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Ou a gestão como o maior dos males do futebol neste século.

Há poucas coisas mais danosas para o futebol brasileiro do que a retórica da


profissionalização e modernização gerencial do futebol. Na verdade, este imperativo traz
consigo todos os males que historicamente permearam o universo deste esporte. A
diferença é que agora estes se materializam sob uma roupagem que é bastante eficaz em
disfarçar pretextos.

Eu não afirmo isto para alegar que aprimoramento das práticas e princípios que regem o
futebol seja algo indesejável. Muito pelo contrário. Este, como todos os setores da nossa
vida social, traz consigo as suas múltiplas nossas contradições. Portanto, melhorar o futebol
é um imperativo moral na medida que ele ocupa um lugar importantíssimo para na vida
brasileira.

Contudo, a retórica a que me refiro tem sido instrumentalizada por tipos sociais que estão
longe de representar algum tipo de superação destas contradições. O vocabulário gerencial
do futebol é um ótimo instrumento para emprestar autoridade aos incompetentes (bem e
mal-intencionados).

É este o centro do meu argumento: a obsessão pela gestão como solução dos problemas do
futebol é parte central dos seus problemas. Isso envolve todos os sentidos que derivam
desse termo, tais como profissionalização e modernização. É este léxico que tem legitimado
e potencializado o canto das sereias de pessoes que pioraram seus clubes desde o final do
século passado até então.

Não há muita novidade nisso. O futebol reproduz apenas algo que tem sido bastante
evidenciado por aqueles interessados em compreender as formas como o mundo do
trabalho tem se organizado contemporaneamente. Vicente Gaulejac falou sobre “gestão
como doença social” para ilustrar os males que o gerencialismo produz enquanto ideologia
fundada na busca pela qualidade. André Spicer observou como um mundo corporativo
compartilha um vocabulário que ele chamou de “business bullshit”. Ou seja, um conjunto de
termos que não trazem consigo sentidos muito precisos sobre quase nada. Mas que são
fundamentais para as performances dos agentes do mundo corporativo. Estes precisam
saber utilizá-los muito bem se quiserem ser vistos como experts e profissionais.

Eu não quero me alongar muito em explicar esta relação danosa entre retórica, ideologia e
gestão em razão dos limites mesmo que este texto me impõe. Mas gostaria de mencionar
ainda duas coisas daqui para o final que talvez ajudem a esclarecer a dimensão deste
problema.

A primeira é que setores progressistas do jornalismo brasileiro tem historicamente


endossado este tipo de arranjo. Juca Kfouri, e os próprios jornalistas pernambucanos do
NE45 minutos, tem recorrentemente clamado por uma modernização gerencial do futebol
como panaceia dos nossos problemas. Há muitos outros a fazerem isso. Para estes, a
modernização da gestão é um processo que possui um sentido positivo em si, embora seja
impossível precisar o que gerir de forma moderna e profissional. Mediante os fracassos
recentes, especialmente do futebol pernambucano, a explicação mais geral é que tal
sofisticação gerencial não ocorreu. Não é que o clamor em si tenha algum tipo de problema,
mas é que ele simplesmente não foi implementado.

A memória de todo torcedor brasileiro deve ser repleta de episódios de salvadores da pátria
que foram ungidos em seus clubes sob o discurso da profissionalização da gestão. Mas que,
para a surpresa de quem acha que ferramentas de gestão são o insumo central da resolução
de nossos problemas, implicaram em fracassos retumbantes.

Na minha, de torcedor do Náutico, estão vívidos dois desastres. O primeiro deles se deu no
auge do surgimento deste entendimento na década de 90. Um consultor de empresas
chamado Márcio Borba escrevia semanalmente uma coluna nos jornais onde opinava sobre
como modernizar a gestão do Clube. Tudo soava encantador. Ele foi eleito presidente do
náutico, e precisou renunciar ao cargo antes do final do mandato mediante a crise a que nos
conduziu. O último registro de seu envolvimento com o clube a que tenho notícia foi seu
recente gesto de capitanear a rejeição ao uniforme lançado pelo clube sob o slogan “vidas
negras importam”. A sua exposição de motivos, repleto de argumentos reacionários, é um
registo muito bom da ética que tem permeado os sentidos de novo e moderno em meio ao
futebol.

O segundo episódio é mais recente. Um movimento chamado transparência alvirrubra


(MTA) assumiu o clube prometendo implementar radicalmente modernas práticas de
gestão. O fracasso foi apenas um pouco menor, e tal episódio faz parte do folclore do
futebol pernambucano. Todo grupo que se apresenta como comprometido com esta
agenda gerencial, e fracassa, é logo comparado ao MTA.

Recentemente, o Santa Cruz foi conduzido por um grupo que prometia implementar regras
de “compliance” no clube, para além de outras promessas da mesma ordem. O time foi
rebaixado à Série D. O Sport passou por um processo de renovação em suas lideranças, e o
discurso (e a própria esperança dos entusiastas dessa mudança) se apoiava em um
horizonte de modernidade gerencial. Hoje a torcida constata que os atuais diretores foram
incapazes de fazer uma simples inscrição de jogadores na plataforma da CBF.

Este texto não é sobre nostalgia de um passado idílico, ou para manifestar algum tipo de
“ódio ao futebol moderno”. Na verdade, meu argumento envolve colocar como problema o
próprio horizonte que é tido como caminho óbvio para que o futebol melhore. Leitores de
livros comprados em livrarias de aeroporto tem instrumentalizado o vocabulário desta
literatura para cometerem os mesmos erros de sempre (ou até piores).

O problema, no entanto, não está em uma eventual má aplicação de modernos


instrumentos gerenciais, ou na falta de profissionalismo, como se ambas as questões
possuíssem sentidos em si.

O problema está (ou parte importante dele) na crença que gestão modernizada é o porto
seguro para o qual o futebol deve navegar. Tal entendimento implica dar centralidade a
algumas questões em detrimento de outros saberes, sempre. As questões políticas e de
“bola” tornaram-se secundárias para explicar as coisas e oferecer saídas. Criticar a estrutura
de gestão é um coringa sob o qual todos os fracassos no futebol se explicam.
No entanto, se há algo que a retórica de gestores é ótima, é em fazer parecer que quem
maneja tais termos sabe precisamente do que está falando. E é exatamente nesta retórica, a
qual tem rendido fracassos difíceis de serem explicados (já que tudo soava profissional
desde sempre) onde reside o maior dos males do futebol nesse começo de século.

Faz mais de duas décadas que vej0o serem reeditadas e atualizadas fantasias como esta. O
que é angustiante não é nem tanto a memória dessas experiências, mas a fácil constatação
que esse tipo de canto da sereia é ainda absolutamente forte no futebol. E, especialmente,
nos setores da torcida e da imprensa que alegam se posicionar de forma crítica ao que está
dado estruturalmente no futebol.

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