticas ou leigas.
151
Do direito da guerra e da paz
152
Apud, NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
153
NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
154
Chamados à época de diretos inalienáveis do homem, e hoje de direitos humanos.
96
Sem falar dos fundamentos que logrou ao liberalismo, contratualismo e constitucionalismo
conforme os propósitos de uma burguesia carente de representação teórica.

3 - Características do jusnaturalismo moderno


O período moderno rompeu com o pensamento antigo-medieval ressaltando reflexões
acerca do papel do Estado. Nesse período toma corpo um movimento filosófico racionalista
que produziu uma crítica voraz ao sistema de governo que investia o soberano de poderes
absolutos, denominado de absolutismo, golpeado, mais tarde, pelo surgimento e consolidação
do capitalismo atrelando-se a uma nova concepção de Estado. E com o advento do pensamento
burguês consolida-se, progressivamente, o individualismo assentado na propriedade privada e
no conceito de liberdade. 155 Pode-se dizer que o processo de laicização do saber preconizava a
separação entre poder temporal e poder espiritual, aliado à tentativa de racionalizar o papel do
governante e do Estado, usando como pano de fundo a lógica burguesa.
Ressalte-se que os pensadores dessa fase desenvolvem uma filosofia comprometida
com os ideais burgueses, ou seja, ideais de uma nova estrutura social, de uma modernidade
filosófica e política, que pretendia romper com o antigo ao mesmo tempo defendendo
mudanças em nome do progresso e da inovação, promovendo uma ruptura com o passado, ou
seja, nas palavras de Jürgen Habermas, uma mudança estrutural na esfera pública. 156 Segundo
o historiador Eric Hobsbawn, a declaração dos direitos dos homens e cidadãos de 1789 foi um
manifesto contra uma sociedade hierarquizada, contra os privilégios da nobreza feudal, mas há
dúvidas se foi verdadeiramente um manifesto em favor de uma sociedade democrática e
igualitária, mas mesmo com seu problemas inspirada nas construções valorativas do direito
natural. 157
Assim, a partir de tais considerações, podemos afirmar que a diferença marcante entre
o jusnaturalismo 158 antigo-medieval e o jusnaturalismo moderno repousa sobre o fato de que o
primeiro vincula-se à idéia de que tal direito constituiria uma teoria do direito natural como
norma objetiva, ao passo que o segundo configura o momento de uma teoria dos direitos
subjetivos. Bobbio observa que entre o direito natural da Antigüidade clássica, do período
medieval e do período moderno não há rupturas, mas continuidade. O jusnaturalismo moderno
enfatiza o aspecto subjetivo do direito natural, isto é, os direitos inatos, deixando de lado o
155
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução à Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2002.
156
HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
157
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
158
Não se pode falar em jusnaturalismo antigo-medieval pelo simples fato de não existir como uma corrente
teórica. O que existe de fato é uma concepção de direito natural, sem com isso existir uma doutrina.
97
aspecto objetivo normatizante. Por conta desse traço essencial, o jusnaturalismo dos séculos
XVII e XVIII fundamentou doutrinas políticas de tendência individualista e liberal, ressaltando
peremptoriamente a necessidade do respeito e reconhecimento desses direitos por parte da
autoridade política.
Esse modo de ver modifica também a figura do Estado que passa a não ser mais visto
como instituição necessária por natureza (contrariando o absolutismo), mas sim como obra
voluntária dos indivíduos ante a pactuação de interesses. Os indivíduos abandonam o estado
de natureza (diversamente entendido, mas sempre carente de organização política) e fazem
surgir o Estado politicamente organizado e dotado de autoridade para garantir os direitos
naturais. A legitimidade do Estado é assegurada por um pacto entre cidadãos e um soberano,
visando salvaguardar os direitos naturais como aqueles fornecidos pela razão. As doutrinas
jusnaturalistas modernas consideraram a sociedade como efeito de um contrato entre os
indivíduos; este contrato se desdobraria em dois momentos: o pacto de união e o pacto de
sujeição. Direitos inatos, estado de natureza e contrato social, conquanto diversamente
entendidos pelos vários expoentes do jusnaturalismo moderno, são conceitos característicos
desta corrente de pensamento que ressaltam, sobretudo Rousseau (1712-1778) e Kant (1724-
1804), a teoria do contrato como uma ficção, ou mera idéia reguladora capaz de explicar
racionalmente a realidade histórico-política da formação do Estado.
Já a tradição constitucionalista inglesa inspirou-se na doutrina do direito natural, como
também na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América (1776), que
afirmaram a existência de direitos inalienáveis do homem. Nesse sentido, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789) configurou um dos primeiros atos da Revolução
Francesa que proclamou a liberdade e a igualdade. Outro efeito importante do jusnaturalismo
foi a reformulação da legislação positiva para torná-la adequada às novas exigências. Sentiu-se
em certo momento uma forte necessidade de reforma legislativa; assim, o jusnaturalismo com
sua teoria de um direito absoluto e universalmente válido, enquanto ditado pela razão, seria
capaz de oferecer as bases teóricas para uma reforma racional da legislação.

4 - As teorias do contrato e o direito natural


Por contratualismo compreendemos aquela teoria política cuja origem da sociedade e o
fundamento do poder político repousa na figura jurídica do contrato, ou seja, um acordo tácito
ou expresso entre a maioria dos indivíduos que assinalaria o fim do estado natural e o início do
Estado político. Em sentido restrito, representa uma escola que floresceu na Europa entre os
98
começos do séc. XVII e fins do séc. XVIII, que teve os seguintes expoentes: J. Althusius (1557-
1638); T. Hobbes (1588-1679); J. Spinoza (1632-1677); S. Pufendorf (1632-1694); J. Locke (1632-
1704); J-J. Rousseau e I. Kant. Tais autores apresentaram o uso comum de uma mesma sintaxe
ou estrutura conceitual para racionalizar a força e alicerçar o poder no consenso. Dessa forma,
podemos observar dois níveis distintos, a saber: 1 - Os que sustentavam a passagem do estado
de natureza ao de sociedade como um fato histórico realmente ocorrido para dar conta do
problema antropológico da origem do homem civilizado; 2 - O estado de natureza como mera
hipótese lógica a fim de ressaltar a idéia racional ou jurídica do Estado pensado. Nesta
concepção, o fundamento da obrigação política repousa no consenso expresso ou tácito que
legitima uma autoridade que os represente.
Encontra-se, assim, a idéia do direito como a única fonte de racionalização das relações
sociais. Três fatores explicam essa idéia: a influência da escola do direito natural com a qual o
contratualismo está relacionado; a necessidade de legitimar o Estado, as leis criadas pelo
soberano que tenderiam a substituir o direito consuetudinário; construir um sistema político
que evidencie a autonomia dos sujeitos de contrato, tendo como base jurídica o pacta sunt
servanda.
5 - O conceito de jusnaturalismo segundo Guido Fassò
O cientista político italiano Guido Fassò assevera que:

“Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um


‘direito natural’, ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva
diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito
positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito
positivo e, em caso de conflito. E ele que deve prevalecer”. 159

O jusnaturalismo é uma doutrina oposta ao positivismo jurídico que, ao seu turno,


enfatiza a existência de um só direito, aquele estabelecido pelo Estado e cuja validade não
dependeria de valores éticos. Podemos entender por jusnaturalismo, ao contrário daquele, os
princípios que norteiam as fontes geradoras da norma jurídica e que também atuam
efetivamente em sua aplicação. Princípios que são a-históricos e, portanto, não se confundem
com os desdobramentos posteriores, quando submetidos à mutação. São princípios e não
normas. Assim, o direito natural não se reduz ao sentido de um direito costumeiro, ao passo
que o direito costumeiro possui elementos do direito natural, sendo expressão da razão, não
resulta do mundo da vida, pois o seu lugar ontológico não é a cultura, mas intuído como

159
BOBBIO, Norberto (org.) Dicionário de ciência política. Brasília: UnB, 2000: 655.
99
necessidade racionalizante. Tem-se, portanto, normas de direito positivo com raiz costumeira e
normas de direito positivo com fundamento no direito natural. O direito natural, na verdade, se
confunde com os próprios princípios gerais de direito que estão na base da elaboração das
normas e na sua aplicação ao caso concreto.
Na história da filosofia jurídico-política surgiram três versões do jusnaturalismo: a de lei
estabelecida por vontade da divindade e por essa divindade levada aos homens; a de lei natural
em sentido estrito e co-natural a todos os seres animados; a de lei ditada pela razão, específica
do homem, animal racional, que a encontra dentro de si. Todas essas versões partem do
pressuposto que o direito natural é constituído de normas logicamente anteriores e eticamente
superiores às do Estado.
Qualquer teoria política que se oponha às normas do direito natural será considerada
ilegítima. Enfim, os jusnaturalistas admitiam a existência de um suposto estado de natureza, ou
seja, uma forma de convivência onde existiriam apenas relações intersubjetivas entre os
homens, sem um poder político organizado. Esse seria o momento anterior à formação da
sociedade política, caracterizando-se por possuir um direito natural, que, segundo Aristóteles,
no cap. VII, do Livro V, da Ética a Nicômaco, se definiria pelos termos “justiça” e “direito”. Para
Aristóteles, o direito natural possui eficácia em toda parte, prescrevendo ações cujo valor não
exige ajuizamentos, uma vez objetiva, são ações consideradas boas em si mesmas.
O direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas em que é posto; o
direito positivo é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser
cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro, mas, se impostas por lei, devem
observar o seu modo prescrito em lei. De um modo geral, observa-se que os estudos de
Filosofia do Direito, ao longo da história, baseava-se em três esferas distintas entre si: a esfera
do jusnaturalismo; a esfera do realismo jurídico e a esfera do positivismo jurídico. Não há
dúvida de que o jusnaturalismo seja uma doutrina muito antiga que relacionou direito e justiça,
tendo a partir dessa perspectiva a relação entre validade e justiça defendida por Gustav
Radbruch (1878-1949), expresso na sua obra Filosofia do Direito:

“Quando uma lei nega conscientemente a vontade de justiça – por exemplo,


concedendo arbitrariamente ou rejeitando os direitos do homem -, falta-lhe
validade (...) Os juristas também devem encontrar a coragem para rejeitar-lhe o
caráter jurídico. Pode haver leis tão injustas e danosas socialmente que é
preciso rejeitar-lhes seu caráter jurídico (...), já que existem princípios jurídicos
fundamentais mais fortes do que toda normatividade jurídica, a tal ponto que
uma lei que os contradiga carece de validade. Onde a justiça não é sequer
perseguida e onde a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é
100
conscientemente negada pelas normas do direito positivo, a lei não apenas é
direito injusto, mas em geral também carece de juridicidade”. 160

O maior problema da doutrina jusnaturalista está em compreender a seguinte questão:


o que é a justiça? Seria possível encontrar critérios que nos permita estabelecer
definitivamente o que é o justo? Essa pergunta constitui o pano de fundo do pensamento
jusnaturalista, ao mesmo tempo em que se desvela como seu maior desafio. Certamente que o
estudo do direito natural não nos afasta da nossa realidade concreta, mas nos coloca imersos
no pensamento dos seres humanos comuns ou medianos. Todos nós, independentemente de
credo, temos interesse por uma vida digna, ou seja, justa. Nesse sentido, os anseios da doutrina
jusnaturalista estão presentes na própria experiência vivida. Desejamos direitos naturais como
a liberdade, a igualdade, o respeito à diferença e à paz. Lutamos por direitos humanos e o
direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, porque temos como pano de fundo os
pressupostos jusnaturalistas.

160
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio amado, 1979: 63.
101
CAPÍTULO VIII (Em Construção)

Thomas Hobbes: a garantia dos direitos individuais.


(1588-1679)

Os homens, segundo a natureza, são iguais em corpo e espírito; os mais fracos quanto à
força organizam-se visando destruir o mais forte. “Encontro entre os homens uma igualdade
[inteligência] ainda maior do que a igualdade de força; prudência é experiência; ou não
igualdade intelectual pode ser resultado da vaidade; a natureza rival do homem não o ajuda a
161
ver outros com capacidade igual ou superior.” A desigualdade, a inimizade originaram-se
pelo interesse comum que os homens têm pelo mesmo objeto; ontem invasor: plantou, colheu,
trabalhou amanhã invadido, vítima da fúria de todos contra todos.
A antecipação como preservação para garantir sua vida: pela força ou pela astúcia; uns
preferem os seus próprios limites, outros são impelidos pelo desejo de ampliar seus domínios;
não existindo um poder soberano não há possibilidade de agregação, por isso os homens não
encontram prazer na convivência; “cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o
mesmo valor que ele se atribui a si próprio”. 162
Na natureza humana são encontradas três razões para a discórdia: a - competição, lucro
sendo violência é usada para se obter a posse de coisas, mulheres, pertences; b – desconfiança,
segurança para defender-se; b – glória, reputação, discórdia, mesquinharia. A guerra é fruto da
ausência de um poder comum; “uma guerra que é de todos os homens contra todos os
163
homens”; guerra não é somente batalha, mas também a predisposição para a batalha; “a
natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante
164
todo o tempo em que não há garantia do contrário” . No estado de guerra “não há lugar
165
para a indústria, pois seu fruto é incerto”; não há produção, plantio, trabalho, comércio,
166
navegação, etc; “a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”. Tais
considerações podem parecer estranhas, todavia atrai à experiência, a partir de si mesmo:
guarda o dinheiro no cofre desconfiando dos seus; viaja com pessoas conhecidas em face do
perigo, dorme de portas fechadas; tais atitudes de medo, antecipação e beligerância “não
significa isso, acusar tanto a humanidade com seus atos como eu o faço com minhas palavras”.

161
HOBBES, Thomas. Leviatã. Col. Os Pensadores. Abril Cultural, pág. 107
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Tais condições de vida não constituem uma regra geral para todos os povos, sobretudo os de
laços de família, alguns povos selvagens, o resto vivem em luta permanente.
Os reis são rivais entre si, desta forma vivem em estado de guerra, mesmo para
defender seus súditos; a miséria “acompanha a liberdade dos indivíduos isolados”; Não há
injustiça no estado de guerra de todos contra todos: “onde não há poder comum não há lei, e
onde há lei não há injustiça”; 168 na guerra força e fraude são virtudes; nestas condições “não há
propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu”; 169 só pertence a cada um aquilo
que pode conseguir e manter pela vigilância e força. As paixões que levam o homem a paz são: o
medo da morte e o desejo de uma vida confortável por meio do trabalho; “e a razão sugere
adequadas normas de paz”, visando um acordo. (prelúdio da vida burguesa).
A garantia de vida é uma obrigação para consigo no estado de natureza; é uma
imposição. “O direito de natureza é a liberdade que cada um possui de usar seu próprio poder,
da maneira que quiser, para preservação de sua própria natureza, ou seja, sua vida”, conforme
seu julgamento, sua razão. “Liberdade, a ausência de impedimentos externos, impedimentos
que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer”. 170 A lei natural
tem caráter de preceito geral, construída pela razão para coibir o homem de fazer algo que
destrua sua vida; há distinção entre lei e direito, ler e jus. “O direito consiste na liberdade de
171
fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas”. A
condição do homem no estado de natureza “é uma condição de guerra de todos contra todos”,
172
cada um conforme sua razão, não havendo a segurança de viver todo o tempo possível dado
pela própria vida.
Primeira Lei natural ou da razão, Regra Geral da Razão: “Que todo homem deve se
esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não há consiga
173
pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra” procura a sobrevivência, o
direito. A renúncia da liberdade é uma condição necessária à paz, desde que todos assim
procedam; lei do evangelho, só quero para você o que desejo para mim; “Que um homem
concorde, quando todos também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a
paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar seu direito a todas as coisas, contentando-se,

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em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que os outros permite em relação a si
mesmo”. 174 Renunciar ao seu direito sobre algo “é simplesmente uma diminuição equivalente
175
dos impedimentos ao uso do seu próprio direito original”, mas isso o priva da liberdade de
impedir o outro do mesmo, renúncia é um ato unilateral, “não há nada a que um homem não
tenha direito por natureza”, 176 a renúncia é afastar-se do caminho do outro.
“Abandona-se um direito simplesmente renunciando a ele, ou transferindo-o para
177
outrem”; “pois nada se rompe mais facilmente do que a palavra de um homem, o medo
coíbe, impede o mesmo”. 178 A transferência do direito é um ato voluntário, “o objetivo de todo
179
ato voluntário dos homens é algum bem para si mesmo”; renunciar a vida não é um
180
benefício. A “a transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama contrato”. Há
diferença entre transferência e tradição; tradição é a entrega de uma coisa mediante um
crédito, aquela é um ato gratuito.
“Nos contratos, o direito não é transmitido apenas quando as palavras são do tempo
presente ou passado, mas também quando elas são do futuro, porque todo contrato é uma
translação ou troca mútua de direito,” 181 uma promessa é equivalente a um pacto, e, portanto
é obrigatório. Aquele que cumpre sua parte no contrato aguardada o cumprimento do outro,
merecedor do direito. O não cumprimento do pacto traz a condição de natureza, tornando nulo
o contrato, “mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e
182
força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo”; o poder coercitivo impele a
obrigação entre as partes, mesmo que não queiram. No Estado civil, todos são obrigados ao
cumprimento dos contratos, nesse sentido o medo do poder coercitivo é condição de cumprir
os contratos. Quem transfere direito transfere seus frutos. Sem mútua aceitação não há pacto
possível. Não é possível fazer pacto com Deus, visto não sabermos se nossos pactos foram
aceitos por Deus. O.pacto é ato de vontade, um ato que visa coisa futura, objeto de contrato: a
coisa – res, “portanto prometer o que se sabe ser impossível não é um pacto”. 183
“Um pacto em que eu me comprometo a não me defender da força pela força é sempre
nulo (...) porque o homem escolhe por natureza o mal menor, que é o perigo de morte ao

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resistir, e não o mal maior, que é a morte” 184 a defesa é uma condição humana, é um benefício
ou se quisermos uma imposição da natureza. A.acusar a si mesmo num pacto não é válido, pois
por natureza todos são juízes, e no E.civil a acusação prevê um castigo que ninguém é obrigado
a não lhe resistir. As acusações sob torturas não são válidas, são ineficáveis, visto que o
torturado confessará para livrar-se do mal. As palavras nos pactos não são suficientes para a
obrigação, mas duas maneiras são responsáveis para o cumprimento: medo e honra (orgulho
por ter faltado com a palavra; nesta ao se funda contrato, visto que a honra se perde em face
às paixões humanas. Juramento por Deus). Jurar pelo rei é atribuir caráter divino ao mesmo,
transmissão de autoridade (nº 33 in fine: Deus). Jurar ou não jurar não é condição para cumprir
o pacto, este deverá ser cumprido em razão de sua validade.
185
“Que os homens cumpram os pactos que celebrarem” (3ª lei); sem tal lei os pactos
não tem validade, pois passariam como meras palavras, e isto levaria novamente a guerra.
Nesta lei reside a fonte e a natureza da justiça; depois de celebrado um pacto rompe-lo é
injusto; e a definição da injustiça não é outra senão o não cumprimento de um pacto
“rompimento dos direitos”. A origem da justiça é a celebração dos pactos; a justiça e a injustiça
só são possíveis mediante a existência de um poder coercitivo, visando a execução da obrigação
pelas partes; o castigo dado ao descumprimento: “e não pode haver tal poder antes de erigir-se
186
um Estado”; “E onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado,
não há propriedade”, 187 no estado de natureza todos têm direito a todas as coisas; “onde não
há Estado nada pode ser injusto”188 ; a natureza da justiça é o cumprimento dos pactos válidos,
mas para isso é preciso instituir em poder civil, obrigando a todos o cumprimento. A condição
da justiça é a existência de um contrato vigiado pelo Estado, que garante aquele pacto firmado
em torno da propriedade. A justiça existe, é fato em um governo civil.
Pergunta “é contra a razão, isto é, contra o benefício do outro, cumprir a sua parte, ou
se o não é *?+”. 189 “E eu afirmo que não é contra a razão; quem quebra o pacto e acha correto
com a razão não pode mais ser aceito em sociedade,e aqueles que permitem tal pessoa como
membro incorrem em erro, é um perigo para a paz na sociedade”. 190 Aquele que não cumprir
pactos firmados violou a confiança e a soberania, por isso deve ser banido da comunidade:
estado de guerra.

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A conquista do poder pela rebelião é um ato contrário a razão visto ser um
descumprimento do pacto: “Portanto a justiça, isto é, o cumprimento dos pactos, é uma regra
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da razão (..) é uma lei da natureza”. O seu descumprimento é um ato beligerante. O
rompimento da palavra é contrário a natureza, à razão; Que um defeito num homem não seja
motivo para o descumprimento do pacto, se assim não for, antes ele não tivesse celebrado.
“Porque não pagar uma dívida é uma injúria feita a eles mesmos, ao passo que o roubo
e a violência são injúrias feitas à pessoa do Estado”, 192 não havendo pacto não há injúria; no E.
de natureza o meu interesse é o que prevalece. O poder civil corrige o individualismo. “O valor
de todas as coisas contratadas é medido pelo apetite dos contratantes, portanto o valor justo é
193
aquele que eles acham conveniente oferecer”. “A justiça distributiva é a justiça de um
194
árbitro, isto é, o ato de definir o que é justo” equidade. A justiça depende de um pacto
antecedente. “Que quem recebeu benefício de outro homem, por simples graça, se esforce para
que o doador não venha a ter motivo razoável para arrepende-se de sua boa vontade” 195 4ª lei
da natureza.
“É o cuidado com sua própria conservação e com sua vida, mas satisfeita”. 196 O Estado
pela coerção impõe respeito tal que os homens por temor procurarão cumprir o pacto ou os
contratos. “Os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar a menor
segurança a ninguém”; 197 sem este poder as leis de natureza não serão respeitadas, ficando ao
critério individual. Não é a união de um pequeno grupo que se funda em E., mas na união de
todos os grupos. Aa multidão de homens só é sociedade quando há Estado e lei civil; sem um
poder comum na há unidade. O Estado não pode ser uma união passageira, como um exército
para a guerra.
Para garantir este pacto, inibir guerras, invasões, garantir a colheita, etc., “é conferir
198
toda sua força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens”: representantes,
“Cedo e transfiro meu direito de governar-me assim mesmo este homem, ou a esta assembléia
de homem, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante
todas as suas ações”. 199 “Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado”.

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A essência do Estado: “uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos
recíprocos uns com os outros, foi instituída pro cada um como autora, de modo a ela poder usar
a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a
defesa comum”. 201
“Um E. foi constituído quando uma multidão de homens concorda e pactua, cada um
com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja
202
atribuído pela maioria o direito de representar”; todos votam os que perdem, devem
acompanhar os vencedores. É da instituição do E. que deriva os direitos e faculdades daqueles
que governarão; o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido.
No pacto não podem ter pacto anterior firmado, aqueles que já constituíram em E. não podem
fazer parte da instituição de Outro. “Cada homem conferi a soberania àquele que é portador de
sua pessoa, portanto se o desprezar estarão tirando-lhe o que é seu, o que também constitui
injustiça: rompimento do pacto; aquele castigado pelo soberano é castigado por si mesmo na
pessoa do soberano”. 203 Segundo lugar, “dado que o direito de representar a pessoa de todos é
conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e
cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros” 204 soberano não quebra pacto, por isso
não fez parte o pacto entre os cidadãos escolhe o soberano; o pacto, não é nada mais que
palavras, para existir é preciso a força da espada. Terceiro lugar, “se a maioria, por voto de
consentimento escolher um soberano, os tiverem discordado devem passar a competir
205
juntamente com os restantes”, Devem aceitar os atos do soberano, ou se não aceitarem
dever ser destruídos pelo restante; aquele que se rebelar após ter aceitado o pacto é um
rebelde, esta em estado de guerra, e todos podem destruí-lo. Quarto lugar, “o súdito é por
206
instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído”, e o que este fizer não
pode ter injúria, cada súdito é autor daquilo que o soberano fizer na instituição de um E. , caso
haja reclamação contra o soberano, há na verdade reclamação contra si mesmo. Quinto lugar,
o soberano não pode ser morto justamente e nem punido pelos seus súditos, visto que os
súditos estariam castigando outro injustamente por atos cometidos por si mesmos. O fim dessa
instituição é a paz e a defesa de todos, por conseguinte, tendo os fins possui os mesmos para o
seu juiz na paz quanto na discórdia; empregar os meios necessários a manutenção da paz.

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Sexto lugar, “compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e doutrinas que são contrárias à
paz, e quais as que lhe são propícias”; 207 censura; “é no bom governo das opiniões que consiste
o bom governo das ações dos homens”,208 compete ao soberano ser o juiz ou instituir juizes
para a execução da paz, com opiniões e doutrinas necessárias., evitando a guerra civil. Sétimo
lugar, pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo
homem pode saber quais os bens de que pode gozar , e quais as ações que pode praticar, sem
ser molestado por nenhum de seus concidadãos; é a isto que os homens chamam de
propriedade; a propriedade é necessária a paz. Oitavo lugar, “pertence ao poder soberano à
autoridade judicial (...) porque sem a decisão das controvérsias não haver proteção de um
209
súdito contra as injúrias de um outro”. Nono, pertence à soberania o direito de declarar
guerra e selar a paz. Décimo lugar, compete à soberania escolher os conselheiros, os ministros
e funcionários para a existência do E. tanto na paz quanto na guerra. O fim último do E. é a paz
e a defesa de todos (o bem-estar). Décimo primeiro lugar, é reservado ao soberano tanto
condecorar quanto punir os súditos conforme a lei, caso na (...) deve se ter em mente o serviço
ou o desserviço ao E. estimulando ou desestimulando a prática. Décimo segundo lugar – lei de
honra, “que seja atribuído sem valor aos homens que bem servisse, ou que são capazes de bem
servir ao E., dando forças a alguns para a execução dessas mesmas leis”. 210
A soberania tem os seguintes direitos: cunhar moeda, dispor das propriedades e
pessoas dos infantes herdeiros, de comprar dos mercados; estes e aqueles formam o
Absolutismo de Hobbes, tais direitos e deveres são incomunicáveis, imposto, milícia etc. “A
preservação da paz e da justiça, que é o fim em vista do qual todos os E. são instituídos”. 211 A
autoridade do soberano é individual e como tal não é menos sem autoridade quase em face
dos súditos que os súditos somados, quer na assembléia, na monarca, ou no povo, “o poder da
soberania é o mesmo, seja a quem for que pertença”. 212 “Do mesmo modo que o poder, assim
também a honra do soberano deve ser maior do que a de qualquer um, ou a de todos os seus
súditos. Porque é na soberania que está a fonte da honra.” 213
“Ora o poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, se estes forem suficientemente
perfeitas para proteger os súditos; não é a monarquia, a oligarquia etc que será um bom
governo, mas sim a execução dos fins do E. paz e justiça, protegendo os súditos da (...), da

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violência e do arbítrio do mais forte”. 214 “liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de
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oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento)”; tal
entendimento é aplicado a todos os seres; a liberdade é oposição a impedimento causado por
outrem. “um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças as suas forças e engenho é
capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer”. 216 Liberdade só se aplica
a sujeito que tem corpo. “o medo e a liberdade são compatíveis”; o medo em alguns casos
possibilita o exercício da liberdade: alguém joga fora pertences ao mam com medo do barco
afundar, paga-se divida com medo da prisão, respeita norma pública com medo da represália
217
estatal; “são ações que seus atores têm a liberdade de não praticar”. “A liberdade e a
necessidade são compatíveis”; 218 toda ação, toda vontade derivam de uma causa, sendo assim
a necessidade é a causa de um desejo a cumprir ou cumprindo livremente “liberdade natural
que é a única propriamente chamada liberdade”. 219 “mas tal como os homens, tendo em vista
conseguir a paz e através disso sua própria conservação [medo] , criaram um homem artificial,
ao qual chamamos E.; “assim como criamos leis (cadeias), pactos, etc.  sempre contrário a
liberdade com ação jurídica”. 220
é impossível em qualquer E. criar leis para regular palavras e ações humanas; “segue-se
necessariamente que em todas as espécies de ações não previstas lei pelas leis os homens têm a
liberdade de fazer o que a razão de cada um sugerir, com o mais favorável ao seu interesse”;221
“porque tomando a liberdade em seu sentido próprio, como liberdade corpórea; é um absurdo
liberdade como isenção de leis, tais ignoram a importância das leis como garantia da liberdade;
liberdade dos súditos: a liberdade de compra e venda, contratos, escolher a residência,
alimentação, profissão, instrução dos filhos e outras semelhantes.
222
“cada súdito é autor de todos os atos praticados pelo soberano”, o soberano tem o
poder de vida e de morte. A liberdade pregada pelos livros é de fato a liberdade dos Estados,
pois estes garantem a propriedade, a sucessão hereditária, à paz, o conforto, etc; súdito livre
somente quando o E. for livre. Não importa ser monarquia ou democracia, a liberdade é
sempre a mesma. Não devemos confundir a liberdade direito do E. com a liberdade direito do
súdito; falsos conceitos de liberdade de ensangüentar o ocidente, crítica a Aristóteles, (...) e

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concepções estranhas à liberdade; sangue e guerra por causa disso, “porque de nosso ato de
submissão fazem parte tanto nossa obrigação quanto nossa liberdade”, 223 por natureza todos
os homens são livres.
1º lugar – “dado que a soberania por instituição assenta num pacto entre cada um e
224
todos os outros”, é nulo o pacto constituído na abstração ou defender a vida própria. O
súdito pode desobedecer ao soberano algum atentado contra vida. “Portanto quando nossa
recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há liberdade de
recusar, mas caso contrário á essa liberdade”. 225
“Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do E. e defesa de outro, seja culpado ou
inocente”,226 esta liberdade priva a soberania, mas poderá resistir ao E. se sua segurança, sua
vida estiver em perigo; o grupo também pode resistir “mas a oferta de perdão tira àqueles a
quem é feita o pretexto da defesa própria, e torna ilegítima sua inexistência em ajudar ou
defender os restantes”. 227
“quanto às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que o soberano
não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou de omitir conforme sua
228
discrição”. o súdito tem “liberdade de defender seu direito como se fosse contra outro
súdito” quando trava uma contenta contra o soberano baseada na lei: quando a dívida, posse
de terra, dinheiro, castigo, etc. O soberano exigindo algo do súdito conforme lei existe
discussão, não existe contraditório quando o soberano usa a soberania. Tudo que o soberano
faz de acordo com o seu poder ele esta agindo conforme a vontade dos súditos e estes não
podem se contradizer. Poderes de soberanias intransferíveis: paz e guerra, poder judicial,
levantar impostos, nomear conselheiros, ministros e outros. A soberania não pode outorgar
liberdade que abale a segurança, visto ser nulo, casa assim peça, renuncia à soberania.
“Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dure enquanto, e apenas
enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-lo. Porque o direito
que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através
229 230
do pacto de alguém”. “A soberania é a alma do Estado”; “o fim da obediência é a

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proteção, e seja onde for que um homem a veja, que em sua própria espada quer nada um
outro na natureza manda que a ela obedeça e se esforce para conserva-la.” 231

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CAPÍTULO IX

Da liberdade à radicalidade democrática. Locke e Rousseau, intérpretes do Estado moderno.

Introdução
O propósito do presente trabalho é analisar a relação existente entre os conteúdos
daquilo que comumente denominamos direitos civis com as teses de John Locke (1632-1704) e
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) quando defendem o direito natural como princípio
constitutivo do direito positivo. Para tanto, tomamos como ponto de partida a Constituição
brasileira de 1988, que defende os valores da livre iniciativa, do trabalho, da propriedade
privada, da divisão dos poderes políticos e a representatividade democrática como
instrumentos a organizar um governo civil capaz de atinar para as expectativas dos indivíduos.
Se de fato isso ocorre ou não na ordem material, constitui um problema a ser devidamente
estudado numa outra oportunidade, por ora nos preocupamos tão-somente em tomar os dois
pesadores supra para analisar em que medida os conteúdos dos nossos direitos civis estão
estreitamente ligados às formulações postas pelos corolários dos direitos naturais inalienáveis
que fundam o Estado moderno.
Assim, dividimos o presente texto em três tópicos e uma conclusão. No primeiro tópico
trabalhamos a noção de direitos civis a partir da Carta de 1988 sem travar nenhuma discussão
doutrinária. No segundo tópico desenhamos o pensamento político de Locke situando-o na
tradição filosófica como um pensador preocupado em refletir, a partir das relações sociais, o
sentido de legalidade como premissa fundamental e necessária na defesa do direito de
propriedade. Já no terceiro e último tópico assinalamos as premissas rousseaunianas como
avanço do pensamento político ocidental na perspectiva de construir uma sociedade que
levasse em conta a igualdade como pressuposto libertário, destacando que esse princípio talvez
seja a síntese da melhor produção teórica do ocidente até a metade do século XIX. Quanto à
conclusão, ficou circunscrita à sua natureza: poucas palavras.

1 - Noção de direitos civis dentro da Constituição de 1988


Primeiramente é preciso entender o significado de direitos civis e com isso verificar o
grau de responsabilidade que a Constituição de 1988 impôs ao Estado brasileiro na consecução
de seu fim. Por direitos civis podem-se entender, segundo o art. 5º da Carta Magna, todos os
direitos concernentes ao homem no tocante à vida, à liberdade, à segurança, à igualdade e à
112
propriedade nos termos estabelecidos pela lei. Entende-se que tais direitos são essenciais aos
planos individual e coletivo, assumindo, dessa forma, a dimensão de necessidade social pela
satisfação dos interesses dos indivíduos, implicados no equilíbrio da sociedade que é pensada
como um corpo representado pelas perspectivas-expectativas dos seus associados.
Para pensar os direitos civis como direitos inalienáveis do ser humano, tomamos o item
propriedade como problema central, isso porque a propriedade no sistema político
contemporâneo ainda assume a possibilidade do homem se manifestar não somente como
igual, mas também como necessariamente responsável pelo corpo social. Pode-se dizer que a
propriedade assume um caráter imprescindível nas relações político-sociais porque implica o
nível de liberdade do indivíduo e o sentir-se cidadão de fato. Ironicamente a propriedade ainda
pronuncia o status do indivíduo socialmente, apontando, por sua vez, o grau de dignidade da
pessoa na medida em que dispõe de si mesmo como ser capaz de decidir sobre o destino
político da sociedade.
Necessariamente os direitos civis se confundem com os direitos humanos, ou melhor, a
terminologia que se adota para expressar o conjunto de direitos que compreende a dignidade
da pessoa não vai longe do sentido de direitos civis, que, ao tempo dos jusnaturalistas, eram
chamados de direitos naturais por serem dados pela condição racional dos homens, que
naturalmente deveriam viver segundo a mais profunda racionalidade. Esse sentido de
racionalidade, ao contrário do que se pensou, não passou de esforços significativos de
inteligências particulares segundo suas condições histórico-culturais objetivas, limitadas pelo
esforço em se encontrar uma explicação aos problemas dos direitos, sejam eles civis, humanos
ou naturais. Importa saber, sobretudo, que os nossos direitos humanos constituem,
historicamente, o processo dos direitos ditos sociais expressos pelos princípios gerais de
direito. Portanto, é pouco relevante se são políticos, civis, sociais ou humanos, desde que,
obviamente, atendam aos novos reclames das necessidades humanas, isso para pensar
sociedade.
Resta assinalar que são direitos civis os existentes na vida da cidade; o que são os
direitos políticos senão aqueles na vida da polis; o que são direitos humanos senão aqueles que
privilegiam a digna existência humana. Assim, os direitos humanos denominados diversamente
pela cultura do tempo podem, desde que estejam categoricamente vinculados às expectativas
dos indivíduos, ser os preceitos vinculativos-normativos da vida em sociedade, desde que
levem em conta a necessidade do todo precedendo às partes, originalmente, o que já contraria
113
o sabor liberal de compreender o mundo a partir dos indivíduos isolados, o que constitui um
contra-senso ao bom senso cartesiano.

2 – A propriedade como princípio político, segundo John Locke


Levando em conta o interesse associativo dos homens, pode-se pensar com Locke que o
corpo político tem por fim a administração dos conflitos dos homens em sociedade no tocante
ao respeito do direito de propriedade. No entanto, para isso é preciso que analisemos o
fundamento teórico que norteia as reflexões desse filósofo inglês. Tomemos como ponto de
partida o significado de direito natural, para depois situar seu pensamento na perspectiva em
que está posto historicamente. Segundo o cientista político italiano Guido Fassò:
“Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser
conhecido um ‘direito natural’, ou seja, um sistema de normas de
conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas
fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade
em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é
ele que deve prevalecer”. 232
Em contrapartida, há especificidades dentro do pensamento jusnaturalista, a começar
pela distinção entre junaturalismo antigo e jusnaturalismo moderno, enquanto aquele se
assentava na tese de que o direito natural deveria representar um sistema de normas objetivas,
cravadas no cotidiano legal da sociedade, a tese jusnaturalista moderna compreende que o
direito natural deveria expressar uma relação de princípios compreendidos pela razão, ou, se
quisermos, como Locke, descoberta pela razão, que é justamente a capacidade de
compreensão existente nos homens. Tais direitos não seriam uma dádiva dos Estados ou das
legislações, mas um ditame da justa razão que mostraria aos homens os limites daquilo que
convém em uma sociedade civil, ou seja, direitos naturais qual racionais.
É nesse contexto que surge a figura de John Locke como um verdadeiro filho do século
XVII. O jusnaturalismo de Locke pressupõe uma ordem universal em que Deus criou os homens
para o propósito segundo o qual, todos pelo trabalho, pudessem construir sua prosperidade.
Nesse aspecto, a prosperidade está diretamente relacionada ao sentido de propriedade, que,
para o médico inglês, pode ser sintetizada em vida (bem-estar), posses e liberdade, assinalando
que todo homem tem direito ao fruto do seu trabalho, logo a propriedade assume o status de
categoria político-epistemológica, levando em conta o fato de que promove a compreensão da
propriedade como chave interpretativa dos movimentos políticos que determinam as formas
de pensar a organização coletiva, visando com isso um modo específico de produção social de

232
BOBBIO, Norberto (org.) Dicionário de ciência política. Brasília: UnB, 2000: 655.
114
bens. Outrossim, a propriedade não é uma determinação jurídica mas racional, pois é anterior
ao Estado que por fim a protege legalmente.
No entendimento de Locke o homem deixa o estado de natureza, situação de relativa
paz, para fundar uma sociedade civil, trocando aquela irrestrita liberdade por uma condição
jurídica que possa remediar o respeito à propriedade, pois o homem vivendo sob a sociedade
civil teria mais segurança para o seu desfrute, já que a propriedade é intrínseca ao indivíduo.
Nesse sentido, a sociedade civil não tem outro fim senão defender tal valor, tal princípio, tal
necessidade existencial. É na propriedade que os homens constroem a felicidade por meio do
trabalho, pois não há como separar felicidade de liberdade, trabalho de propriedade, justiça de
bem-estar comum, riqueza de esforço permanente. Em torno de tais perspectivas funda-se
uma organização política capaz de promover a justiça sob o primado da lei, o espírito de
legalidade como princípio elaborado pelo mundo europeu a partir da maturidade burguesa,
classe em ascensão que não privilegia a palavra dita como forma de acordo, mas o contrato a
termo que fixa, obriga e clareia expectativas desejadas.
Locke não concebe uma sociedade civil vivendo sob o arbítrio de um poder absoluto,
capaz de resolver tudo pela onisciência. O poder absoluto não visa ao bem-comum pelo simples
fato do seu julgamento sempre ser parcial e voltado para si, uma espécie de ação por reflexo,
onde o poder total está a sua volta para inteira satisfação de si. No sistema absoluto, o
imperioso é a vontade particular, contrária aos interesses de todos, pois ameaça à propriedade
e o resultado do trabalho quotidiano dos indivíduos. O poder deve ser uma relação entre
homens, uma renúncia coletiva capaz de estabelecer padrões possíveis de conduta; por isso a
lei será o novo referencial, a ordenação precisa dessa mesma conduta. Nesse ponto Locke
afirma que “ninguém pode na sociedade civil isentar-se das leis que a regem”. 233 As garantias
devem ser iguais para todos no corpo político em razão do direito natural considerar todos
como iguais, e a sociedade civil enquanto instância legal desse princípio.
Sendo a sociedade civil uma construção pelo consentimento, observa-se,
imediatamente, a razão como instrumento dessas vontades particulares consentidas, e que
precisam contratar os meios pelos quais essas concessões serão respeitadas. Locke aponta a lei
como guardiã dessa vontade expressa pela racionalidade. É a lei e não mais a vontade o
parâmetro da vida comunitária, para isso é necessário constituir um juiz permanente,
conhecido, imparcial e que governe seu julgamento sob a égide da lei, elaborada pela mesma
sociedade civil por meio da representação parlamentar. Se a lei obedece ao critério da

233
LOCKE, John. Os pensadores. In: “Segundo tratado sobre o governo”. SP: Abril, 1973: 76.
115
razoabilidade, seu surgimento só pode ser construído pela discussão, e o fórum desse processo
é o Legislativo. Assim, a sociedade como um corpo político-orgânico é comandada pelo império
da lei que se constrói no parlamento, pensado como poder supremo.
No Segundo tratado sobre o governo civil, Locke vaticina que a sociedade sob um poder
político somente existe para promover a paz com vistas a permitir o gozo, o uso e a
disponibilidade da propriedade, bem como na execução da justiça entendida como bem-estar
comum. Ao construir sua tese de que o homem abandona o estado de natureza (condição pré-
legal) e contrata com outros homens a sociedade civil para a preservação da propriedade,
Locke está pensando naqueles homens possuidores de terra e não naqueles sem posses,
inclusive os que não possuem a si mesmos. Todavia, forçosamente, podemos pensar que o
filósofo inglês trouxe algo de novo, mesmo não atentando para tal princípio, que sendo a
propriedade um direito natural e os homens iguais, todos, sem distinção, devem ser
contemplados no seu direito ao uso, gozo e disponibilidade daquilo que constituiu pelo
trabalho. Destarte pode-se, por relação, supor que todos os que formam uma sociedade devem
ter direitos resguardados por ela, pois sendo o homem um ser racional, tem na liberdade o seu
fim último, que por sua vez não pode ser separada da política cujo princípio é formular as
condições racionais para paz, harmonia, tolerância e felicidade, garantidas por leis civis.
Considerando que o estado de natureza é a condição perfeita de liberdade onde não há
uma regulamentação quanto à posse e outras relações, vivendo os homens nos limites da lei de
natureza, não se submetendo a ninguém, vivendo conforme o corolário da razão, Locke julga
conveniente a constituição de um Estado político em que a igualdade seja recíproca sob um
único poder jurisdicional, onde nenhum tendo mais que o outro, não possui o direito de
liberdade para destruir quem quer que seja, ou mesmo qualquer criatura “que esteja em sua
234
posse, senão quando uso mais nobre do que a simples conservação o exija”. O Estado
político deve ser pautado, também, pela razão da lei de natureza, isto é, “sendo todos iguais e
independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas
235
posses”. Para impedir a transgressão dessa lei de natureza, respeitando direitos alheios
como paz, concórdia etc., deve-se colocar no poder público “a execução da lei de natureza nas
mãos de todos os homens” 236 para castigar seus ofensores.
Como a violência em si não é causa original da fundação do Estado, mas a busca de
soluções inteligentes para garantir a propriedade, Locke, ao contrário de Thomas Hobbes

234
LOCKE, John. Os pensadores. In: “Segundo tratado sobre o governo”. SP: Abril, 1973: 42.
235
Ibidem.
236
Ibidem.
116
(1581-1672), insiste que o poder político deve ser entendido como “o direito de fazer leis com
pena de morte e, conseqüentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a
237
propriedade”, empregando a força da comunidade na execução de leis contra agressão
externa e defesa do bem-comum. O governo civil constitui o antídoto para os inconvenientes
do estado de natureza na busca de um juízo imparcial que possa compor os conflitos a partir de
uma racionalidade necessária, considerando, por sua vez, o poder absoluto como um estado de
guerra. Nesse sentido, o direito de resistência tem o escopo de obrigar o príncipe a respeitar a
legalidade cuja preocupação é com a ordem na segurança e defesa da propriedade através do
apelo moral.
A partir desse princípio, a sociedade civil resolve o problema da propriedade que a lei
natural não resolveu eficazmente, remediando as lacunas dadas pelas subjetividade e
insegurança. Portanto, através do poder político visa-se paz, felicidade, liberdade, bem-estar e
segurança contra o estado de guerra que uns buscam escravizar e se apropriar da propriedade
dos outros, rompendo o estado de natureza e instaurando a beligerância. Dessa forma Locke
repudia severamente o poder monárquico de sua época, defendendo a rebelião como meio de
preservar a vida, pois quem tenta impedir a liberdade de alguém está declarando guerra a este
alguém. O estado de natureza é diferente do estado de guerra, estão distantes um do outro
porque este é malícia, inimizade, violência, destruição mútua; aquele é amizade, solidariedade,
paz. “Quando os homens vivem juntos conforme a razão, sem um superior comum na terra que
238
possua autoridade para julgar entre eles, verifica-se propriamente o estado de natureza”,
mas quando não existe esse mesmo superior para julgar os homens em conflito, quando um
determina que o outro deve lhe servir, aviltando-lhe a pessoa instou-se um estado de guerra, e
Locke deixa claro que essa é a finalidade do Estado civil: garantir paz, justiça, liberdade e o
direito à propriedade.
Evitar esse estado de guerra cujo apelo é em direção ao céu, pois falta a quem se dirigir
em razão da inexistência de um poder civil, Locke defende que os homens se reúnam em
sociedade, deixando o estado de natureza no propósito de submeter a uma autoridade
legislativa que tenha como regra a lei de natureza, agora posta como uma obrigatoriedade
jurídico-penal. É bom que se diga, que a liberdade em sociedade passa a ser uma extensão da
liberdade do estado de natureza, isto é, a liberdade em sociedade consiste em norma
permanente, pois liberdade não é qual licença, é uma condição existencial protegida pelo

237
LOCKE, John. Os pensadores. In: “Segundo tratado sobre o governo”. SP: Abril, 1973: 40.
238
LOCKE, John. Os pensadores. In: “Segundo tratado sobre o governo”. SP: Abril, 1973: 47.
117
poder competente, com regras claras e constantes na intransigente defesa da propriedade
como lócus do trabalho, e nesse caso “Deus, que deu o mundo aos homens em comum,
também lhes deu a razão para que a utilizassem para maior proveito da vida e da própria
239
convivência”, logo, a terra, os frutos naturais e os animais alimentados ali naturalmente
pertencem à humanidade. Mesmo sendo a terra, os animais e os frutos da mesma propriedade
comum entre os homens, todo homem tem uma propriedade em si próprio, sendo seu direito
exclusivo. Pode-se dizer que “o trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos são
propriamente” 240 do homem; a terra e seus frutos não naturais são propriedades daquele que
a lavrou, pois o trabalho é a medida de todas as coisas, o que quer dizer que o homem em si
mesmo é a base da propriedade. Assim, o trabalho, no começo, proporcionou o direito à
propriedade sempre que qualquer pessoa achou conveniente empregá-lo sobre o que era
comum, salientando, por outro lado, que a mesma lei de natureza que deu a propriedade,
igualmente estabeleceu o seu limite. O homem se apropria da terra extraindo o seu sustento,
não sendo proprietário do excedente que pertence à humanidade, uma vez que Deus deu a
razão para o bem da boa convivência.
Os homens nascem com direito à perfeita liberdade, tendo o controle de todos os
direitos e privilégios da lei de natureza com o poder de preservar não só sua propriedade dos
danos e ataques diversos como castigar aqueles que infringem tal lei; nesse sentido, só haverá
sociedade política quando cada um dos membros renunciar ao próprio poder natural,
passando-o às mãos da comunidade em todos os casos que não lhe impeçam de recorrer à
proteção da lei por ela estabelecida. Estão em sociedade civil uns com os outros quando este
mesmo corpo dispõe de lei estável anterior ao fato e judicatura devidamente alicerçada para
dirimir conflitos, resguardando direitos e punindo opressores. O poder julgador é essencial à
existência da comunidade, que a seu turno assegura a propriedade, evitando os inconvenientes
do estado de natureza. Na sociedade civil há um juiz capaz de dirimir conflitos primando pela
imparcialidade, uma vez que “ninguém pode na sociedade civil isentar-se das leis que a
regem”. Isso significa que ninguém pode ser expulso de sua propriedade sem o seu próprio
consentimento, pois os homens, por natureza, são livres, iguais e independentes. A pessoa que
abandona sua liberdade natural, constituindo uma comunidade, deseja viver com outras
pessoas em segurança e paz, gozando as garantias dadas à propriedade. Assim, um corpo
político é comandado pela maioria.

239
Idem, 1973: 51.
240
Ibidem.
118
“Quando qualquer número de homens, pelo consentimento de cada
indivíduo, constitui uma comunidade, tornou, por isso mesmo, essa
comunidade um corpo, com o poder de agir como um corpo, o que se
dá tão-só pela vontade e resolução da maioria”. 241

Sendo a liberdade na sociedade civil maior que no estado de natureza em virtude da


proteção legal, o ato da maioria em uma assembléia é um ato de todos, e, nesse caso, é
impossível em uma assembléia todos concordarem uns com os outros visando à composição do
conflito. A solução para tal problema é a votação: a idéia vencedora é aquela que conta com a
maioria, sendo esta seguida pela parte vencida. Se para fundar uma sociedade civil fosse
necessária a unanimidade de todos os presentes, tal sociedade seria impossível de ser
constituída, e é por isso que se justifica a maioria dos votos como solução do conflito. Quem
deseja instituir uma sociedade civil, saindo do estado de natureza, deve abandonar todo poder
necessário visando aos fins associativos, consistindo o pacto no assentamento da sociedade
política. Nesse caso, o que firma a sociedade civil não é outra razão senão a concordância do
número necessário de homens livres (proprietários), capazes de maioria para compô-la,
politicamente. Somente pelo livre consentimento foi possível o pacto que legítima a origem do
governo, e uma vez feito o pacto o pactuante jamais poderá romper o acordado, estando
obrigado, perpetuamente, a ser súdito dessa sociedade.
Ao iniciar o capítulo XI do Segundo tratado, Locke enfatiza que o objetivo pelo qual o
homem ingressa na sociedade civil consiste em elaborar normas para garantir a propriedade e,
nesse sentido, cabe ao Legislativo o papel de edificá-las. Por isso na formulação política
lockeana o papel do poder legislativo é de ordem primordial, isto é, tem a função de
estabelecer normas necessárias à existência da sociedade como um corpo político, e sendo
assim, o poder legislativo assume o status de poder supremo dentro de uma sociedade que
pretende a legalidade. O poder legislativo institui normas para comandar a sociedade, o
executivo para aplicá-las. Essas funções distintas são para que não haja arbitrariedade por parte
dos poderes constituídos. Se o poder legislativo agir de forma diversa de sua destinação, ou, se
todos os poderes em seus atos não respeitarem o povo, que é o verdadeiro titular do poder,
caberá ao próprio povo apelar para os céus no sentido de resistência civil. Para Locke, tais
poderes públicos somente existem em função do soberano, logo seria absurdo um governo que
fugisse de suas funções essenciais, mas caso ocorra, caberá ao povo destituí-lo e formar um
outro que atenda ao pacto firmado como fim último.
Uma sociedade governada por uma autoridade competente tem por fim fazer valer o
241
LOCKE, John. Os pensadores. In: “Segundo tratado sobre o governo”. SP: Abril, 1973: 77.
119
julgado conforme lei. O estado de natureza, embora sendo o ideal, está sujeito às paixões, e,
nesse caso, pelas “más condições enquanto nele permanecem, são rapidamente levados à
sociedade”. 242 O governo civil deve estabelecer lei estável para que haja segurança, portanto o
poder supremo deve levar em conta três aspectos a serem observados: não deve ser arbitrário
sobre a vida e a fortuna da pessoa; ele é apenas o seu representante; o poder legislativo não
governa por decretos extemporâneos e arbitrários, mas sim por leis estabelecidas, conhecidas
e por juízes autorizados.
“O poder absoluto arbitrário ou o governo sem leis fixas e
estabelecidas não se podem harmonizar com os fins da sociedade e do
governo pelo qual os homens abandonassem a liberdade do estado de
natureza para sob ele viverem, se não fosse para preservar-lhes a vida,
a liberdade e a propriedade, e para garantir-lhes, por meio de regras
estabelecidas de direito e de propriedade, a paz e tranqüilidade”. 243
O poder supremo não pode tirar de qualquer dos seus membros parte da sua
propriedade sem o seu consentimento, visto ser a preservação da propriedade o objetivo do
governo e por isso ter-se concebido como conditio sine qua non da sociedade civil. O poder
legislativo não pode transferir sua competência, visto ter sido o povo quem o delegou para tal
função, somente o povo pode ter o poder legislativo para si. Nessa ordem, são obrigações e
encargos a ele conferidos pela sociedade e pela lei de Deus, a saber: 1 - Governância pautada
sob a lei promulgada, anterior, conhecida, invariável; 2 - As leis só podem visar o bem-estar do
povo; 3 - Não pode lançar impostos sobre a propriedade sem o consentimento do povo; 4 – A
competência do poder legislativo é intransferível. E, sendo o legislativo a expressão da vontade
da sociedade, seu símbolo exemplar é a chancela política de seus interesses. O poder legislativo
só é o ordenador da sociedade porque tem representação popular e sua destinação é elaborar
leis justas e precisas ao bem-comum, ao passo que o poder executivo é aquele que executará
as leis, poder permanente na administração dos negócios públicos escolhidos pelo legislativo.
Atua no âmbito comunal, isto é, nos problemas intra-sociedade.
O poder federativo, por sua vez, é uma extensão do executivo, sua função é relativa aos
negócios estrangeiros no que tange à paz ou à guerra. Os exercícios dos poderes executivo e
federativo podem ser realizados pelos mesmos membros, distintos do legislativo, cujos
partícipes não podem pertencer a outro poder, que ao seu turno não tem atuação permanente,
pois, ao elaborar leis, extingue-se a legislatura e seus membros voltam a ser súditos das leis por
eles instituídas. O legislativo só pode ser convocado na necessidade de promulgação de leis e

242
LOCKE, John. Os pensadores. In: “Segundo tratado sobre o governo”. SP: Abril, 1973: 89.
243
Idem, 1973: 94
120
desobediência por parte do poder executivo. Cabe ao povo o poder supremo de destituir o
legislativo quando este não atende aos fins pelo qual fora criado, agindo contra a mesma
comunidade constituída. A comunidade preserva o poder de se salvaguardar de quem quer que
seja para fazer valer os princípios do bem-estar, da liberdade e posses. Ninguém pode
renunciar a autopreservação, não podendo tolerar qualquer forma de arbitrariedade. Assim,
não é necessário e conveniente que o poder legislativo esteja sempre reunido, ao passo que o
poder executivo, sim, “visto como nem sempre há necessidade de elaborar novas leis, mas
sempre existe a necessidade de executar as que foram feitas”. 244 O legislativo pode dissolver o
poder executivo caso este esteja sendo arbitrário na aplicação das leis. Mas, caso o executivo
impeça a reunião do poder legislativo, qual o remédio? “O verdadeiro remédio contra a força
245
sem autoridade é opor-lhe a força”; resistência ao estado de guerra, ação essencial da
sociedade quanto às suas respectivas segurança e preservação, visto que nesse caso a contra-
força torna-se resistência civil como ato extremo para resguardar a legalidade.

3 – A democracia como radicalização genebrina


246
“O homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferros”, acorrentado por
cadeia de elos convencionados por diversos interesses. Assim, Jean-Jacques Rousseau inicia O
contrato social, com uma observação pertinente: a liberdade não é uma convenção ou uma
prerrogativa legal, mas uma condição natural-existencial intrínseco à condição humana, visto
ser a liberdade anterior à determinação legal. É a liberdade a única condição legítima de
organização política, em que repousa toda autoridade subordinada à vontade de uma idéia
coletiva. A liberdade é a própria qualidade humana, ao passo que a escravidão, como antítese,
é a plena renúncia dessa humanidade sustentada por convenção e interesse mesquinhos. Foi
para garantir a liberdade e os bens que o homem superou as inconveniências do estado de
natureza e instituiu a sociedade civil. Tal passagem supõe que ocorreu nas condições em que
os homens tinham pela frente, obstáculos prejudiciais à sua conservação e limite de forças
que cada um dispunha; o estágio primitivo já não podia subsistir e o gênero humano, se não
mudasse de modo de vida, pereceria. Portanto, os homens trocaram sua liberdade irrestrita
pela liberdade civil, “sendo, porém, a força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos
primordiais de sua conservação.” 247

244
LOCKE, John. Os pensadores. In: “Segundo tratado sobre o governo”. SP: Abril, 1973: 100.
245
Idem, 1973: 101
246
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: “O contrato social”. SP: Nova cultural, 1991: 22.
247
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: “O contrato social”. SP: Nova cultural, 1991: 32.
121
É bem verdade que a sociedade civil, para Rousseau, tem um caráter contraditório, ao
mesmo tempo em que assegura com mais eficiência a liberdade civil à natural pela proteção
do Estado-juiz, também traz consigo a pecha de perverter o homem originário, atribuindo à
propriedade os males sociais até hoje existentes, corrompendo os homens e os atirando ao
atoleiro em que se encontra, muito embora também essa mesma sociedade deva ser capaz de
encontrar as saídas necessárias ao bem-comum. Mas quais as vantagens da sociedade política
sobre a vida no estado de natureza, uma vez que esse estado, mesmo imaginado para
conceber os pressupostos políticos dos jusnaturalistas, não tenha existido? Nessa perspectiva
pergunta Rousseau: “qual é o fim da associação política? A conservação e a prosperidade de
248
seus membros”, responde o autor de Emílio, convencendo-nos de que O contrato social
tem como escopo refletir sobre uma associação política capaz de guardar a pessoa e os seus
bens, em que todos, unidos pelo mesmo objetivo, cada um obedeça a si mesmo procurando
manter-se tão livre quanto livre fora no estado de natureza. E, nesse caso, a liberdade assume
valor ímpar, subordinando-se somente à igualdade cuja condição absoluta torna todos
realmente livres. Importa salientar que a igualdade civil é uma decorrência da igualdade
natural entre os homens, logo o plano social deve ser uma extensão racional do natural.
A sociedade civil não se estrutura para livrar o homem do medo permanente do homo
homini lupus, como também não se organiza para proteger, gozar e dispor da propriedade por
mais amplo que seja o seu conceito. O pacto social visa conservar a liberdade pelo espírito de
igualdade em que a posse se transforme em propriedade pelo trabalho, garantida pela
vontade geral, coercitivamente sob o primado da lei emanada do soberano. Destarte todos os
cidadãos são forçosamente iguais para livremente deliberar leis necessárias à vida civil. Para
isso Rousseau concebe vontade geral como expressão de um desejo de todos, Essa mesma
vontade geral não é uma soma de vontades particulares, mas a materialização do soberano, a
suprema fonte de poder da sociedade que se constitui em instância deliberativa do corpo
político em que o povo se assume como ser livre sustentado pela igualdade. A igualdade é
uma condição de semelhança na sociedade civil, cujo soberano não admite, em seu seio,
homens desiguais, pois se assim não for a soberania deixa de ser uma emanação de poder e se
torna centro de lutas individuais, representando interesses particulares. O soberano só pode
ser o povo no momento de sua deliberação legislativa, vontade geral, o que Karl Marx (1818-
1883) chamará de interesse geral, acertadamente. 249

248
Idem, 1991: 98.
249
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Lisboa: Presença, 1983.
122
Sendo o soberano a instância deliberativa, para Rousseau, a mediação parlamentar
tem apenas um caráter metafísico, visto ser o poder soberano o próprio exercício da vida
social, sendo todos os súditos obrigados ao poder soberano, ao passo que o mesmo não é
obrigado aos súditos, isso porque “não há nem pode haver qualquer espécie de lei
250
fundamental obrigatória para o corpo do povo, nem sequer o contrato social”, é o
soberano a legitimação da ordem social sob a forma de assembléia enquanto fonte da
vontade geral. Ao soberano o pacto social proporciona poder sobre seus membros e sua
propriedade, existindo juridicamente graças à legitimação política.
Assim, o limite do poder soberano está adstrito ao sentido do interesse público como
norte da vida coletiva cujas deliberações obedecem aos princípios de igualdade-liberdade na
lei como força da vontade geral, meio que fixa e estabelece todos os direitos-deveres dos
cidadãos. O poder soberano, pela sua própria natureza, é quem institui o poder executivo,
aquele que irá executar e administrar o bem público mediante leis promulgadas. O poder
251
executivo, que “é um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano”,
encarregado da manutenção das liberdades civil e política, estabelece a relação do todo com o
todo, do soberano com o Estado. Entretanto, não se pode confundir o soberano com
instâncias administrativas de poder, visto que o soberano é permanente enquanto pilar da
vontade geral em assembléia.
Segundo Rousseau, o poder legislativo não existi fora do soberano, isso porque não se
podem representar vontades. O povo não pode prescindir do seu direito-dever de participar
da vida política do seu Estado, abrir mão dessa condição é arruinar todo o corpo político,
colocando sob perigo toda organização estatal constituída. O povo é quem elabora e ratifica a
lei, isso porque é nula toda lei que não leva sua chancela, porque a diminuição do “amor à
pátria, a ação do interesse particular, a imensidão dos Estados, as conquistas, os abusos do
governo fizeram com que se imaginassem o recurso dos deputados ou representantes do
252
povo nas assembléias da nação”. Dessa forma, a liberdade só existe quando a justiça e a
igualdade são anunciadas como pressupostos necessários de uma ordem política em que o
homem é cidadão. Nesse ponto a miséria é um peso para a igualdade que obsta a liberdade
como soberana construção política, pois, para o filósofo genebrino, a ação política visa, em
última instância, a prosperidade como fim do homem. Não sem razão que a democracia é
eleita como forma de ação política e não como simples forma de governo; enquanto ação a

250
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: “O contrato social”. SP: Nova cultural, 1991: 34.
251
Idem, 1991: 74.
252
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: “O contrato social”. SP: Nova cultural, 1991: 107.
123
democracia asseguraria a liberdade do cidadão nos negócios da cidade. Porquanto ser autor
de si mesmo é um plano de igualdade na participação dos assuntos públicos, não se podendo
falar em liberdade quando se nega ao membro do soberano igualdade e justiça, por isso as
condições de liberdade são a igualdade como uma necessidade em que o homem não pode
dispor de si mesmo assim como se dispõe de um objeto.
Em face desse princípio, Rousseau responsabiliza o homem por levar adiante a
liberdade como um projeto perpétuo; ao contrário de Locke, toma essa manifestação do
espírito da vontade humana como expressão da vida comunitária. Nesse caso, a liberdade é a
disposição de todo homem em viver com outros no seio da sociedade, logo liberdade é uma
síntese da vida moral. E, se a liberdade é condição necessária ao corpo político como
fundamento da soberania, é o soberano a legítima condição através do qual os homens depois
de terem perdido sua liberdade natural, ganham em troca a sua liberdade civil – de servidão a
liberdade igual. Portanto, povo livre é aquele que elabora suas leis em pé de igualdade,
cabendo a si decisão legislativa, buscando a unidade político-moral pela lei como vontade
visível e obrigação contratante consigo mesmo e com o próximo ao mesmo tempo:
compromisso mútuo de igualdade-liberdade.
Precisamente a vontade geral e o interesse geral redundam nos atos gerais, isto é, nas
leis, ao passo que o soberano é a própria vontade geral. Obedecer ao soberano é ser
verdadeiramente livre, isso porque o soberano incorpora a vontade geral como contrato social,
estabelecendo um pacto legítimo em torno da liberdade civil. Obedecer à lei que se prescreve a
si mesmo é um ato de liberdade, cuja obediência à vontade geral fundamentando-se na
igualdade, dessa forma o governo é o funcionário do soberano, visto que na ordem civil uma
administração pode ser legitima e segura, tendo o homem como ele é e as leis como podem
ser, compatibilizando direito e necessidades, justiça e utilidade. E, como por natureza, todo
homem é livre, a sociabilidade pode acorrentá-lo, mas, se, pela força, um povo é oprimido, pela
força este mesmo povo rompe com a opressão: quando é obrigado a obedecer e obedece, é
prudente; quando reage e liberta-se, usa um direito que antes não deveria ter sido subtraído.
Em sociedade tudo se faz por convenção, porém é preciso estabelecer convenções justas
baseadas na igualdade-liberdade.
A força não é condição para que o forte se perpetue no poder, a não ser que transforme
força em direito e obediência em poder. A força que deve prevalecer é a do direito, pautada na
força moral do interesse público. Nesse postulado a força não fazendo o direito só obriga a
obedecer aos poderes legítimos, pois a vontade só tem validade se estiver atrelada à liberdade.
124
Não se aliena a vida, muito menos um povo; um indivíduo só se escraviza por necessidade ou
pela força: renunciar a liberdade é ir contra a natureza moral da vida. “Os homens em absoluto
não são naturalmente inimigos; é a relação entre as coisas e não a relação entre os homens que
253
gera a guerra”, nem no estado de natureza onde a propriedade não é constante, nem no
Estado social, onde tudo está sob a proteção da lei. A guerra não é uma relação de homens
contra homens, mas sim de Estado contra Estado, declaradas pela ausência do cidadão livre,
alienado de sua condição do corpo soberano. As guerras são vontades de príncipes em busca
de seus desejos, e nesse caso, a escravidão é fruto de interesses diversos posto por
convenções, pois há diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade, está na
relação de que esta é associação de homens livres que pactuam, enquanto aquela é uma
complexa relação entre senhor e súditos, portanto uma situação de servidão.
O contrato social pretende “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja
a pessoa e os bens de cada associado com toda força comum, e pela qual cada um unindo-se a
254
todos, só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes”, logo é
retornar ao estado de natureza pelo principio de liberdade cujas cláusulas do contrato são
determinadas pelo teor do ato, e, nesse caso, o pacto social não é formal pelo fato de se fundar
na natureza do ato, e sua violação coloca o homem em estado de natureza, perdendo a
liberdade convencionada. Suas cláusulas reduzem todos a condição de igualdade, não havendo
onerosidade para este ou aquele, em que “cada um se dando a todos não se dá a ninguém”.
Este preceito de igualdade é contrário ao individualismo, pois o individuo dentro do coletivo
está sujeito à vontade comum, visto que, no lugar da pessoa particular, após o pacto, produz-se
um corpo moral-coletivo, constituído de tantos membros quanto de votos na assembléia,
solidariamente. Essa união forma uma pessoa pública cujo nome é República, compreendendo
um compromisso recíproco entre o público e os particulares, e dessa forma pactua-se consigo
mesmo.
O soberano estabelece os princípios pelos quais o Estado deve se portar em razão da
integridade do contrato, uma vez que o corpo político não pode alienar-se nem mesmo como
parte, não podendo derrogar este ato primitivo obrigando-se com outro ou mesmo se
submeter a outro soberano: é a própria autodestruição, isso porque não se pode atacar o corpo
sem ofender os membros, como não pode ofender este ou aquele membro sem ofender o
corpo: “Ora, o soberano, sendo formado tão-só pelos particulares que o compõem não visa

253
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: “O contrato social”. SP: Nova cultural, 1991: 28.
254
Idem, 1991: 32.
125
nem pode visar o interesse contrario aos deles”. 255 O soberano é obrigado, por sua natureza, a
celebrar medidas que não prejudiquem os particulares e vice-versa.
Aquele que visa viver sob o contrato social não pode superestimar sua vontade
particular, pois essa forma de agir implica uma impossibilidade de viver como cidadão,
ignorando, por assim dizer, sua qualidade de súdito do soberano. Mas, para que o pacto não se
torne algo nulo em si mesmo, como se fosse um simples formulário, deve-se tornar um
compromisso fundamental capaz de vigorar nos outros aquilo que vigora para si, não podendo
recusar obedecer à vontade geral, sendo a condição que cada cidadão entrega-se à pátria com
o propósito de se posicionar contra qualquer dependência sob outra pessoa, isto é, não pode
ser privado de sua liberdade social, e qualquer tentativa de fugir do corpo político que sustenta
essa mesma liberdade poderá cair na dependência de outrem. Assim, para Rousseau, a
liberdade só existe no corpo político, isso porque no contrato social o homem perde a liberdade
natural, o direito ilimitado e tudo o quanto à aventura pode ensejar, ganhando, com isso, a
liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. A liberdade moral torna o homem
verdadeiramente senhor de si mesmo porque o impulso do puro apetite é escravidão, portanto
está na obediência à lei que se estatui a condição de membro da comunidade, dando-se a ela
no momento de sua formação. Nesse caso a posse não muda de natureza mudando do
particular para o soberano, mas segundo o soberano torna-se propriedade pela legalidade.
Todo homem tem naturalmente direito o quanto lhe for necessário, todavia o ato que
lhe faz proprietário de um bem o afasta de tudo que não lhe pertence, uma vez investido na
posse de sua parte não lhe é permitido mais do que já tem, a posse como o mando, deve
legitimar-se para torna-se direito, que é atribuição da sanção coletiva. O direito de ocupante no
estado de natureza é frágil ao passo que no Estado civil é respeitado e torna-se condição de
propriedade, isto é, condições necessárias para autorização de direito de primeiro ocupante
sobre bem imobiliário: porção necessária à subsistência. A posse pelo trabalho e pela cultura
são os únicos sinais de propriedade respeitados pelos outros membros da sociedade na
ausência de titulo legal de propriedade. Para Rousseau, os possuidores são depositários dos
bens públicos (posse legitima) na medida em que o liame social é a força verdadeira da
soberania. Nesse sentido:
“O pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo
contrario substitui por uma igualdade moral e legitima aquilo que a
natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens, que,

255
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: “O contrato social”. SP: Nova cultural, 1991: 35.
126
podendo ser desiguais na força e ou no gênio, todos se tornam iguais
por convenção e direito”. 256

A igualdade é aparente e ilusória sob governos que servem tão-somente para que o rico
fique mais rico e o pobre mais pobre, e nesse caso as leis são sempre úteis aos que têm em
detrimento dos que não têm. No Estado social só é vantajoso aos homens quando todos têm
algo e nenhum tem demais, é a partir deste princípio que a vontade geral torna o interesse
comum como consciência pública cuja vontade geral dirige as forças do Estado no interesse do
bem-comum. O liame social é formado pelo que existe de mais íntimo nos interesses dos
membros da sociedade civil, em que a soberania, o exercício da vontade geral, impossibilita sua
alienação pelo sentido de que o soberano é um ser coletivo. É possível que uma vontade
particular não coincida com a vontade geral, só que tal situação é impossível por muito tempo,
pois as vontades particulares tendem a predileções, ao passo que a vontade geral à igualdade:
“se, pois, o povo promete simplesmente obedecer, dissolve-se por esse ato, perde sua
qualidade de povo – desde que há um senhor, não há mais soberano e, a partir de então,
destrói-se o corpo político”. 257
O estabelecimento de partidos constitui obscurecimento à vontade geral, isso porque se
devem evitar as particularidades, o que não quer dizer que os cidadão não possam opinar a
partir de si, mas que fique claro: o poder dirigido pela vontade geral sobre todos os súditos
chamado de soberania, firmada no pacto social, constitui direito-dever dos cidadãos junto ao
soberano. Os compromissos no pacto o são porque são mútuos, pois o pacto social dá ao corpo
político um poder sobre seus membros, muito embora o poder soberano deva ser
convencionado pelo interesse geral. O poder soberano fica restrito ao pacto e as convenções
gerais, não onerando nenhum membro em favor do outro, privilegia o interessa público nos
limites do bem-comum, segundo a liberdade convencionada pela igualdade de direitos-deveres
naturais. “São, pois, necessárias convenções e leis para unir os direitos aos deveres, e conduzir
a justiça a seu objetivo.” 258 Embora a vontade geral esteja sempre certa, as vezes pode carecer
de esclarecimento quanto ao julgamento, nesse caso é importante a figura do legislador,
jogando luzes públicas sobre o problema. Segundo Rousseau, seria preciso deuses para dar leis
aos homens isentas de paixões, entretanto, aos que ousam tal empreendimento devem se
sentir capazes de mudar a natureza humana para melhor; nesse sentido, a educação aparece
como idéia-ação política revolucionária: enfim, a igualdade como pressuposto da liberdade.

256
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: “O contrato social”. SP: Nova cultural, 1991: 39.
257
Idem, 1991: 44.
258
Idem, 1991: 54.
127

Conclusão
Poderíamos terminar este trabalho de diversas maneiras, tentando privilegiar os
autores supra, tomando em oposição, por exemplo, Thomas Hobbes, que recebe um
tratamento especial da tradição, muito embora as teses de Locke sejam encontradas em
diversos ordenamentos jurídicos, especialmente o brasileiro que se propõe liberal, ou Rousseau
pelo determinante contágio que exerceu sobre as inteligências insatisfeitas com as
irracionalidades políticas. Também poderíamos concluir fazendo uma habitual comparação
entre os dois teóricos do pensamento político moderno. Porém, pensamos que isso não só
seria trivial como pouco inteligente. No entanto, apenas pretendemos destacar, por ora,
algumas considerações supostamente instigantes, pelo menos do ponto de vista
epistemológico.
Tanto Locke como Rousseau, assim como muitos jusnaturalistas, construíram seus
modelos a partir do direito natural - este a liberdade, aquele a propriedade -, para justificar as
suas respectivas concepções políticas. O interessante é que seus modelos são abstratos ao
mesmo tempo em que ensejam alternativas sóbrias e concretas, acenando para a possibilidade
de uma ordem político-jurídica, insistentemente, preocupadas em satisfazer os interesses dos
indivíduos. Essa ordem nasceria de um contrato em que poria tudo a termo com o fim de
propiciar o livre curso das disposições naturais existentes nos indivíduos, o que de alguma
forma possibilitaria a sociabilidade. O direito natural estaria, intrinsecamente, atrelado ao
direito positivo por lhe ser supostamente superior em razão de sua racionalidade universal e
necessariamente válida. Se o jusnaturalismo resgata a concepção ético-política dos estóicos,
partindo do lógos como instância determinante, o faz porque necessita construir uma
concepção política válida universalmente, acreditando, para isso, que todos os homens
estariam inteligentemente a salvos das intempéries arbitrárias dos interesses mais
“translocados” que animam as associações não-jurídicas. Nesse caso, as sociedades políticas
almejariam edificar estruturas legais que racionalmente comporiam os conflitos de interesses,
livrando os indivíduos da violência absolutamente desnecessária.
O jusnaturalismo é a primeira expressão teórica burguesa consistente que engendra, ao
mesmo tempo, o liberalismo, o contratualismo e o constitucionalismo. Ao buscar a
universalização da ordem pela razão, no mesmo instante que solapa as pequenas ordens-
culturais, o jusnaturalismo, enquanto movimento de idéias, reflete a expectativa burguesa que
justifica a existência do direito como primado científico, ora pela física de Galileu, ora pela física
128
de Newton. Não importa hoje se as teorias científicas estavam erradas, o fundamental é
assinalar que o pensamento moderno estava ávido por uma ordem natural-imanente, longe da
revelação e o mais próximo da racionalidade matemática que buscava o equilíbrio do mundo
para o mundo do mercado. Seja como for, entendemos que o jusnaturalismo continua como
uma força viva, mesmo que, pessoalmente, a ele não nos filiemos.

Referência Bibliográfica
ALVES, João L. Rousseau, Hegel e Marx, percurso da razão política. Lisboa: Livros Horizonte,
1983
BOBBIO, Norberto. O pensamento político de Kant. Brasília: UnB, 1990.
______. Locke e o direito natural. Brasília: UnB, 1997.
______ (org.). Dicionário de ciência política. Brasília: UnB, 2000.
CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. SP: Códex, 2003.
ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. Lisboa: Presença, 1980.
LOCKE, John. Os pensadores. In: “Segundo tratado sobre o governo civil”. SP: Abril, 1973.
MARX, Karl. Crítica a filosofia do direito de Hegel. Lisboa: Presença, 1983.
MOSCA, Gaetano. História das Doutrinas Políticas.RJ: Zahar Editores, 1983.
SABINE, George H. História das Teorias Políticas. Vol. 2. RJ: Fundo de Cultura, 1961.
REALE. G. e ANTISERI, D. História da filosofia. Vol. II. SP: Paulinas, 1990.
SANTILLÁN, José F. Locke y Kant: ensayos de filosofia política. México: Fondo de Cultura, 1992.
SCHILLING, Kurt. História das idéias sociais. RJ: Zahar Editores, 1966.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras,
1996.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: “O contrato social”. SP: Nova cultural, 1991.
VOLPE, Galvano Della. Rousseau e Marx, a liberdade igualitária. Lisboa: Edições 70, 1982.

Resumo: O propósito do presente trabalho é analisar a relação existente entre os conteúdos


daquilo que comumente denominamos direitos civis com as teses de John Locke e Jean-Jacques
Rousseau quando defendem o direito natural como princípio constitutivo do direito positivo.
Para tanto, tomamos como ponto de partida a Constituição brasileira de 1988, que defende os
valores da livre iniciativa, do trabalho, da propriedade privada, da divisão dos poderes políticos
e a representatividade democrática como instrumentos a organizar um governo civil capaz de
atinar para as expectativas dos indivíduos.
129
Capitulo X

A filosofia prática de Immanuel Kant

I – Histórico
Immanuel Kant nasceu em 1724, em uma cidade da Prússia Oriental denominada
Königsberg. Filho de uma modesta e numerosa família de artesãos recebeu de sua mãe
educação segundo os princípios do pietismo, 259 corrente radical do protestantismo prussiano.
Estudou no Collegium Fridericianum, dirigido pelo pastor pietista F. A. Schultz. Entre 1740 e
1747 estudou na universidade de sua cidade freqüentando os cursos de ciência e filosofia.
Durante os anos de 1747 e 1754 experimentou grandes dificuldades financeiras, tendo de
trabalhar como preceptor, mas apesar das condições desfavoráveis prosseguiu nos seus
estudos, redundando na obtenção do título de doutor. Em seguida, conseguiu lecionar na
Universidade de Königsberg como livre-docente em 1755. Naquela época, o professor, na
categoria de livre-docente, recebia somente um valor correspondente ao número de horas de
ensino e ao número de alunos que freqüentava o curso. Mais tarde, em 1770, passou no
concurso para professor ordinário com a dissertação De mundi sensibilis atque intelligibilis
forma et principiis. Uma das características mais marcantes do caráter moral desse autor, além
de sistemático, foi sua aversão por carreirismo, renunciando qualquer forma de adulação.
Kant se concentrava em sua pesquisa filosófica, de forma totalmente desinteressada em
relação a qualquer possibilidade de fama ou riqueza. Segundo estudiosos de sua biografia, por
volta de 1778 chegou a receber um convite por parte do barão Von Zedlitz para assumir uma
cátedra em Halle, o que lhe renderia um pagamento pelo menos três vezes maior do que o de
Königsberg. Kant recusou tal oferta e com ela outra referente a um cargo público vinculado à
mencionada cátedra.
Em 1781 publicou sua primeira crítica denominada de Crítica da Razão Pura,
posteriormente em 1788, a Crítica da Razão Prática e, em 1790, a Crítica da Faculdade de
Julgar. Cumpre dizer que esse autor situou-se dentro da atmosfera intelectual que caracterizou
260
o iluminismo alemão. Assim, o seu criticismo estabeleceu limites à razão humana quando
afirmou que só podemos conhecer aquilo que nós mesmos criamos, constituindo, com esta

259
Movimento de intensificação da fé, nascido na Igreja Luterana alemã no séc. XVII.
260
O termo razão é de origem latina que vem de ratio, cálculo, conta, que passou a significar “a faculdade
intelectual e lingüística que distingue o ser humano dos outros animais”, ou “a faculdade humana da linguagem e
do pensamento, voltada para a apreensão cognitiva da realidade, em contraste com a função desempenhada pelos
sentidos na captação de percepções imediatas”. Dicionário eletrônico Ouaiss da língua portuguesa.
130
afirmativa, uma nova forma de filosofar que nasceu no interior das mudanças estruturais que
tipificaram a própria modernidade. Portanto, segundo Kant:
“A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A
religião, pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem
igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas
suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a
quem pode sustentar o seu livre e público exame”.261

Essa nova maneira de filosofar reivindica como pressuposto fundamental a liberdade,


uma liberdade de fazer uso público da razão em todas as questões sem a direção de outrem.
Esse uso público da razão significava, segundo o autor, a liberdade para pensar enquanto
intelectual e a possibilidade de expressar suas idéias ao público leitor. 262
Após a morte de Frederico, o Grande, monarca esclarecido, em 1786, seu sucessor,
Frederico Guilherme II, desenvolveu uma política antiiluminista, que teve em Kant sua primeira
vítima, visto ter recebido advertência e censura pela publicação da obra A religião nos limites
da simples razão (1793). Este acabou por silenciar suas críticas diante da advertência proferida
pelo Gabinete Imperial. Após argumentar em favor do uso público da razão, prometeu
obedecer, o que para alguns acenou momento de triunfo para os inimigos de uma filosofia
crítica e inovadora.
O seu criticismo transcendental sofreu uma interpretação de cunho idealista,
especialmente no pensamento de Johan Gottlieb Fichte (1762-1814), a despeito de sua
resistência a esse tipo de interpretação. Nos seus últimos anos tornou-se quase cego, perdeu a
memória e a lucidez intelectual, sobrevindo sua morte em fevereiro de 1804.

II - O conceito de liberdade no pensamento de Kant


Segundo Kant, o homem está submetido às leis da natureza (determinismo) e, ao
mesmo tempo, às leis da liberdade (moral). Isto significa dizer que o homem é um ser fadado
ao determinismo da natureza e ao mesmo tempo livre enquanto ser pensante; livre para criar
suas próprias regras. Assim, o homem é capaz de perceber que ele próprio é a causa dos
fenômenos que existem no mundo, ou seja, compreende que a razão humana é livre e
determinante e, portanto, possui algo que o difere dos animais, denominada de liberdade
transcendental.263

261
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian , 1994: AXI.
262
KANT, I. Textos Seletos. In: “Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?” Petrópolis: Vozes, 1974.
263
Transcendental é uma categoria kantiana que pode ser tomado por duas condições: a primeira diz respeito o
que antecede a experiência; a segunda, ao que concerne o que é independente da experiência ou de princípios
empíricos.
131
É justamente no âmbito da vontade264 ou da razão265 que podemos perceber a
liberdade, ou seja, a liberdade prática ou independência da vontade pode ser demonstrada
quando a razão nos fornece a “regra de conduta”, 266 quando entra em jogo o que devemos ou
não fazer. É exatamente nessa experiência interior, exclusivamente pessoal, que conhecemos a
idéia de liberdade transcendental como um tipo de causalidade da razão capaz de determinar a
vontade a agir com ou sem as influências de impulsos sensíveis (interesses). Nesse sentido,
Kant concebeu a liberdade transcendental como o livre-arbítrio e, portanto, tudo o que se
relaciona com essa dimensão do livre-arbítrio “é chamado prático” 267. Resulta dessa afirmação,
que devemos entender por prático, o que diz respeito à moral e ao direito.
Então, a liberdade prática que significa liberdade da vontade, é uma variante da
liberdade transcendental. Nesse ponto importa observar que Kant se filiou a uma tradição
filosófica que estabeleceu a separação entre uma faculdade superior, a razão, e uma faculdade
sensitiva, as inclinações. Sendo assim, a independência da vontade de motivos empíricos está
estritamente relacionada com a fundamentação da moralidade kantiana, isso porque a
moralidade implica o conceito de autonomia, que é conseqüência da existência de uma
vontade livre de motivos sensíveis ou direções estranhas.
Kant precisou de uma liberdade transcendental relacionada à dimensão racional do
homem para construir a sua teoria moral. Seu argumento encontra fundamento na idéia
segundo a qual sempre que nos pensamos como livres reconhecemos a consciência da
possibilidade de autonomia. Por conseguinte, como ser racional, o homem é dotado de uma
vontade livre capaz da elevada função de permitir a moralidade, seria contraditório que esse
mesmo homem permanecesse sob tutela. E, assim, associada à idéia de liberdade está a de
autonomia, que, por um lado, é entendida como liberdade em relação a direções estranhas e,
por outro, como a liberdade da faculdade da vontade capaz de autolegislar.

III - A ética e o imperativo categórico


No contexto do Iluminismo Kant, com sua famosa teoria moral ressaltava o ser racional
268
como absolutamente responsável por sua conduta, consagrando uma ética das normas
contra as éticas finalistas. Nesse sentido, destacou que a busca pelo bem não poderia fazer
parte da moralidade, mas o cumprimento da lei pela lei, enfatizando, com isso, que a ética

264
Faculdade representativa de um ato ser ou não praticado em obediência a um impulso ou a motivos racionais.
265
Faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar, ponderar idéias universais; raciocínio, juízo.
266
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994: A803 / B831.
267
I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994: A802 / B830.
268
Ética do móbil: a ação pela própria ação.
132
significa a obediência à lei moral, lei esta que está em mim e que se identifica com a minha
consciência. A ética não poderia mais buscar o seu fundamento em certas concepções de bem,
ou seja, visões de mundo particulares, mas em algo capaz de fazer sentido de modo universal,
independente de credos, tradições etc. Trata-se da absoluta prioridade do justo sobre as
questões do bem viver. Destarte, filósofos contemporâneos como Habermas, por exemplo,
apontam a teoria moral kantiana a partir de três características fundamentais: 1 - o aspecto
cognitivista, ou seja, a crença na possibilidade de decidir as questões prático-morais com base
em razões, o que implica dizer que os juízos morais são passíveis de serem fundamentados; 2 -
o sentido formalista, pois elabora um princípio moral (imperativo categórico) limitado às
questões referentes à justiça e não ao “bem viver”; 3 - por fim, o caráter universalista, uma vez
que os juízos morais devem erguer uma pretensão de validade universal.
O formalismo moral de Kant refere-se à idéia de que a vontade racional deverá ser
orientada por princípios a priori (transcendentais), válidos universalmente, implicando a
capacidade do ser humano de agir segundo princípios ou determinar-se segundo a razão,
independentemente de qualquer inclinação pessoal. Segundo o próprio autor, os princípios
podem ser técnicos se valem para todos os seres racionais, mas condicionados pelo fim
particular que se almeja; podem ser denominados princípios da prudência condicionam-se ao
desejo e ao caráter do ser que age; e também podem ser denominados de princípios da
moralidade, princípios práticos e objetivos que são válidos para todos os seres racionais – não
decorrem de nenhum fim subjetivo, ou seja, empírico. O princípio moral por sua própria
natureza vale universal e incondicionalmente. Nesse sentido, a moral em Kant não precisa do
aspecto volitivo no sentido do “eu quero” para existir. Ao contrário, ela existe até mesmo
contrariando o “eu quero”. Com isso, Kant afastou o sentido do “eu quero” em favor do “eu
269
devo”. A ação adquire um valor moral, pois “superei meus próprios obstáculos quando agi
por dever”, independente de minhas inclinações sensíveis.
O princípio moral kantiano, denominado imperativo categórico, foi formulado pela
primeira vez na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Em uma de suas
formulações determina que se “Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua
pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
270
simplesmente como meio.” Tal princípio funcionaria como um teste a ser realizado pela
nossa própria consciência a fim de identificar se as intenções que fundamentam uma

269
BRITO, A. J. Revista Portuguesa de Filosofia. In: “Observações críticas à Crítica da Razão Prática”. Vol. XLIV,
1988: 544.
270
KANT, I. Os pensadores. In: “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. SP: Abril, 1973: 209.
133
determinada ação são moralmente boas. Ademais o imperativo categórico, segundo o próprio
autor nos adverte, não é algo inédito, mas uma variação da regra de ouro. No contexto do
Iluminismo, o imperativo configurou um exercício típico do pensar esclarecido (Aufklärung); um
modo de ser que não aceita ser guiado por outrem, mas que se coloca virtualmente na
perspectiva de todos os outros seres racionais, na medida em que abstrairia da sensibilidade e
buscaria “um ponto de vista universal”. 271
O imperativo categórico representa ma interrogação estruturada numa indispensável
compreensão das exigências de reciprocidade, numa comunidade ética idealmente antecipada.
Logo esse princípio moral serviria ao propósito de fornecer as condições de possibilidade para o
desenvolvimento de certo discernimento moral. Nesse horizonte, a validade de uma máxima
subjetiva somente poderia ser reconhecida pela razão como moralmente correta se
apresentasse uma obrigação moral que qualquer um pudesse desejá-la, por reconhecê-la como
válida, independente de suas visões de mundo particulares. Aqui está então o sentido da
prioridade do justo sobre o bem.

IV - As leis da liberdade: as leis morais e as leis jurídicas


Segundo Kant, o homem vive a tensão entre os impulsos (inclinações sensíveis) e a
razão, isso porque encontra, além das leis da natureza, as da liberdade denominadas de leis
jurídicas e leis morais. Leis que decorrem de dimensão transcendental e que nos revela um
status privilegiado – somos a causa dos fenômenos no mundo, ou como dizia Protágoras: “o
homem é a medida de todas as coisas”. Nesse diapasão, a legislação jurídica diz respeito às
ações sob o ponto de vista externo, destacando a mera conformidade com o que prescreve a
lei; o que configura o sentido de legalidade. As leis éticas ou morais, ao contrário, vinculam-se
às determinações das ações e revelam a moralidade. Assim, no caso da legislação jurídica
temos o sentido de liberdade como exercício do arbítrio e no caso da legislação ética, a
liberdade apresenta-se tanto no exercício externo quanto interno do arbítrio.
Na Metafísica dos costumes, Kant concentra seus esforços na clássica distinção entre a
legislação moral e a jurídica, assinalando para o problema inicial da filosofia do direito: a
distinção entre as duas esferas. Nesse sentido, o que efetivamente distingue as duas legislações
não é tão somente o fato de uma legislação ser interna e a outra externa, mas em particular a
idéia do dever como impulso. Portanto, para entendermos melhor essa idéia, temos que
considerar que toda legislação – como pondera Kant – possui dois elementos constitutivos, a

271
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995: 159.
134
saber: o elemento objetivo, que significa a representação da lei como necessária à ação e que,
portanto converte a ação em dever, e um elemento subjetivo, que liga a representação da lei
ao fundamento de determinação do arbítrio para realização de tal ação. No primeiro momento,
temos o que Kant denominou de conhecimento teórico da possibilidade da regra prática e, no
segundo, o dever como impulso.
“A legislação que erige uma ação como dever, e o dever, ao mesmo tempo
como impulso, é ética. Aquela, pelo contrário, que não compreende esta
última condição na lei e que admite também um motivo diferente da idéia do
próprio dever é jurídica. No que diz respeito à esta última, vemos facilmente
que estes motivos, diferentes da idéia do dever, têm que extrair-se de
fundamentos patológicos da determinação do arbítrio, das inclinações e
aversões e, dentre estas, das últimas porque tem que ser uma legislação que
obrigue, não um chamado atraente”.272

A implicação mais imediata desta distinção é o fato de que os deveres característicos da


legislação jurídica são externos, pois não exigem a idéia de um dever interior. Importa ressaltar
com certa cautela que é preciso não esquecer que a legislação ética, por ser mais ampla,
envolve também a legislação jurídica, o que justifica a afirmação de Kant a respeito da
legislação ética como relacionada ao dever em geral:

“A legislação ética converte também em deveres ações internas, porém não


excluindo as externas, senão que afeta a tudo o que é dever em geral. Mas
justamente por isso, porque a legislação ética inclui também em sua lei o
impulso interno da ação (a idéia do dever), cuja determinação não pode
transpor de modo algum em uma legislação externa, a legislação ética não
pode ser externa (ainda que de uma vontade divina), embora admita como
impulsos em sua legislação deveres que desprendem de outra legislação, ou
seja, de uma legislação externa, desde que sejam deveres. Disto se infere que
todos os deveres, simplesmente por serem deveres, pertencem à ética; mas
nem por isso sua legislação está sempre contida na ética”.273

Assim, teremos a legalidade se houver uma simples conformidade externa com a lei, “a
274
coincidência de uma ação com a lei do dever” e a moralidade quando o dever afigurar-se
275
como impulso da ação, ou seja, quando “a máxima da ação *coincidir+ com a lei”. Há,
contudo deveres interiores que não são éticos e deveres exteriores que não são jurídicos; há
deveres éticos diretos (moralidade) e deveres éticos indiretos (legalidade). Isso implica dizer
que todos os deveres são também deveres éticos; todo dever é considerado dever de virtude.

272
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 218-9.
273
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 219.
274
Idem, 1994: 225.
275
Idem ibidem.
135
276
Os atributos de interno e externo apenas sinalizam para a forma de adesão, observando ou
não o animus com o qual é cumprida uma ação. Nesse caso a liberdade se torna o ponto chave
ou o elo entre as duas esferas, se constituindo no conceito limite capaz de conferir sentido e
direção à conduta humana na esfera da vida em sociedade. 277 Assim as normas jurídica e ética
derivam da razão humana, que em si é legisladora.
A partir dessa concepção podemos afirmar que o direito identifica-se com a idéia de
autonomia. Para Kant, o conceito de direito coincide com o conceito de autonomia, pois “A
278
legislação própria da razão prática é a liberdade em sentido positivo, autonomia”. Essa
relação entre direito e autonomia exclui qualquer possibilidade de violência, menoridade e os
mais variados tipos de desrespeitos para com certas regras de convivência mútua. E, portanto
conceito de liberdade vincula-se necessariamente à idéia de uma sociedade, daí o sentido de
limitação recíproca, pois não podemos esperar que todos tenham motivação ética para o
cumprimento das leis. As leis morais e jurídicas são leis da liberdade que ordenam na medida
em que somos livres, portanto autônomos.

V - A liberdade interna e externa


Depois de apreciar essa distinção entre legislação interna e externa, Kant relaciona os
atributos interno e externo ao conceito de liberdade, para esclarecer e justificar o seu conceito
de direito. Surge, assim, outro critério de distinção que se baseia no sentido de liberdade
interna e liberdade externa, cuja esfera da ética vincula-se à liberdade interna e a esfera jurídica
à liberdade externa. O primeiro tipo de liberdade refere-se à faculdade de agir segundo leis que
a nossa própria razão nos fornece; o segundo, a jurídica, remete-nos à faculdade de agir no
mundo exterior, mas limitada pela mesma liberdade presente nas outras pessoas. Então, o
âmbito da moralidade diz respeito à liberdade interna e o âmbito da legalidade à liberdade
externa.
Na relação entre liberdade e dever não podemos vincular estritamente a liberdade
interna com os deveres para consigo próprio e a liberdade externa com deveres para com o
próximo. Na verdade, somos responsáveis por todas as nossas ações, primeiramente diante de
nossa própria consciência e depois, em alguns casos, diante do olhar dos outros. Ressalte-se
que no âmbito da ética, somos responsáveis frente a nós mesmos e na esfera do direito, somos

276
TERRA, R. R. A Política tensa: idéia e realidade na Filosofia da História de Kant. SP: Iluminuras, 1995: 79.
277
GALEFFI, R. A Filosofia de Immanuel Kant. Brasília: Unb, 1986: 194.
278
EISLER, R., apud ROHDEN, V. Racionalidade e Ação. In: “Razão Prática e Direito”. Porto Alegre: UFRGS, 1992:
128.
136
responsáveis frente à coletividade. Assim, podemos pensar a liberdade interna atuando nos
dois momentos distintos, ou seja, no âmbito da ética e na esfera jurídica, embora a relação
jurídica tenha como característica fundamental a intersubjetividade. Tal relação exige a
presença de dois seres humanos para a limitação recíproca da própria liberdade externa.
Por isso, no âmbito da legislação externa, as leis obrigatórias podem ser de dois tipos, a
saber: as naturais e as positivas. As leis externas naturais são aquelas cuja obrigação é
reconhecida a priori pela razão, ainda que não haja nenhuma legislação jurídica a seu respeito.
As leis externas positivas são aquelas cuja obrigação depende necessariamente de uma
legislação externa efetiva. É neste ponto que Kant, como um legítimo representante do
pensamento jusnaturalista, entende que as leis positivas encontram seu fundamento nas leis
naturais, o que equivale dizer que o direito se fundamenta na moral. A lei natural fundamenta a
autoridade do legislador, ou seja, confere a faculdade de poder obrigar outrem mediante seu
279
arbítrio. Nesse momento reforça a idéia do seu imperativo categórico no sentido de que
prescreve a todos a necessidade de se pôr no papel de um suposto legislador para observar a
possibilidade de universalização das máximas do agir. “Por conseguinte – afirma Kant -, deves
considerar tuas ações primeiro desde o teu princípio subjetivo: todavia podes reconhecer se esse
princípio pode ser também objetivamente válido”.280 Esse exercício nos permite conhecer nosso
arbítrio e conseqüentemente nossa liberdade.
Nesse caso Kant estabeleceu a relação entre liberdade e arbítrio quando destacou a
possibilidade da liberdade ser percebida no sentido de autodeterminação pela razão. O arbítrio
determinado diretamente pela razão pura é o livre-arbítrio, o que implica dizer que o homem é
livre por ser racional, ou, como pondera Rohden, “se o homem é capaz de determinar-se por
uma razão independente, ele é sob este aspecto livre do determinismo natural e tem uma
281
vontade própria, da qual derivam os conceitos e leis tanto morais como jurídicas”. É neste
horizonte que nosso autor afirma ser a liberdade o único direito inato. Embora reconheça a
existência de outros direitos inatos em À Paz Perpétua, é na Metafísica dos Costumes que
ressalta a condição de haver um único direito inato, que é a liberdade no sentido de
independência do arbítrio de outrem quando assinala que:

“A liberdade (independência do arbítrio necessitante de todo outro), na


medida em que pode coexistir com a liberdade de todo outro segundo uma lei

279
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 224.
280
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 225.
281
ROHDEN, V. Racionalidade e Ação. In: “Razão Prática e Direito”. Porto Alegre: UFRGS, 1992: 128.
137
universal, é o único direito originário, pertencente a todo homem em virtude
de sua humanidade”.282

Nesse sentido, complementando o conceito supra, Kant assevera na Fundamentação da


metafísica dos costumes que “a liberdade tem de pressupor-se como propriedade da vontade de
283
todos os seres racionais.” Conclui-se que o conceito de igualdade decorre dessa idéia de
liberdade como direito inato, pois todos são livres e, portanto igualmente entre si. A igualdade
é “a independência que consiste em não ser obrigado por outros senão àquilo a que também
284
reciprocamente podemos obrigar-lhes”. Na verdade, a idéia de igualdade, a qualidade do
homem como sui iuris, o sentido de ser íntegro e o conteúdo da formulação do imperativo
categórico já se encontram no princípio da liberdade originária o seu elemento constitutivo.

VI - A lei jurídica e a sociedade civil


No pensamento kantiano a lei jurídica não é algo inato, mas surge do acordo entre
indivíduos autônomos para justamente assegurar a realização da liberdade em sociedade. Esse
conceito torna-se um conceito limite que direciona a conduta dos indivíduos para uma vida em
comum. 285 Essa circunstância nos leva a pensar que este autor nega a origem do direito como
derivado da propriedade, pois o que seria a propriedade nos primórdios da sociedade senão o
reconhecimento de uma posse arbitrária? O conceito de posse em Kant funda-se sobre a inata
posse comum da superfície da Terra e sobre a vontade universal. Segundo afirma, só podemos
nos considerar possuidores de algo quando há o reconhecimento dessa posse de forma não
diretamente relacionada com a detenção física. Assim, o direito consiste em limitar as ações
ressaltando que a minha liberdade de me apoderar das coisas encontra seu limite na liberdade
do outro em agir da mesma forma. 286 E que desta forma direito se afigura como uma exigência
da razão que apresenta aos homens um procedimento para solucionar conflitos.
Foi dessa forma que Kant justificou o ingresso no estado de direito: a partir do conceito
de racionalidade. Trata-se de uma razão prático-jurídica e não pragmática, ou seja, uma razão
direcionada a interesses particulares independentes de qualquer moralidade. A racionalidade,
ao contrário, permite o reconhecimento recíproco e a unificação das vontades, logo Kant
sublinha, mais uma vez, que não é a experiência da violência como pensava Hobbes que conduz
o homem a uma existência coletiva, mas um princípio da razão. É a razão que nos impulsiona a

282
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 237.
283
KANT, I. Os Pensadores. In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. SP: Abril: 1974
284
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 237-8
285
GALLEFFL, R. A Filosofia de Immanuel Kant. Brasília: Unb: 1986.
286
LOCKE, John. Os pensadores. In: “O segundo tratado sobre o governo civil”. SP: Abril Cultural, 1973.
138
abandonar o estado de natureza, embora seja concebido como estado de direito privado em
favor de um estado de direito, no qual não há uma razão privada, mas um interesse comum e
um tribunal capaz de assegurar e reconhecer os direitos de todos. O estado de natureza se
configura como tal por não apresentar um poder político centralizado. Isto posto, o Estado para
o autor deve reconhecer em cada um a habilidade de ser seu próprio senhor, não permitindo
qualquer privilégio ou interesse especial protegido. A igualdade formal, que não é igualdade de
posses, mas de oportunidade, é uma conseqüência necessária do único direito inato: a
liberdade. Compreende-se, dessa forma, o típico egoísmo humano, o Estado pode e deve usar a
coerção mediante leis para senão eliminar, pelo menos controlar os abusos, realizando por
assim dizer, por meio da legislação civil, os princípios consagrados do direito natural,
fundamento racional à legislação positiva.
Segundo Norberto Bobbio (1909-2004), com a doutrina do contrato e do direito natural,
287
o Estado assume a figura de associação voluntária com vistas a defender alguns interesses.
Kant partiu em defesa desse modelo de Estado, cuja meta seria assegurar a liberdade de cada
um com base em uma lei universal racional, condenando o Estado eudemológico que pretendia
tomar para si a tarefa de tornar seus súditos felizes, já que a verdadeira função do Estado não
se confunde com esse intento, mas deve ser tão somente salvaguardar a liberdade que permita
a cada um buscar sua própria felicidade. Mais uma vez aparece aqui a prioridade das questões
de justiça sobre as questões de bem. Kant acreditava que havia uma tendência natural da
história humana para uma ordem jurídica universal, um ordenamento jurídico cosmopolita.
Na sua idéia do homem como cidadão do mundo ou cidadania mundial, presente no
texto “Idéia de uma História universal sob o ponto de vista Cosmopolita” e que reaparece no
opúsculo A Paz Perpétua e na Metafísica dos Costumes como Ius Cosmopoliticum, implica uma
espécie nova de direito público em geral, distinto do direito privado que existia no Estado de
Natureza, do direito público interno do Estado Civil e do direito público externo da ordem
internacional.

VII - A doutrina do Direito


Kant define a doutrina do direito como um conjunto de leis que se apresentam como leis
externas ou exteriores, que constituem o que se chama direito positivo, cujo interessado é o
jurisperito (Iurisperitus), aquele que conhece as leis externas em sua aplicação aos casos que se
apresentam na experiência, estudo denominado pelo nome técnico de jurisprudência

287
BOBBIO, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Ednub, 1992, p.50.
139
(Iurisprudentia). Além da doutrina do direito e da jurisprudência encontramos a Ciência do
Direito, que corresponde ao conhecimento sistemático da doutrina do direito natural (Ius
naturae). Nesse sentido, para compreendermos o direito como idéia da justiça é preciso
abandonar o campo empírico e dirigir-se à razão pura. Kant entende que o conceito de direito
diz respeito a uma relação externa entre pessoas cujas ações implicam-se mutuamente. Não se
trata de uma relação entre um arbítrio e um desejo, mas entre arbítrios, e nessa relação
recíproca não interessa muito saber o fim a que se propõem, mas sim a forma da relação; em
última análise, trata-se de conciliar a liberdade de um com a liberdade do outro, isto é, a
liberdade em sociedade.
Dessa forma, Kant formula pela primeira vez o seu conceito de direito como “o conjunto
das condições, por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um
288
outro segundo uma lei universal da liberdade”. O princípio universal do direito expressa a
necessidade de coexistência dos arbítrios segundo uma lei universal. Uma lei universal do
direito que determina que devo agir externamente de forma tal que preciso sempre respeitar a
liberdade do arbítrio do outro como uma obrigação que me determina a razão, isto, é, “age
exteriormente de maneira que o uso livre do teu arbítrio possa estar de acordo com a liberdade
289
de qualquer outro, segundo uma lei universal”. Sendo assim, desdobrando o conceito de
direito, temos que levar em conta os seus três elementos constitutivos. O primeiro diz respeito
apenas às relações externas, ou seja, é um direito intersubjetivo; o segundo estabelece a
relação entre arbítrios, pois a intersubjetividade pode ocasionar lesões nos outros; o terceiro
não se preocupa com a matéria do arbítrio, mas tão somente com a forma, pois o direito não
concerne aos objetos particulares. O direito, aparentemente mais do que a moral, está
relacionado à coerção, pois está diretamente ligado a esse sentido de obrigar alguém a agir de
uma forma e não de outra. O termo coerção pode ser entendido como a possibilidade de
regular as relações humanas a partir de leis externamente válidas. Quando usamos a expressão
coerção legal limitamos esse sentido para um tipo específico de controle baseado em leis
positivas.
Num estágio pré-positivo, há a possibilidade de conseguir provocar no outro certa
conduta, mas sem garantias de que tal fato aconteça efetivamente. A coerção em que as leis
positivas se vinculam e que podemos denominar de “coerção recíproca universal implica que se
desista de procurar convencer os outros do que é ou não justo, e se fique limitado a regular a

288
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994; 230.
289
Ídem, 1994: 231.
140
290
relação entre arbítrios, isto é, sem nenhum componente ético ou intencional.” À primeira
vista, pode parecer contraditório relacionar o direito com a liberdade mediada pela coerção,
291
mas inspirado em Cristiano Thomasius (1655-1728), Kant postula uma relação intrínseca
entre direito e coerção. Assim, explica como funciona tal coerção capaz de salvaguardar a
liberdade, lembrando que:

“A resistência que é oposta àquilo que impede um efeito serve como auxiliar
para este efeito, e concorda com o mesmo. Tudo aquilo que é injusto é um
impedimento para a liberdade enquanto esta está submetida a leis universais
e a coerção é um obstáculo ou uma resistência à liberdade. Quando certo uso
da própria liberdade é um impedimento para a liberdade segundo leis
universais (ou seja, é injusto), então a coerção oposta a tal uso, enquanto
serve para impedir um obstáculo posto à liberdade, está de acordo com a
própria liberdade, segundo leis universais, ou seja, é justo”.292

Esta passagem indica que há certo uso da liberdade que se configura como obstáculo a
293
outro tipo de liberdade regrada e que a coerção, nesse sentido, é indispensável ao direito.
Com isso, exercer a liberdade a qualquer custo ou o mal praticado por alguém fere a liberdade
de outrem. Esse modo de agir se afigura como uma forma deturpada de liberdade no sentido
da capacidade do homem como ser racional. A liberdade exterior compatibilizada com a
liberdade dos demais é a forma universalizada da possibilidade de convivência humana, ou seja,
a coexistência pública dos homens, a criação de um espaço público sem constrangimento
injusto. Porém, se a razão implica liberdade, se a autodeterminação é algo indisponível e
envolve necessariamente um espaço público, fica excluída qualquer possibilidade de uma
liberdade irrestrita ou irracional porque iria contradizer essa relação que fundamenta a moral e
o direito e que ademais confere status privilegiado ao homem em relação à natureza. O acordo
entre liberdade e coerção já havia sido apontado no texto “Sobre a expressão corrente: isto
pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática”(1793), quando afirma que a lei da
coerção recíproca corresponde à liberdade de cada um sob o princípio da liberdade universal,
assemelhando com a “lei da igualdade da ação e reação”.294 Esse vínculo da liberdade com a
lei foi herdado por Kant do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, que entendia a liberdade
como a obediência à lei que o homem prescreve a si mesmo.295 Ora, o conceito de liberdade é

290
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994; 231.
291
Concepção atribuída a Thomasius. REALE, G. e ANTISERI, D. História da Filosofia.. SP: Paulus, 1990: 817.
292
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 231.
293
Cf. a definição Romana: “Liberdade é a faculdade natural de fazer o que se quer, desde que o não impeça a força ou a lei”(
Institutas, I, 3,2). Cf ainda Aristóteles: “Livre é o homem que tem a si mesmo como fim e não o outro”( Metafísica, 892b) .
294
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 232.
295
ROUSSEAU, J.J. Do Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
141
comum à doutrina do direito (relacionada à condição formal da liberdade externa) e à doutrina
da virtude (relacionada à condição formal da liberdade interna). A ética e o direito afirmam,
portanto a relação da liberdade com a lei.
No momento o que importa é perceber que ao pensarmos o direito pensamos também
a liberdade na idéia do arbítrio de todos unificados no conceito de vontade universal
legisladora. E a justiça consiste exatamente no respeito à vontade universal. A idéia de justiça
liga-se ao sentido de um estado jurídico, ou seja, aquela relação dos homens entre si que
contém as condições sob as quais unicamente cada um pode torna-se partícipe de seu direito.
E o princípio formal de sua possibilidade passa a ser considerado a partir da idéia de uma
vontade universalmente legisladora. Isto se chama justiça pública. Dessa forma surge o direito
público da necessidade de coexistência inevitável, a partir de um ordenamento instituído
mediante a publicidade de leis para que todos possam usufruir seus direitos, isto é, uma
Constituição. 296
A relação da Constituição, que consiste na vontade unificada com o sentido de Estado
civil, somente é pensável associada ao conceito de autonomia, uma vez que falar em direitos
exige a existência de um “a priori originário”, a liberdade, o que, por sua vez, vincula Kant à
concepção liberal, justificando sua definição do direito a partir do conceito de liberdade.
Podemos até assinalar que o autor da Metafísica dos costumes formulou uma teoria da justiça
como liberdade e que muito pode ter influenciado na elaboração dos fundamentos teóricos do
Estado Liberal.297

296
KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. Madrid: Editorial Tecnos, 1994: 311.
297
BOBBIO, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Ednub, 1992, p.73-4.
142
CAPÍTULO IX

O positivismo jurídico

1 - A origem do termo positivismo


Desde o advento do Renascimento o homem modificara sua maneira de pensar o mundo
e a própria vida. A partir do pensamento científico-racionalista a história dos homens sofreu
transformação de uma visão idealista para uma visão imanente, enfraquecendo, com isso, não
só o domínio político da Igreja, como também as formas religiosas de interpretação da
realidade, tendo a revelação cedido terreno definitivo à razão. A busca pela autonomia racional
(livre exame e uso público da razão) em todas as questões experimentou uma consciência
realista da existência. E nesse contexto racionalista-cientificista surge uma escola denominada
positivismo que viria a influencia o pensamento ocidental ao longo dos séculos XIX e XX. O
surgimento do positivismo, como resposta ao conjunto de indagações às perplexidades vividas
pelos homens pós-revoluções francesa e industrial, está atrelado à crise sócio-econômica
propiciada pelo aprofundamento do capitalismo e as contradições advindas desse modelo de
produção industrial,.
Auguste Comte (1798-1857), grande formulador do pensamento positivista é oriundo da
Escola Politécnica de Paris, que por volta de 1817 passou a tomar lições do pensador Saint
Simon (1760-1825), conhecido como um dos grandes intérpretes da sociedade industrial do seu
tempo. Das lições tomadas do propalado socialista utópico, Comte desenvolveu sua doutrina
levando em consideração a idéia de uma ciência social capaz de formular, cientificamente,
princípios para ação politicamente eficaz por parte das autoridades públicas. Todavia, por volta
de 1824, Comte rompeu com seu antigo mestre por considerar suas teorias insatisfatórias ante
o sistema científico positivista. Assim como Saint-Simon, o fundador do positivismo também
recebeu ainda influência das idéias do Marques de Condorcet (1743-1794) quanto à idéia de
progresso como lei da história da humanidade, uma vez que para Comte a natureza da filosofia
positiva passa por uma abordagem essencialmente histórica, cujo dado significativo aponta para
o desenrolar do progresso do espírito humano. E para completar a constituição do pensamento
comteano, não se pode olvidar a forte influência da física de Issac Newton (1642-1727) no
tocante ao sistema positivista, isso porque a ordem matemático-astronômica serve de suporte
teórico ao sentido de ordem social como pressuposto ao progresso humano.
143
Segundo Raymond Aron em seu livro Etapas do pensamento sociológico, destacam-se
três fases ou etapas da evolução do pensamento filosófico comteano. A primeira entre 1820 e
1826 – Opúsculos de filosofia Social: Apreciação Sumária do Conjunto do Passado Moderno
(1820); Prospecção dos trabalhos Científicos Necessários para reorganizar a Sociedade (1822);
Considerações Filosóficas sobre as Idéias e os Cientistas (1825); Considerações sobre o Poder
espiritual (1825-1826). Nessa fase, Comte reflete a realidade de seu tempo, descreve e
interpreta o momento histórico vivido pela sociedade européia no princípio do século XIX. A
segunda fase está constituída pelas lições do Curso de Filosofia Positiva (1830-42). Neste
momento, Comte observa a história da Europa como se configurasse toda a história do gênero
humano assumindo um caráter exemplar. A terceira etapa se afigura no momento do
surgimento da obra intitulada Sistema de Política Positiva ou Tratado de Sociologia, instituindo
a Religião da Humanidade (1851-54). Nesta fase, Comte defende a sua idéia de unidade da
história humana através de uma teoria da natureza humana e da natureza social.
Nesse ambiente de industrialização e reorganização da vida sócio-política, causada pelas
revoluções industrial e francesa de 1789, os pensadores desse período impuseram a si mesmos
a tarefa de interpretar o momento como também transformá-lo. Mediante a isso o positivismo
é concebido como guia reformador teórico-político da sociedade. Destarte o positivismo de
Auguste Comte busca na análise dos fatos explicação científica para o fenômeno social e as suas
formas de previsibilidade. Comte visa permanentemente a objetividade pela positividade, ou
seja, a ciência tem o encargo de explicar todos os fenômenos existentes, sejam eles naturais ou
sociais. Nesse sentido, a ciência é instrumento de verificação da realidade, e sua resposta torna-
se lei. Nesse sentido Comte sintetiza que:

“Vemos, pelo que precede, que o caráter fundamental da filosofia positiva é


tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais e invariáveis, cuja
descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o
objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente
inacessível e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas,
sejam primeiras, sejam finas” 298

A exemplo dos primeiros cientistas sociais, Comte adotou o método de investigação das
ciências naturais, tanto assim que chamou sua sociologia de física social, procurando identificar
na vida social as mesmas relações e princípios com os quais os cientistas explicavam a vida
natural. Dessa forma o positivismo como corrente teórica sistematizada procurou não só
compreender os fenômenos sociais como também prevê-los pela sistemática das ciências

298
COMTE, Auguste. Os Pensadores. In: “Curso de filosofia positiva”. SP: Abril, 1973: 13.
144
naturais, se definindo como uma superação às visões teológica e metafísica da realidade. Comte
concebeu a sociedade como um organismo constituído de partes integradas e coesas. Por esse
motivo o positivismo foi chamado de teoria organicista, isso porque procurou obter, através do
exemplo da biologia, objetividade e êxito nas formas de controle sobre os fenômenos estáticos.
O conhecimento positivo, organizador da vida social pelas mãos da ciência, pretende a partir de
sua concepção de história, liquidar com o antigo regime, inaugurando uma nova ordem política,
industrial, econômica e científica, construindo, por conseguinte a crença no progresso moral.
A característica marcante do Positivismo enquanto uma importante corrente de
pensamento está na absolutização da ciência, único conhecimento possível na verificação dos
fenômenos, guia seguro para afastar a realidade da fantasia e do erro. Nesse sentido, o
positivismo marca o ingresso do homem, definitivamente, no mundo da pesquisa técnico-
industrial, momento político em que a última palavra pertence ao sim ou ao não da ciência.
Com o pensamento positivista o direito adquire o status de ciência ao definir a lei como objeto
de pesquisa científica e a normatização como critério metodológico de investigação. O direito
se torna elemento de grande preocupação do mundo contemporâneo. O Estado, uma das
tantas construções burguesas, talvez o mais eficiente dentro da perspectiva liberal, necessitava
de um mínimo de estabilidade política para a nova ordem econômica, nesse caso, a lei torna-se
o parâmetro e medida das relações sociais, a estabilidade desejada para o desdobramento do
comércio, dos negócios e da produção industrial. Portanto o direito encontrou no positivismo o
elemento histórico que faltava para sua afirmação enquanto saber científico, e nesse caso, o
próprio positivismo projetou o direito, transformando o ordenamento jurídico em objeto
científico. É preciso ressaltar que o positivismo jurídico é um fenômeno do século XIX que não
tem implicação direta com as lições de Comte, mas que toma deste o corolário de
cientificidade. O termo positivismo jurídico não tendo origem no pensamento do grande
filósofo francês, não significa que este preâmbulo seja desconsiderado. Entendemos que essa
pequena introdução seja suficiente para aparar as arestas quanto ao real sentido de
positivismo.

2 - As escolas Jurídicas
Segundo Ana Lúcia Sabadell, 299 a expressão “escola jurídica” está relacionada à visão de
como um grupo de autores compartilha a função, regras e validade dos conteúdos do direito.
Nesse sentido, cada escola jurídica oferece respostas a três indagações: o que é o direito, como

299
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 17.
145
funciona o direito e como deveria ser configurado esse direito. Várias escolas jurídicas surgiram
ao longo dos anos, cada qual caracterizando sua época e sua cultura jurídica, entrecortando
diversos enfoques doutrinários, apresentando pontos de continuidade entre si ou não; escolas
que se inspiraram em outras dando continuidade às suas concepções. De um modo geral,
classificam-se as escolas em dois grandes grupos: as escolas moralistas e positivistas. A escola
moralista é aquela que valoriza o direito natural e se caracteriza por um pensamento
jusnaturalista. A escola positivista é aquela que entende o direito como um sistema de normas
que regula o comportamento social, uma vez emanadas de um corpo político determinado pela
sociedade denominado de Estado, posição superior capaz de compor e dirimir conflitos
mediantes leis constituídas racionalmente. Dessa forma escolhemos as escolas Histórica do
Direito, Exegese e o Positivismo Jurídico para apresentar de, um modo geral, o sentido do
positivismo jurídico.

3 - A Escola Histórica ou Romântica


A escola Histórica ou romântica representou uma tendência importante no quadro anti-
racionalista da primeira metade do século XIX. Na verdade, o historicismo foi um movimento
filosófico-cultural contra a razão iluminista e que no âmbito jurídico pretendia a dessacralização
do direito natural. Assim, no campo jusfilosófico, o historicismo se configurou na Escola
Histórica do Direito, em particular no pensamento de Friedrich Karl Von Savigny (1779-1861),
reclamando uma visão mais concreta e social do Direito, comparando-o ao fenômeno da
linguagem. Para esse jurista direito e linguagem apresentam um início anônimo e visam
atender tendências e interesses múltiplos de um povo. Ressalta-se aqui uma advertência de
Norberto Bobbio: “Note-se bem que escola histórica e positivismo jurídico não são a mesma
coisa; contudo, a primeira preparou o segundo através de sua crítica radical do direito natural”.
300

Ao que parece, tem-se pela primeira vez uma refutação filosófica ao direito natural.
Savigny invocou contra a lei escrita, ou seja, a lei abstrata e racional, a força viva dos costumes,
o “espírito do povo”, pois temia o perigo de leis destituídas de eficácia. Para Savigny, o direito
vive na consciência popular porque é do povo que ele nasce. Trata-se do espírito do povo
(Volksgeist) que produz o direito positivo. A função legislativa seria, portanto, a expressão da
necessidade de dar ao direito positivo uma existência exterior cognoscível. Acerta-se que
Savigny respirou a atmosfera romântica dos alemães de Heidelberg, recebeu influência de

300
BOBBIO, N. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995: 45.
146
vários autores como: Edmundo Burke (1729-1797), considerado um dos precursores do
historicismo político-jurídico; Joseph De Maistre (1754-1821); Justus Moser (1720-1794) e
Gustav Hugo (1765-1844) que só considerava o direito positivo como objeto da ciência, onde
sua obra fundamental Da Vocação de nosso Tempo para a Legislação e a Jurisprudência (1814),
objeta a codificação, além da obra que marcou o grande florescer do Direito romano na
Alemanha, Sistema de Direito Romano Atual (1840).
Assim, a Escola Histórica do direito não foi precursora do positivismo jurídico, mas de
certas correntes jusfilosóficas como, por exemplo, a escola sociológica e a escola realista que,
no final do séc. XIX, se posicionaram criticamente ao próprio juspositivismo. Conforme Bobbio,
“O fato histórico que constitui a causa imediata do positivismo jurídico deve, ao
contrário, ser investigado nas grandes codificações ocorridas entre o fim do séc.
XVIII e o início do séc. XIX, que representaram a realização política do princípio da
onipotência do legislador”.301

Do ponto de vista histórico sustenta-se que as codificações foram incentivadas pelo


pensamento iluminista que congregou a idéia de um sistema de normas racionalmente
elaboradas com a exigência de um código imposto pelo Estado; exigência dos novos tempos a
partir do momento em que os valores burgueses passam dominar a cena sócio-econômica. Foi
nesse momento que houve certa identificação com o positivismo jurídico – o direito como
expressão de uma autoridade legitimada para legislar.
Observando as características da Escola Histórica ressalta-se um traço fundamental: a
intenção de substituir um olhar generalizante e abstrato da história humana por uma visão que
considera o homem em sua individualidade. Enquanto os racionalistas consideravam o homem
como integrante de uma humanidade abstrata, o historicismo focaliza o seu caráter individual.
Bobbio enumera cinco características da Escola em apreço: 1 - Valorização da
individualidade/diversidade histórica – pretende-se a superação do entendimento dos
jusnaturalistas, segundo o qual é possível falar em homem com caracteres sempre iguais e
imutáveis (De Maistre). 2 - Valorização do sentido irracional na história/há impulsos e paixões -
a mola mestra da história não é a razão, mas o elemento passional e emotivo do homem. 3 -
Valorização da descrença no progresso iluminista – há certo pessimismo antropológico porque
não acredita nos magníficos destinos e progressos da humanidade (Burke). 4 - Idealização do
passado – valorizam o passado, as origens. Os iluministas desprezavam o passado e zombavam
da ingenuidade e ignorância dos antigos (Justus Moser) 5 - Valorização da tradição, instituições

301
Idem, 1995: 54.
147
e costumes da sociedade – esta idéia foi difundida por Herder e Burke que valorizavam os
costumes formados através de um desenvolvimento lento e secular.
A escola histórica do direito assinalou reflexões jurídicas a partir desse novo modo de
pensar o homem e sua história. Nesse sentido, Bobbio observa que Savigny apresentou traços
importantes no interior desse pensamento, a saber: 1. A impossibilidade de um direito único e
igual em todos os tempos e lugares, pois o direito passa a ser visto como um produto da
história; 2. O direito nasce do sentimento de justiça e não do cálculo racional; 3. Os perigos da
cristalização do direito numa única coletânea jurídica – perigo da codificação do direito
germânico; 4. Reviver o antigo direito germânico mais adequado ao povo alemão; 5.
Valorização das normas consuetudinárias que expressam verdadeiramente uma tradição, o
direito espontâneo. O costume é um direito que nasce diretamente do povo.

4 - A Escola de Exegese
Outra escola importante é a Escola de Exegese, que, em sentido amplo, significava a
interpretação passiva dos Códigos. Para essa escola o direito está feito, portanto o estudo do
direito deve ser substituído pelo estudo dos códigos. Podemos enumerar algumas causas para
o seu advento, a saber: 1 - Com o surgimento dos códigos emergiu também a necessidade de
interpretar a letra da lei, sem recorrer a outras fontes como costume, jurisprudência, doutrina
etc. Para estes, os juristas visavam caminhos mais simples para resolver conflitos; 2 - A crença
na vontade do legislador expressa de modo seguro e completo e a necessidade de limitar-se
aos ditames dessa autoridade legislativa; 3 - A possível terceira causa é a tripartição dos
poderes, fundamento ideológico da estrutura do Estado moderno, que limita o juiz na sua
esfera de competência, afigurando-se apenas através da seguinte metáfora: “a boca através da
qual fala a lei”; 4 - O princípio da certeza do direito, ou seja, a idéia de que o direito fornece
um critério seguro de conduta que permite antecipar os resultados – uma regra certa, um
processo lógico; 5 - As pressões políticas que foram operadas pelo regime napoleônico em
favor do ensino acadêmico centrado somente no direito positivo, excluindo-se assim as
concepções das teorias gerais do direito e as concepções jusnaturalistas.
As características fundamentais dessa escola são: 1 - Desvalorização da importância e
significado do direito natural para o jurista; 2 - Concepção rigidamente estatal do direito: as
normas jurídicas legítimas são aquelas impostas pelo Estado; 3 - Interpretação da lei fundada
no legislador: se a lei é manifestação da vontade do Estado, busca-se na vontade do legislador a
correta interpretação da lei nos casos de obscuridades e lacunas; 4 - O culto ao texto da lei: o
148
operador do direito deve seguir rigorosamente o que está escrito; 5 - O respeito pelo princípio
de autoridade: os primeiros comentadores do código gozaram de grande prestígio e
influenciaram inúmeros juristas posteriores.
A tese fundamental da Escola é a de que o Direito, por excelência, é o revelado pelas
leis, que são normas gerais escritas emanadas pelo Estado, constitutivas de direito e
instauradoras de faculdades e obrigações, sendo o Direito um sistema de conceitos bem
articulados e coerentes, não apresentando senão lacunas aparentes. O verdadeiro jurista deve
partir do Direito Positivo, sem procurar respostas fora das leis. Surge assim a idéia de uma
Dogmática Jurídica302 conceitual ou uma Jurisprudência 303
conceitual, como objeto do jurista.
Significa dizer que existe uma ratio iuris específica, ou seja, uma interpretação conceitual de
regras do Direito. Essa concepção (normativista e conceitual do Direito) compreendia que a lei
deveria ser atingida em seu espírito e, convém ressaltar que a interpretação se limitava a um
trabalho rigorosamente declaratório. Qualquer mudança na lei deveria seguir o processo
legislativo.

5 - O surgimento do positivismo jurídico


Norberto Bobbio aponta, no livro O positivismo jurídico, alguns acontecimentos que
foram importantes para o surgimento do positivismo jurídico, porquanto formularam críticas ao
direito natural. O exemplo clássico dessa crítica foi a reflexão anti-racionalista elaborada pelo
historicismo do séc. XIX, que propiciou o desenvolvimento de certo desencantamento em
relação ao direito natural. O historicismo compreendia o homem na sua individualidade, ao
contrário da corrente jusnaturalista que considerava a humanidade abstratamente.
No campo jusfilosófico, a corrente historicista se configurou a partir da denominada
escola histórica do direito, na Alemanha, entre o fim do século XVIII e o começo do séc. XIX
encontrando em Savigny seu maior expoente. Todavia, a obra que antecipa o pensamento da
escola histórica foi a obra de Gustavo Hugo sob o título Tratado do direito natural como
filosofia do direito positivo de 1798, na qual este autor concebe o direito natural como um
conjunto de considerações filosóficas sobre o próprio direito positivo, ou seja, o direito natural

302
Dogmática jurídica – ciência empírica do direito positivo. Objeto: norma posta pelo Estado.
303
No sentido romano jurisprudência significava o conhecimento das coisas divinas e humanas, se confundia com a
própria Filosofia. Na verdade eram os princípios que constituíam o melhor da preocupação em realizar o justo. Os
romanos não atribuíram a característica de ciência, mas a de juris-prudentia, ou seja, prudência do direito, o que
nos remete a Aristóteles em sua classificação das virtudes, em particular o termo Phrônesis fundamental para a
ação honesta, leal e justa. A juris-prudentia estaria situada entre o logos (razão) e o ethos (prática). No sentido
moderno, temos jurisprudência como: 1. conjunto das ciências do Direito que busca o conhecimento do Direito
Público e Privado (Radbruch); 2. disciplina jurídica no sentido geral (Austin); 3. prática dos tribunais (Capitant);
149
passa a ser uma filosofia do direito positivo. Observa-se que este direito positivo significa
aquele direito que existe ou pode existir em qualquer Estado. Com essa obra Hugo opera a
passagem do jusnaturalismo (lato sensu) para o pensamento juspositivista, uma vez que esgota
a tradição jusnaturalista, contribuindo assim, para o surgimento de um novo modo de
considerar o direito.
Segundo Miguel Reale (1910-2006), na obra Filosofia do Direito, antes da Revolução
Francesa, o direito estava dividido em sistemas particulares, ou seja, cada região possuía seu
sistema de regras. Tratava-se de um sistema jurídico complexo constituído pelos usos e
costumes, pelos preceitos do direito Romano, canônico e a opinião dos doutores, além do
direito natural. Percebiam-se abusos e fraudes. Diante dessa obra legislativa multifacetada e
empírica comprometida pela força dos interesses, restou à Revolução Francesa de 1789, levar a
cabo a tarefa de materializar seus ideais, dentre eles a igualdade jurídica. Dois princípios se
tornaram concretos: a igualdade perante a lei e a lei geral para todos.
Compreende-se, portanto, o grande entusiasmo que provocou o Código Civil
Napoleônico, de 1804, representando um corpo harmônico e lógico de preceitos, como
expressão da razão, capaz de atender a todas as hipóteses ocorrentes na vida, de maneira que
tudo já estivesse de certo modo ordenado no sistema legislativo. O surgimento dessa nova
postura consistia na defesa intransigente do indivíduo e de suas iniciativas, na liberdade e na
segurança das relações jurídicas, na proteção da propriedade privada, como o individualismo
econômico a concebia. Portanto, com a promulgação desse código fortaleceu-se a convicção de
que a sua tarefa fundamental deveria consistir em interpretar os textos de maneira autêntica.
Não admitiam lacunas, bastaria o trabalho de interpretação, para obter-se respostas
convenientes a todas as lides e demandas. O juiz através de um trabalho de exegese poderá
sempre encontrar uma solução para cada caso. Essa visão de mundo propiciou o surgimento da
Escola de Exegese, na França, reunindo em seu seio os maiores civilistas da Europa.
O positivismo jurídico apresenta o Direito como avalorativo, enfatiza a separação entre
juízos de fato (o direito tal qual é) e juízos de valor (o direito como deveria ser). Nesse sentido,
o positivismo entende o Direito como Ciência, cuja validade da norma jurídica decorre da sua
origem em um dado ordenamento jurídico, ao passo que a justiça decorre da sua validade.
Segundo Bobbio, existe uma ordem de sete problemas fundamentais nessa doutrina: 1.
O positivismo jurídico compreende o direito como um fato e não um valor. Isto significa dizer
que o jurista deve estudar o direito do mesmo modo como o físico estuda a realidade natural,
não formulando juízos de valor. Nesse sentido, o termo direito se afigura como avalorativo ou
150
não valorativo. O direito não recebe o qualificativo de bom ou mau. Deste modo de ver surge
uma teoria da validade do direito denominada formalismo jurídico, cuja validade do direito
repousa na sua estrutura formal; 2. O direito é definido em função do conceito de coação,
situação esta que propicia o aparecimento de uma teoria chamada teoria da coatividade do
direito. Observa o autor supracitado que este caráter do direito não é exclusividade do
juspositivismo, pois fora apresentado pelo jusnaturalista Christian Tomasius (1655-1728); 3. A
teoria da legislação como fonte do direito apresenta relação entre lei e costume, admitindo
apenas o costume secundum legem e eventualmente o praeter legem; 4. O positivismo jurídico
compreende a norma como um comando (teoria da norma jurídica), implicando uma teoria
imperativista do direito; 5. A teoria do ordenamento jurídico considera o conjunto de normas
jurídicas vigentes numa sociedade e implica uma teoria da coerência e da completude desse
ordenamento jurídico; 6. O positivismo sustenta a teoria da interpretação mecanicista que
consiste em enfatizar o aspecto declarativo em detrimento de uma análise criativa ou
produtiva. 7. O positivismo jurídico sustenta, ainda, a idéia da obediência absoluta à lei.
De acordo com os argumentos de Bobbio, “O positivismo jurídico nasce do esforço de
transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas
304
características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais”. Estamos no âmbito da
avaloratividade do direito enquanto ciência, ou seja, na separação entre juízos de fato e juízos
de valor. A ciência deve excluir de sua esfera juízos de valor, pois pretende um conhecimento
objetivo da realidade. Este é um traço fundamental na separação entre o mundo antigo e o
moderno: o homem moderno renuncia a visão metafísica da realidade.
O positivismo jurídico estuda o direito tal qual é e não como deveria ser, ou seja, o
juspositivista estuda o direito real sem se vincular com um suposto direito ideal. Observa-se,
para fins didáticos, que o conceito de valor não se confunde com o de validade, uma vez que
uma norma jurídica é válida quando faz parte de um ordenamento jurídico real, ou seja,
efetivamente existe em uma determinada sociedade. O valor de uma norma jurídica indica a
qualidade de tal norma conforme sua relação com um suposto direito ideal. Uma norma
jurídica será justa quando corresponder a esse direito ideal. Encontramos aqui dois critérios
independentes entre si. Para o juspositivista há uma redução da concepção valorativa na
concepção validativa, ou seja, uma determinada norma será válida se pertencer a um
ordenamento jurídico e, portanto, justa (legítima).

304
BOBBIO, N. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995: 135.
151
Com a distinção entre juízos de valor e juízos de fato, há uma separação entre ciência do
direito e filosofia do direito. O juspositivista estuda o direito independentemente de juízos de
valor, enquanto que o filósofo do direito considera imprescindível investigar o fundamento e a
justificação do direito. Segundo Bobbio, a filosofia do direito pode ser definida como o estudo
ou investigação acerca do direito a partir de um certo ponto de vista valorativo. Dessa
dicotomia podemos observar duas possibilidades para definir o direito, a saber: a definição
científica e a definição filosófica. Uma definição científica tem como característica o fato de ser
avalorativa e define o direito como ele é; uma definição filosófica pode ser considerada
ideológica, ou valorativa ou deontológica, pois define o direito tal como deve ser para
plenitude de determinado valor. As definições valorativas apresentam uma estrutura
teleológica, ou seja, definem o direito relacionado a um fim (telos). As mais tradicionais
definem o direito como um ordenamento jurídico necessário para alcançar a justiça, ou ainda o
bem comum. 305 A justiça, ou o bem comum, ou ainda a liberdade individual são valores que o
direito deve realizar. As definições juspositivistas são definições neutras, o direito é definido
como uma simples técnica.
A partir dessa relação entre direito natural e direito positivo, Norberto Bobbio enumera
seis critérios para distingui-los um do outro, a saber: 1 - O primeiro critério baseia-se na
antítese universalidade-particularidade: o direito natural é universal, o direito positivo
particular; 2 - O segundo critério repousa sobre a diferença entre imutabilidade e mutabilidade:
o direito natural é imutável; o direito positivo é mutável; 3 - O terceiro e mais importante
critério refere-se à fonte do direito: o direito natural funda-se no poder da razão, o direito
positivo, no poder do povo; 4 - Este critério refere-se ao modo pelo qual o direito é conhecido
por seus destinatários: o direito natural é conhecido pela razão; o direito positivo é conhecido
através de uma declaração de vontade; 5 - Este critério concerne ao objeto de cada direito: o
comportamento regulado pelo direito natural poderá ser considerado bom ou mau por si
mesmo; o comportamento observado pelo direito positivo depende da sua tipificação para ser
justo ou injusto; 6 - O último critério refere-se à valoração das ações: o direito natural
estabelece o que é bom; o direito positivo, o que é útil.
É preciso não perder de vista a importância do direito natural para a reflexão jurídica e
que este direito não pode ser considerado como mera filosofia do direito positivo, mas está
presente em todas as dimensões da juridicidade. O direito natural seria aquele que a razão
ensina aos homens e o direito positivo aquele organizado por um determinado povo, em uma

305
Cf. a definição do direito em Kant
152
determinada época. Outrossim, o jusnaturalismo, ao contrário do juspositibismo, enseja uma
reflexão necessária: o direito não é um conjunto de normas, mas uma cadeia de princípios cujo
papel é refletir a condição humana a partir de relações sociais, que por sua vez devem ser
tomadas e limitadas pelo bem comum; o papel da norma é o dado a posteriori, e não a pripri,
esmagando com isso as possibilidades de renovação e mudança no mundo das relações
humanas. Não se quer dizer com isso que o direito não seja fator de segurança no mundo
político, pelo contrário, apenas se conclui, negando à normatização como possível origem única
do Estado.
Jusnaturalismo como juspositivismo são escolas datadas, mas que ensejam reflexões
importantes na ordem dos acontecimentos interpretados à luz do presente: amorfo de idéias,
vazio de conteúdo.
153

CAPÍTULO X

A crítica tridimensional realiana ao normativismo-lógico de Kelsen

Hans Kelsen foi magistrado da Corte Constitucional da Áustria entre os anos de 1921 e
1930, considerado iniciador do que se denomina de lógica jurídica e autor intelectual da
Constituição Republicana Austríaca. Sua obra mais conhecida é a Teoria Pura do Direito. Exilou-
se nos Estados Unidos por ocasião do advento do nazismo e lecionou na Universidade de
306
Berkeley. Segundo Miguel Reale, Kelsen nunca foi adepto da Escola de Viena; escola que
reunia intelectuais como Carnap, Wittgenstein entre outros. Conforme assinala este pensador
307
brasileiro, Kelsen esteve ligado à outra Escola de Viena, esta no domínio do Direito.
Acrescenta-se, ainda, que a obra do teórico austríaco é de suma importância para o
pensamento jurídico do séc. XX.
O objetivo da Teoria pura do direito é propor os princípios metodológicos da ciência
jurídica, reflexo dos debates filosóficos que ocuparam os intelectuais do séc. XIX. Kelsen
vivenciava uma época marcada entre o positivismo jurídico em suas diversas tendências e os
teóricos da livre interpretação do direito. Esse momento colocava em relevo a própria
autonomia do direito enquanto ciência autônoma. Nesse sentido, alguns entendiam a
metodologia correta como aquela que aproximava o direito das demais ciências humanas,
outros, por sua vez, compreendiam a ciência jurídica como esfera autônoma e livre de qualquer
juízo valorativo. Kelsen, colocando-se ao lado desta última corrente, procurou estabelecer para
o direito um fundamento epistemológico objetivo e desvinculado de qualquer influência
ideológica.
Nesse entrecruzamento de correntes, o pensamento de Kelsen se comprometia com a
busca de um método e objeto próprios capazes de superar as confusões metodológicas e dar
mais autonomia científica ao jurista. Com esse objetivo, Kelsen propôs o princípio da pureza,
critério segundo o qual o método e o objeto específicos da ciência jurídica deveriam ter o

306
Kelsen foi influenciado pela escola do Círculo de Viena, constituída por um grupo de professores antimetafísicos
da Universidade de Viena, que contribuíram para o surgimento do neopositivismo vienense. A cidade de Viena era
propícia ao surgimento do neopositivismo porque nessa região se desenvolveu durante a segunda metade do séc.
XIX, o liberalismo originado do Iluminismo, do empirismo e do utilitarismo. A Universidade de Viena se mantivera
sob a influência católica e, portanto, ficou imune ao idealismo. Foi, portanto, a mentalidade escolástica que
preparou a abordagem lógica das questões filosóficas. O círculo de Viena era formado por jovens doutores em
Filosofia da ciência que organizavam colóquios semanais, dentre eles destacam-se: Hans Hahn, Otto Neurath, Olga
Neurath, Félix Kaufmann e Carnap, que defendiam afastar a metafísica, a ética e a religião do âmbito científico.
307
REALE, Miguel. Filosofia do direito. SP: Saraiva, 1990: 458.
154
enfoque normativo, isto quer dizer que, o direito deveria ser visto como norma e não como
fato social ou valor transcendente. Essa proposta causou tanta polêmica, que Kelsen foi
acusado de reduzir o direito à norma, ou seja, abandonar a dimensão sócio-valorativa,
despindo o direito de caracteres humanos. Todavia, a reflexão kelseniana aponta para o dado
de que o direito, sendo um fenômeno complexo, só poderia ser estudado autonomamente, isso
com o fim de evitar que os juristas incorressem em debates infindáveis.
Entretanto, o que se pode entender por norma senão uma regra de conduta que poderá
ser moral, religiosa ou jurídica. As normas morais e religiosas fundam sua obrigatoriedade na
consciência pessoal; as jurídicas são protegidas por uma eventual força coercitiva externa. Isto
posto podemos focalizar o conceito de norma em Kelsen. Para este autor, normas são
prescrições de dever-ser que conferem ao comportamento humano um sentido prescritivo e,
portanto, trata-se de um comando, produto da vontade humana que proíbe, obriga ou permite
determinado comportamento. Tércio Sampaio Ferraz Jr. em seu livro A ciência do direito,
apresenta o seguinte exemplo: existe a categoria de ser e a do dever-ser; as prescrições são
prescrições de dever-ser, ou seja, o ato de levantar o braço em uma palestra poderá ter dois
sentidos, um descritivo em que interessa apenas observar que alguém levantou o braço e um
sentido prescritivo de acordo com o qual deve ser entendido como voto a favor de uma
proposta.
Nesse sentido, toda norma jurídica ao adquirir existência independente de seu autor
tem em si o conteúdo da validade. Por isso Kelsen compreendeu a ciência jurídica como uma
ciência pura de normas e as investigou no seu encadeamento hierárquico, assim a validade de
uma norma está ligada a normas superiores que culminam numa norma fundamental, ou seja,
“a norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e
308
mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum”. Essa concepção teórica
defende a tese que a norma somente será considerada jurídica e legítima se, e somente se, for
estabelecida em conformidade com as prescrições contidas na norma fundamental,
valorativamente neutra. Disto decorre que todo o ordenamento jurídico vale e é legítimo em
função desta norma fundamental. Ainda que haja uma norma injusta, será válida e legítima
desde que decorra de uma norma fundamental legítima.
Kelsen foi grande defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica,
compreendendo a necessidade do direito se afigurar como uma esfera autônoma em relação à

308
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. SP: Martins Fontes, 1987: 207. “A norma fundamental é apenas uma
pressuposição de qualquer interpretação positivista do material jurídico”. KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e
do Estado. SP: Martins Fontes, 1993: 170.
155
moral e a política. Segundo ele, Direito e Estado se confundem porque o Estado se configura
num conjunto de normas estabelecidas, prescrevendo uma sanção para determinados
comportamentos. Sem essa ordem normativa o Estado deixaria de existir no sentido jurídico,
tornando-se uma ficção especulativa. Nesse caso o Estado é elevado à condição de supra
racionalidade cujo fim é impedir que os homens busquem fora do seu âmbito soluções
arbitrárias e necessariamente iníquas. Segundo Kelsen, Estado e norma constituem o mesmo
sentido porque um é corolário do outro, princípio que garante a unidade do direito sob a ótica
lógico-normativa.

1 - Princípio metodológico fundamental


Segundo o jurista alemão Karl Larenz (1903-1993), “a ‘teoria pura do direito’ é
considerada em concreto por Kelsen como uma ‘teoria do Direito positivo’ e, nesta medida, uma
309
teoria geral do Direito”, isso quer dizer que Kelsen, ainda segundo o mesmo autor,
compreende que “a fundamentação da autonomia metodológica da ciência do Direito é a
distinção entre juízos de ser e juízos de dever ser”. 310 Nesse particular reside a importância de
Kelsen como aquele que trouxe para si a tarefa de sistematizar as bases metodológicas do
Direito como um corpo científico; mas como? A teoria pura do direito finca suas linhas
sistemáticas na compreensão de que o direito não se preocupa com o conteúdo, mas com a
estrutura lógica das normas jurídicas, estabelecendo os limites do conhecimento jurídico-
311
científico no sentido de se distinguir dos outros ramos da ciência guiados por seus
respectivos objetos de pesquisa. Essa construção teórica Kelsen chamou de “princípio
metodológico fundamental”
O princípio metodológico fundamental significa a condição primeira para que a doutrina
do direito se torne ciência do direito. O cientista do direito deve abster-se de valores estranhos
ao objeto da ciência jurídica, porque nesse caso o conhecimento para ser científico deve ser
neutro em relação aos valores. Não é da competência da ciência jurídica discutir os fins
políticos desta ou daquela norma jurídica, mas sim ressaltar uma preocupação eminentemente
312
jurídico-científica. Portanto, sendo esse o limite apresentado pelo princípio metodológico

309
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989: 83.
310
Idem, 1989: 82.
311
Idem, 1989:83.
312
“À teoria pura do Direito’ o que interessa é a especificidade lógica e a autonomia metódica do Direito. O que ela
quer é libertar a ciência do Direito de todos os elementos que lhe são estranhos. Daí que, por um lado, se oponha
à confusão entre observação jurídica e observação sociológica. O jurista, entende Kelsen, pode, sem dúvida fazer
reflexões de natureza psicológica e sociológica, mas não deve nunca ‘servir-se dos resultados da sua consideração
156
fundamental, o objeto da ciência do direito é a norma posta por autoridade competente, e
nesse sentido, o que o princípio metodológico fundamental exige é a exclusão do âmbito de
interesse do jurídico os fatores especificamente sociais, econômicos, culturais, morais ou
políticos interferentes na produção da norma e também os valores prestigiados em sua edição.
A utilização do princípio metodológico fundamental implica uma hermenêutica jurídica que se
abstém da idéia de um único sentido correto para a norma jurídica, mas busca uma pluralidade
de significações cientificamente pertinentes a esse limite.

2 - Norma jurídica e proposição jurídica


A distinção entre norma jurídica e proposição jurídica marca importante construção
teórica dentro do pensamento kelseniano. Com essa distinção entre norma jurídica e
proposição jurídica, Kelsen pretendia acentuar ainda mais as diferenças entre as atividades do
aplicador do direito e o papel exercido pelo cientista jurídico. Segundo Kelsen, a norma jurídica
que prescreve a sanção que se deve aplicar no caso de ações ilícitas – tem caráter prescritivo,
resulta do ato de vontade; em outro sentido a proposição jurídica sendo um juízo hipotético ou
condicional, afirma que uma determinada conduta típica implica certa sanção – tem caráter
descritivo, resulta do ato de conhecimento.
Pode-se dizer que as proposições jurídicas são reflexões, juízos sobre as normas
jurídicas. Como acentua Kelsen, na sua Teoria Pura do Direito, proposições jurídicas são, por
exemplo, as seguintes: se alguém comete um crime, deve ser-lhe aplicada uma pena; se alguém
não paga uma dívida, deve proceder-se a uma execução forçada de seu patrimônio; se alguém
é atacado de doença contagiosa, deve ser internado num estabelecimento adequado.
Procurando uma fórmula geral, temos: sob determinados pressupostos fixados pela ordem
jurídica, deve efetivar-se um ato de coação, pela mesma ordem jurídica estabelecida. É esta a
forma fundamental da proposição jurídica. Percebemos que a proposição liga dois elementos, a
saber: 1. Antecedente: dados determinados pressupostos, 2. Conseqüente: decorre a efetuação
de um ato de coerção, sempre na forma estabelecida pela ordem jurídica.
As normas jurídicas recebem o qualificativo de válidas ou inválidas e as proposições
podem ser consideradas como verdadeiras ou falsas. Ou dizendo de outro modo, uma lei
poderá ser válida ou não conforme a sua existência no mundo jurídico. Uma proposição acerca
de uma lei poderá ser ou não verdadeira; poderá ocorrer que um jurista qualquer tenha
formulado um juízo equivocado acerca da tal lei, nessa hipótese sua proposição será falsa.

explicativa na construção conceptual normativa’.” LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1989: 85.
157
Sabemos que o direito se distingue de outras ordens sociais por meio do uso da coação
prescrita em suas normas. As proposições jurídicas se referem a enunciados deontológicos, ou
seja, enunciados que prescrevem alguma conduta através do verbo dever-ser. Ligam uma
determinada previsão com atos de coação: se fulano cometeu homicídio deverá ser punido
com reclusão de seis a vinte anos. Dessa estrutura básica podemos inferir duas possibilidades
de conexão, a saber: ou temos uma ligação deôntica entre uma ação-omissão e uma sanção, ou
entre diversas condutas humanas com diversos atos coativos na qualidade de sanção. O
primeiro tipo aplica-se para a generalidade dos casos e o segundo em situações específicas.
Kelsen se mantém nos limites da primeira alternativa: a estrutura da norma jurídica é descrita
pela proposição jurídica como a ligação deôntica entre a referência a certo comportamento e a
sanção correspondente. Nesse sentido, afirma Fábio Ulhoa Coelho que “as normas jurídicas,
assim, têm a estrutura de uma proibição, por descreverem a conduta tida por ilícita como
antecedente e a punição como conseqüente”. 313
O fato de Kelsen ter reduzido as normas jurídicas a uma estrutura de proibição gerou
algumas objeções: a primeira delas relativa às normas que não proíbem, mas que obrigam
determinados atos ou omissões; a segunda, em relação às normas permissivas; em terceiro
lugar, com relação às normas revogatórias e conceituais. O argumento de Kelsen se baseia em
duas observações. A primeira refere-se ao fato de que existe a possibilidade de interdefinir, ou
relacionar intrinsecamente as normas proibitivas e obrigatórias, uma vez que qualquer
proibição pode ser traduzida por uma obrigatoriedade e vice-versa. Proibir certa conduta
equivale a obrigar a omissão da mesma conduta. O argumento usado em favor das normas
permissivas baseia-se na possibilidade de distinguir a permissão em negativa (o que não é
proibido é permitido) e positiva (dependente das normas proibitórias). Nesse caso, encontra-se
na permissão negativa a inexistência de proibição, mas na permissão positiva a manifestação de
uma proibição à qual se liga.
Como exemplo desse tipo de normas permissivas positivas, Coelho menciona as
hipóteses de exclusão de ilicitude previstas no art. 23, II do CP: “Não há crime quando o agente
pratica o fato: I- em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito
cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Tais hipóteses configuram o
sentido de normas permissivas positivas (a atitude em si poderia configurar um ilícito penal).
Para Kelsen certas normas não possuem autonomia, mas encontram em outras normas
proibitivas o complemento para seu sentido no mundo jurídico; normas não autônomas

313
COELHO, Fábio U. Para entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999: 36.
158
precisam de normas sancionadoras. Kelsen denominou tais normas não autônomas de
secundárias e as sancionadoras de primárias.

3 - Validade e eficácia
No entendimento de Kelsen a validade da norma jurídica vincula-se inicialmente à sua
relação com a norma fundamental, sobretudo no que concerne ao problema da manifestação
de vontade de uma autoridade competente: “A norma jurídica é válida se emanada de
autoridade com competência para editá-la, ainda que o respectivo comando não se
compatibilize com disposição contida em normas de hierarquia superior”. 314
Como um legítimo representante do pensamento jurídico-positivista, Kelsen relaciona
validade e eficácia a partir da dicotomia entre a norma singularmente considerada e a ordem
positiva como um todo. A validade exige também a eficácia da norma jurídica e, nesse ponto,
nosso autor rejeita duas idéias: a de que a validade não depende da eficácia, como também, a
de que validade e eficácia se identifiquem. No entanto qual é a posição de Kelsen? Observando
as duas instâncias: a da norma singularmente considerada e a da ordem positiva, este autor
sustenta que as normas deixam de ser válidas se perderem a eficácia. Validade e eficácia não
são termos sinônimos, mas guardam forte relação entre si. Segundo Kelsen, a eficácia se revela
como condição de validade em ambas as instâncias e nesse sentido qualquer norma jurídica
totalmente ineficaz é inválida.
A eficácia necessária à vigência da ordem jurídica é medida em termos globais, ou seja,
a legislação de um país vigora, ainda que alguns dos seus artigos sejam totalmente ineficazes e
conseqüentemente inválidos. A validade da ordem jurídica não depende da eficácia de todas as
normas que a constituem. Todavia, o inverso é possível, isto é, a norma singularmente
considerada perde eficácia se houver ineficácia global da ordem jurídica. São três os
pressupostos que condicionam a validade da norma jurídica, a saber: 1 - A competência da
autoridade que a editou, com base na norma hipotética fundamental; 2 - O mínimo de eficácia
que desconsidera a inobservância episódica ou temporária; 3 - A eficácia global da ordem
jurídica.

4 - Causalidade e imputação
O objeto da ciência jurídica compreende as normas e, os cientistas do direito operam de
forma diferente dos cientistas sociais, pois não estabelecem relações de causalidade, mas

314
COELHO, Fábio U. Para entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999: 41.
159
relações de imputação. Isto quer dizer que, entre dois fatos como, por exemplo, um homicídio
e a punição correspondente há uma ligação de outra ordem e esta ligação é a imputação. A
sanção referente ao homicídio não foi causada pela conduta em si mesma, mas exige a prova
de seu acontecimento. O direito pertence a uma ciência normativa que não visa prescrever
condutas, mas tão somente examinar as normas e estruturar seus enunciados a partir do
princípio da imputação. Imputar significa atribuir coisa desonrosa ou criminosa a uma pessoa;
creditar algo que não seja evidente ou decorra analiticamente. Causalidade significa uma
relação necessária e universal entre dois termos no caso das ciências naturais, ou uma ligação
de causa e efeito também utilizada pelas ciências sociais como, por exemplo, a sociologia, que
vincula por causalidade a taxa de desemprego e o índice de violência.
Importa destacar duas distinções relevantes entre causalidade e imputação, a saber: 1 -
A imputação depende da vontade humana; a causalidade independe dessa interferência. Há o
ponto inicial e o terminal, claramente definidos na proposição jurídica. 2 - A imputação não
deriva de nenhum outro conseqüente imputado, não há uma cadeia de sucessões; a
causalidade implica em infinitude, ou seja, uma cadeia de sucessões.
Uma outra observação final é que para Kelsen, a justiça possui valor inconstante,
relativo, dissolúvel e mutável. Trata-se de um julgamento de valor que possui caráter subjetivo.
A multiplicidade de valores sobre o justo reafirma a possibilidade de o direito positivo se chocar
pelo menos com algum sentido de justiça. Como doutrinas morais não fazem parte do
conhecimento dos juristas, pois estes estão preocupados com as normas jurídicas, o direito
positivo desvincula-se de questões de justiça.

A teoria tridimensional do direito: Miguel Reale (1910 - 2006).

Introdução
Miguel Reale, emérito professor da Universidade de São Paulo desde 1941, teve o seu
ingresso aprovado naquele ano mediante a apresentação de sua tese Fundamentos do Direito,
obra em que esboçou sua concepção culturalista do Direito, em que defende a tese segundo a
qual o estudo do fenômeno jurídico só pode ser possível levando em consideração um olhar
panorâmico e completo dos elementos do Direito, em detrimento de uma postura unilateral
baseada apenas no fato jurídico. Reale ressaltou a insuficiência daqueles que defendiam “um
verdadeiro dualismo ou uma justaposição de perspectivas, como se houvesse um direito para o
160
jurista e um outro para o filósofo, cada um deles isolado em seu domínio, sem que a tarefa de
um repercutisse, de maneira direta e permanente, na tarefa do outro”. 315
Segundo exprime Cretella Júnior, Miguel Reale tentou uma “síntese entre o sujeito ético
316
do kantismo e o espírito histórico do hegelianismo”, formulando uma teoria tridimensional
do direito com caráter dialético, relacionando três termos, de modo diferente das diversas
teorias tridimensionais que correlacionaram fato, valor e norma, ou seja, o aspecto fático,
axiológico e prescritivo do Direito, num sentido estático. Destarte, assinala o próprio Reale
concordando com Cretella Júnior:

“Quem assume, porém, uma posição tridimensionalista, já está a meio


caminho andado da compreensão do direito em termos de - experiência
concreta -, pois, até mesmo quando o estudioso se contenta com a
articulação final dos pontos de vista do filósofo, do sociólogo e do jurista, já
está revelando salutar repúdio a quaisquer imagens parciais ou setorizadas,
com o reconhecimento da insuficiência das perspectivas resultantes da
consideração isolada do que há de fático, de axiológico ou ideal, ou de
normativo na vida do direito”. 317

Segundo Reale, a ciência jurídica encontra problemas de natureza valorativa, social e


histórica, por isso a Filosofia do Direito, no seu entender, divide-se em três partes distintas e
ligadas entre si: a ontognoseologia jurídica que indaga as estruturas objetivas e como são
pensadas em conceitos, isto é, o direito em sua estrutura ôntica e em sua estrutura racional; a
epistemologia jurídica que estuda os objetos das diversas ciências jurídicas, observando sua
natureza e implicações; a deontologia jurídica que indaga o fundamento da ordem jurídica e a
razão da obrigatoriedade das normas de Direito, da legitimidade da obediência às leis; a
culturologia jurídica que estuda o Direito como cultura, como esforço humano de conquista e
preservação daquilo que se concebeu como válido.
Para os culturalistas, o mundo das normas faz parte da cultura, nesse sentido direito
não é um objeto natural, ideal ou simplesmente valorativo, mas um objeto cultural que supera
o dualismo de ser e dever ser. Esta última posição é a da teoria tridimensional do direito
sustentada vigorosamente por Miguel Reale, na qual o direito se considera em seus três
elementos indispensáveis: fato, valor e norma. Assim sendo, o jurista precisa interpretar o
problema da justiça, não se contentando apenas com o estudo dogmático do direito, a partir de
estudos sociológicos e filosóficos, embora consciente de que cada uma destas matérias tem
seus métodos próprios.
315
REALE, Miguel Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994: 3.
316
CRETELLA JUNIOR, José. Novíssima história da filosofia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989: 288.
317
REALE, Miguel Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994: 11.
161

1 - A tridimensionalidade do Direito
Segundo Miguel Reale, no campo das ciências sociais encontramos palavras que
apresentam uma multiplicidade de acepções ao longo do devir histórico. Nesse sentido, a
palavra direito assumiu sentidos diferentes conforme interesses e preferências que em cada
momento histórico recebeu certo destaque. Inicialmente o homem vivenciava o direito como
um fato, depois essa idéia cedeu lugar para a intuição do direito como sentimento do justo e
conseqüentemente ao sentido de obrigação jurídica, que hoje se nos apresenta como algo
intuitivo e evidente. A importância do Direito Romano se afigura na ciência que denominavam
de jurisprudência (senso prudente de medida) que focalizava o Direito como norma. No dizer
de Reale:
“Eis aí, portanto, através de um estudo sumário da experiência das
estimativas históricas, como os significados da palavra Direito se delinearam
segundo três elementos fundamentais: o elemento valor, como intuição
primordial; o elemento norma, como medida de concreção do valioso no
plano da conduta social: e, finalmente, o elemento fato, como condição da
conduta, base empírica da ligação intersubjetiva, coincidindo a análise
histórica com a da realidade jurídica fenomenologicamente observada”.318

Miguel Reale observa que os três elementos fato, valor e norma, constituintes da
experiência jurídica, é o triplo enfoque do Direito, observando que o valor é estudado pela
Filosofia do Direito na parte denominada de Deontologia Jurídica; enquanto o elemento norma,
ordenadora da conduta, é objeto de estudo da Ciência do Direito (Jurisprudência) e da Filosofia
do Direito na esfera da Epistemologia; por último, também, estuda-se o Direito como fato social
e histórico, objeto de investigação da Sociologia do Direito e da Filosofia do Direito na parte
denominada Culturologia Jurídica.
Para se compreender melhor essa relação entre fato, valor e norma, pensemos no
exemplo assinalado por Severo Hryniewicz:

“Tomemos um exemplo do Direito Penal: a prática de um homicídio. Temos


primeiro um fato – fulano matou sicrano. No fato está implícito o atentado
contra um valor ético fundamental – o valor da vida. E, por fim, temos uma
norma jurídica – artigo 121 do CP – que prevê uma sanção para, de algum
modo, - compensar - o desrespeito ao valor. Se não houvesse na base uma
categoria axiológica – o valor vida – não teriam sentido tanto a elaboração de
uma norma que visa à preservação do valor vida, quanto todos os
procedimentos posteriores ao fato no âmbito penal”. 319

318
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1998: 509.
319
HRYNIEWICZ, Severo. Para Filosofar hoje. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1999, p.135.
162
Reale afirma que a teoria tridimensional é fruto da verificação objetiva da consistência
fático-axiológica-normativa de qualquer porção ou momento da experiência jurídica. É formada
de consciência de todas as implicações do direito – a essência triádica do direito. Uma análise
rigorosa desta teoria implica formular questões do tipo: como se garante a unidade a partir
desses três fatores? Como se correlacionam? Como se distinguem? Nesse caso, para Reale,
fato, valor e norma estão sempre correlacionados não importa o ponto de vista: se filosófico,
sociológico ou jurídico. Tal correlação possui natureza dialética, uma mútua implicação entre
esses elementos – entre fato e valor que implica em um momento normativo. Segundo exprime
nosso autor, o direito “não é puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe
dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente”.
A novidade da teoria de Reale está na utilização do conceito de dialética, retirado do
sentido do termo alemão lebenswelt, que significa mundo da vida, presente na obra Crise das
Ciências do filósofo austríaco Edmundo Husserl (1859-1938), que desenvolveu um pensamento
crítico do positivismo (em sua pretensão de objetivismo e verdade científica). Para Husserl,
toda consciência é intencional, ou seja, não há consciência separada do mundo, não há objeto
em si, afastado da consciência que o percebe. Isso significa dizer que não há fatos com
objetividade pretendida, pois o mundo que percebo é o mundo para mim. A crise da ciência se
desvela na sua tentativa de redução da razão à racionalidade científica. Na verdade, a ciência
não teria nada a nos dizer sobre nossa própria liberdade. A ciência do fato exclui o ser humano
de suas considerações.
Reale insere o conceito de dialética na relação entre fato, valor e norma, a partir do
sentido da expressão “mundo da vida” (lebenswelt) que exprime o complexo de noções,
opiniões, regras, valores etc, ou seja, uma vida cultural em constante acontecer, o lugar de
nossas originárias formações de sentido. O direito está, portanto, inserido nessa fervilhante
experiência do mundo da vida. E essa tridimensionalidade não se limita somente à esfera
jurídica, mas pertence à experiência humana. Portanto, vale a pena assinalar que a função da
Filosofia para Reale está, por conseguinte na tarefa de libertar a história da fetichização da
ciência e da técnica – da clausura que nos sufoca para desvelar a verdadeira humanidade. O
mundo da vida é o mundo da criatividade intencional da subjetividade.

2 - Crítica ao normativismo-lógico de Kelsen


Reale entende que a norma jurídica é muito mais do que simples proposição lógica de
natureza ideal: é antes uma realidade cultural e não mero instrumento técnico de medida no
163
plano ético da conduta. A sua elaboração não é mera expressão do arbítrio do poder e nem
resulta da tensão fático-axiológica, mas um processo em que o poder público é condicionado
por um complexo de fatos e valores. O Estado é uma realidade histórica como produto da
experiência social, nesse caso a realidade jurídica é experiência histórico-cultural, na qual o
valor atua como um dos fatores constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitante,
como prisma de compreensão da realidade por ele constituída (função gnoseológica) e como
razão determinante da conduta (função deontológica). Essa tripla função do valor revela a
historicidade do homem e a experiência histórica do direito.
Acreditamos que Reale difere de Kelsen no sentido de que este jurista separou as três
esferas na tentativa de preservar a Teoria pura do direito. Queria desacreditar a jurisprudência
sociológica ou a teoria da justiça como campos apropriados de indagação de natureza jurídica.
Kelsen formulou, segundo Reale, uma tridimensionalidade metodológica negativa, uma vez que
só a ciência do direito possuiria caráter jurídico. Na verdade, o direito acontece no seio da vida
humana. Trata-se de um processo existencial do indivíduo e da coletividade imersos no mundo
da vida. Outra diferença essencial que separa Reale de Kelsen é que este compreende o Direito
a partir da dimensão lógico-normativa, isto é, a norma jurídica por ser uma dedução racional
em si é capaz de imprimir valores jurídicos à realidade, uma vez que este pensador, filiado ao
pensamento kantiano assevera que o fenômeno jurídico não possui nada além de si; em outras
palavras: a norma jurídica pronuncia o mundo do valor. Entre fato e valores postos a norma
jurídica é a interseção da realidade.
Obviamente, diferente das lições positivistas do autor da Teoria pura do direito, Reale
concebe o direito como experiência histórica, pertencente ao mundo da cultura, cuja
idealização é decorrente da capacidade humana de intuir os valores percebidos pela razão. Essa
intuição não seria a priori, mas sim a posteiori, ou melhor, após a percepção da experiência
pela inteligência. Segundo Reale o Direito não prescinde da norma, no entanto, a norma é mais
um elemento racional para dar conta da realidade construída pelo ser humano. Entendemos
que o centro do pensamento jusfilosófico do autor dos Fundamentos do direito está
relacionado à sua teoria do valor, que conforme seu pensamento constitui a base se sua teoria
tridimensional do direito. O que isso quer dizer? Muito. Todo fato é um acontecimento
desprovido de qualquer conteúdo. Para uma determinada cultura, o crucifixo em si mesmo não
representa coisa alguma, ao passo que para uma cultura cristã significa algo sagrado. Pois bem.
Para Reale, o fato tem sua dimensão posta pelo valor que é uma racionalização da experiência
humana no processo histórico, o que, segundo o autor, determina não só a natureza do fato
164
como impõe as condições das regras coativas necessárias ao conjunto da vida coletiva e
individual.
Conforme seu entendimento, o valor é o centro determinante do seu pensamento, ou
seja, o valor orienta a norma jurídica na contemplação ou condenação do que é necessário à
vida. Fato, valor e norma não representam uma disposição poética, mas lógico-axiológica. Fato
só existe na dimensão da inteligência que intui um valor pela capacidade de sentir a
experiência. A norma jurídica é posta pelo valor que é capaz de perceber a necessidade de se
coibir ou incentivar comportamentos e atitudes necessitantes.
165
CONCLUSÃO

Em Filosofia é possível seguir muitos caminhos. Escolhemos o nosso. Como se observou


na Introdução desta pesquisa, nosso objetivo foi tão somente o de apresentar um trabalho
propedêutico que pudesse oferecer uma exposição clara e oportuna, capaz de configurar um
apoio útil para posteriores estudos em Filosofia, em especial Filosofia do Direito.
Nesse sentido, destacamos autores e doutrinas que julgamos essenciais para o estudo
jurídico-político, porque acreditamos que de algum modo direta ou indiretamente tais
pensadores influenciaram a nossa maneira de pensar e agir. Agora você poderá escolher o seu
caminho, sem esquecer que constitui absurdo um estudante concluir seu curso superior sem
jamais ter tido contato com a história das idéias. É preciso conhecê-las e saber o quanto são
atuais.
Nas palavras de Luc Ferry, 320 o filósofo é aquele que acredita que investigar e conhecer
o mundo implicará uma melhor compreensão de nós mesmos e essa lucidez nos ajuda a vencer
ou a compreender melhor nossos próprios medos. Mas é preciso ressaltar que filosofar não é
uma simples reflexão crítica que realizamos cotidianamente, mas um mergulho profundo-
transformador e sistemático nos problemas de nossa época, tomando como ponto de partida o
que já foi exaustivamente dito antes. É preciso coragem.
Também não podemos dizer que é preciso abandonar determinados pensadores ou que
suas teses não encontrariam ecos em nossa atualidade, como soam dizer aqueles que nada
sabem ou leram muito pouco e ousam reproduzir tais preconceitos. Talvez... Talvez, seja
possível afirmar que uma determinada teoria científica seja falsa ou esteja superada, porque é
refutada por outra mais complexa. Todavia, as teorias filosóficas, desde os pré-socráticos,
continuam oferecendo elementos que enriquecem nossa inteligência. Nada poderá substituí-la,
nem religião, ou qualquer ciência. Desse modo, como assevera Luc Ferry:
“Aprender a viver, aprender a não mais temer em vão as diferentes faces da
morte, ou, simplesmente, a superar a banalidade da vida cotidiana, o tédio, o
tempo que passa, já era o principal objetivo das escolas da Antiguidade grega.
A mensagem delas merece ser ouvida, pois, diferentemente do que acontece
na história das ciências, as filosofias do passado ainda nos falam” 321

A filosofia, portanto, nos ensina a pensar e pensar é o oposto de servir. Significa educar
o pensamento para reflexão, aperfeiçoar o gosto e, também, formar o caráter para a
reabilitação de valores perdidos pelo frenético mundo do ter - individualista. Ler filosofia é, sem
320
FERRY, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007:. 23.
321
Idem, 2007: 16-17.
166
322
dúvida, nos dizeres de Olgária Matos, a prática mais nobre da educação humanista,
provedora de paciência e consciência quando revisitam nossos medos, esperanças e,
sobretudo, quando nos oferecem a assimilação de sentimentos éticos. Filosofar é pensar os
caminhos do próprio pensamento como exercício da memória que permanece viva.
Agora, é preciso ter tempo. Tempo para afastar-se do ritmo frenético da vida moderna
que não abre espaço para reflexão, ou pior, preenchem nossas horas vagas com futilidades
engraçadas, situações aversivas, valorizando vidas infames, neutralizando e despolitizando
nossa própria liberdade. É preciso recordar Platão quando nos fala dos prisioneiros em sua
Alegoria da Caverna, ou Heráclito que nos lembra que uma oportunidade perdida no tempo
estará perdida para sempre.

322
MATOS, Olgária. Discretas esperanças. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2006: 16.
167
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