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Fronteiras movediças da dança-teatro: reflexões sobre o movimento instantâneo na

dramaturgia corporal do performer


Eloísa Brantes Mendes1

Resumo:
Esta comunicação aborda a dimensão temporal (instante) nos processos de
composição/decomposição do movimento corporal enquanto acontecimento
performático (instantâneo). Articulando minha pesquisa artística, com o Coletivo
Líquida Ação (Rio de Janeiro, 2006-2009), baseada na interação corpo-água como
matéria prima da criação de performances, e procedimentos artísticos relativos à
dramaturgia do corpo, na dança-teatro de Pina Bausch, proponho uma reflexão sobre a
emergência do movimento instantâneo na escrita corporal.

Ao longo do séc.XX a dimensão performática do espetáculo, enquanto processo


de montagem que inclui a relação performers/espectadores, se mostra como um campo
de conexão entre diferentes linguagens artísticas. Neste contexto a problemática do
corpo expressivo, presente tanto no teatro como na dança, catalisa rupturas radicais em
relação à estética artística hegemônica. Na arte do teatro Gordon Craig (1872-1966)
toma a dança como referência para reivindicar a precisão corporal do ator que, limitado
a servir ao texto escrito, ignora o gesto justo no contexto da encenação teatral. Na
mesma época Rudolf Laban (1879-1958) critica a estética artística e cultural do balé
clássico para afirmar a dança como arte do movimento que, assim como no teatro, se
articula através das dimensões internas e externas do corpo (esforço) enquanto
totalidade física-psíquica-emocional-mental. Nas concepções artísticas de Craig e Laban
o ator-bailarino e/ou o bailarino-ator são representativos da busca do “novo corpo
cênico”, capaz de corresponder às expectativas das revoluções cênicas no contexto do
modernismo.
A problemática de como formar, treinar e/ou educar o ator e/ou o bailarino
acompanha a busca das especificidades da dança e do teatro no quadro da arte como
representação da realidade (simbólica ou social). Na cena moderna a valorização do
espetáculo implica na elaboração de linguagens particulares, que envolvem diferentes
tipos de comunicação entre cena e sala. A descoberta de “novas” dimensões expressivas

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Docente do Instituto de Artes (IA), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
do corpo é uma questão vital, tanto para os encenadores que marcaram o advento do
teatro moderno, como Jacques Coupeau, Vsevolod Meyerhold, Bertold Brecht, como
para os coreógrafos que ampliaram os limites da dança para além do vocabulário e da
estética do balé clássico, como Mary Wigman, Marta Graham e Isadora Duncan. Tanto
no teatro como na dança a autonomia do espetáculo demanda do ator/bailarino um
corpo/instrumento afinado na arte de interpretar, de acordo com a linguagem cênica em
que se insere.
A própria definição da linguagem dança e da linguagem teatro se afirma pelas
suas interligações, quando se trata da afirmação do espetáculo como obra de arte. Mas
na segunda metade do século XX, esta conexão entre dança e teatro evidencia outro tipo
de engajamento corporal que, no contexto da arte conceitual, propõe uma desconstrução
das linguagens cênicas características do teatro ou da dança. Não é mais o corpo como
instrumento expressivo do ator e/ou do bailarino, no quadro da representação cênica,
que orienta a produção artística. Neste sentido a arte conceitual destrona
espetacularidade da dança e/ou do teatro centrada na relação de distância cena/sala. As
fronteiras teatro/dança se mobilizam em direção ao acontecimento cênico. As
possibilidades de interação dos corpos envolvidos (performers/espectadores) penetram a
própria noção de espetacularidade na arte contemporânea.
Nas artes visuais, na música, no teatro e na dança, a performance investe na
temporalidade imediata da obra. As possibilidades de interação performers/espectadores
mobilizam fronteiras entre diversas linguagens artísticas, que se articulam e/ou se
desarticulam sem necessariamente se diluírem. No teatro a dramaturgia de Beckett
desloca a cena do campo da representação para inscrever o texto escrito/falado no corpo
a corpo (performer/espectador) das situações cênicas. Na dança as coreografias de
Cunningham incorporam o acaso como procedimento artístico. No final do séc. XX os
limites do espetáculo, centrado na separação simbólica cena/sala, são questionados pela
sua dimensão performática.
Nas artes cênicas, lugar por excelência do corpo em movimento, as infinitas
possibilidades de articulação teatro/dança e dança/teatro revelam espetáculos híbridos,
que saem dos critérios de definição do teatro ou da dança sem, no entanto, negarem suas
linguagens específicas. O hibridismo da dança-teatro e/ou do teatro-dança, não é uma
categoria homogênea nem um estilo de dança, mas um campo de pesquisa que explora
as relações de tensão entre teatro e dança. Assim, chamo de fronteiras movediças esta
tensão lingüística da qual emerge a própria noção de dramaturgias corporal (o ator-

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bailarino por Eugenio Barba; o bailarino-ator por Pina Bausch; gramática corporal por
Etienne Decroux). A dança-teatro de Pina Bausch participa de um vasto campo de
investigações artísticas que, a partir da década de 1970, coloca em jogo os limites do
espetáculo (voltado para o olhar espectador) em relação à sua dimensão performática
(acontecimento que inclui a presença do espectador).
Nisto existe um processo de montagem que não apenas comporta a relação
performer/espectador, como é o caso da diversidade de linguagens cênicas nos campos
da dança e do teatro, mas nela se fundamenta. Como diz Robert Wilson, a respeito dos
seus espetáculos, não se trata de fazer para o espectador mas com o espectador. No
formalismo extremo do teatro-dança de Wilson, como nos aspectos figurativos da
dança-teatro de Pina Bausch, a dimensão performática do espetáculo não apenas
provoca a atividade do espectador, mas também “incorpora” sua presença pela
vulnerabilidade do corpo em ação (bailarino-ator) na unidade de tempo cena-sala.
Nos espetáculos de dança-teatro a heterogeneidade e a diversidade de formas e
de procedimentos artísticos convergem em direção a algo comum: abordagem do corpo
enquanto presença comunicante (LEHMMAN, 2008). Ou seja, o corpo deixa de ser
instrumento de expressão da subjetividade do ator e/ou do bailarino, enquanto criador
intérprete, e penetra no campo da dramaturgia. O ator e/ou o bailarino se torna
responsável não apenas pela realização dos seus movimentos no contexto do espetáculo,
mas pela organização instantânea daquilo que o movimento provoca no ato de sua
realização - o nexo de sentido que ata ou dá coerência ao fluxo incessante de
informações entre o corpo e o ambiente (GREINER, p.73).
A partir desta definição de Cristine Greiner a respeito da dramaturgia do corpo
(não necessariamente artístico), focalizarei dois aspectos da dança-teatro de Pina
Bausch que envolvem os processos de criação dos performers: a dimensão biográfica
dos bailarinos em seus movimentos corporais e a utilização de elementos da natureza
em cena. Até que ponto a dimensão biográfica (associações particulares) do movimento
e o contato corporal com elementos da natureza, inserem o performer na temporalidade
instantânea de suas ações? De que maneira esta experiência do tempo vivido e
compartilhado (entre performers e espectadores) entra em jogo na dramaturgia corporal?
A partir destas perguntas traçarei alguns pontos de contato entre minha pesquisa
artística no campo da performance e a dança-teatro de Pina-Bausch.

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O trabalho que desenvolvo com o Coletivo Líquida Ação2 há dois anos, no
campo da performance e, recentemente das Intervenções Urbanas, investiga as
possibilidades de composição de movimentos (tempo real) e de montagem (livre
associação, fragmentos, collage) baseados na interação água/corpo/espaço: a intensidade
da presença molhada como canal de comunicação performer/espectador. A forte carga
sensorial dos movimentos, a mudança imediata de estados corporais e as imagens que
emergem da relação corpo/água são os principais focos dos trabalhos de performance,
realizados pelo Coletivo Líquida Ação. Pesquisamos a ação da água sobre os corpos
como meio de potencializar a emergência de novas percepções do movimento no
próprio instante de sua realização. Neste sentido a “presença molhada” é utilizada como
procedimento de uma escrita corporal que se aproxima do uso estratégico da repetição
de movimentos na dança-teatro de Pina Bausch, na medida em que ambas potencializam
a carga dramática das imagens corporais em duas instâncias: na ação do performer e na
percepção do espectador.
Na dança-teatro a vivência do tempo de repetição provoca mudanças de estados
corporais nos bailarinos e nos espectadores. A ação de repetir, portanto, não visa a
reprodução do mesmo, como se passa no quadro da representação cênica, mas denuncia
a irreprodutibilidade do mesmo movimento em tempos diferentes. A repetição
transforma a ação em novas experiências, que se instauram na temporalidade daquilo
que se passa entre bailarinos e espectadores. Significados são transitórios, emergindo,
dissolvendo, e sofrendo mutações em meio a repetições. Estas provocam uma constante
transformação da dança-teatro dentro da linguagem simbólica. (FERNANDES, 1999,
p.65) Articulando a repetição (na dança-teatro) com a presença molhada (performances
do Coletivo Líquida Ação), abordarei a dramaturgia corporal enquanto processo de
composição/decomposição do movimento no instante de sua realização.
A artificialidade dos movimentos realça o caráter expositivo dos performers.
Semelhante ao teatro épico de Bertold Brecht, que rompe a identidade ator-personagem
e mostra a ação de representar, na dança-teatro os bailarinos dançam sem a intenção de
serem “naturais”, mas expõem a ação de dançar sendo vulneráveis a ela. Tanto a

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O núcleo do Coletivo Líquida Ação é composto atualmente por cinco pessoas com formações diversas:
Carlos Borges (cinema), Eloisa Brantes (teatro), Luciana Franco (dança), Juliana Sansana (teatro), Miguel
Przewodowski (cinema). Sob a minha coordenação geral e direção artística, todos são responsáveis pela
pesquisa intelectual e artística, concepção, produção e realização das performances. A organização deste
núcleo, que garante a constância e a consistência do trabalho, forma uma estrutura aberta à participação
de outros artistas convidados para participarem das performances do Coletivo. O desenvolvimento deste
trabalho conta com o apoio logístico da Escola de Teatro Martins Penna (RJ) desde o início de 2007.

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narrativa fragmentada como os movimentos corporais revelam a artificialidade da
situação cênica. Mas se no teatro épico o ator explicita sua relação com a personagem
através do gestus social, na dança-teatro o bailarino explicita sua relação consigo
mesmo. Ambos tratam de conflitos humanos através de relações sociais. Mas a atitude
social do ator épico se manifesta na sua relação com a personagem, enquanto na dança-
teatro o gestus social é um meio do bailarino-ator interpretar a si mesmo. Pina Bausch
durante os ensaios coloca perguntas para os bailarinos. Eles respondem através de suas
próprias histórias, referências e gestos, que são o material básico para suas criações. A
construção do papel está ligada à pessoa do dançarino e não ao personagem que se
busca fora de si próprio (SILVA, 2005, p.124). Na dança-teatro a artificialidade deste
gestus social não visa suscitar o pensamento racional-crítico do espectador com meio de
mudanças sociais, como no teatro épico, mas provocar um posicionamento político
através de abalos na percepção do espectador em relação a si mesmo como ser social.
A dança baseada em gestos cotidianos denuncia a artificialidade dos papéis
sociais que vivemos. A dimensão figurativa das cenas se articula com o caráter
autobiográfico da escrita corporal dos bailarinos. O confronto bailarino/espectador
potencializa a carga dramática das imagens que emergem de situações reconhecíveis
socialmente. A livre associação entre gestos cotidianos, reconhecíveis socialmente, e
movimentos singulares da escrita corporal autobiográfica, propõe infinitas
possibilidades de leitura desta dramaturgia corporal como campo de conexão entre
indivíduo/sociedade. A exposição pessoal dos bailarinos como seres sociais e a
vulnerabilidade deles em relação aos próprios movimentos na artificialidade das
situações cênicas, são pontos comuns com as performances do Coletivo Líquida Ação.
O jogo de palavras “Líquida Ação” conceitua a proposta de pesquisa artística do
Coletivo: realizar performances (ações líquidas) que dialogam com os valores de
liquidez na sociedade de consumo (liquidação). As questões relativas à cultura do
consumo como meio de existência social e a presença do elemento água são os fios
condutores de todas as performances realizadas desde 2006. A pós-modernidade líquida,
traçada pelo o sóciologo Zigmunt Baumman, como característica da atual sociedade de
consumo marcada pelos signos de leveza, como a velocidade do efêmero, a ausência de
compromissos sólidos, o lucro imediato, a descartabilidade das relações, controle da
auto-imagem e fluxos de desejos incessantes, é uma referência importante no próprio
conceito de performance associado à ação líquida: estado líquido da ação. Indefinição
formal da ação maleável, incapaz de ser reproduzida de maneira idêntica. Ação cujo

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desenvolvimento é sensível aos fluxos do tempo/espaço. Tipo de ação associada às
dimensões orgânicas do corpo atuante. Ação capaz de provocar reações químicas em
nossa percepção dos meios físico, social e cultural. Ação com água.
Esta definição, que se insere na proposta artística do Coletivo Líquida Ação,
comporta uma dramaturgia corporal baseada na fragmentação da totalidade
corpo/mente. Os performers atuam e se percebem atuando. Isto envolve a presença do
espectador como parte integrante do processo de composição em tempo real. Neste
sentido a idéia de improvisação está mais ligada à artificialidade (presença dividida) do
que à busca de ações espontâneas. Esta qualidade de presença potencializada pela sua
artificialidade tem a ver com a escrita corporal autobiográfica dos performers. O
processo de criação das performances parte de questões relacionadas a atividade de
consumo dos performers, como por exemplo, qual a “coisa” mais cara que vc já
comprou? Quanto vc gasta para sobreviver? Qual o seu sonho de consumo? Enfim, a
partir das suas respostas pessoais os performers descobrem suas seqüências de ações.
Assim como na dança-teatro de Bausch, a dimensão autobiográfica dos performers
envolve uma dramaturgia corporal particular: o performer se distancia de si mesmo para
se expor em contato com espectador.
No Coletivo Líquida Ação a presença do elemento água imprime uma dimensão
orgânica a artificialidade dos movimentos “editados” de relatos pessoais. As ações da
água sobre os corpos potencializa a dimensão sensorial das suas atuações. A
materialidade da relação corpo/água intensifica o acontecimento na medida em que a
presença molhada comporta artificialidade (collage, fragmentação,
composição/decomposição) e organicidade (fluxo contínuo, dimensão rítmica,
movimentos orgânicos involuntários) como procedimentos artísticos que se
complementam. Assim como nos espetáculos de Bausch, existe uma incompletude
subjacente ao pensar-fazer-sentir fragmentado que, no caso das ações líquidas,
comporta também processos de montagem que incluem a complexidade dos espaços
públicos (Intervenções Urbanas).
Pode-se dizer que as performances do Coletivo Líquida Ação envolvem uma
dramaturgia corporal que se aproxima da dança-teatro de Pina Bausch, na medida em
que o movimento instantâneo, enraizado na experiência do tempo - vivido e
compartilhado entre performers e espectadores, comporta uma escrita corporal
questionadora dos seus próprios limites culturais.

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Bibliografia
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