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3/28/2016 A condição da imagem pobre — TEXTOS SOBRE CINEMA — Medium

Still de Zabriskie Point, de Antonioni

A condição da imagem pobre


Fundado em 1996 pelo poeta Kenneth Goldsmith (são já 18 anos

online, uma verdadeira instituição), o arquivo online ubuweb é

hoje uma plataforma absolutamente essencial para uma

re exão sobre a política da imagem, nomeadamente sobre a

muito debatida questão da relação entre a tecnologia e a cultura

visual contemporânea. Que lugar é o seu lugar no regime

mediático da alta de nição?

Concebido inicialmente como um repositório para poesia visual e concreta,

aos longo dos anos foi expandido a sua febre arquivista, tornando-se assim

num dos mais significativos arquivos dedicados às mais variadas práticas

artísticas conotadas com a vanguarda. Entre algumas da mais recentes

adições, e enquanto exemplo do enorme escopo curatorial do site,

encontram-se obras em vídeo de Cao Fei, artista de origem Chinesa

reconhecida pela sua estética com referências ao Surrealismo e frequente

utilização de convenções próximas do documentário; gravações caseiras de

Jack Kerouac com algumas leituras da sua obra; ou ainda exemplares

digitalizados do jornal Irradiador, fundado pelo poeta Manuel Marpes Ace e

um testemunho importante do Estridentismo, um movimento de vanguarda

com origens no México. O trabalho é particularmente louvável também por

ser uma iniciativa em grande parte desenvolvida por Goldsmith sem

qualquer tipo de apoio institucional, constituindo assim um momento

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exemplar de dedicação e intervenção no espaço público, que é cada vez mais

um espaço virtual e mediado pelas redes digitais. A este respeito, importará

ainda sublinhar uma presença corporativa bastante destacada de marcas

como o facebook, instagram, twitter ou netflix, cada vez mais influentes na

formação da própria identidade individual e, consequentemente, na

definição das fronteiras e limites do próprio espaço cibernético/público.

Um dos aspectos mais comentados do arquivo prende-se com a qualidade

das imagens vídeo ali disponibilizadas. Muito sintomaticamente, e esta é

uma questão merecedora de uma atenta reflexão, uma parte significativa das

obras reunidas são de baixa qualidade, encontrando-se assim num território

distante daquele da ditadura da alta definição. Em entrevista, Goldsmith

defende aquilo a que considera ser “a marvelous lo-fi aesthetic”, sublinhando

o papel secundário da ubuweb face a instituições como a Anthology Film

Archives ou a Electronic Arts Intermix. Assim, há uma diferente relação

entre a qualidade da imagem, as instituições culturais e os respectivos

modelos de distribuição, cuja configuração deixa desde logo antever uma

complexa política da imagem. Qual é exactamente a condição de uma

imagem pobre e degradada, que se propague pela internet graças ao esforço

individual dos utilizadores (reblogs; torrents; sites comparáveis ao ubuweb;

etc), e qual a sua relação com a distribuição de imagens de alta definição em

plataformas como o netflix ou o itunes? Porque é que uma obra como La

dialectique peut-elle casser des briques? de René Viénet se encontra ali

numa versão francamente degradada, a passo que o netflix acabou de

acrescentar ao seu catálogo uma versão em 4K da série Breaking Bad?

Em defesa da imagem pobre

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Hito Steyerl, November, . DVD, min

Hito Steyerl, professora de New Media Art na Universidade de Artes em

Berlim, coloca-se no cerne destas questões aliando uma prática artística a

uma obra teórica de grande alcance. Na sua colectânea de ensaios escritos

originalmente para o site e-flux, publicada pela semiotext(e) com o título

The Wretched of The Screen, Steyerl apresenta um esboço do que se poderá

considerar uma poderosa política da imagem. Destaco em particular um

ensaio: In Defense of the Poor Image, reflexão sobre os regimes de produção

e circulação de imagens num regime mediático cada vez mais abalado pelo

paradigma do digital.

Para Steyerl, a hierarquia contemporânea das imagens parece ser

determinada por características como a resolução. Propriedades como a alta

definição reforçam assim a qualidade mimética da imagem, esboçando-se

desta maneira um perturbante alinhamento político:

The contemporary hierarchy of images, however, is not only

based on sharpness, but also and primarily on resolution.

Just look at any electronics store and this system, described

by Harun Farocki in a notable 2007 interview, becomes

immediately apparent. In the class society of images,

cinema takes on the role of a agship store. In agship

stores high-end products are marketed in an upscale

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environment. More a ordable derivatives of the same

images circulate as DVDs, on broadcast television, or online,

as poor images.

Obviously, a high-resolution image looks more brilliant and

impressive, more mimetic and magic, more scary and

seductive than a poor one. It is more rich, so to speak. Now,

even consumer formats are increasingly adapting to the

tastes of cineastes and esthetes, who insisted on 35 mm lm

as a guarantee of pristine visuality.

Que a película de 35mm adquira agora tais contornos políticos é pois uma

observação algo surpreendente. Nesse sentido, é interessante observar a

consistência das críticas que têm vindo a ser feitas ao digital. A inesperada

coincidência de posições é aqui determinante. Por outras palavras, a

legitimação histórica das qualidades estéticas dos filmes rodados em 35mm

adquire uma dimensão política acutilante. Uma das questões que se pode

colocar, é se o gesto de filmar a preto e branco e em 35mm, como o

realizador Miguel Gomes fez em Tabu, está ou não ferido por

inevitavelmente se inserir num regime mediático que já não coincide de todo

com a a “história do cinema”. Vale a pena acompanhar o texto:

The insistence upon analog lm as the sole medium of

visual importance resounded throughout discourses on

cinema, almost regardless of their ideological in ection. It

never mattered that these high-end economies of lm

production were (and still are) rmly anchored in systems

of

national culture, capitalist studio production, the cult of

mostly male genius, and the original version, and thus are

often conservative in their very structure. Resolution was

fetishized as if its lack amounted to castration of the author.

The cult of lm gauge dominated even independent lm

production. The rich image established its own set of

hierarchies, with new technologies o ering more and more

possibilities to creatively degrade it.

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A produção artística de Steyerl tem sido também motivo de atenção. O seu

ensaio filmíco, How Not To Be Seen, A Fucking Didatic Educational .Mov File,  
foi uma das obras mais comentadas aquando da sua presença pela última

edição da Bienal de Veneza, estando a artista agora com uma série de

exibições típicas de meio de carreira. Ainda não há muito tempo, esteve no

Instute of Contemporary Art, em Londres, onde apresentou algum do seu

trabalho mais recente.

Uma das obras mais memoráveis dessa exposição foi Liquidity Inc., um olhar

para a vida de um trabalhador do sector financeiro que, como consequência

da crise financeira, se viu obrigado a mudar de trabalho, sendo agora

instrutor de artes marciais. Esta bizarra abordagem à noção de liquidez e

constante mutação justapõe um registo documental às linguagens estéticas

típicas do desktop de computador. Steyerl transforma o espaço diegético do

filme num desktop, onde várias imagens e registos de comunicação vão

sendo colados, de forma a extrair daí um comentário crítico à circulação de

imagens no mundo contemporâneo.

No centro das suas investigações encontramos a tematização do contraste

entre a alta definição enquanto discurso, e as classes supostamente

   
inferiores: os .avi degradados, os .gifs de baixa resolução de um blockbuster;

a invisibilidade de plataformas como o ubuweb, e assim sucessivamente. No

seu discurso filmico abundam imagens em alta definição e o uso de um CGI

bastante polido, uma estratégia algo desconcertante. Se até aos inícios dos

anos 2000 a estética de uma obra de arte reconhecida como experimental ou

vanguardista era justamente reconhecida pela sua qualidade artesanal, o

acesso a meios de produção altamente sofisticados proporcionados pelos

avanços na tecnologia tornou esta distinção obsoleta.

Um dos desafios é tentar perceber as consequências da emergência de um

regime de produção e distribuição de imagens, onde artistas com o perfil de

James Cameron ou Peter Kubelka trabalham inseridos num sistema de

idênticas potencialidades tecnológicas.

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