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CENTRO UNIVERSITÁRIO VILA VELHA

CURSO DE DIREITO

MARIANA SARMENTO DUARTE

DANO SECUNDÁRIO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES


VÍTIMAS DE ABUSOS SEXUAIS – SOLUÇÕES PROPOSTAS
PARA O PROCESSO DE REVITIMIZAÇÃO

VILA VELHA
2009
MARIANA SARMENTO DUARTE

DANO SECUNDÁRIO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES


VÍTIMAS DE ABUSOS SEXUAIS – SOLUÇÕES PROPOSTAS
PARA O PROCESSO DE REVITIMIZAÇÃO

Monografia apresentada ao Curso de


Graduação em Direito do Centro
Universitário Vila Velha, como requisito
parcial para obtenção do título de
Bacharel em Direito.

Orientadora: Profª Esp. Denise Galvêas


Terra
VILA VELHA
2009
MARIANA SARMENTO DUARTE

DANO SECUNDÁRIO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES


VÍTIMAS DE ABUSOS SEXUAIS – SOLUÇÕES PROPOSTAS
PARA O PROCESSO DE REVITIMIZAÇÃO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito do Centro


Universitário Vila Velha, como requisito parcial para obtenção do título de
Bacharel em Direito.

Aprovada em 12 de novembro de 2009.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________
Profa. Esp. Denise Galvêas Terra
Centro Universitário Vila Velha
Orientadora

___________________________________
Prof. Ms. Lindolivo Soares Moura
Centro Universitário Vila Velha
Examinador
Este trabalho é dedicado a toda e
qualquer pessoa que nele pousar os
olhos e dedicar um pouco de
atenção às inquietações que o
originaram.
AGRADECIMENTOS

Ao Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, por ser meu esconderijo e socorro


bem presente em tempos de angústia, dúvidas e ansiedade. Imensa e
infinitamente, graças ao Criador, por fazer soar em minha mente as palavras
corretas.

Ao meu pai Dário, por segurar forte em minhas mãos no decorrer deste curso,
a despeito da distância geográfica; e a minha mãe Édina, por ter secado as
lágrimas que teimavam em brotar dos meus olhos e turvar minha visão do
futuro.

À Carolina, minha irmã mais velha, dotada de um senso próprio e peculiar de


cuidado para comigo, que hoje entendo. Obrigada por incutir em mim, desde
cedo, o gosto pela leitura: o resultado está aí! E à Camila, minha irmã do meio,
por termos entendido que amor de irmãs não se mede pelos tempos de paz,
mas sim pela capacidade de pedir perdão e recomeçar (preferencialmente se
tiver um almoço espetacular depois).

Ao Renan, meu namorado e amigo, por entender que nem sempre consigo
conciliar todas as coisas ao mesmo tempo, mas principalmente por
compreender meus inúmeros momentos de ausência e ainda assim estar ao
meu lado.

Aos meus amigos e à família, pelo suporte necessário, pela amizade


incondicional e pelas diversas horas em que aluguei seus ouvidos e os
confundi com meus pensamentos nem sempre tão compreensíveis.
Aos mestres, desde aqueles cujos ensinamentos aprendi ainda criança até
aqueles que me passaram seus conhecimentos neste curso de Direito.

Enfim, a toda pessoa que de alguma forma haja colaborado para a formação
da minha personalidade como ser pensante e consciente de seu papel social,
meu muito obrigada!

Aquilo que é sem precedente, uma


vez surgido, pode tornar-se um
precedente para o futuro.

Hannah Arendt
RESUMO

Trata o presente trabalho de um estudo sobre os danos primário e secundário


causados, respectivamente, pelo abuso sexual praticado contra crianças e
adolescentes e pela oitiva judicial destas vítimas nos moldes como são rotineiramente
realizadas. Ao final, são indicadas possíveis políticas públicas que visam justamente à
redução do processo de revitimização de indivíduos menores vítimas de práticas
sexuais abusivas. Objetiva-se, então, propiciar a reflexão de operadores do direito e
de integrantes das áreas afins à ciência jurídica, chamando sua atenção tanto para a
necessidade do devido preparo técnico para lidarem com as questões atinentes aos
abusos sexuais, quanto para repensarem a estrutura da inquirição em Juízo de vítimas
menores, principalmente quando se tratar de criança ou adolescente violentado
sexualmente.

Palavras-chave: Dano – Depoimento – Vítima – Abuso – Sexual – Revitimização.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................08

2 A VIOLÊNCIA E O ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES .


.....................................................................................................................................10
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...............................................................................10
2.2 CONCEITOS DE VIOLÊNCIA E DE ABUSO SEXUAL........................................11
2.3 ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR E EXTRAFAMILIAR.....................................13
2.3.1 Abuso sexual intrafamiliar..............................................................................14
2.3.2 Abuso sexual extrafamiliar .............................................................................16

3 DANO PRIMÁRIO E DANO SECUNDÁRIO DECORRENTES DE ABUSO


SEXUAL PRATICADO CONTRA MENORES............................................................17
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................17
3.2 DANO PRIMÁRIO.................................................................................................18
3.3 DANO SECUNDÁRIO...........................................................................................20

4 OITIVA JUDICIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE


ABUSOS SEXUAIS................................................................................................... 22
4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAS.................................................................................22
4.2 NORMAS VIGENTES PARA OITIVA JUDICIAL DE MENORES VÍTIMAS
DE ABUSOS SEXUAIS. CRÍTICAS À SISTEMÁTICA VIGENTE..............................22

5 SOLUÇÕES PROPOSTAS PARA A REDUÇÃO DO DANO SECUNDÁRIO


INFANTO-JUVENIL – POLÍTICAS PÚBLICAS ........................................................27
5.1 CONSIDERAÇOES INICIAIS .............................................................................. 27
5.2 SOLUÇÕES PROPOSTAS ................................................................................. 27
5.2.1 Câmara de Gesel .............................................................................................28
5.2.2 Substituição da inquirição judicial da vítima, sendo ela criança ou
adolescente, por uma avaliação técnica ...............................................................29
5.2.3 Capacitação dos Operadores do Direito .....................................................30
5.2.4 Experiência do Projeto “Depoimento Sem Dano”........................................31
5.2.4.1 Dinâmica do Projeto .......................................................................................32

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................36


7 REFERÊNCIAS........................................................................................................37

ANEXO A - Artigo 201 ao artigo 225 do Código de Processo Penal


Brasileiro (Decreto Lei nº. 3.689 de 03 de outubro de 1941) ................................40

ANEXO B - Código Penal Processual da Nação Argentina (Lei nº. 25.852,


promulgada em 04 de dezembro de 2003 e sancionada em 06 de janeiro de
2005) ...........................................................................................................................44

ANEXO C - Substitutivo ao Projeto de Lei nº. 4.126/2004.....................................45


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho monográfico tem por objetivo apontar, com base nos
estudos realizados, possíveis soluções para se evitar o dano secundário
causado pela despreocupada atuação da Justiça em interrogatórios de
crianças sexualmente abusadas.

A relevância de escrever um Trabalho de Conclusão de Curso sobre este tema


encontra substrato nas crescentes discussões das comunidades jurídicas e de
áreas correlatas do nosso país incrementadas pela implantação, no ano de
2003, da metodologia do projeto “Depoimento Sem Dano” no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Objetiva-se trazer a lúmen considerações acerca dos danos infligidos às


vítimas e das possíveis soluções à questão da tomada de depoimentos das
crianças sexualmente abusadas.

Para tanto, parte-se dos conceitos gerais de violência e abuso sexual para se
chegar a uma exposição dos dois tipos de abusos sexuais existentes:
intrafamiliar e extrafamiliar.

O texto segue dando enfoque às questões atinentes ao dano primário (também


denominado processo de vitimização primária) e ao dano secundário
(vitimização secundária) ocasionados como conseqüência direta das práticas
abusivas perpetradas contra menores.

Passa-se, então, ao capítulo seguinte, que traça os parâmetros gerais da oitiva


judicial de crianças e adolescentes sexualmente abusados. Aqui são feitas
algumas críticas à sistemática vigente, com o intuito de remeter, de antemão, o
leitor a uma análise das possíveis mudanças estruturais para a redução do
dano secundário.
São delineadas, ao final, considerações acerca de soluções possíveis para a
questão do processo de revitimização, ponderando acerca das principais
orientações trazidas pela literatura especializada.
2 A VIOLÊNCIA E O ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Intrínseca à natureza humana, a violência permeia todos os níveis sociais e a


totalidade das esferas de ação humana, consistindo em uma das maiores
preocupações da vida moderna em nível mundial.

Tais preocupações estendem-se desde atentados terroristas de grupos radicais


a genocídios cometidos contra comunidades etnicamente diferentes e na
maioria das vezes tidas como socialmente inferiores; vão desde os crimes de
guerras até as violências praticadas contra detentos em presídios.

Neste complexo conjunto de inquietações sociais, uma em especial tem


adquirido relevância e destaque internacionais: os abusos sexuais praticados
contra crianças e adolescentes1.

A preocupação relativa à prática de violências contra menores insere-se no


contexto de um Estado Democrático de Direito cujo foco está direcionado ao
enfrentamento da violência existente, principalmente, no seio familiar.

O fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, que


adquire diariamente crescente publicidade dada a maior – entretanto ainda não
satisfatória – denunciação dos casos e a atuação da mídia, é

[...] uma questão relacionada à luta nacional e internacional pelos direitos


humanos de crianças e de adolescentes, preconizados na Constituição
Federal Brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8069/90 e
na Convenção Internacional dos Direitos da Criança2.

1
Previamente, devem ser definidos os termos “criança” e “adolescente”. Para a Convenção dos Direitos
da Criança de 1989, criança é todo ser humano com idade inferior a dezoito anos. Entretanto, para o
regimento jurídico pátrio, o Estatuto da Criança e do Adolescente definiu, em seu artigo 2º, “criança” como
sendo a pessoa de até 12 anos incompletos, e o “adolescente” entre 12 e 18 anos de idade.
2
PAIR (Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto
juvenil no Território Brasileiro). Disponível em: <http://www.caminhos.ufms.br>. Acesso em 05 out. 2009.
Os números, a despeito de não condizerem fidedignamente com a real
demanda de casos de abusos sexuais, são alarmantes: segundo o Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), no Brasil,
anualmente, 6,5 milhões de crianças sofrem algum tipo de violência
intrafamiliar; 18 mil crianças e adolescentes são espancados diariamente e 300
mil menores são vítimas de atos sexuais incestuosos 3.

Foi instituído no país, através da Lei Federal nº. 9.970/00, o dia 18 de maio
como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças
e Adolescentes.

A escolha da data recaiu sobre o marcante fato ocorrido na sociedade capixaba


no dia 18 de maio do ano de 1.973, quando a menina Araceli Cabrera Sanches,
de apenas oito anos de idade, foi seqüestrada,
[...] drogada, espancada, estuprada e morta por membros de uma
tradicional família capixaba. Muita gente acompanhou o desenrolar do
caso, desde o momento em que Araceli entrou no carro dos
assassinos até o aparecimento de seu corpo, desfigurado pelo ácido,
em uma movimentada rua da cidade de Vitória. Poucos, entretanto,
foram capazes de denunciar o acontecido. O silêncio da sociedade
capixaba acabaria por decretar a impunidade dos criminosos. [...]
Apesar da cobertura da mídia e do especial empenho de alguns
jornalistas, o caso ficou impune. Araceli só foi sepultada três anos
depois. Sua morte, contudo, ainda causa indignação e revolta. O Dia
Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes vem manter viva a memória nacional, reafirmando a
responsabilidade da sociedade brasileira em garantir os direitos de
todas as suas Aracelis4.

2.2 CONCEITOS DE VIOLÊNCIA E DE ABUSO SEXUAL

De acordo com Marilena Chauí5 em seu artigo intitulado “Ética e Violência”,


violência, que etimologicamente deriva do latim vis, força, possui o seguinte
significado:

3
Criado em 12 de outubro de 1991 pela Lei nº. 8.242, o CONANDA é um órgão deliberativo e controlador
das políticas de promoção, garantia e defesa dos direitos da criança e do adolescente. In CONANDA.
Gestão 2001-2005. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em 06 out. 2009.
4
ROSA, Regina. Não ao abuso sexual infantil. Disponível em: <http://sexxxchurch.com/?page_id=180>.
Acesso em: 16 set. 2009.
5
CHAUÍ, Marilena. Ética e Violência. Revista Teoria e Debate, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, n.
39, 1998. Disponível em: <http://www.fpa.org.br>. Acesso em 08 set. 2009.
Tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser
[...]; todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a
liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar) [...].

Como conseqüência, tem-se que:

[...] a violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou


psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e
sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror.

Dos estudos realizados por Deslandes (1994, p. 13-17), extrai-se que as


formas mais comuns de maus tratos e violência contra crianças e
adolescentes, na sociedade contemporânea, são as violências física e
psicológica, a negligência e a violência sexual.

A propósito, entende Ishida que:

Negligência é um ato omissivo, como por exemplo, falta de cuidados


pelo responsável legal; discriminação, forma de se evitar o contato,
por motivos étnicos, religiosos etc., como, por exemplo, pela cor da
criança ou do adolescente; exploração, a forma de extrair
regularmente proveito da conduta do menor, que ocorre com os
denominados “pais de rua”; violência, crueldade e opressão, a
conduta coercitiva contra o adolescente, por qualquer finalidade 6.

O abuso sexual figura, então, como uma das diversas e, por vezes, ocultas
facetas da violência infantil, e nem sempre o ato abusivo per si é de fácil
definição, eis que:

Conseguir uma definição que preenche todos os requisitos juntos


nestas síndromes é sumamente difícil, porque há acontecimentos que
permanecem ocultos durante muito tempo, ou não chegam a serem
conhecidos; outros se tornam evidentes quando surge um conflito no
seio da família. Por outra parte, uma das dificuldades no
reconhecimento é distinguir entre o que é um contato erótico e qual é
um comportamento sexual abusivo (TIELES, 1998, p. 103, tradução
nossa).

Mais do que um ato de violência, o abuso sexual compromete


significativamente a integridade física, moral, emocional e cognitiva de crianças
e adolescentes, consistindo em uma violação dos direitos humanos e sexuais
das vítimas. Mais do que isto, configura uma transgressão do direito ao
6
ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 6. ed. São
Paulo: Atlas, 200, p. 9.
processo de desenvolvimento físico, psicológico, moral e sexual sadios
(FALEIROS, 1998, p. 9).
Em um abuso sexual, especialmente quando os abusados são crianças,
sempre se conjugam dois elementos: o não consentimento da vítima e a
violência física ou psíquica aplicada para o cometimento do ato abusivo.

Cabe trazer à baila o pensamento de Christian Gauderer ao pontuar sobre a


caracterização do abuso sexual, in verbis:

O que caracteriza o abuso sexual é a falta de consentimento do


menor na relação com o adulto. A vítima é forçada fisicamente ou
coagida verbalmente a participar da relação, sem ter
necessariamente capacidade emocional ou cognitiva para consentir
ou julgar que está acontecendo7.

Segundo Azevedo e Guerra (2000), o abuso sexual se caracteriza por todo


jogo ou ato sexual, dentro de uma relação heterossexual ou homossexual,
entre um ou mais indivíduos adultos e um indivíduo menor de 18 anos, cujo
escopo é a estimulação sexual da vítima e sua utilização para obtenção da
estimulação sexual do (s) abusador (es).

Para Maldonado (1997) e Ballone (2003), o abuso sexual consiste em qualquer


situação em que um adulto ou mesmo um adolescente mais velho, valendo-se
do poder de coação ou sedução, utiliza-se de um menor para alcançar sua
própria satisfação sexual.

2.3 ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR E EXTRAFAMILIAR

As práticas abusivas podem ocorrer no seio da família da vítima ou fora de sua


esfera de convivência familiar, sendo possível, então, falar-se em duas
modalidades de abuso, quais sejam o abuso sexual intrafamiliar e o abuso
sexual extrafamiliar, respectivamente.

7
GAUDERER, Christian. Crianças, adolescentes e nós – guia prático para pais, adolescentes e
profissionais. 2 ed. RJ: Revinter, 1998, p. 159.
2.3.1 Abuso sexual intrafamiliar

A família, consoante se sabe, é o direcional de cada indivíduo; é ali que se


molda, inicialmente, o caráter de cada pessoa. Dada sua importância como
célula-matriz da sociedade, a harmonia, o bem-estar e o respeito dos direitos
cabíveis a cada um de seus membros deveriam ser a tônica em cada núcleo
familiar.

Entretanto, tornou-se assente na literatura especializada no assunto em pauta


que o maior número de casos de abusos sexuais ocorre dentro da própria casa
da vítima, no seio de sua convivência doméstica.

Na quase totalidade dos casos aí inseridos, “o autor é um membro da família


da vítima, é alguém que ela ama, conhece e respeita” (DIAS, 2007, p. 23),
sendo normalmente a pessoa que exerce a função paterna (pai, padrasto ou
avô).

RANGEL (2001, p. 19) considera como abuso sexual intrafamiliar, que em


alguns casos poderá consistir em uma relação incestuosa denominada incesto
abusivo 8, as relações de cunho sexual entre pais e filhos, crianças ou
adolescentes, praticadas no interior da família, havendo laços consangüíneos,
afins ou civis que unam o abusador e a vítima.

Dobke (2001) reportando-se aos estudos realizados por Barudy (1998), afirmou
que há três fases de desenvolvimento do processo abusivo doméstico, quais
sejam fase da sedução, fase da interação sexual abusiva e fase do segredo.

8
Cogente pontuar que “é necessário separar abuso sexual de incesto. O incesto é qualquer tipo de
contato sexual entre parentes do mesmo sangue e afins, desde que sejam adultos e a relação não seja
atravessada pelo poder. Nesse caso, eles apenas infringem uma norma social. Já o sexo com crianças é
um abuso, porque ela não tem a capacidade de consentir” SAFFIOTI, H. I. Faces da Violência Doméstica.
Folha de São Paulo, São Paulo: p. 07, 11.01.98.
A primeira fase consiste na manipulação, por parte do abusador, da
dependência e da confiança da sua pequena vítima, encorajando-a e
impelindo-a a participar dos atos sexuais; consentâneo à esta incitação, faz a
criança acreditar que estes atos consistem em simples e normais brincadeiras
entre pais e filhos (DOBKE, 2001, p. 29).
A segunda fase desenvolve-se num processo vagaroso porém gradativo,
iniciando com comportamentos exibicionistas, passando às carícias sexuais e
culminando em atos sexuais mais evidentes.

Por derradeiro, sobrevém a fase do segredo, que é concomitante à fase da


interação sexual abusiva. Ao mesmo tempo em que dá azo aos seus desejos
sexuais por intermédio dos atos praticados com a criança, o abusador passa a
desferir ameaças à vítima caso os abusos sejam revelados, infundindo-lhe,
também, o sentimento de culpa.

Nesta terceira fase desenvolve-se, na vítima, a denominada “síndrome do


segredo”, que pode ser tanto para a vítima, que se sente culpada pela
ocorrência dos atos abusivos, quanto para a família desta, dadas as relações
complexas familiares.

Para Furnis, um dos principais fatores psicológicos que levam à “síndrome do


segredo” é a culpa psicológica incutida na vítima e por vezes também inserida
na própria mente do abusador.

O aspecto psicológico de sentir-se culpado está ligado ao aspecto


relacional da participação e resulta do fato de que a pessoa que
cometeu o abuso e a criança estão igualmente envolvidas no abuso
em termos interacionais. A distinção entre os aspectos legal e
psicológico de culpa significa que apenas o progenitor pode ser
considerado culpado. Mas a pessoa que cometeu o abuso e a criança
podem sentir-se igualmente culpados, como uma expressão dos
eventos psicológicos que derivam da experiência na interação
abusiva (FURNISS, 1993, p. 17).

Geralmente a síndrome é agravada pelas constantes ameaças dirigidas à


vítima que, temendo vê-las concretizadas, não revela os abusos sofridos.

Consoante Durrant e White,


[...] para manter o segredo, o adulto lança mão de diversas
estratégias, como atribuir à criança a responsabilidade pelo abuso
(“você me provocou”) ou pelas conseqüências prejudiciais à família
(decepcionar a mãe, provocar a separação da família), a ele (ser
preso, ficar doente ou morrer) e a ela própria (sofrer agressões físicas
ou ser morta por ele) caso revele o abuso. Essas estratégias, além do
uso da força, coação e ameaças, reforçam na vítima o medo e o
sentimento de culpa (MATTOS, apud FERRARI; VECINA, 2002, p.
179-180).

Complementar à síndrome do segredo, atribuída à vítima, ocorre a síndrome da


adição para o indivíduo agressor.

Para Furnis (1997), o abusador tem consciência de que os atos por ele
praticados são errados e passíveis de punição caso sejam descobertos;
entretanto, é compulsivamente impelido a praticá-lo repetidamente. A criança
ou o adolescente que é vítima do indivíduo abusador figura como um objeto de
excitação sexual.

É justamente esta excitação sexual do abusador que constitui o elemento


aditivo central para a reiteração de sua conduta criminosa. O produto resultante
da soma da excitação sexual e do subseqüente alívio sexual sentido pelo
abusador cria a dependência psicológica do indivíduo pelo seu objeto de
desejo e, paralelo a isto, é ocasionada a negação desta dependência.

A relação entre a síndrome do segredo e a síndrome da adição é clara: o


abusador se torna um adito da criança, tornando-se um dependente psicológico
do abuso praticado e, por isso, necessita que sua vítima guarde o segredo para
a continuação da adição.

2.3.2 Abuso sexual extrafamiliar

Neste tipo de violência sexual, o abusador não é um membro da família da


criança; entretanto, nada obsta que pertença ao círculo de relacionamento da
vítima.
Por este motivo é que em regra o abuso sexual extrafamiliar não implica a
“síndrome do segredo”, eis que geralmente inexistem laços afetuosos ou
consangüíneos entre abusador e abusado, o que torna de mais fácil detecção a
ocorrência do abuso.

3 DANO PRIMÁRIO E DANO SECUNDÁRIO DECORRENTES DE


ABUSO SEXUAL PRATICADO CONTRA MENORES

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As práticas abusivas podem afetar crianças e adolescentes de maneiras


diferenciadas: alguns podem apresentar nenhuma seqüela física e /ou
psicológica, ou apresentar efeitos mínimos; entretanto, outros são passíveis de
desenvolver sérios problemas de ordem física, emocional e/ou psiquiátrica.

Consoante Sanderson (2005), muitos estudos foram realizados no tocante aos


danos causados pelo abuso sexual infantil, sendo que os resultados obtidos
apontam que a afetação das vítimas varia de acordo com a análise dos fatores
envolvidos em cada caso.

Os efeitos psicológicos advindos dos abusos sexuais praticados contra


crianças e adolescentes, na maioria dos casos, são prejudiciais e nocivos.
Entretanto, nada obsta que se considere a possibilidade de que algumas
vítimas superem os traumas sofridos fazendo uma releitura positiva do que lhes
aconteceu, ocorrendo, então, o fenômeno da resiliência 9.
9
Termo usualmente empregado na Física e tomado emprestado pela Psicologia, que o definiu como a
capacidade de cada indivíduo em lidar com problemas, superar os obstáculos em seu caminho ou resistir
à pressão de situações diversas, como estresse. Trata-se, ainda, de uma tomada de decisão pela pessoa
ao se deparar com um contexto em que necessita decidir entre a tensão do ambiente e a vontade que
Os estudos revelaram que os impactos mais graves e, portanto, mais
prejudiciais poderiam ser calculados sopesando-se os seguintes fatores: idade
da criança à época da prática do abuso; a duração e a freqüência do abuso
sexual; os tipos de atos sexuais praticados; o emprego da força ou da
violência; o relacionamento da criança com o agente abusador; a idade e o
sexo do abusador e os efeitos gerados pela revelação do abuso.

A questão ora tratada é deveras importante, e deveria ser objeto de reflexão e


estudo por parte de todos os operadores do direito, sendo os conceitos de
dano primário e secundário particularmente importantes e pungentes a todos
os grupos profissionais que trabalham com o abuso sexual de crianças 10.

Os danos decorrentes das práticas abusivas perpetradas contra menores


podem ser de dois tipos: dano primário e dano secundário 11.

3.2 DANO PRIMÁRIO

Também denominado vitimização primária, o dano primário compreende todo e


qualquer efeito prejudicial causado pelas etapas do desenvolvimento do abuso
sexual, quais sejam as fases da sedução, da interação abusiva e do segredo,
consoante exposto no capítulo anterior, isto é, pelo crime em si.

Neste sentido, cogente trazer à baila o esclarecimento de Garrido (2002), ao


pontuar que

[...] se entende por vitimização o conjunto de efeitos e seqüelas que


se produzem na vítima, o sujeito passivo de um delito, como
conseqüência do mesmo. A esse sentimento de dor, em toda sua
extensão, produzido diretamente pelo delito se denomina Vitimização
Primária.
tem de vencer, optando por esta última.
10
CRAMI – Centro Regional de Atenção aos Maus-tratos na Infância (Org.). Abuso sexual doméstico:
atendimento às vítimas e responsabilização do agressor. UNICEF. 2 ed. São Paulo: Cortez, Brasília,
2005, p. 27.
11
Parte da doutrina cujo objeto de estudo é a revitimização de crianças e adolescentes sexualmente
abusados, destacando-se a doutrina espanhola, pontua acerca da ocorrência da vitimização terciária,
definida como a vitimização decorrente da estigmatização à qual a vítima é submetida pela sociedade.
Luciana Potter Bitencourt12 reportando-se a GUERRA E AZEVEDO (2000, p.
35), pontua que a vitimização enquanto violência interpessoal consiste em uma
forma de aprisionamento da vontade e do desejo da criança ou do adolescente
de maneira a submetê-los ao poder adulto com o intuito de coagi-las a
satisfazer seus interesses.

São os danos decorrentes da prática abusiva em essência, podendo ser físicos


emocionais e psicológicos, e consoante assevera a psicóloga Adriana
Cavaggioni13, pode causar lesões internas na criança, repercutindo seriamente
em sua capacidade de se relacionar afetivamente no decorrer de seu
desenvolvimento global.

Dentre as repercussões elencadas pela psicóloga, cabe colacionar as


seguintes:

 Alterações na área afetiva : depressão infantil, angústia, sentimento de


culpa, rigidez e inflexibilidade diante de situações cotidianas, insegurança,
medos e fobias, choro compulsivo sem motivo aparente.
 Alterações na área interpessoal: dificuldade em confiar no outro,
dificuldade em fazer amizades, dificuldade em estabelecer relações,
principalmente com pessoas mais velhas, apego excessivo a figura
“acusadora”.
 Alterações na área da sexualidade : não querer mostrar seu corpo, recusar
tomar banho com colegas, recusa anormal a exames médicos e
ginecológicos, vergonha em trocar de roupa na frente de outras pessoas.

Para Furniss (1993), os danos psicológicos estão associados a sete fatores,


quais sejam: a idade que a criança contava quando foi iniciada nas práticas
abusivas; a duração do abuso; o grau de violência ou da própria ameaça da
violência; a diferença de idade entre o abusador e a criança; a proximidade da

12
BITENCOURT, Luciana Potter. Vitimização Secundária Infanto-Juvenil – Por uma Política Pública de
Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 58.
13
CAVAGGIONI, Adriana. O uso do abuso sexual: o outro lado da história. Disponível em:
<http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=333>. Acesso em: 16 set. 2009.
relação entre a pessoa que abusou e a criança; a ausência de figuras parentais
protetoras e o grau de segredo.

Com as seqüelas legadas pelos danos causados ocorre um comprometimento


do desenvolvimento normal esperado da criança, que pode ser o elemento
primitivo de inserção de futuros agressores na esfera da violência.

As conseqüências tendem a ser mais devastadoras com o desenvolvimento da


criança vítima de abuso sexual, podendo ser agravadas face ao prolongado
período de ocorrência do abuso e pela não obtenção de tratamento psicológico
ou psiquiátrico adequado.
A criança que é vítima de abuso sexual prolongado, usualmente
desenvolve uma perda da auto-estima, tem a sensação de que não
vale nada e adquire uma representação anormal da sexualidade,
além de poder tornar-se muito retraída, perder a confiança em adultos
e pode até chegar a considerar o suicídio, principalmente quando
existe a possibilidade da pessoa que a abusa ameaçar de violência
se a criança negar-se aos seus desejos. Algumas dessas crianças
podem ter dificuldades para estabelecer relações harmônicas com
outras pessoas, podem se transformar em adultos que também
abusam de outras crianças, podem se inclinar para a prostituição ou
podem ter outros problemas sérios quando adultos (BALLONE, 2005,
p. 2).

GUERRA E AZEVEDO (2000, p. 128) pontuam acerca das conseqüências


físicas causadas pela prática sexual abusiva e decorrentes da violência
useiramente empregada, destacando, para tanto:

 Lesões físicas em geral: lesões causadas pelo ato em si, que vão desde
hematomas até a própria morte da vítima.
 Lesões genitais: geralmente ocorrem na vulva, com mais freqüência
quando os órgãos genitais ainda não estão maduros para a prática do ato
sexual; dependem da violência e da força empregadas pelo abusador.
 Lesões anais: normalmente ocorre sangramento intenso com
conseqüentes lesões; em um grau crescente de traumatização poderá
ocorrer rotura da esfíncter anal, ocasionando a perda involuntária de
fezes;
 Doenças sexualmente transmissíveis: o contágio se dá pelo ato sexual ou
pelos atos que precederam o coito; podem ser citadas sífilis, gonorréia,
herpes genital e AIDS.

3.3 DANO SECUNDÁRIO

O dano secundário, também decorrente do abuso sexual, “é aquele causado


por fatores diversos e subseqüentes ao abuso” (DOBKE, 2001, p. 23), sendo,
então, um aprofundamento dos danos causados pela violência sexual em si.

Consiste na vitimização secundária, também chamada de revitimização,


causada pela violência com que o aparato repressivo estatal procede à oitiva
das crianças sexualmente violentadas, quando utiliza de maneira inadequada
os meios de controle social.

O dano secundário e a vitimização à qual a criança se encontra


invariavelmente exposta podem, muitas vezes, ser maiores do que o dano
causado pelo próprio abuso sexual vivenciado.

Sustenta PISA E STEIN (2007, p. 465) que as diversas intervenções não


especializadas e desvinculadas do necessário respeito à integridade
psicológica das pequenas vítimas podem produzir um dano ou traumatismo
maior nos relacionamentos familiares e nas crianças individualmente do que no
abuso original.

Sobre a revitimização das crianças sexualmente abusadas e a intervenção


realizada pelo Poder Judiciário, afirma BITENCOURT (2009, p. 97) que:

A criança que já sofreu uma violação do seu direito experimenta


novamente outra violação, nesse momento, dos operadores do
direito, que deveriam lidar com a criança de forma mais profissional e
consciente quando da apuração do evento delituoso: essa violação
advém de uma equivocada abordagem realizada para comprovar o
fato criminoso e que poderá ser tão ou mais grave do que o próprio
abuso sexual.
4 OITIVA JUDICIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS
DE ABUSOS SEXUAIS

4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O dano secundário infligidos às crianças e aos adolescentes no âmbito


procedimental encontra-se intimamente relacionado ao modo como são
realizadas as audiências para oitiva das vítimas.

Juízes, Promotores de Justiça, Advogados e demais operadores do Direito não


possuem, em regra, o devido preparo técnico e por vezes psicológico para lidar
com as questões correlatas ao abuso sexual, o que resulta em inquirições de
vítimas mal conduzidas, absolvição do acusado por insuficiência de provas e,
obviamente, dano psicológico à vítima do abuso.

Necessário, então, realizar alguns apontamentos sobre a realização das


inquirições das pequenas vítimas de crimes sexuais para entender sua relação
com o processo de revitimização, para, ao final, analisar possíveis soluções
para minimizar ou até evitar a ocorrência de dano secundário.

4.2 NORMAS VIGENTES PARA OITIVA JUDICIAL DE MENORES VÍTIMAS


DE ABUSOS SEXUAIS. CRÍTICAS À SISTEMÁTICA VIGENTE

De acordo com o Código de Processo Penal Brasileiro, crianças e


adolescentes vítimas de crimes sexuais, sem diferenciação de idade, são
ouvidas em audiência da mesma forma como são inquiridas testemunhas
adultas.

As normas vigentes para a oitiva judicial encontram-se dispostas no Capítulo V,


denominado “Das perguntas ao ofendido”, estando aí inserido o artigo 201; e
também no Capítulo VI do CPP, intitulado “Das testemunhas”, do artigo 202 ao
artigo 225, as diretrizes e formalidades processuais a serem observadas para a
realização do ato solene (ANEXO A).

Ao disciplinar em capítulos diversos a inquirição judicial de ofendido (vítima) e


testemunhas, o Código de Processo Penal pátrio deixou claro que o ofendido
não é testemunha do processo e, por este motivo, não presta o compromisso
legal de dizer a verdade previsto no artigo 203 do citado código.

Entretanto, tal diferenciação não possui o condão de elidir a importância das


declarações prestadas pelo ofendido, que possuem relevância especial,
principalmente em sede de delitos que atentam contra a liberdade sexual,
rotineiramente praticado às ocultas, constituindo-se, então, em meio de prova
eficaz14 15.

Importa dizer que as normas que disciplinam a tomada de declarações das


testemunhas são aplicadas, no que couberem, à oitiva dos ofendidos.

O sistema adotado pelo CPP para a tomada de declarações tanto do ofendido


quanto das testemunhas é o denominado sistema presidencial, de acordo com
o qual o juiz é quem preside a audiência, sendo assegurado às partes, após a
reforma do artigo 212 do CPP pela Lei nº. 11.690/2008, de 09 de junho de
2008, que entrou em vigor 60 dias depois, o direito de inquirirem diretamente
as testemunhas.

Da leitura dos Capítulos V e VI do CPP, forçoso é observar que em dispositivo


algum do código são encontradas normas especiais e diferenciadas para a
realização da inquirição de crianças e adolescentes, não restando à vítima
infanto-juvenil outra opção que não enfrentar o aparato judicial e colaborar com

14
Vide ementa: SUSPENSÃO DO PODER FAMILIAR. ABUSO SEXUAL. MEDIDA DE PROTEÇÃO À
FILHA. SITUAÇÃO DE RISCO. 1. Os casos de abuso sexual são extremamente graves, sendo que a
palavra da vítima tem especial relevância, mormente quando a violência vem corroborada pelos demais
elementos de convicção. 2. Impõe-se a suspensão do poder familiar da genitora quando existem indícios
veementes de que o padrasto praticou atos de violência sexual contra a enteada, e ela não tomou
providência alguma para proteger a filha, sendo que, após ter mais ecimento do fato, ainda continuou a
conviver com o mesmo e até se revoltou contra a filha. Incidência do art. 1.638, inc. III, do CCB. 3. A
suspensão do poder familiar é necessária para que a adolescente tenha condições de se desenvolver de
forma saudável e desfrutar de uma vida melhor, mais equilibrada e feliz. 4. Como a filha foi vitimada por
um ambiente familiar doentio, imperiosa a aplicação de medida de proteção. Incidência do art. 101, inc. V,
do ECA. Recurso desprovido. (TJ-RS - Apelação Cível nº 70031419815, 7ª Câmara Cível. Des. Rel.
Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. j. 30/09/2009. p. 30/09/2009). RIO GRANDE DO SUL, Tribunal
de Justiça. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em 15 out. 2009.
15
Vide ementa: APELAÇÃO CRIMINAL - CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL - ESTUPRO E
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR - SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO - ABSOLVIÇÃO -
INADMISSIBILIDADE - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - PALAVRA DA VÍTIMA -
REDUÇÃO DAS PENAS - CONTINUIDADE DELITIVA - POSSIBILIDADE. 1. Restando comprovadas a
materialidade e autoria dos delitos, não há que se falar em absolvição por insuficiência de provas, pois em
se tratando de crimes contra a liberdade sexual e de delito conexo de seqüestro e cárcere privado, a
palavra da vítima prevalece sobre a negativa do agente, ainda mais quando corroborada por outros
elementos de prova. 2. Constatando-se que as penas do agente foram fixadas com certa exacerbação,
pois sendo este primário e possuidor de circunstâncias judiciais em sua maioria favoráveis, a pena deve
tender para o mínimo legal ou próximo deste. 3. Em que pese ao dissenso pretoriano, é de se reconhecer
a continuidade delitiva entre os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, pois sendo estes da
mesma espécie, posto que atingem o mesmo bem jurídico protegido, ou seja, a liberdade sexual,
sucessivamente praticados nas mesmas condições de tempo, lugar, modo de execução, estão ligados
pelo nexo de continuidade, havendo, assim, a incidência da regra prevista no art. 71 do CP. 4. Recurso
parcialmente provido” (TJ-MG - Apelação Criminal nº. 1.0141.07.001367-9/001(1). 1ª Câmara Criminal.
Des. Rel. Judimar Biber. j. 18/08/2009. p. 22/09/2009). MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça. Disponível
em: <www.tjmg.jus.br>. Acesso em 15 out. 2009.
a investigação em andamento, a despeito de sua idade e do crime a que foi
submetida.

Há que ressaltar que crianças e adolescentes possuem níveis de


desenvolvimentos cognitivo, intelectual e psicossocial diferentes dos adultos, e
posto que são seres em franco desenvolvimento, deveriam receber, no tocante
a sua inquirição, tratamento judicial diferenciado, de modo a respeitar suas
peculiaridades etárias.

Consoante bem aduz FURNISS (1993, p. 197),

É de crucial importância comunicar-se ao nível real de


desenvolvimento cognitivo, intelectual, psicossocial e psicossexual da
criança. Nós precisamos levar em conta que as crianças pequenas
podem responder às perguntas sobre fatos objetivos no contexto dos
aspectos de relacionamento com o entrevistador. Dessa forma, uma
criança pode facilmente nos dizer aquilo que pensa que queremos
ouvir.

O sistema processual penal brasileiro não está voltado para a tutela de


proteção integral da vítima, de modo a diminuir o processo de revitimização.
Com o esforço cego de encerrar a instrução processual no menor tempo
possível ou até, na pior das hipóteses, com o intuito de mascarar a atecnia que
em sede de preparo para lidar com vítimas de crimes sexuais é corriqueira,
Juízes, Promotores de Justiça e Advogados se desdobram em
questionamentos à vítima que nada mais acarretam do que infração à sua
dignidade como pessoa humana.

Face ao despreparo e à despreocupação com o que o Poder Judiciário lida


com as vítimas durante a instrução das Ações Penais, e por quê não dizer, até
mesmo antes da realização das audiências, quando deveriam ser acolhidas
inicialmente de modo a se evitar o típico receio que a maioria das pessoas
possui em comparecer a uma audiência judicial, o prejuízo do trauma causado
é considerável, por vezes superando os revezes ocasionados pela prática
criminal abusiva.

FURNISS (1993, p. 24) relata, sabiamente, que:


Uma das maiores causas de dano secundário as crianças que
sofreram abuso sexual e de fracasso profissional é a imensa pressão
sobre os profissionais e o sentimento que temos de fingir que
conseguimos enxergar perfeitamente e que sabemos exatamente
como agir. Mas nenhum de nós sabe ainda.

A relação de causa e conseqüência existente entre a inquirição judicial de


crianças e adolescentes vítimas de práticas sexuais abusivas e o dano
secundário dela decorrente torna-se clara: o sistema de justiça criminal
brasileiro é estruturalmente inadequado no tocante à tutela necessária dos
direitos infanto-juvenis, motivo pelo qual deve ser objeto de reflexão por parte
de toda a sociedade jurídica e de mudança por parte do Poder Legislativo.

Consoante salienta CÉZAR (2007, p. 107),

Também não raras vezes são dirigidas perguntas irresponsáveis e


despropositadas para as vítimas, que só em ouvi-las, embora não
sejam respondidas pelas vítimas demonstram que o tratamento que
lhes é dado é inapropriado, em alguns casos até mesmo ofensivo;
[...].

Sobre situações vexatórias às quais, muitas vezes, as vítimas são expostas em


audiência e sua relação com o dano secundário nelas causados, o ilustre
magistrado Dr. José Antônio Daltoé Cezar16 expõe um exemplo de caso por ele
vivenciado em sua magistratura:

Recordo-me que entre os anos de 1993 e 1997, quando jurisdicionei


em vara criminal na cidade de São Leopoldo, cidade de médio porte
situada na região metropolitana de Porto Alegre, em uma audiência
que se realizava para ouvida de uma vítima de estupro – a
adolescente tinha apenas 12 anos, o exame de corpo de delito
atestava o recente desvirginamento, e estava ela bastante
traumatizada, chorando e apresentando dificuldades de conter as
suas emoções – perguntou o advogado de defesa, com um ar até
jocoso, se ela tinha atingido o orgasmo (gozado) naquela relação. Por
óbvio a pergunta foi indeferida, assim como o advogado, advertido da
impropriedade de suas indagações; todavia, o prejuízo já havia
ocorrido, a vítima não foi respeitada em um momento de extrema dor.

16
José Antônio Daltoé Cezar é natural de Porto Alegre/RS. Especializou-se em Direito da Criança e do
Adolescente pela Fundação Escola do Ministério Público do Rio Grande do Sul em 2006. Atua como Juiz
da Infância e Juventude desde o ano de 1996, sendo atualmente titular da 2ª Vara do da Infância e
Juventude da Comarca de Porto Alegre/RS. Mentor do “Projeto Depoimento Sem Dano”, adotado na
mencionada Vara em 2003 e implantado institucionalmente pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
em 2004.
É ilógico conceber dentro do Estado Democrático de Direito um Estado-
Sociedade que não se preocupa com o bem-estar de suas crianças e
adolescentes, especialmente quando eles são vítimas de crimes sexuais.

Ora, dentre os deveres inerentes ao Estado enquanto poder jurídico está o de


proteger suas vítimas de danos subseqüentes aos àqueles já sofridos por
crimes de quaisquer espécies. Entretanto, quando se analisa a fundo o sistema
judicial brasileiro, consta-se tristemente que o caminho que as vítimas de
crimes sexuais percorrem em um processo judicial se traduz em um sistema
estatal de violência17.

5 SOLUÇÕES PROPOSTAS PARA A REDUÇÃO DO DANO


SECUNDÁRIO INFANTO-JUVENIL – POLÍTICAS PÚBLICAS

5.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

17
BITENCOURT, Luciana Potter. Vitimização Secundária Infanto-Juvenil – Por uma Política Pública de
Redução de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 90.
Conforme visto anteriormente, o dano secundário decorre, principalmente, da
má condução da oitiva judicial de vítimas de abusos sexuais, mormente quando
estas são crianças ou adolescentes. É uma conseqüência direta tanto do
despreparo de considerável maioria dos operadores do Direito em lidar tanto
com temas correlatos às práticas sexuais abusivas e com as próprias vítimas
dos abusos, quanto da impropriedade do aparato judicial.

Considerando-se o modo como são, atual e useiramente, realizadas as


inquirições judiciais de crianças e adolescentes vítimas de práticas abusivas, e
tendo-se por certo que a maneira como estas ocorrem são causa direta do
processo de revitimização, razoável é pensar que o hodierno sistema de oitiva
judicial muito provavelmente não seja o mais adequado.

Diante disso, questiona-se: quais soluções podem ser adotadas pelo Poder
Público para se reduzir o dano secundário em crianças e adolescentes vítimas
de práticas sexuais abusivas?

Do estudo aprofundado e em análise acurada da literatura especializada neste


assunto, torna-se possível responder, com propriedade, à pergunta acima
formulada, elencando-se as principais soluções propostas pelos estudiosos
para a redução do dano secundário em crianças e adolescentes sexualmente
abusados.

5.2 SOLUÇÕES PROPOSTAS

5.2.1 Câmara de Gesel

A denominada Câmara de Gesel consiste em uma sala com uma das paredes
feita em vidro espelhado unidirecional, que permite a quem estiver do lado de
fora da sala não ser enxergado por quem se encontre no interior da mesma.
A realização da oitiva da judicial da vítima em uma sala como esta tem por
objetivo impedir o contato direto entre vítima e agressor, uma vez que tanto
operadores do Direito quanto o próprio réu não são vistos pela vítima, eis que
se postam do lado de fora da sala, atrás do vidro espelhado.

Os questionamentos pertinentes à instrução processual, ressaltam Sanz e


Molina (1999) são repassados a um profissional habilitado, o “intérprete” e, por
conseguinte, à criança via intercomunicadores, como foi adotado em comarcas
da Argentina (ANEXO B), sendo filmada toda a inquirição da vítima.

Rozansky (2003) pontua acerca da utilização da Câmara de Gesel, lecionando


que:

Todo depoimento em uma sala de audiências de um tribunal implica


algum grau de stress. Esse estado invade tanto as testemunhas como
as vítimas dos delitos. Aumenta, por sua vez, sensivelmente, quando
se trata de agressões sexuais. No caso das vítimas, a comoção é
logicamente maior, já que deverão reviver fatos altamente traumáticos
e relatar circunstâncias vinculadas à sua mais profunda intimidade,
com detalhes que são requisitados às vezes por necessidades
processuais, e outras, nem tanto. [...] Nesse sentido, a melhor
alternativa é estabelecer um sistema de entrevistas com as vítimas
infantis a cargo exclusivo dos especialistas forenses e no âmbito de
uma câmara de Gesel. O vidro espelhado, assim como a filmagem
em vídeo ou áudio direto, permite que, no ato do mesmo exame, o
tribunal e as partes – por seu intermédio – comuniquem ao
especialista suas inquietudes, que serão satisfeitas na medida que
isso não afete o desenvolvimento normal do ato e não ponha em
perigo a integridade da criança. Os membros do tribunal e as partes
podem observar as entrevistas – de fora da sala – e comunicar suas
inquietudes ao entrevistador.

Como se verifica, os princípios constitucionais do Contraditório e da Ampla


Defesa, previstos no artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal, são
preservados, uma vez que todos os operadores envolvidos na lide podem
participar formular questionamentos.

Este modo de realização da oitiva prescinde de anuência da defesa e preserva


os direitos da criança previstos no artigo 227 da Carta Magna, destacando-se
dentre eles o direito à dignidade e ao respeito.
5.2.2 Substituição da inquirição judicial da vítima, sendo ela criança ou
adolescente, por uma avaliação técnica

Para que a oitiva judicial das pequenas vítimas seja substituída por uma
avaliação técnica, é necessária a aquiescência tanto da defesa do acusado
quanto da acusação.

O objetivo desta substituição é justamente preservar a integridade psicológica


da vítima do abuso mediante sua oitiva por um especialista com formação em
psicologia evolutiva e capacitação na problemática do abuso sexual. Caberá ao
especialista a obtenção de um relato que possa ser valorado como prova dos
autos, evitando-se, com isso, infligir dano secundário à criança ou ao
adolescente.

Visa-se, por intermédio dessa substituição, proteger a integridade psicológica


da criança e do adolescente, evitando-se, desta maneiram uma inquirição
judicial que resulte em danos maiores daqueles perpetrados pelos atos sexuais
abusivos.

A preocupação no tocante à preservação da dignidade da criança e do


adolescente envolvidos na problemática da oitiva judicial se faz sentir nas
instâncias superiores, consoante se observa da ementa abaixo transcrita
extraída dos Embargos Infringentes nº. 698378338 (RJTJRS nº. 192/58) 18,
onde a substituição ora tratada foi ratificada e a condenação de 1º grau foi
mantida.

Veja-se:

ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PROVA. REU PORTADOR DE


PEDOFILIA, COM ANTECEDENTES CRIMINAIS ESPECIFICOS,
QUE, ACUSADO DE NOVA DESSE GENERO, SE DEFENDE COM
VERSOES INVEROSSIMEIS, ATRIBUINDO A PEQUENA VITIMA,
DE APENAS SETE ANOS, CONDUTA QUE FERE O QUE RESULTA
DE REGRAS DE EXPERIENCIA. VERSOES, POREM ONDE
ADMITIDO, AO MENOS, UM BEIJO E QUE O PENIS DO REU,
MESMO QUE POR DESATENCAO, ESTEVE A MOSTRA DA
18
RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 20 out. 2009.
O inteiro teor do acórdão não se encontra disponibilizado no site.
OFENDIDA. VITIMA. OUTROSSIM, QUE, AVALIADA, AINDA
APRESENTAVA SEQUELAS PSICOLOGICAS DO OCORRIDO.
CONDENACAO CONFIRMADA. EMBARGOS REJEITADOS.
(Embargos Infringentes Nº 698378338, Primeiro Grupo de Câmaras
Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira
Pereira, Julgado em 06/11/1998).

Insta salientar que parte dos estudiosos do tema defende que esta prática fere
os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido
processo legal, eis que a defesa técnica e pessoal do acusado, corolários
destes princípios, restaria prejudicada.

Há outro agravante na questão da substituição da oitiva judicial pela defesa


técnica: mesmo que se entenda esta prática não ferir os princípios acima
citados, há que se considerar a possibilidade da defesa do acusado não
concordar com a substituição, o que obstaria, no caso concreto, a obtenção da
citada substituição.

5.2.3 Capacitação dos Operadores do Direito

Conforme se pôde observar da leitura atenta deste texto monográfico, muito se


falou sobre a necessidade da capacitação dos operadores do direito para
lidarem com a problemática do abuso sexual praticado contra menores, eis que
o assunto ora tratado transcende a esfera jurídica e revela o caráter
interdisciplinar das ciências.

Esta medida, face ao seu elevado grau de importância decorrente de sua


imperiosa necessidade, se revela uma das maiores e mais eficazes políticas
públicas para a redução das seqüelas ocasionadas pelo dano secundário.

Sabe-se que a abordagem à qual a criança e o adolescente são submetidos


quando adentram à esfera judicial é determinante para desencadear – ou não –
o processo de revitimização.
Ora, o problema das oitivas em Juízo de vítimas de crimes sexuais mal
conduzidas não está somente na defasagem estrutural do sistema judicial;
está, também, com aqueles que lidam diretamente com as pequenas vítimas:
juízes, promotores de justiça, defensores públicos e advogados.

Necessário se faz que tanto aqueles que aplicarão a lei, quanto aqueles que
são custus legis da mesma e os que defenderão seus clientes da aplicação das
sanções penais, sejam preparados tecnicamente para a árdua tarefa que se
impõe: zelar pela devida aplicação da Justiça sem que, em troca da obtenção
inveterada de um resultado favorável a qualquer uma das partes da lide
judicial, seja infligido à vítima um dano tão ou mais profundo do que o abuso
sexual sofrido anteriormente, do qual a recuperação psicológica é deveras
difícil.

Cogente trazer à lúmen o ensinamento da Promotora de Justiça do Estado do


Rio Grande do Sul Veleda Dobke, ao pontuar que:

Além da capacidade pessoal de lidar com a situação do abuso sexual


infantil, os operadores do direito necessitam de conhecimentos
específicos sobre a dinâmica do abuso sexual infantil, sobre a
estrutura familiar, no caso de o abuso ser intrafamiliar, e noções
sobre conceitos básicos de psicologia para melhor inquirir a criança.
Tais conhecimentos levam os profissionais a uma atuação mais
adequada (DOBKE, 2001).

Necessário se faz observar que a questão do abuso sexual como objeto de


estudo é transdisciplinar, devendo ruir as barreiras há muito erigidas em torno
de cada conhecimento profissional, de maneira a serem interligadas as
diversas áreas de conhecimento voltadas à essa questão, tais como
operadores da área jurídica, psicólogos e assistentes sociais.

5.2.4 Experiência do Projeto “Depoimento Sem Dano”

O Projeto “Depoimento Sem Dano” (DSD) é fruto da dedicação de uma equipe


composta por dez integrantes que se debruçou, por cerca de cinco anos,
contados a partir de 1998, em estudos de matérias nas áreas de Psicologia e
Psicanálise. Foi realizada, então, no dia 06 de maio de 2003, na 2ª Vara do
Juizado da Infância e Juventude da Comarca de Porto Alegre, a primeira
audiência nos moldes do DSD, e no ano de 2004, por força de decisão do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, adquiriu caráter
institucional.

Em síntese, o Projeto DSD consiste na retirada da vítima do ambiente da sala


de audiência, que é levada para uma sala especialmente projetada e
ambientada para sua inquirição; nesta sala permanecem somente a vítima
(criança ou adolescente) e o “intérprete”, preferencialmente um psicólogo ou
assistente social, com conhecimentos teóricos relativos à dinâmica das práticas
sexuais abusivas e com experiência em perícias.

A sala especial é interligada à sala de audiência por intermédio de aparelhos


de áudio e vídeo, o que possibilita ao magistrado, ao acusado e sua defesa
técnica acompanharem o desenrolar da oitiva da vítima.

Insta salientar que as perguntas iniciais são formuladas pelo magistrado, mas
no caso desta modalidade de tomada de depoimento, em regra, o “intérprete”
também as realiza, desde que assim seja previamente autorizado pelo juiz.
Caberá ao “intérprete” repassar (ou fazer, se for o caso) à vítima as perguntas
da melhor maneira possível, com o intuito de não lhe causar constrangimentos,
e também interpretar os resultados obtidos da inquirição.

O objetivo principal do Projeto é busca pela redução do dano infligido às


vítimas quando são inquiridas judicialmente, tentando, para tanto, conciliar,
especialmente, os princípios do contraditório e da ampla defesa com os
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da prioridade
absoluta ao atendimento dos direitos da criança e do adolescente (CÉZAR,
2007).

5.2.4.1 Dinâmica do Projeto


O Projeto “Depoimento Sem Dano” possui a seguinte sistematização para a
realização da inquirição de um menor sexualmente abusado:

 Acolhimento inicial: o responsável legal pelo menor é intimado a


comparecer à audiência com uma antecedência de, no mínimo, trinta
minutos, onde tanto o responsável legal quanto o menor serão acolhidos
pelo psicólogo ou assistente social. A sala especialmente montada para a
oitiva é mostrada, bem como é explicado à vítima o papel que
desempenhará no decorrer do depoimento. Esta prática visa evitar que
acusado e vítima se encontrem, evitando, assim, maiores traumas
psicológicos a esta e a obtenção de um depoimento dúbio ou até
inconsistente por parte do indivíduo abusado.
 Depoimento judicial: a inquirição da vítima dura entre vinte e trinta minutos
ininterruptos de gravação em áudio e vídeo, que posteriormente será
degravada e juntada aos autos, com o CD em anexo na contracapa do
processo. As perguntas são formuladas pelo juiz e repassadas, via ponto
eletrônico, ao “intérprete”, havendo, como já dito, a possibilidade do
próprio “intérprete” formular as perguntas diretamente à vítima, com prévia
autorização do magistrado. É facultado, posteriormente, à defesa e à
acusação, conforme for a ordem das perguntas, formular indagações à
vítima, sendo obedecidos, portanto, os princípios do contraditório e da
ampla defesa.
 Acolhimento final e encaminhamentos, se assim forem necessários : após
o encerramento da oitiva da vítima, os aparelhos de vídeo e áudio são
desligados e o “intérprete” permanece na sala, juntamente com a vítima e
sua família, por cerca de meia hora. O objetivo é que a criança ou o
adolescente se sinta valorizado como sujeito de direitos, e não como um
objeto para a obtenção de um resultado (condenação do acusado)
(CÉZAR, 2007). Caso se constate ser necessário, o técnico poderá
encaminhar a vítima para atendimento psicológico especializado, com o
intuito de que receba o tratamento adequado para o seu caso.
Contudo, a despeito da eficácia comprovada do Projeto DSD 19, existem alguns
entraves no tocante à sua aplicação judicial.

A atuação do Psicólogo na inquirição da vítima nos moldes do Projeto


necessita ser regulamentado tanto pelo Código de Ética da Psicologia como
em uma futura – e muito esperada – mudança no Estatuto da Criança e do
Adolescente.

Ainda, a maioria dos magistrados e, também, dos Egrégios Tribunais de Justiça


do país, não aceita a oitiva das vítimas menores nos moldes do Projeto, o que
limita e protela consideravelmente a discussão acerca da problemática
estrutural do sistema judicial.

No âmbito da tentativa levar a discussão sobre possíveis e necessárias


mudanças na legislação penal e processual penal pátrias, uma iniciativa se faz
notar: a partir das bases lançadas pelo Projeto DSD foram criados os Projetos
de Lei nº. 5.329/2005 e nº. 7.524/2006, que tramitaram em conjunto na Câmara
Federal dos Deputados, com uma louvável proposta de alteração do Código de
Processo Penal pátrio, inserindo-se neste diploma legal o Capítulo IV-A,
versando sobre o processo e julgamento dos crimes contra a liberdade sexual
com vítima ou testemunha sendo criança ou adolescente.

Quando em votação na citada casa legislativa (Comissão Parlamentar Mista de


Inquérito), foi aprovado, em 17 de maio de 2007, um Substitutivo ao Projeto de
Lei nº. 4.126/2004 (ANEXO C), de autoria da Deputada Federal Maria do
Rosário, que

Acrescenta a Seção VIII ao Capítulo III – Dos Procedimentos – do


Título VI – Do Acesso à Justiça – da Parte Especial da Lei nº 8.069
de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente,
dispondo sobre a forma de inquirição de testemunhas e produção
antecipada de prova quando se tratar de delitos tipificados no Título
VI, Capítulo I, do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 —
Código Penal, com vítima ou testemunha criança ou adolescente e

19
Entre os anos de 2003, quando foi iniciado o Projeto, e 2005, após completar trinta e dois meses de
funcionamento, foram realizadas, nos moldes do Projeto DSD, 398 inquirições, assim distribuídas: 55 no
ano de 2003, 138 no ano de 2005 e 205 no ano de 2005 (Cezar, 2007, p. 64).
acrescenta o Art. 469-A ao Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de
1941 – Código de Processo Penal20.

Na prática, o Projeto DSD já foi implantado nas Comarcas das cidades de


Goiânia/GO, Cuiabá/MT, Porto Velho/RO, Serra/ES, Rio Branco/AC e
Natal/RN, onde conta com o apoio da Associação Brasileira Associação
Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da
Infância e da Juventude (ABMP), Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Conselho Regional de Serviço
Social/RS, Ministério Público do Distrito Federal, dentre outras entidades 21.

20
SENADO FEDERAL. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 27 out. 2009.
21
Informação obtida através do site <www.magrs.net>. Acesso em: 28 out. 2009.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou demonstrar a relação existente entre a inquirição judicial


de crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais e o processo de
revitimização ao qual são submetidos, motivo pelo qual se conclui que a
inquirição destas pequenas vítimas nos moldes impostos pelo sistema judicial
vigente necessita ser repensada.

As leis processuais permanecem as mesmas no decorrer do tempo, a despeito


das mudanças pelas quais a sociedade brasileira passa. Entretanto, a urgente
modificação de que estas leis carecem significa primar pela observância de
preceitos constitucionais elevados, ainda mais quando se verifica que a
dignidade humana de menores vítimas de práticas sexuais abusivas é
lesionada pelo próprio Judiciário, ao não lhes conferir tratamento judicial
adequado.

Enquanto mudanças substanciais não ocorrem na legislação pátria, propostas


de melhorias são pensadas por operadores do direito e de áreas correlatas
engajados socialmente, como se verificou através das soluções elencadas
neste trabalho para a redução do dano secundário.

Tais propostas não são apenas pensadas; antes, são colocadas em prática,
servindo de exemplo e objeto de reflexão para a comunidade jurídica, além de
tornar menos sofrida a realidade de crianças e adolescentes expostos a um
sistema estatal precário e despreocupado.
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ANEXO A

Artigo 201 ao artigo 225 do Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº. 3.689 de 03
de outubro de 1941)

CAPÍTULO V
DO OFENDIDO

(Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

        Art. 201.  Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as
circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar,
tomando-se por termo as suas declarações. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

        § 1o  Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido
poderá ser conduzido à presença da autoridade. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

        § 2o  O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do
acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos
que a mantenham ou modifiquem. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

        § 3o  As comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele indicado,
admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico. (Incluído pela Lei nº 11.690, de
2008)

        § 4o  Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço
separado para o ofendido. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

        § 5o  Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento
multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a
expensas do ofensor ou do Estado.  (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
        § 6o  O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada,
honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação
aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar
sua exposição aos meios de comunicação. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

CAPÍTULO VI
DAS TESTEMUNHAS

        Art. 202.  Toda pessoa poderá ser testemunha.

        Art. 203.  A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que
souber e Ihe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua
residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de
alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber,
explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se
de sua credibilidade.

        Art. 204.  O depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha
trazê-lo por escrito.

        Parágrafo único.  Não será vedada à testemunha, entretanto, breve consulta a


apontamentos.

        Art. 205.  Se ocorrer dúvida sobre a identidade da testemunha, o juiz procederá à


verificação pelos meios ao seu alcance, podendo, entretanto, tomar-lhe o depoimento desde
logo.

        Art. 206.  A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor. Poderão, entretanto,
recusar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que
desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for
possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias.

        Art. 207.  São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício
ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem
dar o seu testemunho.

        Art. 208.  Não se deferirá o compromisso a que alude o art. 203 aos doentes e deficientes
mentais e aos menores de 14 (quatorze) anos, nem às pessoas a que se refere o art. 206.

        Art. 209.  O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das
indicadas pelas partes.

        § 1o Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se
referirem.

        § 2o Não será computada como testemunha a pessoa que nada souber que interesse à
decisão da causa.

        Art. 210.  As testemunhas serão inquiridas cada uma de per si, de modo que umas não
saibam nem ouçam os depoimentos das outras, devendo o juiz adverti-las das penas
cominadas ao falso testemunho. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

        Parágrafo único. Antes do início da audiência e durante a sua realização, serão
reservados espaços separados para a garantia da incomunicabilidade das testemunhas.
(Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
        Art. 211.  Se o juiz, ao pronunciar sentença final, reconhecer que alguma testemunha fez
afirmação falsa, calou ou negou a verdade, remeterá cópia do depoimento à autoridade policial
para a instauração de inquérito.

        Parágrafo único.  Tendo o depoimento sido prestado em plenário de julgamento, o juiz, no


caso de proferir decisão na audiência (art. 538, § 2o), o tribunal (art. 561), ou o conselho de
sentença, após a votação dos quesitos, poderão fazer apresentar imediatamente a testemunha
à autoridade policial.

        Art. 212.  As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não
admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou
importarem na repetição de outra já respondida. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

        Parágrafo único.  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a
inquirição. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

        Art. 213.  O juiz não permitirá que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais,
salvo quando inseparáveis da narrativa do fato.

        Art. 214.  Antes de iniciado o depoimento, as partes poderão contraditar a testemunha ou


argüir circunstâncias ou defeitos, que a tornem suspeita de parcialidade, ou indigna de fé. O
juiz fará consignar a contradita ou argüição e a resposta da testemunha, mas só excluirá a
testemunha ou não Ihe deferirá compromisso nos casos previstos nos arts. 207 e 208.

        Art. 215.  Na redação do depoimento, o juiz deverá cingir-se, tanto quanto possível, às
expressões usadas pelas testemunhas, reproduzindo fielmente as suas frases.

        Art. 216.  O depoimento da testemunha será reduzido a termo, assinado por ela, pelo juiz
e pelas partes. Se a testemunha não souber assinar, ou não puder fazê-lo, pedirá a alguém
que o faça por ela, depois de lido na presença de ambos.

        Art. 217.  Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou
sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do
depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma,
determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu
defensor. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

        Parágrafo único. A adoção de qualquer das medidas previstas no caput deste artigo
deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram. (Incluído pela Lei nº
11.690, de 2008)

        Art. 218.  Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo


justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja
conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

        Art. 219. O juiz poderá aplicar à testemunha faltosa a multa prevista no art. 453, sem
prejuízo do processo penal por crime de desobediência, e condená-la ao pagamento das
custas da diligência. (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)

        Art. 220.  As pessoas impossibilitadas, por enfermidade ou por velhice, de comparecer


para depor, serão inquiridas onde estiverem.

        Art. 221. O Presidente e o Vice-Presidente da República, os senadores e deputados


federais, os ministros de Estado, os governadores de Estados e Territórios, os secretários de
Estado, os prefeitos do Distrito Federal e dos Municípios, os deputados às Assembléias
Legislativas Estaduais, os membros do Poder Judiciário, os ministros e juízes dos Tribunais de
Contas da União, dos Estados, do Distrito Federal, bem como os do Tribunal Marítimo serão
inquiridos em local, dia e hora previamente ajustados entre eles e o juiz.  (Redação dada pela
Lei nº 3.653, de 4.11.1959)

        § 1o O Presidente e o Vice-Presidente da República, os presidentes do Senado Federal,


da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal poderão optar pela prestação de
depoimento por escrito, caso em que as perguntas, formuladas pelas partes e deferidas pelo
juiz, Ihes serão transmitidas por ofício. (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)

        § 2o Os militares deverão ser requisitados à autoridade superior.   (Redação dada pela Lei
nº 6.416, de 24.5.1977)

        § 3o Aos funcionários públicos aplicar-se-á o disposto no art. 218, devendo, porém, a
expedição do mandado ser imediatamente comunicada ao chefe da repartição em que
servirem, com indicação do dia e da hora marcados.  (Incluído pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)

        Art. 222.  A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do
lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável,
intimadas as partes.

        § 1o A expedição da precatória não suspenderá a instrução criminal.

        § 2o Findo o prazo marcado, poderá realizar-se o julgamento, mas, a todo tempo, a
precatória, uma vez devolvida, será junta aos autos.

        § 3o  Na hipótese prevista no caput deste artigo, a oitiva de testemunha poderá ser
realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e
imagens em tempo real, permitida a presença do defensor e podendo ser realizada, inclusive,
durante a realização da audiência de instrução e julgamento. (Incluído pela Lei nº 11.900, de
2009)

        Art. 222-A.  As cartas rogatórias só serão expedidas se demonstrada previamente a sua
imprescindibilidade, arcando a parte requerente com os custos de envio. (Incluído pela Lei nº
11.900, de 2009)

        Parágrafo único.  Aplica-se às cartas rogatórias o disposto nos §§ 1 o e 2o do art. 222 deste
Código. (Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009)

        Art. 223.  Quando a testemunha não conhecer a língua nacional, será nomeado intérprete
para traduzir as perguntas e respostas.

        Parágrafo único.  Tratando-se de mudo, surdo ou surdo-mudo, proceder-se-á na


conformidade do art. 192.

        Art. 224.  As testemunhas comunicarão ao juiz, dentro de um ano, qualquer mudança de


residência, sujeitando-se, pela simples omissão, às penas do não-comparecimento.

        Art. 225.  Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por
velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de
ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento.
ANEXO B

Código Processual Penal da Nação Argentina

Lei nº. 25.852, promulgada em 04 de dezembro de 2003 e sancionada em 06 de janeiro de


2004

El Senado y Cámara de Diputados de la Nación Argentina reunidos en Congreso, etc.


sancionan con fuerza de Ley:

ARTICULO 1° — Incorpórase al libro II, título III, capítulo IV del Código Procesal Penal de la
Nación, el artículo 250 bis, el que quedará redactado en los siguientes términos:

Cuando se trate de víctimas de los delitos tipificados en el Código Penal, libro II, título I,
capítulo II, y título III, que a la fecha en que se requiriera su comparecencia no hayan cumplido
los 16 años de edad se seguirá el siguiente procedimiento:

a) Los menores aludidos sólo serán entrevistados por un psicólogo especialista en niños y/o
adolescentes designado por el tribunal que ordene la medida, no pudiendo en ningún caso ser
interrogados en forma directa por dicho tribunal o las partes;

b) El acto se llevará a cabo en un gabinete acondicionado con los implementos adecuados a la


edad y etapa evolutiva del menor;
c) En el plazo que el tribunal disponga, el profesional actuante elevará un informe detallado con
las conclusiones a las que arriban;

d) A pedido de parte o si el tribunal lo dispusiera de oficio, las alternativas del acto podrán ser
seguidas desde el exterior del recinto a través de vidrio espejado, micrófono, equipo de video o
cualquier otro medio técnico con que se cuente. En ese caso, previo a la iniciación del acto el
tribunal hará saber al profesional a cargo de la entrevista las inquietudes propuestas por las
partes, así como las que surgieren durante el transcurso del acto, las que serán canalizadas
teniendo en cuenta las características del hecho y el estado emocional del menor.

Cuando se trate de actos de reconocimiento de lugares y/o cosas, el menor será acompañado
por el profesional que designe el tribunal no pudiendo en ningún caso estar presente el
imputado.

ARTICULO 2° — Incorpórase al libro II, título III, capítulo IV del Código Procesal Penal de la
Nación, el artículo 250 ter, el que quedará redactado en los siguientes términos:

Cuando se trate de víctimas previstas en el artículo 250 bis, que a la fecha de ser requerida su
comparecencia hayan cumplido 16 años de edad y no hubieren cumplido los 18 años, el
tribunal previo a la recepción del testimonio, requerirá informe de especialista acerca de la
existencia de riesgo para la salud psicofísica del menor en caso de comparecer ante los
estrados. En caso afirmativo, se procederá de acuerdo a lo dispuesto en el artículo 250 bis.

ARTICULO 3º — Comuníquese al Poder Ejecutivo.

Dada en la sala de sesiones del Congreso Argentino, en Buenos Aires, a los cuatro dias del
mes de diciembre del año dos mil tres.

Registrada bajo el n° 25.852.

ANEXO C

Substitutivo ao Projeto de Lei nº. 4.126, de 2004

Acrescenta a Seção VIII ao Capítulo III – Dos Procedimentos – do Título VI – Do Acesso à


Justiça – da Parte Especial da Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do
Adolescente, dispondo sobre a forma de inquirição de testemunhas e produção antecipada de
prova quando se tratar de delitos tipificados no Título VI, Capítulo I, do Decreto-Lei nº 2.848, de
7 de dezembro de 1940 — Código Penal, com vítima ou testemunha criança ou adolescente e
acrescenta o Art. 469-A ao Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941 – Código de
Processo Penal.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º. Esta Lei acrescenta a Seção VIII no Capítulo III – Dos Procedimentos – do Título VI –
Do Acesso à Justiça – da Parte Especial da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da
Criança e do Adolescente, dispondo sobre a forma de inquirição de testemunhas e produção
antecipada de prova quando se tratar de delitos tipificados no Título VI, Capítulo I, do Decreto-
Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 — Código Penal, com vítima ou testemunha criança
ou adolescente e acrescenta o Art. 469-A ao Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941 –
Código de Processo Penal.

Art. 2.º Acrescenta-se ao Capítulo III do Título VI da Parte Especial da Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990, a seguinte Seção VIII:
“Seção VIII
Disposições Especiais Relativas à Inquirição de Testemunhas e Produção Antecipada de Prova
nos Crimes Contra a Dignidade Sexual com Vítima ou Testemunha Criança ou Adolescente

Subseção I
Da Inquirição de Testemunhas

Art. 197-A. Far-se-á a inquirição judicial de criança e adolescente, vítima ou testemunha,


quando se tratar de crime contra a dignidade sexual, na forma prevista nesta Seção e com os
seguintes objetivos:

I – Para salvaguardar a integridade física, psíquica e emocional do depoente, considerada a


sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;

II – Por motivo de idade do depoente, para que a perda da memória dos fatos não advenha em
detrimento da apuração da verdade real;

III – Para evitar a revitimização do depoente, com sucessivas inquirições sobre o mesmo fato,
nos âmbitos criminal, cível e administrativo.

Art. 197-B. Na inquirição de criança e adolescente, vítima ou testemunha de delitos de que


trata essa Seção, adotar-se-á, preferencialmente, o seguinte procedimento:

I — A inquirição será feita em recinto diverso da sala de audiências, especialmente projetado


para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade e à etapa
evolutiva do depoente;

II — Os profissionais presentes à sala de audiências participarão da inquirição através de


equipamento de áudio e vídeo, ou de qualquer outro meio técnico disponível;

III — A inquirição será intermediada por profissional devidamente designado pela autoridade
judiciária, o qual transmitirá ao depoente as perguntas do Juiz e das partes;

IV — O depoimento será registrado por meio eletrônico ou magnético, cuja degravação e mídia
passarão a fazer parte integrante do processo.
Parágrafo único: A autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes, poderá adotar
idêntico procedimento em relação a crimes diversos dos tutelados por esta Seção, quando, em
razão da natureza do delito, forma de cometimento, gravidade e conseqüências, verificar que a
presença da criança ou adolescente na sala de audiências possa prejudicar o depoimento ou
constituir fator de constrangimento em face de sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento.

Subseção II
Da Produção Antecipada de Provas

Art. 197-C Para apuração dos crimes previstos no artigo anterior será permitida a produção
antecipada de prova.

Art. 197-D O pedido de produção antecipada de prova poderá ser determinado de ofício pelo
Juiz ou proposto por pelo Ministério Público ou advogados das partes, através de manifestação
fundamentada, com referência aos fatos sobre os quais a prova haverá de recair.

Art. 197-E A produção antecipada de prova poderá consistir em inquirição de testemunha ou


vítima e exame pericial.

§ 1º Tratando-se de inquirição de vítima ou testemunha, será intimado o interessado a


comparecer à audiência em que será o depoimento prestado, inclusive para que se faça
acompanhar de advogado, ao qual será fornecida cópia da justificativa apresentada pelo
Ministério Público. Ausente o interessado na audiência de inquirição, ou, estando presente, se
não possuir procurador constituído, ser-lhe-á nomeado defensor dativo.

§ 2º Sendo hipótese de prova pericial, esta deverá ser realizada por perito oficial ou, na falta,
por duas pessoas idôneas, portadoras de curso superior, nomeadas pelo Juiz, facultada a
indicação de assistentes técnicos e apresentação de quesitos.

Art. 197-F Realizada a produção antecipada em caráter preparatório, entendendo a autoridade


judiciária ou o Ministério Público que os fatos relatados poderão ensejar a instauração de
inquérito policial ou procedimento perante o Conselho Tutelar, providenciará que haja
encaminhamento às autoridades competentes de cópia do laudo pericial ou do depoimento e
da mídia contendo sua gravação, conforme o caso.

§ 1.º Tratando-se de prova oral, efetivada a produção antecipada, o depoimento instruirá o


inquérito policial, o expediente administrativo perante o Conselho Tutelar ou quaisquer
expedientes perante o Ministério Público, sendo vedada a reinquirição do depoente, exceto se
for ela autorizada judicialmente.

§ 2. A reinquirição do depoente, após iniciada ação judicial, constituir-se-á em medida


excepcional, devendo ser pormenorizadamente fundamentada.

Art. 3.º Acrescenta-se ao Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941 – Código de Processo


Penal - o seguinte Art. 469-A:

Art. 469-A Nos processos de competência do Tribunal do Júri, tendo a inquirição do depoente
sido realizada na forma da Seção VIII do Capítulo III do Título VI da Parte Especial da Lei nº
8.069 de 13 de julho de 1990, poderá a autoridade judiciária indeferir a sua reinquirição em
plenário quando houver justo receio de que esta possa causar-lhe quaisquer dos danos
elencados no Art. 197-A da referida Lei.”

Art. 4º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Sala das sessões .........................................

Dep. Maria do Rosário PT/RS

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