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TRAÇOS DO CONTEMPORÂNEO:
Uma Reflexão Sobre as Vanguardas

TRACES OF CONTEMPORARY
A ReflectionAbouttheVanguards

Rejane Kasting Arruda¹

Resumo

Acredita-se que destacar os alicerces da cultura cênica contemporâneapode auxiliar os


jovens diretores a perceber filiações, apropriando-se de princípios para desenvolver o
próprio trabalho no que diz respeito a autoria e singularidade. O método é o diálogo com
Bertholde a extração de comentários que evidenciam, nas Vanguardas, traços do Teatro Pós-
dramático, apontando rupturas, destacando o valor do diálogo com a história em função de
uma ação sobre o seu tempo.

Palavras-chave:Dramaturgia, Encenação, História do Teatro, Pós-dramático, Teatro


Performativo.

Resumen Abstract

Se cree que destacan las bases de la cultura escénica We believe that to point out the basis of
contemporánea puede ayudar a jóvenes directores contemporarys cenic culture may help young
a realizar afiliaciones, apropiarse de principios para directors, to see filiations and use principles for its
desarrollar su propio trabajo encuanto a la autoría y
own work, regarding authorship and singularity. The
originalidad. El método es el diálogo con Berthold y
method is the dialogues with Berthold and
la extracción de los comentarios que ha hecho
highlights that, in the avant-garde, there are traces
evidente en las Vanguardias, rastros de teatro post-
dramático, apuntando descansos, destacando el of Post-dramatic Theatre, pointing outruptures, to
valor del diálogo con la historia en función de una show the dialogue with History serving as an action
acción en su tiempo. on today's work.

Palabras clave: Dramaturgia, Historia del Teatro, Keywords: Dramaturgy , HistoryofTheatre,


Po st- d ra m át i ca , P u e sta e n E s c e n a , Te at ro PerformativeTheater, Post-dramatic,Staging.
Performativo.

¹ Professora na Universidade Vila Velha. Graduada, mestre e doutora pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora com o
apoio do CNPQ/UNIVERSAL e FUNADESP. rejane.arruda@usp.br

ISSN: 2358-3703 Rascunhos Uberlândia v.3 n.1 jul.|dez. 2016 p.90-98


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Um Legado Artaud também“proclamava uma teoria do
teatro enquanto ação (não mais a ilustração de um
“A Rússia é o rochedo que propagará a onda texto literário, mas 'forjado no palco') com o uso
da Revolução Mundial”, escreveu Piscatorem 1919 irrestrito de todos os meios teatrais, entregando o
(BERTHOLD, 2001, p. 499).O desejo era de palco a um vitalismo eruptivo que transforma a ação
revolução. O seu teatro tinha este superobjetivo², cênica num foco de inquietação contagioso” (2001,
que circunscreve uma série de resoluções estéticas. p. 500). Mas ao encenar Strindberg,utilizou o texto
Seu teatro era composto por trabalhadores e este dramático. O compromisso não era com um
foi também um ideal de Brecht: um teatro feito por procedimento específico, pois alterava o arranjo
quem sustenta a linha de produção e não por cênico conforme o que lhe servisseem direção ao
artistas segregados. As peças eram realizadas no propósito do contágio. O teatro precisava“ser vida”
chão das fábricas. No Proletkult russo, cada fábrica e não a representação do texto, mesmo que este
tinha um grupo de teatro. Piscatorqueria a agitação esteja sendo utilizado como material. O teatro para
política. Fazia teatro nos prédios usados para além da “posta em cena” (Pavis, 1999), se
comícios e assembleias em bairros operários de estabelece como ritual e performance. O texto
Berlim: “Palcos miseráveis, cenários primitivos, dramático é cravado em nova escrita, que é cênica.
fumaça de tabaco e vapor de cerveja” (2001, p. 499- A oscilação entre teatro “de texto” e
500). performativo que encontramos em Artaudestá
O espetáculo chamadoRevista do Barulho também em Piscator que, em 1926, realizou uma
Vermelho (1924), entre textos seus e de Gasbarra montagem de “Os Salteadores”, de Schiller –
(colaborador), tinha“muita coisa reunida de “atualizando o texto, vertendo-o em peça
maneira crua, o texto era despretensioso, mas foi politicamente engajada” ao “fazer com que Paul
justamente isto que permitiu a intercalação, até o Berdt, no papel de Spielberg, usasse uma máscara
último momento da atualidade” (2001, p. 500), diz de Trótski” (BERTHOLD, 2001, p. 500). Outra “posta
ele em “O Teatro Político”. Temasatuais eram em cena” a ser destacada é “Oba! Estamos vivos!”,
utilizados emjornal, revista, colagem, justaposição de Toller, em 1927: “uma montagem altamente
de números, cenas soltas, linguagens, colcha de técnica onde a parte filmada possuía acentuada
retalhos: “E nós usávamos indiscriminadamente função didática”. De acordo com Berthold, “Piscator
todos os meios possíveis: música, canções, colheu os últimos rebentos do drama expressionista
acrobacias, caricaturas, esporte, imagens ao qual se opusera violentamente em 1920 e tentou
projetadas, filmes, estatística, cenas interpretadas, impregná-los de grande tensão política” (2001, p.
discursos” (2001, p. 500)- para certo fim.O que unia 501).Seja com a posta em cena de um texto
a s d i fe r e n ç a s e r a o p r o p ó s i t o , o u s e j a , dramático ou com a colagem em uma revista, os
osuperobjetivo.Dialogava-secom “os espetáculos seus propósitosestavamlá.
dadaístas e sua algazarra, descrita como Klamauk: “Apesar de Tudo” (1925) foi um “drama-
barulho ensurdecedor ou, ainda, como “quebra documentário de massa” “com discursos,
provocativa da forma dramática burguesa” (2001, p. impressos, artigos, recortes de jornal, manifestos,
500). A técnica de Piscatorficou conhecida como folhetos, fotografias e filmes, diálogos impressos,
ação direta:“martelar o leitmotiv político” (2001, p. entre personagens históricas e cenários arranjados”
500).
2
Encontramos em Knébel uma ideia de superojetivo ampliada; não do personagem ou do ator, mas da obra: a “supertarea del
espectáculo” (KNÉBEL, 2002, p. 132)

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(2001, p. 500). Esta ideia da peça-jornal (colunas, ser tomada como um diapasão, um denominador
reportagens) se deslocou no tempo, pois esteve comum, um elemento-síntese da obra de
também presentenos EUA em 1935 com a chamada Piscator.Os trabalhos de Vanguarda deixam um
Living News-paper. E também nos Anos 60, na legado para o teatro:o impacto da cena enquanto
modalidade de peça-documentário chamada poética da teatralidade.
“jornal vivo” (2001, p. 500). “Passagens épicas, Artaud falava da ação direta, de seu coupe de théâtre
episódicas e pedagógicas, jograis, comentários, ritual e rítmico, da força da peça cuja ação é desdobrada
poemas e inserções musicais constituíam os espacialmente na direção dos quatro pontos cardeais,
elementos motores do Jornal Vivo” (2001, p. 502). cindida por paroxismos e depois enfeixada pela luz, e de
Piscatorteve como ponto de partidao material novo atiçada. Ele considerava o grito o elemento
literário: “As Aventuras do Bravo Soldado primordial da ação direta, um grito lançado da
Schwejk”adaptado porGasbarra e Lania, junto com extremidade da sala de espetáculos e transmitido de
Brecht. Com “um herói passivo, contínuas trocas de boca em boca, num acelerando selvagem (2001, pg.
cena e passagens glossantes portadoras de teor 504).
satírico” (2001, p. 502), “uniu tantos episódios
numa possível continuidade sem costuras com o Pensemos em outros dois casos desta
recurso de uma esteira rolante” (2001, p. 502): Vanguarda: Living Theatre e JerzyGrotowski.Os dois
“atravessando o palco da esquerda para a direita, são devedores de Artaud, segundo Berthold.O
em direções opostas” (idem). “Sobre elas ficavam os ponto em comum: o “ritual de movimento e gesto”
tipos petrificados da vida política e social na velha (2001, pg. 504). Também presentea alternância
Áustria” (2001, p. 502). As marionetes desenhadas entre o trabalho com o texto dramático e o teatro
por Grosz “davam aos tipos de figuras uma função performativo.Grotowski montou Ionescoe outros.
supercaricaturesca, cômico-clownesca” (2001, p. Artaud montou Strindberg e outros. Living Theatre
502). “Para as cenas de rua em Praga, Piscator usou montou DoctorFaustusLightstheLights (1951) de
como fundo um filme feito no local” (2001, p. 502); Gertrude Stein, The Brig (1963) de Kenneth H.
“renques de árvores copiados de naturezas mortas, Brown, Antigone(1967) de Bertold Brecht.
desenhados ao longo do palco, como representação Nestes casos, o texto é matéria: “O lema é a
de uma estrada infinita” (2001, p. 502). O ator “deu à direção para a ação. O texto, na medida em que é
personagem algo reminiscente do espetáculo de considerado obrigatório, é simplesmente matéria-
variedades e de Charles Chaplin” (2001, p. 502). prima” (2001, pg. 504). Este é um jeito de se pensar
Piscator se referia a este estilo como um “novo, o texto dramático que a Vanguarda nos legou: ele
matemático gênero de interpretação” (2001, pg. é... matéria, superfície. Não é algo a ser
502). representado;“ele é ele”. Ele é superfície e, como
Vemos diferentes pontos de partida tal, jogado em cena com outras matérias. O que se
emresoluções estéticas circunscritas por um mesmo evoca (o que se imagina) do jogo e da química entre
propósito e um mesmo princípio de trabalho: as matérias é algo que se dá em escuta (e em
“intensificar o efeito ao grau máximo, pelo uso de interpretação) a posteriori. Ganha-se, então, espaço
meios extrateatrais”. Seja com texto dramático, para interpretar. A matéria é inserida no ritual; ação
material literário ou peça-jornal, a utilização dos direta sob o palco – que se estabelece como poética
meios extrateatrais (como chamava), talvez possa com a junção dos materiais.

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Somos Filhos de Brecht de influência para o teatro contemporâneo pós-
dramático.Pensadores alemães diversos se
Surgia, em certo tempo histórico, um “novo dedicaramà teoria das constantes tensões entre o
drama”. Se em Piscator, materiais extra-teatrais épico e dramático. Para Szondi, o teatro moderno é
eram colados para um teatro-jornal, em Brecht, produto de diferentes resoluçõesdas tensões entre
havia a peça, um drama que, no entanto, era novo. E os dois. Tchecov, Strindberg, Ibsen, não são
por que novo?Brecht produziu uma tabela das “dramáticos puros” – são um pouco épicos; contém
diferenças entre o teatro épico e o teatro dramático. tensões entre o épico e o dramático.A diversidade
A sua dramaturgia era épica (não dramática). Épico e das dramaturgias surge como hibridismo entre estes
dramático reaparecem tal como dois modelos que dois polos. Dois polos que Brecht (apudBerthold,
se opõe. Tanto a dramaturgia quanto a teoria de 2001, p. 507)explicita da seguinte maneira:
Brecht sãoreferências– e seguem como uma linha

Teatro Dramático Teatro Épico

o palco personifica o evento ele narra

envolve o espectador torna-o um observador, mas

usa sua atividade desperta sua atividade

possibilita-lhe sentimentos exige dele decisões

transmite-lhe vivências transmite-lhe conhecimento

o espectador é imerso na ação é confrontado com ela

ela é trabalhada como sugestão ela é trabalhada como argumentos

os sentimentos são preservados como tais são levados ao ponto do conhecimento

o homem é pressuposto como algo conhecido o homem é objeto de uma investigação

o homem é imutável o homem se transforma e é tranformável

tensão voltada para o desfecho tensão voltada para o processo

um cena em função de outra cada cena pra si

os acontecimentos desenvolvem-se num curso linear os acontecimentos desenvolvem-se em curvas

natura no facit saltus faciti saltus

o mundo como ele é o mundo como ele se torna

o que o homem deve fazer o que o homem tem de fazer

seus instintos seus motivos

o pensamento determina a existência a existência social determina o pensamento

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Como marxista, Brecht enxergavano homem textos de maneira “desconstruída”: o texto em
um produto da sociedade, determinado pelas choque, sendo rompido por outros materiais.
macroestruturas sociais. Em suas peçasele mostra A História do Teatro se move através de um
como o homem poderia ter tido outras escolhas se jogo de influências. O Teatro Pós-dramático se
não sucumbisse a estas determinações,provocando inspira em Brecht e Brecht tem suas influências. Ele
o espectador, para que pense em suas próprias as declara. Ele teria escrito no começo dos anos 30:
escolhas. Ele mostra as contradições. Não os
Do ponto de vista estilístico, o teatro épico não é nada
conflitos (como no teatro dramático), masas
particularmente novo, com seu caráter exposicional e
contradiçõesda sociedade. Assim, cada cena passa a sua ênfase no artístico, ele é aparentado ao antigo
fazer parte de um “inventário de argumentos”, asiático. Tais tendências didáticas são evidentes nos
mistérios medievais, assim como no drama clássico
como diz Berthold; e a “exibição mais objetiva espanhol e no teatro jesuíta (2001, p. 505).
possível de um processo interno contraditório como
um todo” (2001, p. 507). Assim, o teatro de Brecht A estilização do gesto (ou distanciamento)
tem caráter “exposicional” eé nisto principalmente está ligadaà influência da arte chinesa. O ator narrao
que somos herdeiros: a teatralidade exposta, percurso dos personagens, estilizando os seus
assumida, bem comoo processo dasua construção. gestos. Ele nãose traveste; ele é narrador. Para isto,
Os bastidores revelados: homens de macacão para Brecht elabora procedimentos, experimentados nos
montar o cenário na frente do público; cenas ensaios, como “mudar as falas para a terceira
diferentes reveladas ao mesmo tempo; canções pessoa e transpô-las para o passado; incluindo as
como comentários; letreiros para anunciar cenas; rubricas” (2001, p. 505) e a tipificação: “toda ação
imagens projetadas. O ator com a estilização dos representada adquire automaticamente o caráter
g e s t o s m o s t ra q u e e s tá re p re s e n ta n d o o de um modelo” (2001, p. 505). A ação não é
personagem; critica açõesda personagem (se singularizada; não é “de um ser humano específico”,
d i s ta n c i a n d o d e l e ) . S ã o o s “e l e m e n t o s mas de todos que representam aquele tipo. Ela é
distanciadores” que definem o palco como épico. A histórica; diz da história e não de “um” sujeito; diz de
instância narradora surge, se ocupando de outro e um “tipo de gente” que é determinada socialmente;
de sua história. O ator não “veste”a personagem; o de um “tipo social” que se repete – como se
palco não produz a ilusão de que o ator é a fôssemos todos fantoches da sociedade. Assim, há
personagem ou queaquilo está acontecendo no “o” operário e “o” patrão se digladiandona luta de
instante (tal como a “fatia de vida” de Antoine)³. O classes. Uma redução do humano ao tipo; com a
palco éconstrução realizada para alguém com um representação deste tipo e/ou seu valor ou função
propósito. na sociedade;seu valor de “peça” de engrenagem da
Através de materiais extra-teatrais (para usar estrutura social.
a terminologia de Piscator), o trabalho de Brecht Assim, segundo Berthold, há em Brecht uma
documenta, como a fragmentaçãoé utilizada dentro “renuncia à psicologia em favor da exemplaridade”
de um teatro de “texto”, de “dramaturgia de autor”. (2001, p. 505). Por isto a preferência por “heróis
Foi contaminado por Brecht que o Teatro Pós- negativos”(2001, p. 505),exemplares do que não se
dramático (tal como Lehmann teoriza) encena deve fazer. Mãe Coragem (protagonista da peça

³ Roubine trabalha muito bem esta questão em “IntroduçãoàsGrandesTeorias do Teatro” no capítulo “A MutaçãoNaturalista”.

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homônima) sobrevive do comércio da guerra á s p e ra p o e s i a ” ( 2 0 0 1 , p . 5 1 0 ) . M a s , e ste
enquanto perdeseus filhos, um a um. Com esta procedimento não é novo.
figura, Brecht “não pretende provocar compaixão,
mas promover o conhecimento e a condenação da A ruptura dramatúrgica da ilusão teatral, a peça dentro
exploração da guerra” segundo Berthold (2001, p. da peça, a inserção do discurso direto ao público, o
507).O caráter didático das peças não excluíam o pronunciamento de sentenças críticas ou didáticas e
deleite: canções sobre temas da época – todos são expedientes
que o teatro conheceu e usou por milhares de anos,
Com dialética brilhante, Brecht negou, por fim, que desde a parabasis da velha comédia ática à canção de
pretendesse 'emigrar do reino do agradável'. Salomão em A Ópera dos Três Vintens. Sob o signo da
Laconicamente, ele admitiu que o caráter didático de ironia romântica, o drama extraiu centelhas poéticas do
seu teatro épico não precisa necessariamente excluir os salto entre o infinito e o finito e usou o teatro dentro do
aspectos burgueses da beleza e da fruição. Fez as pazes teatro para polemizar (2001, p. 510).
entre os irmãos distanciados, “Teatro” e “Diversão”
porque “nosso teatro precisa provocar o prazer no Se estes recursos são antigos, o que de fato
conhecimento, organizar a brincadeira, a alegria da diferencia o Teatro Épico de Brecht?A história o
mudança da realidade” (2001, p. 510) constrói como um traço – que vai, com olhar
retrospectivo,se definir como “diferente”. O projeto
O papel de “parceiro especulativo” que o de Brechtinclui asproposições teóricas – para um
espectador cumpre, para Brecht, indica que a peça mundo que precisa se repensar (no pós-guerra).
está inacabada. Surge o modelo brechtiano de uma Este vetor, de um olhar retrospectivo sobre a obra
“forma aberta”. A peça não se fecha – ela deixa uma de Brecht, dialoga com o passado eatribui valor a um
questão. fato de 1797: “um ataque parodístico ao
Iluminismo de Berlin, em “O Gato de Botas”, a peça
Ele pretende que seus incidentes dramatizados sejam de Ludwig Tieck” (2010, p. 510).Peçade um caráter
compreendidos como situações exibidas de um antiilusionista– que também está presente nos
acidente social, com ações que podem ser prolongadas personagens da Commediadell'Arte – mas
a vontade. “Sentimo-nos desapontados, e nos deslocados para o “teatro de texto”. O material
levantamos com desalento quando a cortina se fecha, e popular no “teatro erudito de texto” muitas vezes
nossas perguntas permanecem penduradas no ar” promoveu a sua renovação.
como ele próprio diz no epílogo da peça parábola A
Alma Boa de Setsuan (2001, p. 510). (...) forças atemporais, antiilusionsitas, quer
em seu próprio nome, como nas famosas
Assim, a questão didática veiculada ao teatro montagens de Golgdoni e Gozzi por Max Reinhardt,
de Brecht não circunscreve um fechamento da obra Vankhtângov ou Strehler, ou ainda como figuras
(como nos ensinamentos moralistas do Iluminismo), “clownescas” intercambiáveis, despersonalizadas e
pois “a lição é rompida em múltiplas refrações neutralizadas, como na niilista Esperando Godot, de
irônicas e conduz o espectador por trechos de rica e Samuel Beckett (2001, p 502).

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Parceiros no Antiilusionismo Existem outros dedicados a “desiludir o
palco”,como Oscar Wilde, Peter Weiss, Thornton
Na esteira de Brecht, elementos ícones do Wilder, Paul Claudel. Existe um “jogo de molduras”
antiilusionismo – recorrentes na história –circulam na peça de Peter Weiss“A Perseguição e o
em diversas poéticas ou tempos. O antiilusionismo, Assassinato de Jean Paul Marat Representada pelo
como um recurso épico, significauma ruptura Grupo de Atores do Hospício de Charenton sob a
dramatúrgica da ilusão teatral. Há ruptura daquele Direção do Marquês de Sade”: “Já com a natureza de
mundo fechado dos personagens, que estariam seu título, ele nos dá a conhecer o duplo chão de seu
sendo representados como mimese da realidade. jogo de molduras” (2001, p. 511).Este jogo de
Aqui, a representação é posta em questão, moldurasgera estranhamento.
interrogada. O teatro é interrogado. Quando
Pirandello coloca o personagem conversando com o O teatro no teatro oferece uma oportunidade de
autor, evidencia a construção teatral apresentando apresentar dramaturgicamente o familiar como
outra camada, superfície e tessitura de relações. Em estranho, empurrando-o para a distância, na acepção
“Seis Personagens à Procura de Um Autor” os brechtiana, dando-lhe uma refração irônica,
personagens invadem o palco durante um ensaio. interpretando-o “epicamente” com o auxílio do diretor,
Com este recurso, “Pirandello problematiza as locutor, narrador ou do coro (2001, p. 511).
relações entre ser e parecer, e vida e forma” (2001,
p. 511). Servindo à problematização da cena, o Segundo Berthold, Wilder seria até mais
teatro serve também à filosofia. rigoroso que Brecht quanto ao objetivo de “des-
iludir” o palco.
Quando o diretor, no final, manda embora os
espectadores, para continuar a ensaiar, atrás das Prefere um palco inteiramente despido de cenário,
cortinas, “a peça que ainda está por ser feita”, a questão arranjando-se com uma mesa e algumas cadeiras que,
da “verdade” humana remanesce tão aberta quanto a como nos jogos infantis, servem de carros ou trens. O
de Brecht no tocante à revisão futura das relações narrador explica a cena e os acontecimentos, apresenta
sociais. O esquema formal de Pirandello, o de situar sua as personagens co-atuantes e interpreta os incidentes
ação na moldura de um ensaio teatral, propagou-se em episódicos da vida real, para revela-los como pequenas
um sem-número de ecos (2001, p. 511). parábolas do grande curso de toda a existência (2001, p.
512).
A visualidade da representação aparece (e seu
enigma); a visualidade da tessitura de sua Peças de Wilde como “Nossa Cidade e Por um
construção – gerando um distanciamento. A Triz”são citadas para ilustrar estas afirmações.De
distância (ou seja,um olhar que se introduz entre Paul Claudel, “Cristóvão Colombo”,que traz a figura
nós e o mundo representado) é considerado pelos de um narrador ao lado do palco com um livro
teóricos um recurso épico. O palco de Pirandello, aberto, utiliza também projeção e canções em coro.
assim como o de Brecht, diz: “Isto é uma Em “A Sapatilha de Cetim”, o autor utiliza-se de
representação, estamos apresentando-a para vocês “pantominas, dança e esquetes, interlúdios
com um determinado propósito”. Ao invés de: “isto alegóricos e filosóficos” (2001, p. 513). São
é uma fatia de vida, isto é a mimese do que acontece procedimentos que percebemos hoje,
na realidade” (abordagem realista). contemporaneamente, invadindo a cena.

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A Um Passo do Contemporâneo montagem de“Vestido de Noiva” dirigida por
Ziembinski na década de 40 (considerado o grande
No teatro contemporâneo estamos na rasteira marco, coma sua abordagem expressionista e a
das reverberações dos tipos de arranjo citados, que valorização dos cortes, fragmentação, deformação e
instalaram modalidades variadas do que se pôde desenho abstrato da luz). Temos o Teatro Brasileiro
chamar de autonomia da poética teatral. Piscator, de Comédia (com a experimentação e importação
Artaud, Meyerhold,Grotowski, Brecht, Pirandello, de autores, que possibilitou e fomentou o
Wilder e outros. O movimento de vanguarda surgimento de uma dramaturgia nacional forte); o
americana com vocação para a experimentação; o Teatro de Arena nos Anos 60 (com um teor político,
Teatro do Absurdo; os grupos ativistas dos Anos 60; entre o realismo ea retomada da paródia, da sátira,
vanguardas do começo dos anos 20; os trabalhos de do absurdo, do deboche, jornal, distanciamento);
Craig; Coupeau; formam a base do que hoje se temos o Teatro Oficina no final dos 60 e 70; e nos
chama Pós-dramático (ou Teatro Contemporâneo). Anos 80, o Teatro “dos grandes diretores” (quando
Passamos por Mnouchkine, Barba, Bausch, Kantor, Antunes Filho e Gerald Thomas se juntam a José
Wilson até... cairmos nos anos 90. Na virada do Celso Martinez Corrêa), na esteira do Teatro de
Século XX para o XXI,Lehmann invadiu a cena e Imagem de Bob Wilson;até chegarmos aos Anos 90,
contaminou a pesquisa da história e da prática com a proliferação dos teatros de grupo de
teatrais com o seu “ Teatro Pós-dramático”, experimentação de linguagens.
enquanto Josette Feralpropôs o resgate e aplicação, Hoje fazem parte deste panorama, no cenário
no campo teatral, do termo “performativo”⁴. A nacional e mundial, grupos e autores que repetem,
problematização das pesquisas hoje se dá a partir do de uma maneira ou de outra, recursos estéticos
viés destas novaspráxis (Teatro Pós-dramático ou fundados durante os movimentos das vanguardas
Teatro Performativo), que procuram reler a história no Século XX. Não se trata de cópia, mas de diálogo e
do Teatro de maneira a consolidá-lo como poética apropriação de princípios e procedimentos de uma
própria, autônoma em relação à presença da cultura cênica, em função de seus próprios
literatura, bebendo em produções onde as suas propósitos. Como citamos no início, para além das
bases foram lançadas. resoluções estéticas específicas (como Piscator se
No Brasil, tivemos uma série de rupturas para valeu de diferentes arranjos) está umobjetivo maior
a instauração de um Teatro Moderno, que primaram que implica uma ação sobre o mundo.
pela encenação enquanto linguagem, como a

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O termo performativo foi inicialmentepropostopor Austin para a Teoria da Linguagem.

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Bibliografia: teatroperformativo. In: Sala Preta, Revista do
Programa de Pós-GraduaçãoemArtesCênicas,
AUSTIN, J. L. Quando Dizer é Fazer. Trad. Danilo Eca/USP, São Paulo, n. 08, 2008, pg. 197-210
Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes LEHMANN, Hans-Thies. O teatropós-dramático. São
Médicas, 1990. Paulo, CosacNaify, 2007
KNÉBEL, M. La Poética de la PedagogíaTeatral. PAVIS, P. Dicionário de Teatro. São Paulo,
México: Siglo XXI, 2002. Perspectiva, 1999.
BERTHOLD, M. História Mundial do Teatro.São ROUBINE, J. Introduçãoàsgrandesteorias do teatro.
Paulo, Ed. Perspectiva, 2001. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003
FERAL, J.Porumapoética da performatividade: o

Recebido: 31/03/2016
Aprovado: 30/04/2016
Publicado: 21/10/2016

ISSN: 2358-3703 Rascunhos Uberlândia v.3 n.1 jul.|dez. 2016 p.90-98

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