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O ATOR RISÍVEL:
PROCEDIMENTOS PARA AS CENAS CÔMICAS
AGRADECIMENTOS
Em todo trabalho, há aqueles anjos que estão sempre disponíveis a nos resguardar
e nos conduzir com segurança, nesta estrada acidentada cheia de aclives, declives e
precipícios, que é a pesquisa. Citarei esses anjos da guarda não na ordem de importância, mas
pela lembrança que me ocorre no momento. Ao Prof. Dr. Daniel Marques, pelos nossos
momentos de prazerosos diálogos na orientação dessa pesquisa. À Profª. Drª. Cleice Mendes,
pelas suas contribuições de extrema generosidade. À Profa. Dra. Elza Andrade, pelas
observações pertinentes e pontuais. Ao apoio incondicional do CEFET-CE e de todos os seus
funcionários. Aos meus parceiros de trabalho, os alunos pesquisadores do Grupo de
Comicidade e Riso do CEFET-CE, que sem a dedicação e colaboração deles nada do que foi
realizado seria possível, por isso agradeço especialmente de coração a: Amidete Aguiar,
Chirliane Alves, Elaine Nascimento, Deninha Carvalho, Elvis Jordan, Fábia Guedes, Felipe
Franco, Gorete Rodrigues (em memória), Henrique Bezerra, Jeniffer Suzana, Jociel Carvalho,
Larissa Montenegro, Marcos Martins e Carol Li. E, também, aos meus dois fieis escudeiros
do inicio do Grupo de Pesquisa: Marcus Augusto e João Machado. E minha cunhada, Joana
Jucá, pela atenção na revisão final.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO
O riso, além de estar no domínio do corpo, tem sua relação com códigos que se
estabelecem fora deste. São justamente esses códigos ou fenômenos que ocorrem fora
do corpo de quem ri que, indistintamente, serão chamados, neste trabalho, de cômicos
ou risíveis e estarão no centro deste estudo, ou seja, na elaboração de procedimentos
para o ator na cena cômica.
Os elementos de uma tradição física e outra social do riso são a base para as
elaborações teóricas sobre os mecanismos da comicidade. O riso que estou preocupado
em suscitar é aquele motivado por elaborações artísticas. O riso provocado por cócegas,
por histerias, por boas novas, por encontros festivos e risos espontâneos; só me interessa
se puder servir para compreensão de suas causas nas cenas cômicas.
vivo”, isto é, o risível se realiza quando a vida parece desviar-se no sentido de certa
mecânica. Esse leitmotiv presente em todo o ensaio de Bergson é uma rica contribuição
de possibilidades incalculáveis que nos inspira na direção de procedimentos para a arte
do ator risível.
A partir do projeto, resolvi adotar uma nova estratégia para o grupo: abri
inscrições apenas para alunos do CEFET-CE que cursavam entre os semestres I e IV.
Para não gerar equívocos, procurei não esclarecer nada antes dos trabalhos começarem.
No primeiro momento, fiz a convocação para os alunos que desejassem participar de
uma pesquisa, mas sem mencionar de que se tratava. Informei apenas que iríamos
abordar técnicas para o ator. Não desejava, nessa ocasião, que houvesse idéias
preconcebidas sobre o conteúdo da pesquisa, pois o risível tem sempre um grande efeito
atrativo, embora muitos o concebam como arte menor, superficial, sem densidade
conceitual e artística.
No dia 9 de janeiro de 2007, iniciei essa nova fase. Em nossa primeira reunião,
compareceram onze alunos. Constatei, como era de se esperar, que a maioria desejava
entrar num grupo de pesquisa, mas não sabia o que queria pesquisar. No outro dia,
reiniciamos os trabalhos, agora com treze alunos. Eu ainda não tinha certeza de por
onde começar nem sabia em que resultariam os exercícios iniciais. Mas numa coisa eu
acreditava: era necessário homogeneizar, integrar o grupo e direcionar todos para uma
proposta de comicidade.
consciência do que significa uma pesquisa, no sentido de sua autonomia, não levando à
frente as atividades que deixei, passando a tratar de seus interesses particulares,
deixando a pesquisa para o segundo plano.
(op. cit.) relativas à comicidade, conferindo-lhe legitimação por uma prática, mas
encontrar estratégias, firmar um roteiro para exercícios práticos do ator de modo a
suscitar o riso na perspectiva do mecânico colado no vivo.
Portanto, relato o percurso desta pesquisa em cinco capítulos, nos quais abordo
os seguintes temas:
1
A primeira edição desta obra data de 1899.
17
Outra crítica freqüente ao ensaio de Bergson é que, por este ser um dos textos mais
conhecidos e bastante citados, as “[...] suas asserções adquirem quase sempre caráter de
autoridade original.” (ALBERTI, 1999, p. 184). Sem citar referências, Bergson elabora o seu
modelo para o cômico, que está pautado em preceitos que remontam às reflexões da tradição
cômica.
Pode-se dizer que Bergson redescobre o que era voz corrente há mais de um
século na discussão sobre o “ridículo” e a utilidade de sua aplicação. Cômico e
riso, para ele, são, respectivamente, um desvio negativo e sua sanção funcional
que estabelece a ordem da vida e da sociedade. [...] É interessante observar
que algumas formas de classificação se aproximam da classificação da retórica
antiga, “o cômico da ação” e o “cômico de palavras”, enquanto outras, como
“cômico acidental” e o “não-acidental”, fazem lembrar a classificação de
Joubert2 entre o fato risível que ocorre por acaso e aquele que fazemos de
propósito. (ALBERTI, 1999, p. 184-186).
Desde Platão (428-399 a.C.) até os nossos dias, encontra-se em toda a tradição do
pensamento filosófico ocidental, de uma maneira ou de outra, especulações acerca dos
mecanismos do risível. Entendo que o riso é uma manifestação do corpo, um reflexo físico-
biológico, inato, algumas vezes, instintivo3.
O filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), em seu estudo sobre as partes dos animais,
abre o caminho a toda uma tradição fisiológica que explica o riso através do funcionamento do
diafragma humano. De acordo com o filósofo grego, o diafragma divide o corpo em duas partes: a
alta e nobre – composta pela cabeça, pulmões e coração; e a baixa e menos nobre – em que se
2
Verena Alberti em seu livro O riso e o risível na história do pensamento (1999), dedica um capítulo completo sobre um
certo tratado do riso, publicado em 1579 por Lautrent Joubert, conselheiro e médico ordinário do rei e chanceler da
Universidade de Medicina de Montpelier. A obra de Joubert é uma das mais densas já publicadas, “voltada
exclusivamente para a questão do riso” – o Tratado do riso, contendo sua essência, suas causas e seus maravilhosos efeitos,
curiosamente pesquisados, refletidos e observados. O autor do tratado expande os estudos de Aristóteles sobre o diafragma e
descreve detalhadamente o circuito do riso: primeiramente a matéria do riso penetra na alma através da audição e/ou
da visão; o pensamento provoca o movimento do diafragma; o peito se agita; há compressão pulmonar decorrente
dessa agitação; a voz fica entrecortada; acontece o alargamento da boca, decorrente da ação dos músculos do peito,
dos espíritos e dos vapores sangüíneos que também esticam os músculos da face. Assim, o estado risível percebido em
uma pessoa, através do corpo e, mais especificamente, nas expressões faciais, como as descritas por Joubert, é
determinado por um conjunto de códigos, a partir do qual se define e se caracteriza como riso.
3
Em seus estudos, o etnologista Ireneaus Eibl-Eibesfeldt (1983) faz um paralelismo entre o comportamento dos
primatas e dos humanos que servem para provar as nossas “origens animais” e que o riso não é um privilégio da nossa
raça. Eibl-Eibesfeld (op.cit.), pesquisando os macacos, constatou que estes, quando se juntam para ameaçar ou atacar
o inimigo, produzem um arquejo sussurrado, expirando e inspirando, semelhante ao riso humano. Os chipanzés riem
também quando fazem cócegas uns nos outros, como as crianças. No entanto, as mais importantes conclusões deste
etnologista na questão do riso partiram da observação de várias fotografias tiradas nos quatro cantos do mundo, em
que ele constatou que todas as pessoas de todas as culturas e de todas as raças tinham a mesma expressão reconhecida
culturalmente como riso. Constando, desta forma, que tal comportamento do homem não é um simples fruto da
aprendizagem e que ele possui realmente, do mesmo modo que o animal, uma base inata, instintiva.
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localiza abdômen, fígado, baço, vesícula, intestino. O humor quente 4, devido à digestão, advindo
da parte baixa em direção à alta, passando pelo diafragma, provoca uma perturbação na
sensibilidade e no raciocínio. O pensamento se opõe ao movimento, quando o diafragma é
sensibilizado pelo calor advindo das partes baixas, ocasionando o riso.
Embora as idéias de Aristóteles não tenham esclarecido completamente os mecanismos
físicos e biológicos do riso, suas observações sobre o pensamento se opondo ao movimento,
serviram de base para os inúmeros estudos que trataram o riso como uma reação do corpo ao
sentimento de estranhamento e sua relação com a topografia corporal, alto e baixo.
Em Bergson (2004), pode-se encontrar a justificativa para o estranhamento 5, quando ele
fala que o riso acontece na medida em que percebemos o desvio da vida em direção a ações
mecânicas, como no caso, por exemplo, de uma inversão da normalidade social, em que o nobre é
rebaixado e o plebeu é elevado.
Além da relação fisiológica do riso, em Aristóteles há diversas observações sobre o riso
que foram pontos de partidas para mais variadas teorias sobre a comicidade. A mais famosa
afirmação de Aristóteles a esse respeito é a de que “o homem é o único animal que ri.”6 Para
Bergson (op. cit., p. 2), o homem não é somente o único animal que ri, mas também o único que
faz rir:
Vejamos agora o primeiro ponto para qual chamaremos atenção. Não há
comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Uma paisagem poderá
ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; nunca será risível. Rimos de
um animal, mas por termos surpreendido nele uma atitude humana ou uma
expressão humana. Rimos de um chapéu; mais então não estamos gracejando
com o pedaço de feltro ou de palha, mas com a forma que os homens lhe
deram, com capricho humano que lhe serviu de molde. Como um fato tão
importante, em sua simplicidade, não chamou mais atenção dos filósofos?
Vários definiram o homem como “um animal que sabe rir”. Poderiam também tê-
lo definido como um animal que faz rir, pois, se algum outro animal ou um objeto
4 A palavra humor derivou-se do latim. Por muitos séculos, todo humor corporal era considerado signo ou causa de
doença. Em alguns livros clássicos de medicina atribuía-se quatro tipos de humor produzidos pelo o homem, isto é, o
sangue, a cólera, a fleuma e a melancolia, e estes humores, para os médicos da época, eram as causas de suas
enfermidades. Daí vem a idéia de dizer que uma pessoa está de (ou tem) bom ou mau humor.
5
O estranhamento, na visão de Bergson, é tratado neste trabalho como um dos recursos para se suscitar o riso,
consiste na discrepância entre o que se percebe, o que se espera e o que se concebe ou se realiza, isto é, numa
desarmonia social. Não confundir com o conceito de estranhamento de Beltolt Brecht, que está associado ao
distanciamento entre a cena, ator, personagem e o público com o intuito de uma reflexão crítica.
6
Estes estudiosos não classificam de riso as manifestações de alegria em alguns animais, como os grunhidos dos
macacos, e o balançar de rabo dos cães ao verem uma pessoa amiga.
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ainda animado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem,
à marca que o homem lhe imprime ao uso que o homem lhe dá.
Encontramos comumente nos livros de história do teatro que a comédia surgiu na
Grécia, a partir da procissão dionisíaca, oriunda de uma parte profana chamada Komos, que
consistia em uma folia de dançarinos, cantores e mascarados, que conduziam o emblema fálico,
símbolo da fecundidade e dos prazeres sexuais. No entanto, sabe-se que manifestações
semelhantes a essas já aconteciam em outros povos, muito antes dos gregos se estabelecerem
como sociedade organizada e de suas práticas sociais conterem qualquer indicio daquela formação
cultural que viria a influenciar todo o pensamento das civilizações ocidentais até nossos dias.
No entanto, na Grécia Antiga, Dioniso era o deus-mor homenageado pelos dramaturgos
trágicos e cômicos. Por ter várias facetas – assim como um ator – era reconhecido sob diversos
nomes: deus Espírito da Primavera, o deus do Renascimento (“O Divino Rapaz” e “Brômio,
aquele do forte grito”), o deus Touro ou deus Bode, deus do poder intoxicador da procriação em
todas as coisas, deus da fertilidade e da transformação. Porém é como o deus do vinho – o mais
comum de seus títulos – que ele exprimia um dos aspectos simbólicos de sua divindade
embriagante.
Os rituais que encontramos na África, na Austrália, nos povos indígenas da América do
Sul, em sua maioria, tratam da negação à morte, “[...] trazendo de volta o falecido sobre forma de
espírito, e o rito do ancestral ou adoração do espírito converte-se em uma representação gráfica
dessa ressurreição.” (GRASSNER, 1991, p. 7). A vida e a morte dos deuses são os principais
temas das tragédias clássicas, que têm na forma de comédias o seu reflexo, como num espelho de
imagens in(di) vertidas.
Gêneros da poética teatral, a tragédia e a comédia se humanizaram e se afastaram do
culto religioso, assumindo cada uma, características próprias, independentes e opostas de retratar
a vida. Enquanto a tragédia é marcada pela morte, a dor, o desespero e o sacrifício das suas
personagens, a comédia mostra o inverso: a alegria de viver, o prazer, o riso, a esperança de um
final feliz.
A expressão “a comédia representa os homens piores que eles são” 7, foi enunciada na
Poética, de Aristóteles, quando o filosofo grego observou uma maneira de produzir comédia que
era recorrente em sua época. Alguns teóricos equivocadamente pegaram a expressão aristotélica
ao “pé da letra” e a tomaram como dogma, como principio para suas reflexões sobre o risível,
gerando diversos preconceitos críticos relativos a concepções artísticas dessa atividade teatral.
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A comédia, como dissemos, é imitação de pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser
o cômico uma espécie de feio. A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiúra sem dor nem destruição; um
exemplo óbvio é a máscara cômica, feia e contorcida, mas sem expressão de dor. (ARISTOTELES, 1995, p. 23-24).
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sabichões são ludibriados pelos bobos; os homens são mandados por suas mulheres; enfim, o
sacralizado torna-se profano. O riso assume um pacto com o diabo.
Os estudos do teórico russo constaram que, na Idade Média, o tom sério das instituições
oficiais afirmou-se como única forma que permitia expressar a verdade, o bem e, de maneira
geral, tudo que era importante e considerável. O medo, a veneração, a docilidade constituíam por
vez os tons e matizes dessa seriedade.
Nesse contexto, o risível se estabelecia como uma solução simbólica para a assimetria do
mundo sério. Ele era burlador, irreverente, libertário. Era por seu caráter transgressor que ele
invertia a realidade oficial, quebrava as relações de hierarquia entre dominante e dominado,
desconstruía esta realidade e reconstruía outra paralela, paródica, codificada por aquilo que a
sociedade oficial não admitia e condenava (o absurdo, o ridículo, o grotesco), porque com o
risível os ritos eram dessacralizados e os mitos, destronizados.
O lúdico é a chave ou raiz cultural para a decodificação dessa realidade invertida. Para
Huizinga (1971, p. 11), “[...] as grandes atividades originais da espécie humana são todas
entremeadas com o lúdico.”
Podemos encontrar a raiz desse riso carnavalizado no homem primitivo, que “[...] era
um mimo acabado, uma criatura dada às práticas lúdicas.” (GRASSNER, 1991, p. 4). Os mimos e
as pantomimas são as formas elementares da expressão corporal, de onde derivaram todas as artes
cênicas. As primeiras pantomimas eram uma espécie de dança que imitava os animais no
caminhar, na forma de caçar uma presa ou na fuga de um predador. Dançava-se também para
evocar as forças benignas da natureza ou para repelir as hostis.
As pantomimas fálicas, representando a fertilidade da natureza, ganharam espaço em
todas as sociedades tradicionais. A função geradora do riso favorece que os rituais agrícolas
adotem o falo como o símbolo e dele derivem todo o princípio do baixo corporal adotado nas
tradições cômicas populares.
A natureza mágica de fazer rir também aparece nas sociedades arcaicas, produzindo o
aniquilamento do medo. Essas sociedades tradicionais temem a transgressão, por acreditar que
esta perturba a ordem e faz retornar o caos. Como solução simbólica a esse temor, elas criam
dispositivos de modo a provocar a transgressão. (BALANDIER, 1997, p. 49). Tais realizações
aconteciam pelas performances dos clowns ou bufões primitivos, “[...] símbolo do caos e da
dispersão operados pela dispersão grotesca da potência sagrada.” (MACEDO, 2000, p. 36).
A transformação, a imitação, o deixar-se passar por outro, enfim, a representação, estas
são ações inerentes ao teatro e a qualquer manifestação ritualística: o feiticeiro se passa por onça,
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símbolo da morte, dançando ao redor do fogo, afasta os maus espíritos; o ator se passa por
palhaço, por deus e por diabo.
É pela capacidade que o homem tem de imitação, que muitos aspectos da vida são mais
ou menos invariantes e universais. Se tivéssemos a possibilidade de discriminar cada um dos nossos
gestos, que são comuns aos nossos antepassados mais próximos (pais, avós e tataravôs), e
continuarmos rastreando-os nos ancestrais cada vez mais remotos, com certeza ficaríamos
surpresos pois, ao chegar ao homem primevo, constataríamos que alguns dos gestos identificados
em nós não passam da imitação de um animal ou de um fenômeno da natureza.
Freqüentemente, encontramos manifestações culturais em que os animais são
humanizados ou que os homens são transformados em animais em contato permanente com a
natureza. Muitas das representações dos deuses e faraós do Antigo Egito eram zoomorfizadas, com
corpo de leão ou cabeça de chacal.
Mas esta não é uma exclusividade da religião egípcia. Encontramos representações
zoormórficas em outras religiões e nas mitologias. Na Grécia, estão as esfinges e os sátiros. Na
própria religião cristã, os anjos são concebidos como entidades aladas, e a imagem do diabo
aparece como uma deformação do sátiro, possuindo rabo e chifres. Três dos evangelistas têm
emblemas de animais: São Lucas, o boi; São Marcos, o leão, e São João, a águia. O Cristo aparece
simbolicamente como cordeiro de Deus, ou como peixe.
A comicidade das civilizações primeiras apresentava uma conotação diferente da que foi
concebida nas sociedades posteriores. O homem, o outro e a natureza eram uma só coisa. A
relação com sagrado tinha a intenção integradora e não de separação. Isso nos faz acreditar que nas
sociedades arcaicas o paralelismo, necessário à paródia, não seria compreendido.
A mentalidade primeva só concebe a si mesma como parte de um todo
cósmico em que as forças sobrenaturais atuam de forma favorável ou
desfavorável nos desígnios da natureza. Tais forças são, para o homem
primevo, o princípio e a gênese de todas as coisas, inclusive ele mesmo.
(SANTOS, 2001, p. 51).
O bufão – alguns atribuem tal palavra à bufa ou ao flato – é o tipo risível que mais se
aproxima da natureza e da espontaneidade animalesca. O bufão aparece nas sociedades de todas as
épocas. A comicidade do bufão é livre de fronteira, é imoderada e exagerada. É o cômico das
praças públicas, das festas e das diversões populares. O risível da abundância, das comilanças e
bebedeiras, dos xingamentos e das permissividades sexuais.
Esse é o risível universal, pois liga o homem às suas necessidades fisiológicas primeiras:
comer, beber, defecar, urinar e copular. A intimidade, a quebra de formalismos propiciada por
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TRICKSTERS: seres mitológicos lendários e, às vezes, divinos e profanos. Praticam a astúcia pela astúcia, lúdica e
gratuitamente. Dialogam com a ordem e a desordem, oscilam entre o lícito e o ilícito. Vêem o mundo em termos de
soluções pessoais e intuitivas (ex.: os sátiros, Saci-pererê); ZANNIS: surgem nas farsas italianas. Servos esfomeados,
sem padrões definidos. São espertos e maliciosos, ou bonachões e estúpidos e, em ambos e os casos, glutões. Os
sucessores de Zanni constituem algumas personagens da Commedia Dell’ Arte: Briguella, Arlecchino, Tufaldino,
Tivellino, Coviello Mezzetino, Fritellino e Pedrolino; PÍCAROS: aparecem nas novelas e aventuras espanholas do
século XVI e XVII. Nome aludido aos soldados que regressaram da Picardia, durante as guerras de flandres. É um tipo
sem ofício determinado, que vive de modo irregular e vagabundo, mas apresenta-se mais freqüentemente como
criado. Na maioria das vezes, está acompanhado de um amigo de extrema confiança que um completa o outro nas
características picarescas. No pícaro retrata a miséria de uma sociedade, mas que ele sabe tirar proveito pela astúcia e
rapidez de raciocínio (ex.: Lazarillo de Tormes, Gusmán de Alfarrache, Dom Quixote e Sancho Pança); QUENGOS
ou AMARELOS: encontram-se na literatura de cordel nordestina. Astuciosos, inteligentes, presepeiros (ex.: Pedro
Malasartes, João Grilo e Cancão de Fogo). “São amáveis, risonhos, simpáticos, burladores, sofre a causalidade externa
e vivem ao sabor da sorte da sina.” (VASSALO, 1998, p. 268).
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da comicidade, qualquer teoria que procure explicar as causas de seu riso é limitante, já que dá
margem a exemplos que se opõem e extrapolam às suas premissas.
Então, o mais aconselhável é compreender como os autores articulam e constroem os
seus modelos sobre o risível e não adotá-los como leis definitivas, mas identificar nesses modelos
os mecanismos possíveis de serem reproduzidos em certas circunstâncias, para se obter o efeito
desejado na realização de cenas cômicas.
O riso de Bérgson
Apesar das críticas a Bergson, existem aqueles, como o dramaturgo paraibano Ariano
Suassuna (2008, p. 151), que defendem a teoria do filósofo francês como a “[...] mais completa e
engenhosa até hoje surgida para tentar esclarecer o que seja o risível.” O próprio Suassuna (op.
cit.) utilizou de alguns mecanismos sugeridos por Bergson na elaboração de muitas de suas
famosas comédias. O dramaturgo acredita que o ensaio de Bergson é uma referência
imprescindível para compreensão do risível:
De qualquer modo, porém, a teoria bergsoniana sobre o risível foi, talvez, a
que maior número de esclarecimentos trouxe, até hoje, sobre o assunto. E
sejam quais forem as críticas que a ela se dirijam, ninguém pode ficar alheio a
seu encanto, à sua cortante clareza, que tornam o ensaio de Bergson um
clássico da Filosofia do nosso tempo. (Ibid., p. 171).
Ao publicar o seu ensaio sobre o riso, Henri Bergson já havia lançado Ensaios sobre os
dados imediatos da consciência (1889) e Matéria e memória (1896), duas de suas obras em que estão
contidos alguns dos principais conceitos de seu projeto filosófico: intuição, duração e memória.
Outro conceito, o impulso vital, de suma importância para compreensão da filosofia de Bergson, só
viria a ser apresentado alguns anos mais tarde em sua obra prima: A evolução criadora (1907), que
lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura.
Mesmo tratando-se de uma das obras iniciais do filósofo, o ensaio sobre a comicidade
contém, tanto no seu desenvolvimento metodológico, como na sua abordagem, os principais
conceitos que permearam as suas teses.
Bergson criticava o racionalismo e o empirismo dos métodos científicos. E a intuição
para ele era, antes de tudo, um método de se conhecer a realidade. Método que ele desenvolveu e
aplicou de forma criativa, original e revolucionária, trazendo para o pensamento moderno uma
abordagem inovadora de se validar a filosofia, as ciências em geral, além de revelar através deste,
um modo bem particular de encarar a vida.
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A intuição como método rejeita o racionalismo científico no seu esforço intelectual para
se conhecer a realidade. Os métodos científicos partem de pressupostos na elaboração de suas
questões e através deles deseja-se chegar a fórmulas generalizantes e fechadas. O método
científico apresenta erros já na elaboração de seus problemas, pois tenta conhecer a realidade
através de aferições quantitativas, avaliando apenas as mudanças de grau das coisas no espaço,
como se os dados observáveis não mudassem a cada instante em qualidade, em natureza.
Com o método da intuição, Bergson pretendia conhecer as coisas em si, no seu
momento atual, nas suas diferenças de natureza, para que fosse possível eliminar os falsos
problemas. Estas diferenças são percebidas pela duração das coisas, que é a própria mudança de
qualidade. Os dados imediatos captados pela intuição na sua duração são apreendidos por meio das
lembranças do passado que são constantemente atualizadas no presente pela memória. A contínua
movimentação do pressente estendido ao passado e comprimido no futuro, num fluxo, num
pulsar, numa contínua evolução criadora da vida, realiza-se pelo impulso vital.
Um dos pontos-chave da filosofia de Bergson, que interessa para se entender como ele
analisa o cômico, é a sua idéia de memória e atualização do passado. A memória não reside no ser,
na matéria, mas ela é fruto de um exercício criativo e contínuo de atualização, de mudanças de
qualidades. A vida se realiza através dessas atualizações.
Sem o passado atualizado no presente, não há diferenças qualitativas, não há diferença de
natureza, não há compreensão da realidade, nada flui, tudo permanece imutável, inerte; até a
vida. O impulso vital, portanto, é a “força motriz” que leva as coisas a mudarem, a se atualizarem,
é a própria duração, o movimento contínuo, sua constante realização. O impulso vital é este
movimento de diferenciação e acúmulo do passado e presente, rumo ao futuro. É a mudança
incessante de natureza, que atua na duração e retorna pela lembrança através da memória, que é o
exercício natural da vida.
A nossa percepção contém uma inércia, entre o passado e o presente próximos. O
passado dura um tempo para se tornar presente. Ou seja, a duração é este tempo distendido entre
o antes e o agora. Esta percepção ainda é mais lenta quando acontece internamente: mudanças de
sensações, de afeto, como do estado sério para o risível.
Dificilmente percebemos nosso estado antes do riso. Quando percebemos a transição,
ela já ocorreu. E quanto menos consciente é a percepção desta transição, maior é a sua intensidade
e eficácia. Neste sentido, um dos mecanismos de produção da comicidade é justamente o desvio
da rigidez do pensamento. Está na percepção de que algo mudou. Nesse instante imediato, o
estranhamento se estabelece, pela surpresa, o indivíduo se dá conta do sono de uma realidade:
parecia que ele estava em vigília, mas o risível o acorda e ele se percebe dormindo.
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Para H. Pross, toda comunicação começa no corpo e termina no corpo e, portanto, o corpo é mídia primária
(BAITELLO, Notas de sala de aula, 11/10/01).
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BAITELLO, notas de sala de aula, 22/08/2001.
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macaco; a mulher é tratada por vaca, cachorra ou galinha. Existem os narizes de papagaios, os
olhos de coruja, os queixos de jacaré, os cabelos de porco-espinho. Os lerdos são chamados de
tartaruga, os ignorantes de cavalo, os raivosos se comportam como um leão.
Já nos nomes próprios atribuídos às personagens, o risível está no incomum e
inconsistente, refletindo no nome o aspecto físico, o caráter vicioso ou virtuoso em excesso da
personagem. O risível está no exagero do que há de negativo no caráter. Mas este exagero não
pode ser tanto que cause algum sentimento de repulsa ou compaixão, pois não suscita o prazer do
riso.
Como já foi dito, para Bergson (2004), “o riso é incompatível com a emoção”. Isto
significa dizer que quem ri de alguém, ri porque não tem nenhuma identificação emotiva com
aquele que o induziu ao riso. Para se perceber o cômico nos personagens, é necessário um relativo
distanciamento. É através deste distanciamento que julgamos as pessoas, tiramos conclusões sobre
o seu caráter e condenamos o seu comportamento. O riso surge como uma desaprovação
inconsciente do modo de ser da pessoa, cujo tipo físico se choca com sua suposta moral. O
confronto entre o aspecto físico e o espírito causa o riso: “O riso castiga certos defeitos mais ou
menos como a doença castiga certos excessos, atingindo inocentes, poupando culpados, visando a
um resultado geral sem poder fazer a cada caso individual o favor de examiná-lo separadamente.”
(BERGSON, 2004, p. 147).
Portanto, “[...] o riso é verdadeiramente uma espécie de trote social, sempre um tanto
humilhante para quem é objeto dele.” (Ibid., p. 71). O riso ridiculariza o indivíduo e, quanto mais
seus defeitos morais são expostos, mais se tornará ridículo.
Mas não é somente o caráter moral das pessoas que desperta o riso, pois o modo com
que o indivíduo se relaciona com seu meio social pode se tornar risível. O tipo tímido é muitas
vezes utilizado pelos humoristas para suscitar o riso. O que o torna risível está na sua
insociabilidade, conforme explica Bergson (op. cit., p. 104): “Quem quer que se isole expõe-se ao
ridículo, porque a comicidade é feita, em grande parte, desse isolamento. Assim se explica por
que a comicidade é tão freqüentemente relativa aos costumes, às idéias – aos preconceitos de uma
sociedade, para darmos nomes às coisas.”
E conclui dizendo que: “[...] rigidez, automatismo, distração, insociabilidade, tudo isso
se interpenetra, e em tudo isso consiste a comicidade de caráter.”. (BERGSON, 2004, p. 110).
Se o riso exige um distanciamento e uma momentânea anestesia dos sentimentos, por
que rimos das deformidades do corpo: gordos, doentes mentais, anões e outras mazelas físicas?
Para Bergson (op. cit., p. 110), “[...] as diferenças individuais são ridículas quando percebidas
como deformidades que transgridem a harmonia da natureza.”
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lembra de como se divertia com os seus brinquedos. Então, libera-se da carga imposta pela
sociedade e se deixa dominar pelo riso.
Do adulto, espera-se que não brinque, pois isto quebra a lógica da vida, é uma inversão
dos desejos na evolução do tempo. O adulto é recriminado por ser infantil. Seu tempo de
brincadeira já passou. A realidade é outra. A realidade da vida adulta é a da seriedade, da rigidez,
dissociada das brincadeiras infantis. É vergonhoso, portanto, comporta-se infantilmente quando se
é adulto, foge às regras sociais e da natureza. De acordo com Freud (1992, p. 43), “[...] as forças
motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo,
uma correção da realidade insatisfatória.” Deste modo, o passado, o presente e o futuro estão
entrelaçados pelo fio do desejo, e ao rirmos estamos tentando sublimar este desejo.
Ao associarmos ou percebermos determinadas situações do cotidiano que nos remetam a
sensações das brincadeiras de crianças, reagimos com o riso. O estranhamento está em
percebermos que muitas das situações não correspondem à continuidade livre da vida, mas a uma
rigidez, a um automatismo e a uma mecanicidade própria dos brinquedos. “O mecanismo rígido
que surpreendemos vez por outra, como um intruso, na viva continuidade das coisas humanas,
tem para nós um interesse particular, por ser como uma distração da vida.” (BERGSON, 2004, p.
64).
Um gesto se transforma em um gesto social quando revela a relação entre os homens e a
sua sociedade. Assim, um gesto social pode se tornar risível quando rebaixa aquele que o
cometeu, retirando-lhe a dignidade, e alterando a polaridade de seu poder social ou lhe dando
autoridade que, em circunstâncias normais, não teria. Pode revelar a contradição, o contraste e o
estranhamento.
O estranhamento, em todas as épocas e lugares, derivado de aspectos da vida que fogem
à normalidade, às expectativas, tem sido, para muitos estudiosos, fonte principal do riso.
O desvio da vida, portanto, é o que nos causa o estranhamento, no que ele tem de
mecânico, automático, repetido, invertido e simultâneo, dando-nos a idéia de brinquedo. É pela
lembrança do passado, atualizada no presente, que as brincadeiras infantis suscitam as mesmas
sensações agradáveis, manifestadas pelo corpo, através do riso. O estranhamento acontece ao
percebermos que muitas das situações não correspondem à continuidade livre da vida, mas a uma
rigidez, a um automatismo e a uma mecanicidade própria dos brinquedos.
Bergson (2004) associa a lembrança dos mecanismos de funcionamento de três
brinquedos (o boneco de mola, a marionete e a bola de neve) à imagem que nos remete a maioria
das situações cômicas.
O boneco de mola ou caixa de surpresas
33
A marionete
Este brinquedo dá a imagem de um boneco em que todas suas articulações estão presas
por cordas e seus movimentos estão controlados por um manipulador que determina as ações do
boneco. É, pois, na idéia de se estar dominado, ou conduzido, como um joguete na mão de outros
que se estabelecem as situações cômicas.
Toda a seriedade da vida advém de nossa liberdade. Os sentimentos
aprimoramos, as paixões que nutrimos as ações por nós deliberadas,
assentadas, executadas, enfim o que vem de nós e o que é só nosso, isso é o
que confere a vida seu aspecto às vezes dramático e geralmente grave. O que é
preciso para transformar tudo isso em comédia? É preciso imaginar que a
liberdade aparente a encobrir uma trama de cordões, e que somos neste
mundo, como diz o poeta, “pobres marionetes cujo fio está nas mãos da necessidade”.
(BERGSON, 2004, p. 58).
A farsa, a trapaça, fazer o outro de bobo são algumas das características representadas
nos mecanismos das marionetes. A maioria das piadas se estrutura a partir desse mecanismo, em
que, pelo menos um dos participantes da situação (personagens e/ou espectadores) é conduzido
por uma falsa “linha” de raciocínio, que se “quebra” no desfecho da piada.
O cordão que parece nos limitar nos prende aos devires, e tolhe a transformação natural
do mundo. Todos estes sentimentos vitais são ressaltados em comédia, quando mostramos que é
aparente a liberdade nas pessoas. Somos conduzidos por nossas paixões e sonhos, cujos cordões
estão nas mãos da necessidade, que nos prende como grilhões invisíveis. A representação
exagerada dos desejos mais recônditos da alma torna visíveis tais cordões, provocando assim o
riso.
As pessoas nascem, desenvolvem-se, adquirem hábitos, gestos impostos pelas regras de
conduta social. Elas se tornam escravas de suas expectativas, e quando estas são frustradas,
34
acontece o estranhamento que pode ocasionar as mais diversas reações, inclusive o riso. O corpo
se manifesta como resposta à incongruência entre a razão e o entendimento diante do risível. O
riso surge assim como a recuperação do prazer que se perdeu com a crítica.
A bola de neve
Este caso representa a idéia da reação em cadeia, do efeito dominó. Pequenos incidentes
geram novos sempre crescentes em intensidade, com conseqüências muitas vezes desastrosas. As
comédias do Gordo e o Magro, por exemplo, estão recheadas de situações cômicas que, a partir de
coisas simples e banais, complicam-se e se avolumam como uma bola de neve, descendo
montanha abaixo.
Nesta imagem a vida parece se diferenciar em intensidade, em grau, o que caracteriza o
aspecto mecânico das ações. Deste modo, o riso se estabelece pelo desvio do curso natural da
vida, levando a compará-la a um brinquedo que parece se expandir, evoluir no espaço e no
tempo, até que o estranhamento da situação provoque uma explosão de risos.
A criança diverte-se vendo uma bola de boliche que, lançada contra baliza,
derruba tudo ao passar, multiplicando estragos; ri ainda mais quando a bola,
depois de girar, desviar e hesitar de todos os modos, volta ao ponto de
partida. Em outros termos, o mecanismo que descreviam há pouco é já
cômico quando retilíneo, porém mais ainda quando se torna circular, e os
esforços da personagem, por uma engrenagem fatal de causas e efeitos,
acabam por trazê-la pura e simplesmente de volta ao mesmo lugar.
(BERGSON, 2004, p. 61).
Para Bergson (op. cit.) o riso acontece quando temos a impressão que vida se desviou no
sentido de uma mecânica. A vida para o filósofo francês caminha sempre em frente diferenciando-
se em qualidade e quantidade, sempre obedecendo a certas flexibilidades, não havendo repetições
nem inversões, muito menos sobreposições de situações. A experiência vivida não é repetível, não
é documentada, não é transmitida. A experiência da vida acontece no seu momento presente.
A vida se nos apresenta como certa evolução no tempo e como certa
complicação no espaço. Considerada no tempo, ela é o progresso contínuo de
um ser que envelhece sem cessar. Isso equivale a dizer que ela nunca volta
atrás e não se repete jamais. Considerada no espaço, exibe nos elementos
coexistentes tão intimamente interligados, tão exclusivamente feitos um para
outros, que nenhum deles poderia pertencer ao mesmo tempo há dois
organismos diferentes: cada um ser vivo é um sistema fechado de fenômenos,
em capaz de interferir em outros sistemas. Mudança contínua de aspecto, e
diversa sensibilidade dos fenômenos, individualidade perfeita de uma série
35
11
“É cômica toda combinação de atos e de acontecimento que nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão de vida e a
sensação nítida de um arranjo mecânico.” (BERGSON, 2004, p. 51).
36
12
A linguagem tratada neste tópico será aquela que tem uma relação direta com a palavra, escrita ou oral.
38
Com relação à audiência deste tipo de risível, exige-se grande atenção, rapidez de
raciocínio e alto grau de cognição, pois as palavras são voláteis, fixam-se menos na memória do
que as imagens físicas das personagens e das situações.
Com relação a isto, Bergson (2004, p. 83) acrescenta:
Mas, para que uma frase isolada seja cômica por si mesma, uma vez desligada
daquele que a pronuncia, não basta que seja uma frase pronta; é preciso
também que contenha em si um sinal no qual reconheçamos, sem hesitação
possível, que ela foi pronunciada automaticamente. E isso só pode acontecer
quando a frase encerra um absurdo manifesto, seja um erro grosseiro, seja,
sobretudo, uma contradição em termos.
Para que as palavras sejam risíveis, deve haver certo desvio de suas intenções. O que é
dito invariavelmente está carregado de um ou mais sentidos. O risível das palavras conduz a um
raciocínio que é quebrado com o inusitado. Este efeito é percebido com perfeição nas frases de
duplo sentido, que aproveitam apenas da diversidade de significados que uma palavra pode ter, em
sua passagem pelo sentido figurado.
Mas, o efeito cômico se realiza desde que nossa atenção se concentre na materialização
de uma metáfora. Por exemplo, quando se diz que todas as artes são irmãs, a palavra irmã está
expressando um sentido figurado que quer dizer que todas as artes são semelhantes. Mas o efeito
cômico se dá quando se diz: todas as artes são primas. Neste caso, houve uma materialidade da
frase, pois primas tem o sentido de parentes, menos usual neste tipo de expressão.
Todas essas formas risíveis são divididas por Bergson (2004) em duas categorias: a dos
jogos de palavras, e as das transformações de palavras. E podem ser sistematizadas em
procedimentos análogos aos realizados para comicidade das situações: “A comicidade da linguagem
deve corresponder, tintim por tintim, à comicidade das ações e das situações, e que, se e nos for
permitido exprimirmos assim, ela não passa de sua projeção no plano das palavras.” (Ibid., p. 82).
Isto significa dizer que é possível obter a comicidade se uma determinada frase é dita em
um contexto e for repetida (repetição), dando um novo sentido, em contexto completamente
diferente, ou se depois de invertida (inversão) ainda continuar tendo sentido, ou mesmo se
exprimir dois sistemas de idéias de todo independentes (interferência das séries).
Assim, os jogos de palavras podem ter as mesmas características de inversões ou
interferência, encontradas nas situações.
39
Epitáfio de um músico
Assim, uma frase se tornará cômica se ainda vier no mesmo sentido, mesmo invertida,
ou se exprimir indiferentemente dois sistemas de idéias totalmente diferentes, ou se obtivermos
transpondo a idéia a uma tonalidade que não é a sua.
Bergson (2004) distingue a comicidade que a palavra exprime do que a palavra cria. A
primeira, o que a palavra exprime, tem uma relação com a semântica, que muda quando mudam a
época, a sociedade e os costumes, enfim, o contexto.
A segunda, o que a palavra cria, está atrelada à estrutura fonética, morfológica e sintática
da palavra, cuja dificuldade está em manter o efeito cômico na tradução de uma língua para outra.
Obtém-se também um efeito cômico nas frases modificadas, ou seja, quando se coloca
uma idéia nova no molde de um refrão ou frase já conhecida, quebrando a mecânica do raciocínio:
Assim a frase “A pressa é inimiga da perfeição” torna-se cômica quando é modificada por “A pressa
é inimiga da procissão”. Sobre este aspecto, Bergson (2004, p. 88) comenta:
Tomar séries de acontecimentos e repeti-las em novo tom ou em novo meio,
ou invertê-las conservando ainda um de seus sentidos, ou misturá-las de tal
maneira que seus significados respectivos interfiram uns nos outros, tudo isso
é cômico, dizíamos, porque com isso se consegue tratar vida mecanicamente.
Outros tipos de frases como os exageros, frases rimadas, frases espirituosas e as ironias
todas essas podem ser cômicas, desde que quebrem inesperadamente, o automatismo do
pensamento, exprimindo idéias absurdas, de conotação moral ou sentidos conflitantes.
A ironia consiste em expressar por palavras um sentido intencionalmente contrário ao
pensado. “A ironia, através de palavras, pune e faz de bobo o interlocutor, que percebe ou não a
zombaria.” A ironia revela assim alegoricamente os defeitos daquele (ou aquilo) de que se fala.
“Ela constitui um dos aspectos da zombaria e nisto está sua comicidade.”
O trocadilho ocorre quando o interlocutor compreende a palavra em seu sentido geral e
o outro desloca o significado da palavra por aquele mais restrito ou literal; por isso, ele suscita o
riso, na medida em que anula o argumento do interlocutor e mostra sua inconsistência.
percebido como puro estranhamento, no entanto, ele só é risível quando nos faz lembrar um jogo,
uma brincadeira, nos transportando da realidade objetiva para realidade lúdica.
E o lúdico, do qual deriva o riso, é o que mais representa uma realidade que caminha
lado a lado com o mundo sério. É nos jogos e nas brincadeiras infantis rememoradas, que qualquer
austeridade, formalidade e rigidez são transgredidas, burladas, e invertidas. No lúdico quebra-se a
hierarquização e é estabelecida a intimidade, a descontração, o informal e o espontâneo.
Os elementos de comicidade não têm sempre os seus efeitos satisfatoriamente
realizados. Existe uma série de premissas para que o riso seja deflagrado. Seguem abaixo resumos
dessas premissas para deflagração do riso, acompanhados de uma tabela respectiva em que procuro
sintetizar os elementos cômicos, pelo princípio do mecânico colado no vivo. Em cada coluna das
tabelas, sem pretensão ao esgotamento, apresento exemplos das possibilidades mais evidenciadas
por Bergson (op. cit.), relativas aos procedimentos, às formas e aos mecanismos de elaboração do
risível.
1.3.1 Personagens
Premissas:
Não há comicidade fora do que é propriamente humano.
O que a idéia fixa representa para o espírito é o que certos vícios representam para
o caráter.
O vício assemelha-se a certa curvatura da alma. O vício cômico por mais que o
relacionemos às pessoas, ainda assim conserva a sua existência independente e
simples.
Pode tornar-se cômica toda deformidade que uma pessoa bem conformada consiga
imitar.
Ao atenuar a deformidade risível, deveremos obter a feiúra cômica.
Automatismo, rigidez, hábito adquirido e conservado, são traços pelos quais uma
fisionomia nos causa riso.
Imitar uma pessoa é destacar a parte do automatismo que ele deixou introduzir-se
na pessoa.
Por onde haja repetição ou semelhança completa, pressentimos o mecânico
funcionando por trás do vivo.
Deve-se sempre manter a semelhança com a vida.
A noção de disfarce tem o poder de fazer rir.
42
Um regulamento administrativo acaba por ser para uma lei natural ou moral, por
exemplo, o que a roupa feita é para o corpo que vive.
Se imaginarmos o corpo como matéria pesada que segura a alma, podemos fazer a
analogia de que o corpo está para alma como as roupas estão para o corpo. É uma
matéria inerte imposta a uma energia viva.
Pode-se mostrar a alma incomodada pela necessidade do corpo.
É cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa
estando em causa a moral.
Acontece para o efeito cômico o espírito se imobilizando sob certas formas e o
corpo se retesando segundo certos defeitos.
Rimos sempre que uma pessoa nos dá a impressão de ser uma coisa.
Quadro 1 – Personagens.
Mecanismo Procedimentos Formas
Imitação Repetição dos gestos De um corpo de outra pessoa
Automatismo das ações De um vício refletido no
Contraste com as corpo
situações Do corpo de um animal
Exageros nas formas Da forma de um objeto
qualquer (privada, cadeira,
uma pintura, vento, etc.)
Deformidade Exageros nas formas Cego
Física Incoerência com a Gordo
situação Magro
Discrepância com outros Careca
personagens Baixo
Alto
Gago
Fanhoso
Deformidade Contraste entre o que se Bruto
Moral diz e o que se faz Avarento
Exageros nas ações Vaidoso
Mentiroso
Esperto
43
1.3.2 Situações
Premissas:
O maior inimigo do riso é a emoção.
Não pense no conteúdo da situação, mas na sua forma, que ela se tornará cômica.
O riso precisa de eco.
O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum.
Atitudes, gestos e movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que
esse corpo nos leva a pensar num simples mecanismo.
Não é, pois, a mudança brusca de atitude o que causa riso, mas o que há de
involuntário na mudança, é o desajeitamento.
Quando certo efeito cômico derivar de certa causa, quanto mais natural a julgarmos
tanto maior nos parecerá o efeito cômico.
O riso castiga os costumes.
A fuga da rigidez social provoca o riso.
As cerimônias são para o corpo social o que a roupa é para o corpo individual.
Quadro 2 – Situações.
Mecanismo Procedimentos Formas
Boneco de mola Repetição Compressão e distensão moral
Compressão e distensão física
Efeito surpresa
Marionete Inversão Fazer o outro de bobo
Pessoa como coisa
Uma pessoa se passando por outra
Bola de neve Inversão Reação em cadeia
Interferências das Qüiproquó ou equívocos
séries Deslocamentos de contexto
44
1.3.3 Palavras
Premissas
O mecanismo das palavras corresponde aos mesmos das situações.
O desvio é essencialmente risível: dizer o que não se quer dizer.
Quadro 3 – Palavras.
Mecanismo Procedimentos Formas
Jogos com a Inversão Trocadilho
fonética e a Interferência das Duplo Sentido
morfologia das séries Paradoxo ou incoerência de sentidos
palavras.
Transposição ou Interferências das Entre o dito e o pensado (ironia)
deslocamento séries Por distração do pensamento (ato
entre a sintaxe e Repetição falho)
semântica. Inversão Do sentido figurado para sentido
próprio.
Do tom da expressão natural de uma
idéia.
Do solene para o familiar
(degradação)
Do intimo para o solene (elevação
ou exagero)
Do moral ou banal para o técnico ou
profissional.
45
Esses equívocos foram desfeitos pelos renovadores do teatro, como Adolfhe Appia
(1862-1928), Vsévolod Meierhold (1894-1940), Gordon Graig (1872-1966) e outros, do começo
do século XX. Gordon Graig com a sua proposta do ator supermarionete aponta para uma
codificação corporal mecânica das ações físicas não cotidianas na arte do ator. Mas não há uma
elaboração sistemática voltada exclusivamente para ação cômica.
Pedro Cardoso13:
13
“Nascido no Rio de Janeiro em 1961, é ator, autor e diretor. Estreou profissionalmente em 1982 com o espetáculo
Bar, doce, bar criado e dirigido em parceria com Felipe Pinheiro (Teatro Candido Mendes). Esse trabalho lhe valeu o
Troféu Mambembe como ator revelação, tornando-se um dos principais criadores do teatro Besteirol.” (ANDRADE,
op. cit., p. 166).
46
Benvindo Sequeira14:
Pelos depoimentos dos dois atores, conclui-se que não há um consenso em relação a
uma técnica voltada exclusivamente para o ator cômico. Para Pedro Cardoso, o comediante
aprende o seu ofício com a prática, espontaneamente, desprovido de um conhecimento formal
anterior. Por outro lado, Benvindo Siqueira acredita que o artista dependente apenas de sua
prática, sem o estudo da compreensão de sua arte, corre o risco de cristalizar e estereotipar seu
repertório atorial.
14
“Mineiro de Carangola, iniciou sua carreira teatral no Rio de Janeiro em 1966. Soma ao seu currículo mais de 50
peças, algumas delas distantes do universo da comicidade como, por exemplo, O assalto (de José Vicente, direção de
Fauzi Arap, 1970, apresentações no Rio e em viagens pelo Brasil) ; Mulheres de Tróia (Adaptação de As troianas, de
Eurípides, adaptação e direção de João Augusto, em Salvador, Bahia, 1978).” (ANDRADE, 2005, p. 137).
47
De Marinis15 observou em seus estudos sobre os modos de atuação, baseados nas praticas
de atores cômicos italianos do século XIX e XX, que conviviam – às vezes separadamente e outras
em comunhão – duas tradições atoriais que ele as chamou de Tradição do Ator Burguês ou Dramático
e a Tradição do Ator Popular ou Cômico. Embora os estudos de De Marinis tenham focalizado
exclusivamente em atores da Itália, ele adverte que essas duas tradições não eram exclusividade da
cena italiana, mas essas tendências aconteciam também em outros países.
De Marinis cria um modelo para o ator cômico ideal que diferencia do ator burquês no
método de trabalho com respeito à concepção dramatúrgica, as técnicas de atuação e a relação
com o espectador. Entendo que não existe uma relação estanque entre essas duas práticas na cena
contemporânea e qualquer comparação neste sentido é sempre limitadora. Entretanto, por
questões didáticas, apresento abaixo um quadro que caracteriza as duas práticas atoriais, elaborado
por mim a partir das observações de De Marinis. Não pretendo com isso diferenciar todas as
características dessas práticas, mas apenas ressaltar alguns aspectos que são freqüentemente
observados nesses dois procedimentos atoriais.
15
Marco De Marinis é professor da Universidade de Bolonha e autor de importantes obras sobre teoria do teatro, tais
como: Semiótica Del Teatro (1982) e Compreender el teatro: elementos de uma nueva teatrologia (1997).
16
“A auto-tradição deve ser, entretanto, considerada como uma necessidade vital para o ator cômico, para
reconstruir constantemente seu próprio “background” por meio de uma relação livre e despreocupada com
o passado (pessoal ou outro), isto é, em relação com os módulos de atuação, cômico e não consolidados;
essa relação não é em absoluta uma negação esquemática (por exemplo, certo tipo de vanguarda
histórica), mas consiste em um trabalho minucioso e complexo de bricolage (também quando é praticado
“selvagemente”): seleção, desmontagem, recomposição, assimilação e re-elaboração.” (DE MARINIS,
1997, p. 160 – Tradução livre por Elza Andrade).
17
“O ator cômico, sem esta e sem outras proteções, desde o começo incorpora o espectador no centro de
sua atenção: convertendo-o em sujeito e objeto de seu espetáculo; o ator cômico está exposto a sofrer
diretamente todas as desagradáveis conseqüências que podem derivar-se dos descuidos e imprecisões de
sua atuação.” (Ibid., p. 163 – Tradução livre por Elza Andrade).
48
Pelo modelo De Marinis, o ator cômico elabora para si uma auto-tradição, no sentido
que ele se forma a partir de suas próprias experiências, com a prática da cena cômica. Isto explica
a dificuldade desse ator em repassar a sua técnica, por acreditar que não é possível haver um
mecanismo sistemático para comicidade.
Nunca será bastante repetir que o método de Stanislavski não é um estilo nem
se aplica a um estilo particular de teatro, mas é, isso sim, a tentativa de
encontrar uma atitude lógica em relação ao treinamento de atores para
qualquer peça, e um modo artístico de preparação para qualquer papel.
Mas esta forma de pensar não aconteceu somente em relação à Stanislavki. Na maioria
das propostas atoriais do ocidente do século passado (Teatro da Crueldade do francês Antonin
Artaud (1896-1948), Teatro Épico do alemão Bertold Brecht (1898-1956), Teatro Pobre do
polonês Jerzzy Grotowski (1933-1999), Teatro Antropológico do italiano Eugenio Barba (1936-),
Teatro do Oprimido do brasileiro Augusto Boal (1931-) sempre surgiram aqueles que acreditavam
na possibilidade de adoção metodológica única para resolução dos problemas da arte teatral.
Por outro lado, alguns teóricos tomam como norma da prática teatral casos particulares
que apresentam em determinadas obras, tirando dessas suas conclusões generalizantes. Isto não
significa dizer que não se possam produzir obras a partir de um modelo estético formalizado
previamente, o que foi comprovado no classicismo francês pela dramaturgia de Racine e de
49
Há, portanto, que se estar atento aos riscos da universalidade metodológica que, muitas
vezes, é imposta a toda gama de conhecimentos. Esta tendência às padronizações de métodos tem
como objetivo a circulação comunicativa entre os saberes. A pesquisa quase sempre procura
homogeneizar, mesmo na heterogeneidade, pois, ao separar as diferenças, encontra nestes
conjuntos distintos algo que os unam e os torne homogêneos, para que possa se definir como
categorias. Após o estabelecimento reducionista das categorias, acaba-se cometendo os equívocos
de não se perceber novas diferenças dentro dessas homogeneizações.
Em cada época, vive-se envolto por uma teia de significados que formam a bagagem
cultural de uma sociedade. Esta teia nos envolve de tal forma que molda a nossa compreensão de
mundo, tornando-nos reféns de modelos de pensamentos, dos quais é quase impossível nos
desvencilharmos. Aqueles que conseguem libertar-se dessas sutis armadilhas do conhecimento,
muitas vezes, são obrigados a pagar um preço muito alto por não serem compreendidos. No
entanto, são eles os responsáveis pelos avanços e as transformações das pesquisas, que estão nos
limites dos paradigmas, que fazem as especulações avançarem e apontam para um novo tempo.
Novo tempo este que nos ofusca a percepção, por estarmos envolvidos como sujeito da
construção do pensamento.
Entende-se, então, que é o objeto que dita o método e não o contrário. Porém, o objeto
vai se definindo, delimitando-se, à medida que a metodologia vai se ajustando a ele, como um
sapato novo ao pé. No começo há certo desconforto, aparecem os calos, mas com o tempo, os
dois parecem que foram feitos um para o outro – pelo menos é o que se espera!
Atuo numa área que lida com aspectos bastante subjetivos, como a emoção, a
criatividade e a sensibilidade. Como ensinar alguém a ser sensível? A ser emotivo? A ser criativo?
O que posso, acredito, é despertar para esses aspectos em nosso fazer artístico. É muito
angustiante saber que não existe uma receita que sempre “dê certo”. Então para que pesquisar?
Essas e outras questões de algum modo perpassam os mais diversos procedimentos da arte do
ator.
Mas essa incerteza é que deve nos instigar, pois se fosse uma receita de bolo a seguir, se
não tivesse o toque das emoções, das sensibilidades, das criatividades individuais, seríamos todos
geniais artistas. O que seria muito chato! Se for pedido a duas pessoas para fazer um bolo, e
entregarmos a elas a mesma receita, é garantido que vamos ter dois bolos com o mesmo sabor e
características físicas iguais. E como pensar que isto é possível, quando lidamos com variável tão
complexa que é o ser humano?
Embora esses aspectos não se ensinem, nós podemos, através de exercícios, desenvolver
as potencialidades criativas, que muitas vezes estão incrustadas dentro em nós pelas nossas
barreiras psicológicas, nossos preconceitos, nossas histórias de vida.
O artista adquire a sua técnica com o tempo de prática. O que as escolas disponibilizam
ou apresentam são ferramentas e caminhos para que os atores desenvolvam sua maneira, seu estilo
artístico. Mas reforço: nós podemos desenvolver essas habilidades no sentido de ser mais
51
eficientes. Ou seja, com técnica, em muitos casos, diminui-se a diferença entre o que se deseja e o
que se realiza.
Não estou inventando nada, procuro apenas sistematizar procedimentos para o ator na
cena cômica que, de uma forma ou de outra, pouco diferem dos princípios daqueles para atores
acostumados com outros gêneros diferentes da comédia. O que vai estabelecer a diferença são a
intenção e o efeito que pretendo obter da platéia.
O trabalho do ator não será, dessa forma, no sentido de mudar a constituição física do
seu corpo (realizado por atletas e ginastas), mas transformar criativa e simbolicamente o corpo,
viabilizando através dele uma realidade cênica. O ator risível não deve esconder os aspectos físicos
do seu corpo, mas aproveitar o diferencial que ele tem e potencializá-lo para produzir
personagens artisticamente interessantes.
Cada pessoa é uma raridade corporal. Não existe outro igual. Cabe ao artista tirar
proveito disso. Ninguém tem ao mesmo tempo a minha estatura, voz, o andar e a formação
estrutural física que eu tenho. Apenas eu consigo criar determinados personagens, devido às
características do meu corpo. Quando temos a consciência disso, conseguimos potencializar as
particularidades corporais para uma criação artística, levando-as para o palco, numa cena cômica.
Acredito que, desse modo, o público não verá apenas a “anormalidade” física do ator, mas uma
“anormalidade” da personagem que se torna cômica dentro de uma situação específica.
Cada corpo que interpreta uma personagem cria para a mesma partituras físicas
diferentes. Isto acontece seja pela imitação das partituras corporais de outro intérprete com o
corpo cotidiano ou não. A personagem sempre será diferente, quando composta por diferentes
interpretes. O que pode se manter são aspectos gestuais que evidenciem as idiossincrasias da
personagem (tique nervoso, defeito físico, ansiedade, medo, e outros).
Entendo por corpo cotidiano do ator aquelas características físico-vocais que lhe são
inerentes, ou que são adquiridas ao longo da vida em um estado não cênico. Por outro lado, o
corpo extracotidiano é aquele codificado por partituras corporais para encenação teatral.
No entanto, uma personagem assume a completude pelas suas ações físicas. Mesmo o
personagem-típico, que é facilmente reconhecido antes de qualquer situação, assume uma
dimensão maior pelas suas ações físicas.
Quando os gestos revelam para o espectador algo a mais que a atividade que os
originou, tem-se uma ação física. Um abrir a porta em cena é apenas uma atividade quando
53
somente significa o abrir de porta, mas quanto este ato revela um desejo de fuga, a esperança de
encontrar um conhecido ou uma ansiedade, por exemplo, passa a ser uma ação física. Assim, uma
ação física é uma atividade justificada, que evoca sentimentos e circunstâncias propostas pelo
papel18 da personagem. O que a personagem realiza em cena é uma atividade ou ato, o que este
ato evoca é ação física. “No teatro, toda ação deve ter uma justificativa interior, deve ser lógica,
coerente e verdadeira e, como resultado final temos uma atividade verdadeira, criadora.”
(STANISLAVSKI, 2001, p. 1).
Para Stanislaviski (op. cit.) as ações se dividem em duas, uma interior e outra exterior.
O objetivo do trabalho do ator é voltado para expressar fisicamente de forma crível as ações
interiores da personagem. De acordo com o autor, deve haver uma perfeita união entre os
aspectos “físicos e espirituais” de um papel. “As ações criam a vida física de um papel.” (Ibid., p.
3). As ações físicas são carregadas de intenções interiores, não somente reflexos ou
condicionamento de uma atividade. As ações dizem mais que a sua própria mecanicidade. A ação
física gera uma transformação no modo de pensar do espectador.
Ainda conforme Stanislavski (op. cit.), as ações físicas são criadas dentro do contexto da
personagem. Já para Grotowski a personagem é criada a partir de ações físicas elaboradas dentro
do contexto do ator. Forma estética e vida são opostos no plano conceitual, mas no trabalho do
ator devem coexistir. Em meus procedimentos para cenas cômicas, procurei mesclar esses dois
aspectos, tanto pelo ator independente da cena, como da personagem dentro do contexto da cena.
Para Mateo Bonfitto (2002), em seu livro O ator compositor, a diferença entre o conceito
de ações físicas de Stanislavski e de outras práticas artísticas está nas matrizes geradoras, nos
elementos de confecção e nos procedimentos de confecção das ações físicas.
18
Na perspectiva de Stanislavski, o papel diferencia-se da personagem. O papel é composto pelas falas, as
circunstâncias da peça, propostas pelo texto dramatúrgico. Enquanto a personagem é composta tanto fisicamente
(corpo/voz), como por aspectos psicológicos numa criação livre do ator ou por indicações do texto.
54
Eugenio Barba -textos dramáticos e não -princípio-que-retornam -construção da ação real como
(1936-) dramáticos -partes do corpo célula da partitura
-formas teatrais analisadas isoladamente: -dilatação e miniaturização
orientais, Commedia mãos, pés, rosto, olhos -princípio da equivalência
Dell´Arte, formulações -elementos da subpartitura -variação rítmica
de Decroux -utilização de objetos
-montagem do ator/diretor
Brecht não desejava identificar aspectos psicológicos da personagem nas ações do texto,
mas procurava provocar o estranhamento no público através do desenvolvimento de estratégias de
distanciamento entre o ator e a personagem. De outra maneira, Eugênio Barba estava interessado
55
em construir um corpo codificado por matrizes físico-vocais que servissem de elementos para
composição das partituras corporais da personagem.
Isso tudo ocorreu no século XX, mas já nos finais da Idade Média, os atores da Comédia
Dell Arte se especializavam em tipos físicos, com máscaras de uma partitura corporal fixa,
independentes de textos, que era transmitida por uma tradição. E a comicidade se estabelecia
pelas situações criadas.
Toda a concepção tradicional de corpo está baseada em uma cisão, num “revelar-se”, em
dar visibilidade externa ao que está interno. As técnicas de corpo tradicionais estão muito
associadas ao “eu” que se revela, e não a um pensamento que acontece, que se realiza
criativamente junto com o outro.
Todavia para cena contemporânea não mais se pensa numa divisão entre corpo e mente,
não há esta cisão, esta dicotomia. O corpo é emoção e pensamento. “A coisa não mais existirá a
partir de uma diferenciação com outra coisa, a partir de uma delimitação, e sim a partir de sua
existência, a partir do modo como ela se apresenta.” (CAJAÍBA, 2005, p. 7).
Para realidade cênica, ou estado cênico, esta unicidade “corpo e alma” deve existir como
expressão do pensamento, mas dentro de uma realidade ficcional cômica. Na visão de Bergson
(2004), o corpo, mente e alma são coisas distintas e brigam entre si, negam-se mutuamente e é
esta contradição entre corpo e mente, esse desvio da alma revelada pelo corpo, que caracteriza a
personagem cômica.
Em Bergson (op. cit.), as ações físicas na personagem cômica devem negar as suas
vontades interiores. O corpo assume uma forma rígida que luta contra os desejos da personagem
que se torna risível por uma ação não justificada pelos gestos. Assim, para que uma cena dramática
se transforme em cômica, basta que retiremos dela o que há de emotivo. Quando a atenção for
chamada mais para mecanicidade dos gestos contidos na ação física, do que ela evoca, chega-se à
comicidade. Enquanto na cena dramática deve haver uma relação mimética entre as emoções,
motivações, vontades interiores e gestos da personagem, na cena cômica encontramos uma
discrepância entre o significado das motivações e os seus respectivos gestos.
56
Neste sentido é que busco um corpo que se expresse em pensamento risível, que possa
tocar o expectador pelo riso. Porém existe uma distância considerável entre a idéia e a sua
concepção, que tem uma relação direta com a sedução da platéia.
No teatro fala-se muito de técnica disso e técnica daquilo, energia disso e daquilo. Mas
toda a técnica de nada adiantaria se não conseguisse afetar o outro. Estou no processo de
descoberta e experimentação e, se não houver feedback do público ou dos próprios atores
envolvidos no processo, poderão ocorrer equívocos.
Um grupo que pretende ser de pesquisa não deve ser mais um grupo voltado apenas
para montagens de espetáculos. Acredito que deva, além disso, e, talvez prioritariamente, ser um
grupo que procura investigar este fenômeno artístico tão complexo que é o teatro.
No entanto, acredito que o êxito virá como conseqüência da investigação, não como
objetivo primeiro. Pretendo sim montar espetáculos, mas que obtenham resultados exitosos a
partir da investigação. Não acredito que isso aconteça na primeira apresentação, pois o público,
57
nosso grande parceiro, não estará conosco neste processo e é através da colaboração desse
parceiro que faremos os ajustes necessários.
Embora pretendendo, para esse caso, suscitar o riso da platéia, esse não deve mostrar-se
como o objetivo da personagem, por isso não pode ser forçado, através de gracinhas ou exageros
expressivos e maneirismos desnecessários19. Outro aspecto do nosso trabalho é a pouca atenção
dada à psicologia da personagem. Procuramos, nos aspectos da personalidade e das emoções,
possibilidades físicas (corpo/voz) a serem apresentadas de modo cômico, embasadas no princípio
do mecânico colado no vivo20. Pensando assim, o material expressivo de trabalho foi sempre o corpo.
Como este corpo é capaz de suscitar um desvio da vida em direção a uma mecânica?
E onde se encontra o risível? Na pessoa que ri? No objeto de que se ri? Se imaginarmos
que o risível está no objeto, por exemplo, numa cena de comédia, então todos que a assistissem,
ririam sempre. O que não acontece. Se o risível estivesse na pessoa, bastaria educar as pessoas
para o riso. Não se necessitaria de escolas ou curso de comicidade. Na realidade o fenômeno do
risível acontece em mão dupla entre o sujeito que ri e o objeto do riso.
Entretanto existe o que podemos chamar de o paradoxo do ator cômico, que é estar em
cena, agindo não para fazer rir, mas mesmo assim sendo engraçado, como conseqüência das ações
e não como objetivo.
19
Quando certo efeito cômico deriva de uma certa causa, o efeito nos parece tanto mais cômico quanto mais natural
consideramos a causa (BERGSON, 2004, p. 9).
20
As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar
numa simples mecânica (Ibid., p. 22).
58
As matrizes
As matrizes podem ser geradas por diversos procedimentos, como a imitação corporal
de outra pessoa ou animal, por imagens ou músicas. Essas matrizes são codificadas de modo a
compor uma partitura21. Cada ator cria as suas matrizes, que constituirão “[...] o seu vocabulário
vivo de comunicação cênica” (FERRACINI, 2003, p. 117). Por sua vez, esse vocabulário poderá
ser combinado de maneira tal a elaborar a partitura física da personagem. Por esse procedimento
de combinações matriciais é possível compor ilimitadas partituras diferentes.
Em certo sentido, poderíamos dizer que todo caráter é cômico, desde que se
entenda por um caráter o que há de pronto em nossa pessoa, o que está em
nós no estado de mecanismo montado, capaz de funcionar automaticamente.
(BERGSON, 2004, p. 111).
21
Para Renato Ferrcini (op. cit., p. 116), “[...] a matriz é entendida como o material inicial, principal e primordial; é
como fonte orgânica de material do ator, a qual ele poderá recorrer sempre que desejar, para construção de qualquer
trabalho cênico. A matriz é a própria ação físico-vocal, viva e orgânica, codificada.”
59
Dessa forma, o trabalho de consciência corporal seria aquele que transforma o corpo
cotidiano num corpo espetacular, extracotidiano. Criar presença cênica, nesse sentido, é,
também, criar possibilidades de ações físicas extracotidianas ou atmosferas extracotidianas:
A fonte geradora desse estranhamento é criada por uma imitação que tenha o mesmo
valor de sua referência, mas que mesmo assim seja diferente em qualidade. Neste aspecto, não há
uma preocupação com a cópia fiel do objeto a ser imitado, mas com as partituras corporais criadas
a partir dele. Elas devem conter elementos indiciais que lembrem a suas características físicas e
que, no entanto, possam gerar significações diversas em contextos variados.
Por mais regular que seja uma fisionomia, por mais harmoniosa que
suponhamos que sejam suas linhas, por mais graciosos os movimentos, seu
equilíbrio nunca é absolutamente perfeito. Nela sempre discernirá um início
de um vezo que se anuncia, um esboço de um esgar possível, enfim uma
deformação preferida na qual se contorceria a natureza. (BERGSON, 2004, p.
19).
22
Aristóteles escreve: “imitar é natural ao homem desde a infância- e nisto difere dos outros animais, em ser o mais
capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação- e todos têm prazer em imitar”
(ARISTOTELES, 1995: 21-22).
61
Embora os significados das palavras e das frases sejam importantes para a construção do
efeito cômico, pretendi buscar outras formas que fogem ao conteúdo semântico das palavras.
A voz também pode caracterizar uma personagem cômica. Há dois caminhos sobre o
trabalho da voz do ator hoje em dia: o primeiro mais praticado é o domínio da oralidade natural,
mais cotidiana. Outro, propagado por teóricos como Artaud, Grotowski, Eugenio Barba, trata da
voz não como uma representação mimética da palavra, mas como fonte geradora de significados,
em que os elementos signos da composição vocal possam gerar a partir dos próprios significantes,
novos significados.
Partindo desse princípio, procurei identificar nos gestos propostos para personagem,
uma mecânica que revelasse certa distração. De acordo com Bergson (op. cit.), o efeito de
distração tem uma importância fundamental para a comicidade, uma vez que o riso se realiza
quando o público vê em cena personagens agindo por reflexos, mecanicamente, sem a consciência
de seus gestos. “Portanto, a partir do momento em que nossa atenção incidir no gesto, e não só no
ato, estaremos na comédia.” (BERGSON, 2004, p. 108).
Para isso procedi de forma que os gestos (meras atividades físicas, como andar, sentar,
pegar um copo, apontar algo ou olhar) se tornassem mais evidentes que os atos em si. Com
relação à palavra pronunciada, procurei transformá-la em ações e as ações em gestos que
ressaltassem uma mecanicidade dessas ações.
A maioria dos exercícios para criação de matrizes foi inspirada a partir da abordagem de
Bergson (2004). Porém o que diferencia os exercícios propostos por mim daqueles adotados
tradicionalmente em muitas oficinas de preparação do ator não está na descrição e execução
formal – alguns deles já são bastante consagrados – mas na preparação do ator para cena cômica.
Atores criativos vão além das propostas dadas. Stanislavski partia de aspectos internos,
subjetivos e racionais para despertar a criatividade, mas ela pode vir de impulsos e reflexos, que
são acionados por comandos.
A preparação
O processo criativo tem uma relação íntima com os princípios da vida e da morte. A
cena que acontece todos os dias retoma a origem da sua criação, no que tem de novo. Mas
23
Ingrid Koudela, a partir de Viola Spolin, diferencia os jogos puramente dramáticos dos jogos teatrais. Os jogos
dramáticos, para esta autora, são realizados, não necessariamente, com propósitos de levar para cena, eles apenas
sensibilizam o ator para o estado criativo e espontâneo. Já os jogos teatrais têm propósitos espetaculares, prepara o
ator para cena. Nesta pesquisa não adoto a palavra jogo dramático ou teatral para me referir a exercícios propostos aos
alunos pesquisadores na intenção de prepará-los para estar ou não em cena. Procedo desta forma no intuito que não
haja confusão conceitual entre os exercícios aplicados por mim e os jogos que acontecem no momento da encenação,
através da inter-relação entre os atores e o público.
63
também há a morte no desfecho das ações cênicas. O que permanece vivo é o que fica na memória
do ator e do espectador.
O processo criativo não é apenas repetição, já que o seu ato é sempre um renascimento.
Algo não vivo é inerte, não existe transformação, pois não existe uma dinâmica. Por isso o
processo criativo afirma “[...] uma busca onde a morte diária torna-se mais do que um desafio à
reconquista do ontem intangível.” (ISAACSSON, 2006, p. 82). A reconquista do intangível é o
desejo de recuperar em ação o que ficou apenas na memória, mas que se perdeu com o já
realizado.
Um caminho a ser trilhado na busca de recuperar a efemeridade das ações seria, como
sugere Isaacson (op. cit.), mais que a procura de formalizações estéticas, composições
significativas de espaço e tempo das ações, é importante pensar na origem da criação. A origem da
criação é a busca de um vivo, orgânico e não cristalizado. Quando se retoma a origem da criação,
abre-se uma porta para novas experiências. Há sempre algo deixado de véspera, que jamais será
uma repetição e sim uma evolução que avança, transformando-se em qualidade e natureza. Esta
transformação ocorre no sentido do corpo se expressar como um pensamento sensível.
se de si mesmo. E o que é cômico, acima de tudo, é a própria pessoa passar o estado de moldura a
qual as outras incidirão no presente, e solidificar-se como um caráter.” (BERGSON, 2004, p.
111).
Por isso, o improviso é sempre incentivado para dar à cena o frescor da naturalidade. A
improvisação se realiza com a manipulação de um vocabulário de uma estrutura já conhecida. O
que acontece de novo no momento da cena é a ordenação dos componentes desse vocabulário.
Por fim, com a preocupação em manter a matriz e não de ser engraçada, toda ação dos
personagens deve se transformar em atos mecânicos naturais, no sentido de revelar certa distração
do corpo.
A montagem
A pergunta não seria mais: como tornar a cena engraçada? mas, antes de tudo: como realizar
a cena de maneira que o público perceba o desvio da vida em direção a uma mecânica? Essa mecânica,
porém não deveria ser explicitamente evidenciada, mas parecer algo natural, mera distração das
personagens. Assim, de acordo com Bergson (2004, p. 109) é pelo automatizado natural que se
chega à comicidade.
65
Assim, pretendo que a comicidade surja como conseqüência desse efeito e não com a
intenção primeira de ser risível. Pelo principio do mecânico colado no vivo os atores devem
entrar em cena com suas personagens compostas por partituras advindas de matrizes corporais
previamente elaboras, anteriores ao texto.
Para que haja teatro não há necessidade de um texto escrito. No entanto, toda a
encenação obedece a uma dramaturgia advinda ou não de um texto dramatúrgico.
Para alguns diretores o texto é o espelho da cena, enquanto para outros, o texto é
pretexto. A tradição naturalista tende a seguir “ao pé da letra” a indicações do autor. Já para outras
concepções, a subversão completa do texto é totalmente aceita.
Em um teatro que considera todos os elementos da cena como signo, tudo pode ser
amplificado ou subtraído. Por exemplo: em um texto que contenha duas personagens, pode ser
realizado por mais de dois atores. Da mesma forma que uma peça com diversas personagens pode
ser encenada por apenas dois ou somente um ator, realizando os mais diversos papéis. A questão
do gênero da personagem também é insignificante, pois uma personagem masculina pode
perfeitamente ser encenada por uma atriz e vice versa.
66
Nos processos das técnicas atoriais consagradas são realizados trabalhos de preparação do
ator em se que potencialize o corpo para um estado cênico. O que diferencia o meu trabalho
dessas propostas são os objetivos. Focalizo todo o trabalho para o ator risível, enquanto que as
técnicas conhecidas estão preocupadas com ator de uma forma geral.
Esse direcionamento tem uma implicação substancial, pois já partindo para construção
de matrizes corporais de personagens cômicos, vinculo as partituras desses corpos criados no
momento de preparação às possibilidades de comicidade. Com isso, pretendo que o corpo
extracotidiano pareça cotidiano no estado cênico cômico, ou orgânico, antes que o texto escrito
apareça.
Apesar das partituras que compõem as personagens serem originadas por matrizes,
independentes do texto dramatúrgico, elas adquirem uma dimensão cômica maior por suas ações
físicas. Assim, as partituras realimentam as ações físicas e vice-versa.
Em cada cena a ser montada foi identificado um conjunto de atividades; essas atividades
transformamos em ações no espaço, e estas, em gestos mecânicos. A mecanicidade, o
automatismo como distração nas atividades sociais são os elementos essenciais para a composição
da cena cômica, tanto nas situações como nas palavras das personagens.
O espectador
Antonin Artaud, em sua obra, O teatro e seu duplo (1999), escreveu que o ator deve ser
um atleta afetivo, aquele que toca o coração. De que modo, então, é possível que o ator e público
conversem através da linguagem do coração, para que o esforço de tradução entre
sentimento/físico do ator e do físico/sentimento do espectador seja nulo? Em outras palavras,
como tocar diretamente o espectador, alcançar as suas paixões? Como traduzir a imensidão íntima
do artista? Alcançar o riso da platéia?
Para Bergson (1999), o pensamento está orientado para a ação. Isso significa dizer que
tudo aquilo que penso, afeta o meu corpo ou provoca em mim uma ação real, momentânea, ou
67
virtual, que provoca outra ação. A cena cômica provoca no corpo de quem assiste, e a percebe,
uma afetação pensamento/corpo, que se manifesta em forma de risos.
Algumas vezes, a arte reflete o espectador e não a vida. “É um corpo refletindo outro.
Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles.”
(BERGSON, 1999, p. 16). Por isso o riso precisa de eco. Ele é o estado de ressonância entre os
corpos. Suscitar o riso é também fazer corpos entrarem em ressonância com o objeto risível.
Para a produção do risível, a deformação de imagem tem valor capital. A imagem pode
ser construída a partir de lembranças e induzida a partir de sugestões. Busca, antes de tudo, uma
construção de um falso sentido. Procura estabelecer uma relação causal predeterminada entre as
ações. Assim a deformação da imagem cômica é produzida quando nos faz sonhar e acreditar que
os caminhos aos quais as ações estão nos levando é o que exatamente preconcebemos. O riso que
nos acorda do sonho acontece justamente quando percebemos que fomos levados para um
caminho imprevisto, quebrando assim a lógica dos sentidos esperados.
O riso acontece a partir do diálogo entre a maneira como o comediógrafo articula o seu
material em espaço e tempo bem definidos e de como o expectador percebe e concebe o que se
apresenta em cena, dentro dos seus critérios de juízo. No entanto, ele deve estar integrado ao
“espírito de jogo”.
Só haverá riso do espectador se ele entender que aquelas agressões, que muitas vezes
acontecem na cena cômica, como aparentes, como fruto de artimanhas de uma criação artística.
Se houver uma identificação como a verdade, o riso não acontecerá. O espectador deve está ciente
de que tudo não passa de um jogo e de que ele também é jogador e, como tal, deve corresponder
às regras expostas, implícita ou explicitamente.
Podemos, como ator, até controlar, codificar nossas ações, mas pouquíssimo, ou quase
nenhum é o nosso controle sobre o espectador. Este sempre foi o desafio que motivou as mais
diversas técnicas da arte teatral e, no caso específico da comédia, existe uma particularidade: a
necessidade de que o espectador reaja com o riso. Uma parte da cena cômica é realizada pelos
artistas (dramaturgo, diretor e atores), a outra, a incontrolável, é o público que completa.
69
O efeito cômico tem seu tempo, sua duração, por isso exige que a percepção seja
instantânea, que o estranhamento se realize de forma imediata, para que nem a inteligência nem a
elaboração formal atrapalhem sua reação prevista. Mesmo que não haja uma previsibilidade das
reações da recepção, ou que esta previsibilidade não seja explicitamente pensada na elaboração da
obra, o espectador existe de fato, implicitamente, na gênese da criação, pois todo o processo
criativo da encenação é concebido no intuito de sua exibição.
No caso de uma obra cômica, as estratégias de elaboração são voltadas, muitas vezes,
para suscitar o riso a partir da indução de um determinado horizonte de expectativa, para depois
desviá-lo num sentido completamente diferente do esperado.
As comédias estão repletas de situações em que o objetivo seja suscitar o riso por meio
da quebra no automatismo do pensamento, utilizando como estratégia o ludibrio do espectador.
Assim sendo, pode-se concluir que, embora na obra teatral não se consiga plenamente espaços
70
vazios de significações a serem preenchidos e atualizados pela recepção, isto não implica que, na
sua concepção, não se deva buscar e suscitar horizontes de expectativas.
FONTES GERADORAS:
CORPO/VOZ FONTES GERADORAS: TEXTO
Imitação: pessoa, animal, Esquetes cômicos, imagens de
figura brinquedos (boneco de mola,
marionetes, bola de neve)
MATRIZES
PROCEDIMENTOS DE CONFECCÃO
(repetição, inversão e interferência das séries)
SITUAÇÕES PALAVRAS
PERSONAGENS
CENAS CÔMICAS
ESPECTADOR
72
Ao tentar abordar, neste tópico, alguns aspectos da recepção, a intenção não foi ter o
controle de um modo geral das afecções do espectador – tarefa que considero presunçosa, ingênua
e de improvável de êxito. O que desejo, no entanto, é lembrar que a resposta do público relativa à
comicidade sempre interfere e contribui nos ajustes finais do espetáculo apresentado.
73
3.MATRIZES
A oficina
A oficina, que foi dividida em três módulos (Matrizes para as cenas cômicas, Preparação para
as cenas cômicas, e Montagem de cenas cômicas), teve como objetivo geral propor procedimentos para
o ator em cenas cômicas, inspirados na abordagem da obra de Henri Bergson, O Riso: um ensaio
sobre a significação da comicidade.
A oficina era iminentemente prática. Não haveria nenhum contato direto com as
teorias de Bergson. Nem eles seriam completamente informados das minhas reais
intenções nas propostas dos exercícios.
24
Amidete Aguiar, Chirliane Alves, Elaine Nascimento, Henrique Bezerra, Jeniffer Suzana, Jociel Carvalho, Larissa
Montenegro, Elvis Jordan, Deninha Carvalho, Gorete Rodrigues, Rebeka Lúcio, Samanta Sanford, Rafaele Costa, e
Gisele Fernandes, Felipe Franco, Fábia Guedes. Permanecem ainda no grupo somente os 8 primeiros nomes dessa
lista.
25
Até o momento que encerro esta fase da pesquisa, foram, ao todo, dez apresentações públicas. Além das duas
citadas, que oficializaram o término da oficina, ocorreram mais oito apresentações: duas em dezembro de 2007,
cinco, em abril, e uma, em maio de 2008. Em 2010. fizemos dez apresentações em cidades do interior do Ceará, com
o patrocínio da Secretaria de Cultura do Estado.
74
Embora esses exercícios estejam apresentados numa seqüência, eles não foram
realizados na ordem que estão descritos. Muitos deles foram praticados diversas vezes, ao longo
de toda a oficina, outros apenas em momentos específicos.
Um grupo que se forma ainda é uma massa disforme, células separadas, por isso,
inicialmente, necessitei integrar o grupo, harmonizar as emoções, os anseios, receios, já que havia
alunos de diversas turmas e experiências variadas. Os exercícios de aquecimentos foram realizados
em diversos momentos da oficina. Seus principais objetivos eram integrar, harmonizar o grupo;
desenvolver as potencialidades e as sensibilidades físicas para o palco.
Abraços
Esses exercícios foram sempre realizados no começo dos encontros, anterior a qualquer
outro exercício. Consiste simplesmente em caminhar pela sala em silêncio, direcionar o olhar para
um dos participantes e abraçá-lo, até que todos fossem abraçados, uns pelos os outros. Nesse
momento, eu, como instrutor, também estava inserido no exercício, abraçando e sendo abraçado.
Ao longo da oficina, ocorreram variações nos abraços: algumas vezes, eram realizados em ritmo
lento, outras vezes, estimulados por comandos, abraçava-se em velocidades variadas e mudava-se
76
da pessoa a ser abraçada apenas por impulso, por um comando dado por mim: “abraço!” Nos
últimos encontros desse módulo, os abraços eram realizados com as matrizes corporais.
Objetivos:
Despertar as afetividades;
Comentário:
Variação de velocidades
comandos, durante toda a oficina. A mudança de velocidade foi base para a maioria dos exercícios
nos três módulos, assumindo objetivos diversos a cada nova proposta.
Objetivos:
Criar uma percepção mecânica corporal no espaço, tanto nos atores como em quem
os assiste;
Comentários:
Fizemos novamente o nosso corpo cênico, sendo que dessa vez controlamos o
riso daqueles que eram momentaneamente “público”, andando em diferentes
velocidades. Percebi o quanto o riso contagia e pode ser descoberto e até
forçado, podendo até parecer real, se torna real. Quando está fazendo o
personagem, tinha muito mais segurança quando tinha a reação do “publico”
com as risadas. Foi interessante também explorar a comicidade do corpo do
personagem nas diferentes velocidades. (Elvis, 01/07/2007).
Colocar ovo em pé
A cena se torna crível quando existem motivações verdadeiras por parte das
personagens. Nesse sentido, este exercício é excelente para se perceber uma presença verdadeira
em cena, pois, quando se estabelece um objetivo específico para se estar em cena, é como por um
ovo em pé.
Objetivos:
Comentários:
Grande lição que aprendemos com o exercício de colocar o ovo em pé, pois
além da concentração e determinação de fazer aquilo que foi proposto,
também percebi que muitas vezes não somos leais com os nossos objetivos e
nos aproveitamos de algum fato pra aliviar e facilitar o nosso trabalho.
(Chirliane, 24/07/2007).
As articulações corporais
1. Cabeça/pescoço;
a) cabeça e pescoço;
b) pescoço e coluna;
c) coluna e bacia;
f) pernas e pés;
g) tronco e antebraços;
h) antebraços e braços;
i) braços e mãos.
Deixam-se livres as articulações dos dedos, tanto os das mãos como os dos pés. Foram
definidos planos de movimentação: plano central, plano frontal, plano traseiro, plano lateral
direito, e plano lateral esquerdo. Depois se estipularam modos de articulação: frontal, traseiro,
lateral direito e esquerdo; rotacional sentido horário e anti-horário. Todas estas movimentações
são executadas isoladamente por articulações, em velocidade variada; à medida que são realizados
os exercícios, combina-se mais de uma articulação ao mesmo tempo, com movimentação de
planos diversos.
Objetivos:
Comentários:
Ouso afirmar que por meio da repetição estes exercícios estão tornando-se
viscerais. Já me sinto mais a vontade em brincar com os eixos do corpo e as
idéias de combinações surgem com mais facilidade. Minha mente inquieta-se
em pensar no porquê dessas brincadeiras com eixos. Seria somente para
podermos construir um “mapa” na hora de criarmos um determinado corpo?
(Henrique, 07/07/2007).
Manipulando as articulações
Divide-se a turma em grupos de três ou quatro componentes. Em cada grupo, por vez,
um integrante permanece deitado, enquanto os outros manipulam, daquele que está deitado,
todas as articulações, suavemente (pés, dedos, bacia, braços, pescoço).
Objetivo:
O toque é uma coisa complicada para todos nós. E em nossa área, a teatral, que trabalha
com as sensibilidades à flor da pele, sempre surgem as defesas. Pretendi trabalhar estas relações de
contato com grupo, para que as cenas pudessem transmitir verdades, quando se tratasse de
contatos corporais, e não apenas uma timidez, que é natural, pois sempre passa pela cabeça “o que
o outro irá pensar de mim?”. Qual o limite entre a representação e as verdadeiras emoções? É
sempre complicado este limiar entre conter-se e entregar-se. Descobrimos à medida necessária
com os exercícios e a prática constante.
Comentários:
Nestes dias vimos que para alguns o toque é difícil de ser aceito, que existe
uma resistência inconsciente, onde o temor sobre o que será feito consigo
impede o relaxamento, deixando os corpos tensos. Atribuo este fator não só a
um comportamento individual, mas também a um componente cultural, onde
a doação em forma de toque é pouco praticada, sendo até mesmo encarada de
forma errônea quando realizada. Em nossa sociedade o toque, o afeto sem
razões aparentes não é algo comum. Ainda neste momento pudemos constatar
que a forma como se dá o toque, seu ritmo e intensidade, espelham as pessoas,
ele é reflexo de quem o dá. Uma das questões a se considerar com esta
atividade é sua relação com o estar em cena, confiar e entregar-se, não apenas
em si, mas principalmente na troca e interação necessária no palco, estar apto
a receber e doar-se no jogo representativo, onde não estamos sós e sim
interagindo com outros atores e platéia, espaço este que nos pede entrega e
não resistência. (Gorete, 26/07/2007).
Ensinando a rir
Objetivos:
Comentário:
E uma diversão pra mim foi o exercício do riso, pois adoro dar risadas e
manter o riso no nível 1 é muito difícil pra mim, mas sei que preciso trabalhar
isso. (Chirliane, 30/06/2007).
Xingamentos
Objetivos:
Comentários:
que na comédia isso tem que existir, personagens como gays, pobres, e outros
do tipo, pois isso é do cotidiano das pessoas, convivemos com isso, com
preconceitos ou não. Penso também que, se bem utilizados, esses palavrões
podem sim ser levados para cena. Penso que o grosseiro, se bem aproveitado,
pode cair muito bem numa cena. (Jociel, 08/07/2007).
O exercício dos palavrões foi muito complicado para mim. Eu não havia
dormido o suficiente na noite anterior e me sentia com a energia muito baixa.
Quando me vi diante de tamanho desafio, tendenciei logo para o desânimo e a
desistência. Imagine uma pessoa sem chão! Procurava uma memória emotiva
que me levasse a um estado de agressão, e nada. Uma ação física qualquer que
me impulsionasse, me desse um impulso, e nada. Por um momento me
ocorreu um desespero que deu para controlar. Não havia como escapar, eu
teria mesmo que enfrentar o tal desafio, tão grande naquele momento para
mim. O maior problema não eram os palavrões, ou as questões relacionadas à
moralidade. A maior dificuldade estava em expressar uma agressão. Em chegar
à agressividade. Bom, sou uma pessoa que me trabalho, já há algum tempo, na
busca da paz interior, sendo muito tranqüila na hora de enfrentar conflitos.
Então, esta experiência me pegou de surpresa. Na hora foi um tanto dolorosa,
mas, de grande importância para minha pesquisa pessoal. Quero te agradecer
por ter insistido para que eu fosse fazer o exercício de qualquer maneira. Já
pensou, se você tivesse deixado para lá? Eu teria perdido uma grande
oportunidade de superação e compreensões para minha pesquisa individual.
Como já havia comentado contigo, fui para casa chorando. Senti-me excluída
pelo próprio teatro. Passei um domingo difícil, mas à noite já estava
restabelecida, buscando direcionar meus objetivos. (Deninha, 03/08/2007).
Quanto o uso dos palavrões, sou totalmente contra. Não que eu não fale
palavrões, é obvio que falo, mas nós temos o privilégio de estar em um palco,
mostrando algo às pessoas, temos o poder de formar opiniões, de causar
sensações, porque desperdiçar esse momento? (Elaine, 13/07/2007).
Este foi o exercício que, surpreendentemente, mais rendeu comentários, por isso não
me privo aqui de acrescentar os meus.
85
Quando levo o xingamento para oficina não é para dizer que xingamento é normal e que
devemos e podemos praticá-lo com qualquer pessoa ou em qualquer situação. Mas levo o
xingamento para um questionamento. Como utilizá-lo adequadamente, artisticamente, numa
comédia – no meu caso particular, usar a “baixaria”, os nossos preconceitos de modo a condená-
los e não reforçá-los. Em que medida socialmente deve-se utilizá-los? São questões que
permanecerão sempre, pois os costumes sociais mudam. Não se deve pensar que só porque certas
coisas fazem parte da vida, devem ser adotadas indiscriminadamente.
Antes de tudo estávamos nos preparando para exercer uma atividade artística muito
específica, o teatro. Isso, em um contexto geral, significa que temos que expor nossos corpos, nas
mais diversas situações, soltar a voz e as possibilidades corporais, o que não implica termos que
fazer tudo que nos pedirem. Somos livres para escolher o que nos interessa. Porém, quanto mais
liberdade eu der à minha expressão, mais possibilidades de criação terei. Compreendo que
apelativo é um conceito social, mas nós vivemos dentro de normas de convivências. Do contrário,
seria o caos. Cada um fazendo o que bem entendesse. Vivemos em sociedade e a arte pode ser um
mecanismo de questioná-la, de chamar a atenção para seus atos, o que não quer dizer que temos
que mudá-los.
Volto a repetir, nem tudo que existe na vida temos que obrigatoriamente representar
em cena. No entanto, nós temos uma hipocrisia de não desejar falar palavrão, coisas relacionadas
com sexos e escatologias, por tabus e educação cultural. Muitos que não querem falar palavrões
não se importariam de representar um ladrão, uma pessoa de péssimo caráter, um viciado em
drogas, um garoto de programa, um assassino, um político corrupto. Todos esses personagens
representam uma agressão para sociedade, tanto, e às vezes mais, quanto um palavrão. À medida
que nos libertamos de nossas próprias repressões, as possibilidades criativas aumentam, mas cada
um em seu ritmo. O importante é a busca, pois todos nós temos limitações!
86
Manipulando o outro
Divide-se o grupo, formando duas fileiras, uma de frente para outra. O instrutor diz um
nome de um objeto e pede a cada participante que vá moldando seu próprio corpo na forma do
objeto sugerido (exemplos: escova de dente, cadeira, privada, e outros). Depois que a forma está
corporalmente definitiva, o instrutor chama uma pessoa da fileira oposta e pede que esta manipule
o objeto da maneira que quiser. O mesmo procedimento deve se repetir para todos. Esse
exercício foi realizado como uma preparação para o próximo. Apesar disso, ele apresenta
objetivos bem específicos:
Objetivos:
Formam-se grupos de dois ou três componentes e cria-se uma cena com começo, meio
e fim, em que um dos componentes seja coisa em diversos ambientes: banheiro, escritório,
cozinha, sala de estar, e outros.
Objetivos:
Comentários:
Ah! Não posso esquecer de como o corpo fala através dos sons articulados
como objetos e o quanto é risível as pessoas tentando ser aquilo que nunca
87
poderão de fato ser. É realmente cômico ver uma porta quase que com vida
própria, ver uma cadeira produzindo seus sons estranhos, enfim, dar vida a
seres inanimados é uma comédia. (Chirliane, 24/07/2007).
Corpos engraçados
Objetivos:
Comentários:
Exercícios específicos
Os exercícios que seguem abaixo têm como objetivo geral a composição e fixação de
três matrizes corporais cômicas para cada ator.
Composição
O princípio para composição das três matrizes foi a imitação: do corpo de um colega
(Matriz 1); do corpo de um animal (Matriz 2); da forma física de uma figura de personagens da
Commedia Dell’Arte. O objetivo não era a cópia, mas a equivalência física do objeto a ser imitado.
Escolhi este caminho por acreditar que era uma das maneiras dos atores se concentrarem
na mecanicidade física das matrizes, na composição futura das personagens, eliminando dessas
composições os aspectos psicológicos ou da intencionalidade primeira de provocar o riso.
Neste sentido, desejei criar o risível como conseqüência desses corpos/matrizes e das
situações em que eles seriam inseridos. Assim, o risível apareceria sempre como um
estranhamento, voltados para mecanicidade física26.
Com o tempo e com bastante exercício, essas matrizes seriam ativadas por impulsos na
composição das partituras das personagens. E esse corpo estranho, para o público, seria risível,
por se tornar natural para as personagens, como distração, um desvio da vida.
Matriz 1
26
“Só começamos ser imitáveis quando deixamos de ser nós mesmos. Quero dizer que de nossos gestos só podem ser
imitados o que eles têm de mecanicamente uniforme e, por isso mesmo, de estranho a nossa personalidade viva.
Imitar uma pessoa é depreender a parcela de automatismo que esta deixou em introduzir-se em si. Logo por definição
mesmo, é torná-la cômica, e não é de surpreender que a imitação provoque o riso.” (BERGSON, 2004, p. 24).
89
CORPO
(postura corporal, andar, movimentação dos membros, expressão
corporal, tiques, etc.)
VOZ
(timbre de voz, característica de modulação, intensidade, etc)
FALA
(o que faz quando fala, vícios na linguagem, ritmo da fala, etc.)
É importante que, na fase de preenchimento das fichas, cada participante não saiba quem
é a pessoa que será alvo de sua observação. Pretende-se com isso que todos fiquem atentos aos
comportamentos para que seja fornecido o máximo de informação sobre a pessoa observada. Do
contrário, se o observador já souber previamente quem deverá observar exclusivamente, poderá
não ter uma preocupação maior em observar os demais.
observados executam diversas atividades: caminhar, abrir porta, correr, deitar, contar histórias
engraçadas, entre outras).
Comentários:
Senti dificuldade em vários momentos, mas nada me foi mais difícil do que
quando ouvi que devia ser eu mesma, agir naturalmente. Tá bom eu sou eu,
eu sei, mas eu não sou eu se me pedem pra ser eu! Entendeu? Não!? Então faça
exatamente o que eu vou lhe pedir: seja você mesmo na frente de uma platéia
que está lhe observando e esperando que você seja você mesmo! Sacou? Eu
sabia que você iria entender. (Gorete, 30/06/2007).
Histórias engraçadas
Cada ator deveria, na frente dos demais, contar uma experiência engraçada.
Objetivos:
Comentários:
Mais uma vez julguei-me muito antes de escolher que histórias deveria contar.
Até pensei que não seria engraçada, mas me surpreendi com a reação das
pessoas e minha também, por que à medida que ia lembrando ia achando
engraçado novamente. Tenho consciência de que interpretei um pouco, mas
acho que isso é mesmo natural. Hoje já me surpreendi por ter tido coragem de
contar uma história que me causaria vergonha se contasse a outros grupos.
Mas como a proposta era uma história engraçada e todos estávamos na
“fogueira”, então vamos “nos queimar”. É incrível ver como todos nós temos
“micos” para contar, nossa vida é cheia dessas histórias malucas, e foi muito
divertido ouvir tantos “causos” engraçados. Mais uma vez a afirmação de que o
melhor material que temos para o teatro somos nós mesmos, com nossas
histórias de vida maravilhosas. (Fábia, 01/07/2007).
Contei uma história simples com medo de que ao contar uma mais engraçada
não contivesse riso. Quanto mais detalhada a história melhor, como se a
história estivesse acontecendo naquele momento, a melhor parte é quando a
pessoa ri. (Jeniffer, 05/07/2007).
objeto do riso nos faz lembrar algo humano. A humanização das coisas ou a coisificação do
humano é um dos mecanismos para se suscitar o riso.
As apresentações tinham algo de vivo, espontâneo e natural, por isso funcionou. Talvez,
se fosse feito de modo muito elaborado (uma vez que pedi para fazer na hora), não tivesse surtido
o efeito desejado. Na medida em que as histórias eram contadas e acontecia de os ouvintes rirem,
o contador adquiria confiança e se empolgava e dava um toque pessoal, com certa naturalidade, o
que só aumentava as risadas.
O instrutor distribui um papel para cada componente do grupo com um nome da pessoa
a ser imitada, sem que ela saiba. Todos caminham pela sala, observando, discretamente, aquele
cujo nome está no papel recebido. Aos poucos, procura-se imitar detalhes do corpo: forma de
andar, inclinação da cabeça, ombros, tudo. Mas a imitação começa somente após um comando.
Em seguida, outro comando: caminhar sem imitar. Depois, cada um vai desfilar na sala, seguido
pelo seu imitador. O primeiro sai, fica quem o imitou. Em seguida, este deve exagerar um
aspecto da imitação. Depois variar o ritmo: lento, normal, rápido. Por fim, caminha sem imitar, e
entra, para segui-lo, quem o imitou. Assim, sucessivamente.
Objetivos:
Comentários:
Sobre termos que observar e imitar quem estávamos observando, achei muito
interessante, pois de nós mesmo podemos criar personagens, com vícios de
fala, gestos, maneira de ser; e sei que pra criar um personagem devemos
observar como ele seria, até o que devemos fazer pra imitarmos o animal no
qual nos comparamos. A oficina tem me alertado positivamente pra isto, pra
observar e usar o que de positivo pode ir pra cena. (Jociel, 08/07/2007).
Um grande aprendizado que retirei desta fase é que a cópia por si só não é
risível. Das apresentações muitas foram cópias na medida do possível, mas
uma em especial foi uma imitação prodigiosa. E o que diferencia “cópia” de
“imitação”? Bom, pelo que absorvi, a imitação tem um toque pessoal do ator.
Ele não simplesmente copia, mas sim cria em cima do seu objeto de imitação.
Trabalha as características que ele acha marcantes e as engrandece de maneira
épica para gerar o riso. (Henrique, 07/07/2007).
Matriz 2
A composição dessa matriz é gerada a partir de vícios que cada um possui e que podem
ser refletidos em posturas corporais inspiradas em animais. Ou seja, a partir de um vício que cada
um sabe que faz parte de seu caráter, deve-se associá-lo a um animal que inspire fisicamente esses
“desvios da alma”.
Objetivos:
Criar matrizes físicas geradas a partir de vícios pessoais, que se reflitam em posturas
corporais, inspiradas em animais;
Comentários:
A escolha do animal a vivenciar me foi fácil, pois sinto uma grande afinidade
com o animal escolhido, uma vez que o acho bastante parecido comigo.
Todavia algo me fez pensar na viabilidade física do que escolhemos e me fez
surgir a seguinte indagação: será que ao pensarmos uma composição devemos
começar pensando-a também fisicamente e em nossa capacidade ou limitações
físicas em mantê-las? (Gorete, 08/07/2007).
95
Matriz 3
A partir de uma imagem, construir uma matriz corporal. As imagens sugeridas são
inspiradas nos personagens da Commedia Dell’Arte, apresentados abaixo. Mais de um participante
compôs sua matriz a partir da mesma imagem. A intenção com isso era perceber as diversas
leituras e as variações de matrizes a partir da mesma fonte geradora. Os atores ficaram livres para
criação da voz, do caminhar e de detalhes da expressão corporal.
Objetivos:
Comentários:
Comentários:
A dança também foi muito interessante e gostosa de fazer, dançar com o corpo
do personagem nos ajuda a manter o corpo, apesar de que na maioria das vezes
saímos desse corpo, mas não deixa de ser o treinamento no qual está aí para
nos ajudar. (Jociel, 24 /07/2007).
Pular corda
Objetivos:
Comentários:
E pular que parece ser algo tão simples se torna tão complicado quando se tem
que fazer em corpo de outro, é preciso muita segurança e concentração.
(Chirliane, 24/07/2007).
No domingo tivemos que pular corda, foi bem divertido também, mas não sei
qual a finalidade que você teve para aquele exercício, apesar de ter sido
divertido. Penso que estes exercícios, assim como as cenas, foram utilizados
de forma que aprimorássemos os personagens, no qual estamos fazendo.
(Jociel, 24/07/2007).
Caça e caçador
Comentários:
Realiza-se em grupo. Para cada grupo é sugerido um tema (exemplos: frutas, animais,
carros, bebidas, e outros). Monta-se um repertório, anota-se de pelo menos dez palavras
referentes ao tema. Improvisa-se uma situação com as matrizes, em que só deve haver palavras do
repertório, embora a situação não pertença ao contexto do tema escolhido.
Objetivos:
Comentários:
Bom, ao contrario da última vez que eu escrevi, desta vez foi para dizer que
gostei muito dos dois últimos fins de semana da oficina. Como a gente
começou a trabalhar um pouco da cena em si, e como já lhe disse, acredito
muito no potencial risível da situação. Acho que o personagem sim, pode ser
risível, mas a situação ainda é para mim o grande “tchan” da cena cômica. O
personagem tem o poder de elevar a situação ou destruí-la, tornando ela um
acontecimento simplesmente trivial, sem graça nenhuma. O que mais gostei
desses últimos dias de oficina foi da questão do deslocamento. Sobre a cena
dos meninos (a das frutas, no qual eles só podiam falar nome de frutas,
lembra?); pois é, aquela cena fez um “clic” na minha cabeça e notei como o
deslocamento torna a cena engraçada! (Elaine, 25/07/2007).
Percebi que o vocabulário pode dar um tom todo especial quando se tratando
de frutas, animais e bebidas, que o estranhamento é algo muito interessante
para provocar o riso. (Chirliane, 24/07/ 2007).
Gramelô27
27
Dei este nome ao exercício em português, como soa aos ouvidos, porém “Grammellot é uma palavra de origem
francesa, inventada pelos cômicos dell`arte e italianizada pelos venezianos, que pronunciavam gramelotto. Apesar de
não possuir um significado intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso. Trata-se, portanto,
de um jogo onomatopéico, articulado com arbitrariedade, mas capaz de transmitir; com o acréscimo de gestos,
ritmos e sonoridades particulares, um discurso completo.” (FO, 1999, p. 97).
99
Consiste dividir os atores em grupos, em que cada grupo improvise uma cena, adotando
as matrizes, cujas falas são realizadas por palavras numa língua inventada. As cenas sugeridas por
mim são:
Comentários:
Ao mesmo tempo em que me deixei contagiar por esta descoberta fui também
posta frente a frente com o sentimento de decepção, quando, ainda realizando
a atividade, percebi o momento em que deixei a alegria em fazer esvair-se,
passando a reles execução, restando apenas o desejo de sair do palco, concluir
e ir embora. (Gorete, 14/07/2007).
Parece-me que quando falamos uma língua que ninguém entende, além do
corpo ter mais importância na transmissão da ação, se torna mais engraçado,
como na questão dos palavrões serem palavras desconhecidas, é algo cômico,
de acordo com as intenções colocadas. Com certeza estamos descobrindo
muitas ferramentas que levam ao riso, resta-nos criatividade para colocá-las
em prática, quando for preciso. (Chirliane, 19/07/2007).
Onomatopéias
100
Cada ator deveria contar pelo menos uma atividade realizada durante cada um dos
turnos do dia. Para cada turno a ser narrado, o ator manteria uma matriz diferente. E, durante a
narração, deveria criar sons e gestos para ações contadas.
Comentário:
Monólogos
mato ele, a deixo viver na vergonha e entrego-me à prisão. Serei julgado e ela
figurará como testemunha... Imagino só a sua confissão, a sua vergonha,
quando ela for interrogada pelo meu advogado de defesa! As simpatias da
corte, do público, todos naturalmente ficariam do meu lado! Já sei! Fugirei de
casa, deixando os dois com remorsos! É isso! Esta noite serei um homem
vingado!
Comentário:
Ao final deste módulo foram apresentadas trinta e seis matrizes, três por cada um dos
doze participantes que permaneceram até o final do módulo. Pedi que cada um atribuísse um
nome à sua matriz, pois assim seria mais fácil lembrar futuramente quando precisasse compor as
partituras das personagens. Como exemplo, apresento abaixo algumas matrizes construídas por
dois atores, com a descrição de composição elaborada pelos próprios.
102
Gorete Rodrigues28
Nome da Fonte geradora Composição
Matriz
1 – Maria das Inspirada na Deninha Anda com os ombros para trás e peito projetado à frente, pé
Dores direito virado para fora. Sempre demonstra indecisão ao se
expressar e não gosta de falar em público. Costuma andar
rotacionando as mãos e franzindo os lábios em um “bico”.
Quando está falando tem a tendência de ficar trocando o apoio
entre os pés e de ficar em ponta de pé. Trabalha em uma ONG
que atende crianças, mas está insatisfeita com seu trabalho, e é,
também, cantora de MPB. Fala baixo e suavemente, com a
língua presa na parte inferior. Em relação ao nome, foi
escolhido porque a personagem demonstra sempre dificuldade
em decidir-se por fazer ou resolver qualquer coisa, sempre
buscando protelar a hora da decisão.
2 – Gerson Imitação de um macaco Inspiração em sua forma de andar. Criado a partir do hábito da
Miudinho gula e também da identificação com um animal, no caso um
macaco. Seu peito e região da cintura são projetados à frente,
com as mãos estendidas à frente do corpo e moles. Anda com
as pernas em forma de arco, com os pés voltados para fora.
“Tem a expressão facial simpática, com um sorriso
abobalhado”, com os lábios em linha e olhos apertados. Tem
alguns cacoetes, como ficar pondo a língua constantemente
para fora e não ficar parado, movimentando-se sempre em
passos pequenos. É guarda municipal e gosta de contar
vantagem, dizendo-se policial. Fala rapidamente e com a língua
presa na parte superior.
3 – Bartolomeu Inspirada na figura de Devido à pompa que a personagem inspira. O seu peito possui
Encantador Briguella. uma rotação para a direita, acompanhado pelo ombro
esquerdo, que tem uma elevação. Sempre procura manter uma
figura altiva, olhando para as pessoas de cima, com as
sobrancelhas e olhos elevados em uma expressão congelada.
Seu braço esquerdo permanece sempre junto às costas.
Desloca-se como um conquistador, sempre observando as
mulheres com ares de galanteio. Tem 65 anos, mas se acha
bem conservado e encantador, daí seu sobrenome. É um
maquinista aposentado e endividado. Fala com a boca bem
aberta, procurando pronunciar as palavras o mais corretamente
possível.
28
Gorete Rodrigues foi uma das mais dedicadas e talentosas participantes do Grupo de Pesquisa. No dia 29/07/2007
fez a sua última apresentação na oficina, mostrando as suas matrizes, vindo a falecer repentinamente no dia
06/08/2007, o que nos deixou bastante entristecidos e saudosos.
103
Felipe Franco
Nome da Fonte geradora Composição
Matriz
1 – Maria do Inspirada na Postura: Inclinação do eixo da cabeça para frente, eixo dos
Socorro Chirliane ombros com inclinação para cima e rotatória para fora, eixo dos
pulsos para cima, bunda empinada, pernas e pés juntos. Quando
anda balança a cabeça para os lados (movimento sutil). Quando
corre, inclina o corpo para frente e flexiona os joelhos para trás.
Anda em passos curtos.
Voz: Timbre excessivamente agudo com grande amplitude que
em certos momentos faz com que ela desafine, parecendo estar
rouca.
Rosto: Olhos arregalados, sobrancelhas para cima, sorriso largo.
2 – Kiko Inspirado num macaco Postura: Cabeça para frente, coluna curvada, cotovelos para cima,
(Arnaldo braços soltos e quando anda, balança-os alternadamente para
Júnior) direita e para esquerda, eixo da cintura para frente (fazendo com
que encolha a bunda), joelhos flexionados, movimento rotatório
dos pés para fora. Anda em passos largos e grandes.
Voz: Timbre em transição, respiração irregular, fala muito rápido
e repete as palavras incansavelmente quando quer algo.
Rosto: Olhos arregalados, lábio inferior para baixo, lábio superior
em cima dos dentes inferiores, sobrancelhas para cima.
3 – Hastoufo Inspirado na figura de Postura: Cabeça para frente, ombros e coluna curvados, cotovelos
Braga Pulcinella para cima, movimento de rotatória dos braços para fora, eixo dos
pulsos com movimento para cima, cintura para frente, perna
direita no eixo central, perna e pé esquerdo com movimento
rotatório para fora.
Voz: Timbre grave, voz rouca, fala gritando, tem problema de
dicção e sotaque do interior do Ceará muito acentuado.
Rosto: Testa franzida, sobrancelhas baixas, olhar de desaprovação,
maxilar inferior para frente.
104
Comentários gerais
Aqui tomo a liberdade de colocar um pouco sobre uma limitação minha. Isto
é, se me é concedido esta licença. Pois bem, tenho plena consciência do meu
potencial e do meu talento, mas sei também da existência de fantasma que me
apavora quando tenho que me expor. Engraçado é que quando é a hora de ir
paro palco, na hora do vamos ver, é exatamente quando consigo me libertar.
É como se naquele momento, eu estivesse num plano sagrado. Porém para
chegar até lá enfrento grandes dragões. Bom, não posso desistir. Tenho que
tentar, buscar um caminho, uma forma, um método, uma maneira, seja como
for, de neutralizar e vencer este medo. Enquanto isso na “sala de justiça”,
estou procurando aproveitar ao máximo todos os exercícios, apesar de minha
aparente resistência. Às vezes, me surgem os inevitáveis questionamentos: “o
que será o objetivo desse exercício?”; “quais relações ele deve está
encontrando entre os resultados?”; “e os conteúdos registrados, como serão
105
aproveitados na sua pesquisa?” Procuro evitá-los, pois sei que não me serão
úteis naquele momento. Tenho dito que o teatro está ampliando muito a
minha percepção em todos os sentidos. Venho estudando esta afirmação que
me caiu meio que intuitivamente. A percepção está ligada ao sentir e ao
observar com mais profundidade, é uma porta para a compreensão, para o
entendimento. A oficina tem me proporcionado constatar tal afirmação. Cada
exercício proposto é um desafio para o meu corpo e para o meu espírito.
Tenho me encontrado num processo de conhecer meu corpo em cena e
explorar minha criatividade e a isto eu só tenho a agradecer. (Deninha,
30/06/2007).
Neste sentido, trabalhei com a exaustão, através da repetição para chegar num corpo
diferente do cotidiano de cada um. Esse corpo extracotidiano deveria ser composto na intenção de
suscitar o riso, como conseqüência de uma estranheza. Pois nem sempre o cômico se estabelece
com algo que conseguimos identificar. Em muitos casos, é o estranhamento que causa o riso.
Aquilo que nos parece fugir às normas sociais, as regras de conduta, que não tem lógica, que
condenamos socialmente. Em determinadas situações, essas “anormalidades” sociais nos provocam
o riso.
Foram então realizadas ações comandadas por mim. O risível deveria surgir em função
destas ações e não da intenção de cada um em querer fazer rir. Compreendo que é difícil não
racionalizar, mas a maioria dos exercícios foi proposta para suscitar o impulso, realizar ações, não
procurar psicologismo, memórias emotivas, apenas fazer o que tem de ser feito, o pensamento
aconteceria como conseqüência. Mesmo nos palavrões, se é para se dizer, se diz de qualquer
forma que vier à cabeça. A idéia era justamente essa: quebrar certa passividade que eu estava
observando no grupo.
Não estava preocupado com o fácil, embora acredite que devemos começar pelo mais
simples, como um bebê que aprende a andar: primeiro tateia o chão, depois experimenta se
levantar, cai, depois fica em pé e dá os primeiros passos, por fim, corre e adquire autonomia, só
então começa a dançar.
106
4.A PREPARAÇÃO
Da matriz à cena
Como chegar a isso? – este tem sido nosso desafio neste trabalho: fazer o corpo falar,
contar a piada, mesmo que essa piada venha de um texto, mas que seja através da expressão do
corpo que surja a comicidade. Neste sentido é que o caminho traçado na oficina foi voltado
principalmente para a identificação de possibilidades cômicas corporais.
Nós temos uma tradição de criar cenas a partir de um texto escrito. Nesse sentido,
procuramos uma transposição mimética do que foi escrito para a cena. Como todo mundo, tenho
essa tendência de me conformar com a primeira idéia. Então, lembro-me de pensar: e se eu
testasse de outro modo, como seria?
Minha preocupação estava voltada para que não fossem perdidas as estruturas básicas que
originaram as matrizes, apresentando-as totalmente diferentes das construídas previamente. Mas
faz parte do processo criativo acrescentar-lhes novos elementos de composição. Mesmo quando o
espetáculo está em cartaz, sempre há descobertas de possibilidades para a personagem, sendo esse
um dos meios que a mantém viva em cena.
Senti a necessidade de elaborar exercícios que fossem até o limite do esgotamento físico,
para observá-los melhor e descobrir possibilidades. No entanto, não realizei os exercícios dessa
fase apenas com a intenção de fixação das matrizes, mas também para que pudéssemos refletir
sobre o material produzido e os seus elementos de composição (voz, postura corporal, expressão
facial, movimentação), além de observar como tais elementos se modificam e se adaptam de
acordo com a situação. Ainda como objetivo, tentei descobrir caminhos para o risível das
situações, inspirado no mecânico colado no vivo.
107
Toques
Os atores são divididos em grupos de no mínimo três componentes. Cada grupo forma
um círculo em que um ator fica no meio, de olhos fechados, enquanto os outros o toca em todas
as partes do corpo. Depois de alguns minutos, o que está no meio, deixa-se jogar de um lado para
outro. Após isto, aleatoriamente, a partir de toques em partes diferentes do corpo, ele deverá
produzir sons variados, acompanhados de uma movimentação da parte que foi tocada. Esses
procedimentos devem ser realizados com todos do grupo.
Objetivos:
Comentários:
Sei que já passou o dia de ter escrito sobre esse exercício, mas queria
comentar sobre ele, é o exercício que fizemos num sábado da semana passada,
no qual, fizemos uma roda, um que estava na roda foi para o meio e daí os
outros que estavam ao redor tocavam na pessoa que estava no meio do círculo,
e depois jogavam este como se fosse uma bola, e depois tocavam nele. Ele
mexia o corpo fazendo um som qualquer. Achei muito massa, penso que esse
exercício serve para você pegar mais confiança no parceiro [...]. As cenas
também ficaram muito boas, até porque a gente brincou bastante, as últimas,
tanto que foi até mais divertido fazê-las, por isso. As brincadeiras ou coisas
novas que apresentávamos na cena ficaram legais, sempre repetindo a cena,
mas sempre com algo novo, ou quase sempre. As vozes dos meus
personagens, penso que devem ser melhoradas, porque talvez o público não
esteja entendendo. (Jociel, 04/09/2007).
Toques e sons
Dois atores se apresentam, enquanto os outros lhes assistem. Um toca em três partes
diferentes do corpo do outro e este deve, de improviso, produzir um movimento e sons para cada
toque e memorizá-lo. Em seguida, aquele que foi tocado deveria realizar uma fala qualquer,
produzindo, na seqüência, os três movimentos e sons.
Objetivos:
Comentário:
Improvisação de cenas
109
Entramos numa fase um tanto cansativa, de transição, mas necessária para a pesquisa.
Em toda criação elaborada há os momentos de liberdade completa, de improvisos, e depois os
momentos de ajustes, em que as criações precisam estar mais amarradas.
Trabalhei, nesta fase, com improvisos de cenas roteirizadas, retiradas dos esquetes a
serem montados e apresentados no módulo seguinte: Os impostores, O palco, A rubrica, e Um homem,
uma mulher, para não falar do garçom 29. Eu desejava verificar as potencialidades cômicas das ações
físicas que pudessem evidenciar uma mecânica corporal na personagem e não exatamente no ator.
A intenção, portanto, era que a comicidade acontecesse como conseqüência das ações, e não pelo
desejo de cada um fazer rir. Para isso era necessário um ator mais intuitivo do que racional, um
ator livre e aberto a novas possibilidades.
Mesmo que cada esquete contivesse estruturas dramáticas independentes umas das
outras, todas elas estavam ligadas por um assunto comum, que é o teatro e os variados elementos
de sua linguagem; O palco trata da relação do público com o espetáculo teatral; Os impostores,
com uma trama policial, aborda as máscaras do ator; A rubrica, num clima melodramático, fala
da dependência do ator em relação ao texto dramático; O homem, uma mulher, para não falar do
garçom, com o tema de traição conjugal, descortina os bastidores dos ensaios teatrais.
Esses aspectos relativos à dramaturgia e a sua comicidade não foram enfatizados nesse
módulo. Ao longo da oficina procurei ter o cuidado de não sobrecarregar os atores de
conceituações teóricas. Nesse processo o pensamento é muito importante, mas não um
pensamento pautado numa lógica sistematizada. Desejei que os atores não ficassem tão ansiosos
(quase impossível!) em entender as minhas reais intenções, mas que cada um tirasse as suas
conclusões pessoais.
Os impostores
Comecei com Os impostores por acreditar ser o esquete que mais exigiria dos atores e que
seria um excelente exercício para melhor fixação das matrizes. O esquete deveria ser
representado por dois atores, que comporiam quatro personagens cujas partituras corporais se
revezariam entre eles.
Foram, então, formadas duplas fixas para todos os improvisos. Cada ator compôs dois
personagens a partir das matrizes sugeridas por mim. Aquele que seria o Ator 1, comporia Vitor e
29
Nos Apêndices do livro, constam os esquetes na íntegra, além do material de divulgação do espetáculo
dentre outros materiais relacionados a ele.
110
Pedroso, a partir de suas matrizes. O Ator 2 comporia a Estela e Delegada. Depois, cada
componente de uma dupla deveria imitar os dois personagens compostos pelo outro componente
da dupla. Somente a Chirliane compôs todas as personagens a partir da dupla Henrique e Elaine.
Foram, então, formadas cinco duplas que improvisaram o roteiro de cenas do esquete.
Inicialmente, propus para cada dupla um exercício que chamei de espelho, em que um ficava de
frente para o outro, imitando-o em todos os gestos. Esse exercício, que tinha o propósito de que
cada um da dupla habituasse com a matriz corporal do outro, foi exaustivamente realizado,
revezando-se cada imitação por mais de meia hora.
Roteiro de cenas:
Cenário:
Uma porta da cozinha à esquerda do público. Uma porta central que liga a sala à rua e outra porta
à direita, a do quarto do casal. Tudo se passa na sala.
CENA 1
Estela entra nervosa, carregando uma mala, vindo do quarto, com estivesse querendo
fugir.
Estela tenta disfarçar a surpresa e Vitor fica intrigado com atitude da mala e pergunta
onde ela pretendia ir. Estela dá uma desculpa qualquer.
Vitor não acredita. Ameaça bater em Estela. Estela cai no chão, arrasta-se aos pés dele
e suplica para não apanhar. Ele desiste, larga-a e vai até o quarto tomar um banho.
Estela se transforma em Vitor, faz uma ligação secreta dizendo que o plano deu
errado. Volta à partitura de Estela e sai para rua.
CENA 2
Por fim, a Delegada identifica-se, e diz que ela está presa por ter matado o marido
afogado.
Estela se espanta, insiste que o marido está no banho, mas a delegada empurra Estela
para fora de casa e ordena que supostos oficiais que a prenda.
Quando a Delegada está só, muda para partitura da delegada, e faz uma ligação
telefônica, alegando que está correndo tudo conforme o plano.
CENA 3
Quando tenta sair, dá de cara com Pedroso, que fica muito intrigado com a mala.
113
Ela diz que precisa fugir com ele logo, pois Vitor está vivo.
Pedroso não acredita nela, pois foi ele mesmo que jogou Vitor ao mar.
Eles se abraçam, amorosamente, dizendo que precisam fugir antes que Vitor apareça.
Estou sentindo uma espécie de mudança em mim. Não sei se este tipo de
comentário contribui em alguma coisa. O certo é que estou diferentemente
melhor. Reconheço que aos poucos estou me desprendendo do racional,
daquele pavor, e daquela autocrítica imensa. Sei que ainda tenho que melhorar
muito, porém estou muito feliz de ter chegado aonde cheguei. Gostei muito
de fazer o personagem com o Felipe. Ele, de certa forma, estimula e dinamiza
a cena. Enfim, gosto de trabalhar com todos. Estou consciente de que preciso
aperfeiçoar várias coisas: as intenções, as máscaras faciais, as partituras do
116
O palco
Representado por dois atores. Toda a cena acontece na platéia, entre dois atores, que
representam o público que assiste a um espetáculo em que só há o palco vazio, sem atores.
Roteiro de cenas
Ator 1 já se encontra sentado, na cadeira da primeira fileira, quando o público entra. Depois de
alguns minutos, Ator 2 entra e senta-se na última fila de cadeiras.
Ator 2 pergunta ao vizinho se já começou, Ator 1 pede silêncio, dizendo que ele está
atrapalhando o espetáculo.
Ator 1, como se estivesse falando uma obviedade, diz que o espetáculo é somente o
palco e nada mais, que é para mentes inteligentes e sensíveis, não para ignorantes sem
sensibilidade.
Para cada afirmação categórica do Ator 1, o Ator 2 responde com um “Ah!”, com
idéia de “saquei!”.
Ator 2 pede para trocar de lugar com Ator 1, afirmando que, de onde ele está, não dá
para sentir nada.
Ator 1 pergunta por que ele está chorando, Ator 2 diz que estão judiando muito do
palco.
A rubrica
Representado por três atores, dois deles comandados pro outro, a Rubrica. Ao lado, a
sua esquerda, acontece a cena entre Valério e Cleide.
Roteiro de cenas
Cena única. Quarto de Valério e Cleide (esposa dele). É meia noite. Entra Valério. Valério entra
calmamente, trajando fraque, cartola e luvas, estilo século XIX. Agitado, anda da esquerda para
direita. Pára bruscamente. Vira-se para platéia com o olhar perdido. Cleide entra, normalmente,
também vestida no estilo do século XIX. Cleide entra sem que Valério perceba.
Rubrica fala o trecho o abaixo, enquanto que os personagens obedecem ao seu comando.
Valério deseja saber: por que o pai dela não quis lhe dar a rubrica
Ela, com dedo direito em riste, diz que o pai jamais o dará a rubrica.
Ele dá três voltas ao redor dela, pára atrás dela e sussurra no seu ouvido: dizendo
que todos: a empregada, ela mesma, avó dela e até o avô lhe deram a rubrica, por
isso o pai também há de lhe dar.
Quando ele tenta sair, ela o agarra pelos pés e diz, suplicando: Não, não e não,
tudo menos a rubrica de meu pai!
Ele a deixa chorando. Ela se encaminha para o proscênio. Com olhar no infinito, a mão direita
apontando para o nada. E diz: Meu Deus, para que tantas rubricas?
Para três atores. Sendo que cada ator representa dois papéis, um que corresponde ao
personagem da trama conjugal e o outro, que é o ator que representa o referido papel.
Roteiro de Cenas
Cenário:
O garçom se apresenta e diz para o público que sua única função na peça é
presenciar um crime
O homem entra, abraça o garçom e pede uma cerveja, alegando que está feliz. Fala
para o público que sua personagem jamais estaria feliz se soubesse que morreria na
primeira cena.
Ela fala para o público que está fula da vida. Ela, não, mas a personagem. Já ela atriz
está muito feliz, pois jamais pensava protagonizar uma peça. Mesmo sabendo que
esta peça é muito ruim e o autor pior ainda.
Ele diz para o público que ela não sabe que ele está tendo um caso.
Ela fala para o público que ele não sabe que ela sabe que ele está tendo um caso.
O garçom diz para o público que sabe o que eles sabem, mas não pode falar, pois,
nesta peça, ele não tem fala, apenas serve ao marido.
Ela diz que a peça está errada e deveria começar de outro modo e demonstra.
Recomeça tudo.
Ela entra como uma louca e larga uma garrafa na cabeça. Diz que seria mais
interessante.
O garçom diz que a melhor maneira seria diferente. Repete-se a cena, e ele apenas
usa de interjeição, como: “eita”, “vixe Maria”, “tá lascado”, etc.
Quando ela vai matar o marido, o garçom diz que garrafa não é arma do crime e lhe
entrega um revolver.
Ela foge.
O homem pede que o garçom fale alguma coisa, dizendo: Meu amor, minha vida,
diga alguma coisa.
Comentários gerais
Como exercício final desse módulo, solicitei que individualmente todos escrevessem
sem parar para pensar, durante cinco minutos, sem tirar a caneta do papel, o que lhes viesse à
mente a respeito do processo vivenciado na oficina. Em seguida, cada um, sem que os demais
estivessem presentes, deveria falar para a câmera de vídeo o nome, curso e sua relação com a
oficina, até que eu o interrompesse.
Os resultados dessa prática foram interessantes, pois acredito que pelo exercício mental
da escrita, eles estavam mais soltos para falar sem que fosse necessariamente aquilo que eu
124
desejava ouvir. Os menos experientes em teatro não demonstraram ter resistência às propostas
feitas na oficina, enquanto aqueles que já tinham alguma vivência na elaboração de personagens
confessaram que estranharam muito a proposta de elaboração das matrizes das personagens antes
do texto. Alguns chegaram a admitir que tais procedimentos não levariam a nada concreto, que
era um absurdo. No entanto, quando viram os resultados dos primeiros improvisos, a comicidade
se estabelecendo, as matrizes se adaptando às situações, as resistências foram rompidas.
Fazer as pessoas rirem é algo que eu sempre considerei como um dom muito
especial. Na oficina havia outras possibilidades que não tem muito a ver com
um dom, mas, com um impulso, o reflexo, a marcação, e que também
funciona. (Fábia, 19/08/ 2007).
Participar desse processo de pesquisa é muito interessante pra mim, pois está
relacionada ao que desejo e é um jeito novo pra mim do meu fazer teatral. Já
possuía certa experiência com pesquisa devido aos objetivos impostos pelas
Ciências Sociais. Porém, nunca havia me pesquisado e nem as possibilidades
do meu corpo e isso me interessa muito. Também não nego o meu interesse
pelo riso e seus mistérios envolvendo desde a sociedade até o teatro mesmo.
Enfim, o processo de pesquisa me é prazeroso, mas devo admitir que as
informações e objetivos sendo omitidos de mim me deixam inquieto. Bem,
quanto a minha idéia de cena cômica, ela NÃO mudou radicalmente. Já me
dava conta da dificuldade que é gerar o riso nos outros. Admito que algumas
concepções mudaram. Percebi-me com mais recursos para gerar esse riso.
Inconscientemente, estou usando alguns recursos básicos desenvolvidos na
oficina em meus trabalhos (identificações, repetições, humanizações e o
inesperado). Admito que a idéia de criar personagens antes do texto me é
nova. Já conhecia essa idéia em teoria, mas é muito mais prazeroso e divertido
vê-la na prática. Minha mente se abriu para a criação de personagens e não só
os da cena cômica. Sempre tive a consciência de que o texto é só um recorte
do mundo da personagem, mas com a idéia de criar uma personagem antes,
essa consciência do recorte fica bem mais evidente. O processo de criação das
personagens também foi bem interessante e já adotei para mim. Quando você
falou da idéia de em vez de esconder um defeito, mostrá-lo, lembrei-me
diretamente da construção da personagem 2 (animais com base nos defeitos).
Meus trabalhos já têm por base certas coisas definidas na oficina. (Henrique,
22/08/2007).
O caminho que você está encontrando para dirigir esse trabalho que
participamos, está sendo muito importante para mim como uma artista de
palco. É como se eu estivesse tendo a oportunidade de liberar o campo da
espontaneidade, como se as intuições me chegassem por um canal direto, sem
questionamentos. O lugar de trabalho e de pesquisa do ator, que é seu corpo,
seus gestos, suas expressões, torna-se “lugar seguro” e ele pode deixar
inteiramente livre esse processo intuitivo fluir, para então, escolher desse rico
material o que interessar possa para aquele momento. Depois é só aliar todo o
processo criativo às técnicas e aos objetivos especiais. É o que está me
acontecendo, é o que venho buscando há muito tempo e agora encontro no
teatro, na oficina “A preparação do ator na cena cômica”. (Deninha,
21/08/2007).
125
A diferença básica entre os procedimentos desse módulo para da Commedia Dell’Arte está
em que os tipos desta apresentavam uma personalidade fixa em todas as situações propostas e
eram imediatamente reconhecidos por todos. Enquanto que as matrizes construídas na oficina têm
apenas forma corporal, sem personalidade fixa, mas que assume um caráter diferente a cada
situação a qual são submetidas. Em outras palavras, em cada esquete, mesmo que as matrizes se
mantenham, as personagens são outras, têm personalidades próprias, moldadas pela situação.
Enquanto que, na Commedia Dell’Arte, são as mesmas personagens, com personalidades fixas, em
diferentes esquetes.
A intenção era suscitar o riso como conseqüências das ações das personagens em
situações específicas, o mecânico colado no vivo, e não estas personagens forçando gracinhas para que
o outro risse. Observei momentos muito interessantes que o risível partia de uma “verdade”
cênica; já, em outros casos, acontecia dos atores quererem agradar, bajular a platéia.
Não reprimi isso, nessa fase, pois estávamos vivenciando uma experiência de completa
liberdade, de se permitir ousar. À medida que transcorriam os exercícios aumentava-se a sintonia
em cena, pois quanto mais nos relacionamos com as pessoas, mais nos sentimos à vontade com
elas. E isto se reflete na vida cotidiana e na extracotidiana da cena teatral.
5. A MONTAGEM
Do texto ao palco
Em certo sentido, pode-se dizer que a transposição dos elementos do texto para cena é
sempre um processo de adaptação, ou melhor, dizendo, de tradução de linguagens, pois os signos
do texto são de natureza completamente diferente dos signos da cena teatral. Enquanto as
personagens só existem no papel por uma descrição, ou imaginados pelos leitores, estas serão
materializados nos corpos do ator na cena teatral. Os atores em cena representam os signos de
personagens. Porém, atores diferentes geram signos diferentes na representação de uma mesma
personagem. Um ator negro representará um Hamlet diferente daquele representado por um ator
branco, mesmo que os demais signos (cenário, figurino, maquiagem, etc.) sejam os mesmos, pois
corpos diferentes alteram os significantes, e conseqüentemente os seus significados. É como o
mesmo quadro que, em molduras diferentes, provoca emoções diferentes no espectador.
Como todo signo tem uma incompletude do objeto referenciado, os signos do texto
teatral não poderiam ser diferentes. Toda a sua transposição é criada e completada por signos que
muitas vezes não estão evidenciados no texto. Seria praticamente impossível o autor descrever
todas as movimentações das personagens no espaço e no tempo, descrevendo todos os gestos que
estes fazem com cabeça, a expressão facial, os olhos, os braços, as mãos e as pernas. O autor
indica apenas os signos que acredita serem extremamente necessários. Mas, mesmo com algumas
indicações do autor, muitos diretores e atores desprezam essas indicações em função de sua
criação.
Na comédia, a ilógica dos sonhos, da loucura, do mundo de ponta-cabeça, das situações
deslocadas, tem um valor preponderante para deflagração do riso. Por isso é que não procuro uma
transposição mimética do texto para a cena; proponho que o texto dramatúrgico não seja o ponto
de partida, mas o de chegada para concepção da montagem do espetáculo.
Ao iniciar o módulo de montagem, dividi os atores em grupos, determinando qual o
esquete a ser montado por cada grupo. O trabalho de mesa não aconteceu como primeiro
momento, pois eu não desejava que os atores conhecessem o todo da peça nem as suas
dificuldades, bem como a sua dinâmica. De posse do texto, os atores passaram por algumas
etapas, que são descritas abaixo.
Processo de improvisos
127
Ensaios gerais
Transformar as atividades em ações físicas (tornar significativas: o olhar, os pés as
mãos, o ritmo do movimento e da fala).
Transformar as ações em um mecânico colado no vivo, com o uso de repetição,
inversão, interferência das séries, Boneco de Mola, Bola de Neve, Marionete.
Na fase de montagem, procurei perceber como o ator poderia criar um corpo
independente da piada, da motivação primeira, que é o fazer rir, e como esse corpo seria inserido
nas mais diversas cenas de um texto dramatúrgico previamente escrito para gerar a comicidade,
independentemente das matrizes criadas.
128
Exercícios abertos
Constatamos que cada vez menos estávamos rindo das matrizes cômicas, pois já
havíamos nos acostumado com elas, nada mais nos surpreendia. Mas isso não significava que as
cenas não fossem engraçadas. Quando se está ensaiando durante muito tempo cenas cômicas, tem-
se a impressão de que nelas não há mais graça, porque as piadas e seus desfechos já são conhecidos
para os atores. Somente na apresentação, diante do público, é que tudo toma um novo fôlego e
adquire o frescor da novidade.
Partimos, portanto, para fase dos exercícios abertos. Divido esta fase em dois
momentos. O primeiro corresponde a quatro apresentações abertas ao público, nos dias 6 e 12 de
outubro e, nos dias 19 e 21 de dezembro de 2007, no auditório do CEFET-CE. O segundo
momento, em 2008, corresponde a duas apresentações nos dias 16 e 17 de abril, no mesmo
auditório, três apresentações no Centro Cultural BNB de Fortaleza no dia 25 de abril, e uma
apresentação na cidade de Boa Viagem - CE. Ao longo desse processo, saíram do grupo os atores
Elvis Jordan e Deninha Carvalho e entraram dois novos componentes: Caro Li e Marcos
Martins30. As apresentações do segundo momento foram realizadas com mais de uma
configuração. A cada apresentação era realizada uma configuração diferente.
Nessas apresentações, desejávamos testar e ajustar, agora com a colaboração do público,
as possibilidades risíveis desenvolvidas na oficina. As apresentações foram compostas por quatro
esquetes de minha autoria, escritos em metateatro, originando o espetáculo Para não falar de teatro,
com aproximadamente uma hora de duração.
A preferência pelo metateatro se deve ao fato de que, nessa estrutura, o assunto
principal dos esquetes é o teatro e a sua forma de realização. Ao ressaltar a rigidez da forma, a
mecanicidade de suas ações, personagem e ator se distanciam. O que é vivo na cena se revela
mecânico em sua forma. E, de acordo com a visão de Bergson, o que a roupa representa para o
corpo, o que a moral representa para sociedade, o que o corpo representa para o espírito são as
mesmas coisas do que o mecânico representa para vida. É a forma impondo sua rigidez ao
conteúdo. E o que antes parecia natural é revelado pelo riso no que há de mecânico, superficial e
falso, como numa impostura.
Desta maneira, o trabalho teatral passa a ser uma atividade auto-reflexiva e
lúdica: ele mistura alegremente o enunciado (o texto a ser dito, o espetáculo a
ser feito) à reflexão sobre o dizer. Esta prática comprova uma atitude
30
Estes dois novos componentes do grupo de pesquisa se submeteram a uma mini-oficina de criação de matrizes (ver
no Apêndice I), ministrada por mim, aos sábados e domingos de janeiro de 2008. Não havia sentido a realização de
todos os módulos, pois os dois já conheciam os textos, através das apresentações do grupo. Assim, os dois foram se
engajando nos exercícios do grupo e tiveram a sua estréia no esquete O palco, apresentado no dia 25 de abril de 2008,
no Centro Cultural BNB de Fortaleza.
129
tem uma avançada bagagem cultural acerca do que possa ser bom ou mau teatro; seu prazer
estético está no campo do intelectual. Ao contrário, o Ator 2 representa o espectador empírico,
comum, que vai ao teatro buscando apenas o divertimento.
Configuração 1
PERSONAGENS ATORES FONTE GERADORA
ATOR 1 Fábia Guedes Matriz 1
ATOR 2 Amidete Aguiar Matriz 2
Configuração 2
PERSONAGENS ATORES FONTE GERADORA
ATOR 1 Larissa Montenegro Matriz 2
ATOR 2 Jeniffer Suzana Matriz 3
Configuração 3
PERSONAGENS ATORES FONTE GERADORA
ATOR 1 Marcus Martins Matriz 3
ATOR 2 Carol Li Matriz 1
Trecho 1
O Ator 1 já está sentado em seu lugar, quando acontecem três toques sonoros. As cortinas se abrem (se houver).
Após o início, Ator 1 permanece em silêncio, olhando para o palco. Quando o público começa a se manifestar,
com conversas, risos etc. Ator 2 chega pela platéia, através de uma fileira de cadeiras, pedindo licença. Em
suas mãos, sacos plásticos, bastante barulhentos. Senta-se e espera um pouco.
ATOR 2: (para o vizinho, falando um pouco alto) Tá demorando, você não acha?
ATOR 1: (pede silêncio) SSSHHH!
ATOR 2: Foi comigo?
ATOR 2: SSHH!
Ator 2 mexe novamente nos sacos.
ATOR 1: Ai! Que saco!
ATOR 2: Que é que tem meus sacos?
Apenas uma olhada do Ator 1 para Ator 2. Ator 2 remexe seus sacos, repetidas vezes. Ator 1 lança um olhar
repreensivo.
entanto, com entrada do Ator 2, pretende-se reforçar a idéia de que a cena acontecerá na platéia,
mas a situação ainda não deixa isso totalmente claro para público. Pretende-se chamar a atenção
do público para os dois atores. Existe algo que comprime (Ator 1) e algo que tende ao
relaxamento (Ator 2), repetidas vezes, como BONECO DE MOLA, que cenicamente pode
acontecer de forma diferente nas diversas manifestações.
Houve diversas mudanças de concepção de modo a se conseguir o melhor efeito de
comicidade. Inicialmente, os dois atores estavam inseridos na platéia como está indicado no texto,
porém a maioria dos espectadores não conseguia ver nem ouvir os atores. Além disso, o tempo
entre as falas estava muito longo, o que tornava o esquete bastante enfadonho. Decidimos, por
fim, “agilizar” os diálogos, colocar os atores de frente para platéia, sentados em cadeiras, um
diametralmente atrás do outro, inserido numa platéia composta por atores ou não, conforme a
disponibilidade do espaço de apresentação. Com isso conseguimos que O palco fosse um dos
esquetes mais risíveis em todas as configurações.
Em cada configuração, além das partituras diferentes, são inseridos novos elementos.
Por exemplo, Amidete que é uma mulher grande, tenta ser discreta, usando um banquinho para
se sentar, além de carregar uma porção de sacos barulhentos. A Jeniffer compôs um velho surdo
que troca as palavras ouvidas tais como: silêncio por “seu lenço” ou intensidade por “intensa
idade”. O Marcus também é um velho que se relaciona com alguém que está sentado ao seu lado,
chamando-o de “Demais”.
Trecho 2
Mais alguns segundos de pausa, Ator 2 começa a revirar os sacos.
ATOR 1: (sussurrando) Dá pra fazer silêncio?
ATOR 2: Hein?
ATOR 1: (pausadamente) Você pode fazer silêncio, para que eu possa assistir ao espetáculo?
ATOR 2: Entendi, quando começar eu me aquieto!
ATOR 1: SSHH!... Já começou!
ATOR 2: O quê?
ATOR 1: Fala baixo!... O espetáculo já começou, faz cinco minutos!
ATOR 2: Já?... (olha para o palco) E onde estão os atores?
ATOR 1: Não tem atores!
ATOR 2: (alto) Não tem atores?
ATOR 1: SSSHH!... Não, é só o palco, e nada mais!
ATOR 2: Ah!
Pausa, prolongada. Ator 2 remexe na cadeira, boceja alto. Ator 1, vira com novo olhar repreensivo.
133
Pretende-se que haja uma identificação entre a personagem do Ator 2 e o público, que
este seja cúmplice da ignorância daquele. O Ator 1 deve parecer um ser isolado, diferente da
maioria dos espectadores comuns. Nessa situação evidencia-se a representação de um espectador
empírico, desatento, contrastando com concentração do espectador modelo. Quando o público
vê-se refletido na personagem do Ator 2 ou lembrando-se de alguém parecido, a situação torna-se
134
risível. Outro recurso cômico utilizado é a REPETIÇÃO do bordão “Ah!”, como também um
olhar repreensivo do Ator 1 que se repete por diversas vezes, tentando, em vão, silenciar o Ator
2.
Trecho 4
Pausa.
ATOR 2: Psiu!... Psiu!
ATOR 1: Que é?
ATOR 2: Você está entendendo alguma coisa?
ATOR 1: Não é para entender, é para sentir!
Pausa.
ATOR 2: Ah!... Psiu!... Psiu! (Ator 1 vira-se) Eu não estou sentindo nada!
ATOR 1: Pois fique quieto, que, no final, você vai sentir tudo!
ATOR 2: Ah!
Pausa. Ator 2 vai até ao encontro do Ator 1 e bate no ombro dele.
ATOR 1: O que foi agora? Você está atrapalhando o espetáculo!
ATOR 2: Você está sentindo alguma coisa?
ATOR 1: Claro que estou! Eu já assisti a este espetáculo umas dez vezes e cada vez sinto algo
diferente. Cada vez que sento em outro lugar, tenho uma nova sensação!
ATOR 2: Então, você pode trocar de lugar comigo... É que eu não enxergo direito e sou meio
surdo! E dali, onde estou, não dá para sentir nada!
ATOR 1: Tudo bem! Agora vê se presta atenção!
Eles mudam de lugar.
ATOR 2: Ah! Agora sim!... Dá pra vê que não tem nada no palco!
ATOR 1: Use a imaginação!
ATOR 2: A imaginação!
ATOR 1: É!
Pausa. Ator 2, começa a rir. Inicialmente risos espaçados, depois vão aumentando a freqüência do riso até
chegar à gargalhada.
ATOR 1: De que você está rindo?
ATOR 2: (rindo) Ué? Do palco, ele é demais!
ATOR 1: Mas não é uma comédia!
ATOR 2: Não?
ATOR 1: Não, é um drama! Um drama existencial muito sério.
Pausa. Ator 2 começa a soluçar, num crescente, por fim chora.
135
ATOR 2: (choroso, virando-se para o Ator 2) Por que estão fazendo isto com ele!
ATOR 1: Ele quem?
ATOR 2: O palco! Eles querem acabar com o palco!
ATOR 1: Ah! Então você agora está sentindo!
ATOR 2: (choroso) Muito!
O espectador empírico deseja ser aceito. Fazer parte do “clube” dos iniciados. Não
deseja parecer inculto, ignorante. Nisso é que está o risível. Pode ser que o Ator 2 esteja sentindo
ou deseje com tanta intensidade sentir as emoções passadas pelo palco, que pensa ou finge estar
sentindo. É o momento da catarse do espectador empírico. Há nessa situação um distanciamento
entre o Ator 2 e o público, diferentemente da situação anterior, pois, nesse momento, o Ator 2
passa a ver, ou sentir o que o público não vê nem sente. É estranho e, por isso mesmo, o delírio
do Ator 2 é risível. Em alguns momentos, o Ator 2 resiste à realidade ditada pelo Ator 1,
funcionando como BONECO DE MOLA. Finalmente, entrega-se, relaxado, nas mãos do Ator 1.
Trecho 5
Trocando de lugar
ATOR 1: Este não é um espetáculo para iniciantes. É um espetáculo para os corações sensíveis.
ATOR 2: Ah!
Alguns segundos depois.
ATOR 1: (aplaudindo) Uuh! Arrasou! Bravo! Bravo!
ATOR 2: Que é que deu nele, meu Deus?!
ATOR 1: Lindo! Lindo!Arrasou!
Ele vai saindo.
ATOR 2: (sussurrando) Ei, aonde você vai?
136
Esse trecho ressalta o duplo sentido da peça. Um literal em que o palco é a peça, ou
mesmo o espaço cênico e o outro, sentido figurado, em que o palco é a arte teatral como um
todo: para apreciá-lo e entendê-lo é necessário habituar-se a freqüentá-lo. O instante que o Ator 2
permanece pensativo, deve ser suficiente para que o público reflita com ele sobre a frase final do
Ator 1. Até que o Ator 2 surpreende com o bordão final.
Comentários:
Com relação ao esquete O Palco percebeu-se o riso contido do público em
alguns momentos e ausente em outros. Talvez isso tenha ocorrido porque,
como disse Bergson, “nosso riso é sempre o riso de um grupo”. O riso precisa
de eco para existir. O pequeno número de pessoas ocasionou esse riso
contido, não havendo um eco suficiente para o aumento desse riso. Além do
público reduzido, a proximidade dos atores com o público também contribuiu
para a inibição. Bergson fala em “confundir a pessoa com a função que ela
exerce”. Isso está diretamente relacionado à proposta do esquete em questão.
Outro ponto que Bergson explana é o efeito da distração, elemento visível do
137
começo ao fim no esquete. Para ser mais completo as ações como distrações
citadas por ele definem bem o esquete. Segundo Bergson, essa distração
necessita parecer o mais natural possível, para alcançar o efeito cômico.
Naturalidade: esse elemento foi sempre posto para nós como objetivo em
cena. Outra observação é não termos o exagero como fim para o riso. “O riso
é então explicado pela surpresa, pelo contraste”. A gorda e o magro, um
intelectual e uma atoleimada, um banquinho minúsculo, se comparado a quem
senta nele; durante um espetáculo, eis que surge uma moça cheia de sacos,
fazendo barulho. Ela tira um banquinho do saco e fica mudando de lugar. Com
certeza o contraste e a surpresa é o que não faltam neste esquete. Quando
Bergson fala na sociedade, e como sintoma desta “apenas uma ameaça, no
máximo um gesto” me remete ao gestual dos personagens, onde a repressão é
feita com gestos e as respostas a essas ações também são carregadas de gestos.
Por exemplo, o olhar repreensivo, o dedo em riste sobre a boca, dentre
outros. Bergson diz que o riso deve ser uma espécie de gesto social. Seriam os
exemplos citados gestos sociais? “Um rosto é tanto mais cômico quanto mais
nos sugere a idéia de uma ação simples, mecânica, em que a personalidade
estaria absorvida para todo o sempre.” No caso de O Palco há uma personagem
com um sorriso ingênuo e sereno, com ar de quem não quer atrapalhar, e
outra ocupada com o olhar concentrado, quando não a atrapalham, “como a
assoprar uma trombeta imaginária”. Nesse último exemplo, Bergson lembrou-
nos a matriz da personagem do ator 1 (Elvis); seu bico, para ser mais preciso.
“Automatismo, rigidez, vezo contraído e mantido...” características buscadas
não só no esquete O Palco, mas também em todas as três restantes; elementos
esses que para Bergson são necessários a uma fisionomia risível. (Fábia,
Amidete e Elvis, 05/11/2007).
todos, de certa forma, “fingem” ser outra pessoa; são, portanto, todos impostores, mas não
podem isso confessar nem acusar ninguém.
Obedece a uma estrutura de farsa, composta pelos disfarces, as mentiras, alguém é
enganado com situações de qüiproquó. Com apenas dois atores, representando os diversos
personagens, temos o efeito cômico das trocas de papéis em que, pela imitação das partituras
corporais, revelar-se-á o artifício da composição atorial, levando atenção do espectador para os
mecanismos dos gestos, e não necessariamente das ações em si.
O ritmo acelerado é importante para que o efeito das surpresas aconteça antes que o
público tenha tempo para uma reflexão crítica. Há situações de REPETIÇÃO com INVERSÃO. A
INTERFERÊNCIA DAS SÉRIES acontece pelos equívocos e a quebra de realidade cênica se
sobrepõe à realidade da platéia. Por se tratar de uma farsa, o mecanismo de MARIONETE se
apresenta mais evidente, pois um personagem sempre estará fazendo o outro de bobo. O
mecanismo de BOLA DE NEVE também se realiza devido ao efeito complicador das situações e
das composições corporais múltiplas, que se repetem ciclicamente. O efeito cômico será
sensivelmente diferente se os atores forem do mesmo sexo ou de sexos opostos.
No caso de sexos opostos, o risível se manifestará mais evidente pelo mecanismo da
INVERSÃO, o que enfraquece para atores do mesmo sexo. No entanto, na revelação final, o
risível será mais interessante para atores do mesmo sexo. O efeito cômico será intensificado se as
partituras corporais e vocais das personagens forem bem definidas. A caracterização física da
personagem deve ser explícita, uma vez que não serão necessários atores com o mesmo fenótipo
para representação, pois a eficácia do esquete depende essencialmente da imitação. É nesse ponto
que todo o trabalho deve começar. Os atores deverão trabalhar as partituras corporais e vocais, e
descobrir níveis vocais interessantes de modo a revelar toda a possibilidade cômica. Pode-se
trabalhar o vício refletido no corpo, evidenciando “o confronto do ator e sua personagem”.
O corpo do ator é o instrumento, “avatar” de uma personificação e não uma encarnação
de uma personalidade. O ator deve comporta-se como um manipulador de fantoches, que são
esses caracteres, “uma soma de significantes” cujo significado deve ser construído pelo espectador.
Configuração 1
Configuração 2
Trecho 1
Os atores aproximam-se do proscênio, um apresenta o outro.
ATOR 1: Fala o nome verdadeiro do Ator 2.
ATOR 2: Fala o nome verdadeiro do Ator 1.
OS DOIS: Os impostores!
Uma música começa, enquanto eles armam o cenário. Além de dar o ritmo e criar um clima, a música servirá
de preenchimento de vazios entre as saídas e entradas de cena e as trocas de personagens. O cenário é composto
por três portas, uma ao lado da outra, com placas indicativas: cozinha, sala e quarto, nesta ordem, da
esquerda para a direita. O Ator 2 sai de cena pela porta da sala e o Ator 1, pela do quarto.
Os atores devem apresentar-se naturalmente, para que haja um contraste entre as suas
partituras corporais e vocais e as das personagens representadas. Essa cena é de preparação cômica
para a cena final. A intenção é parecer que os atores estão anunciando a peça, no entanto, somente
140
com a cena final é que a piada se conclui, com a revelação de que os reais impostores são os
próprios atores.
Trecho 2
Estela entra, vindo do quarto, apressadamente, carregando uma mala, como se estivesse tentando fugir de
alguma coisa. Está muito resfriada, vez por outra, ela espirra. Vitor entra pela porta da sala e a surpreende
no momento que ela tenta sair.
Ator 2 e Ator 1 são respectivamente Estela e Vitor.
ESTELA (ATOR 2): (assustada) Ai, meu Deus!
VITOR (ATOR 1): (encarando-a) Que é isto, Estela, está me estranhando?
ESTELA (ATOR 2): Vi... Vitor, é você mesmo?
VITOR (ATOR 1): Claro que sou eu? Quem você esperava que fosse?
ESTELA (ATOR 2): Mas... você está... Isto é... (disfarçando) o seu bigode!
VITOR (ATOR 1): O que tem o meu bigode?
ESTELA (ATOR 2): Vo... Você não tinha bigode... Ou tinha?
VITOR (ATOR 1): Ah! Esta é boa, o marido não pode se ausentar por alguns dias, que a esposa
não mais o reconhece!
ESTELA (ATOR 2): (espirra muito, desconfiada) E o que você faz aqui?
VITOR (ATOR 1): Como o que faço aqui? Esta é minha casa!
ESTELA (ATOR 2): Digo, o que você faz aqui, agora?
VITOR (ATOR 1): Estela, não estou lhe entendendo... Você está muito mudada!
Estela, nervosa, tenta acender um cigarro.
VITOR (ATOR 1): (retirando o cigarro da boca dela) Ora esta, desde quando você fuma? É só eu
viajar, que você se solta, não é?
ESTELA (ATOR 2): Não é nada disto, amorzinho!
VITOR (ATOR 1): Amorzinho é uma ova! Onde você pensa que vai com esta mala? Fugir?
ESTELA (ATOR 2): Fugir, eu? Isto são roupas sujas que estou levando para a lavanderia!
Vitor pega a mala de Estela, retira de dentro as roupas e um envelope.
VITOR (ATOR 1): Roupas sujas, é? Deixe-me ver! E isto aqui são roupas sujas? Estela, você está
querendo me enganar?
Estela cai ajoelhada, chorando.
ESTELA (ATOR 2): Por favor, Eu não pretendia enganá-lo, eu estava indo para a lavanderia.
Juro! E como a casa ficaria vazia, eu pensei que o mais seguro, era levar este documento comigo!
VITOR (ATOR 1): Mentira! (começa a tirar o cinto da calça).
141
ESTELA (ATOR 2): (beijando a mão de Vitor) Vitor, querido, não me bata! Não, querido, você
precisa acreditar...
VITOR (ATOR 1): (recolocando o cinto) Não me lambuze a mão. Eu não sei o que faço com você!
Vou tomar banho, quando eu acabar, vamos ter uma conversa séria. Agora comece a preparar o
meu jantar, não vá tentar nada, ouviu bem?
ESTELA (ATOR 2): (chorosa) Sim, Vitor!
Vitor entra no quarto. Estela enxuga as lágrimas, assume a partitura corporal de Vitor e faz uma ligação de
seu celular.
ESTELA (ATOR 2): (partitura corporal de Vitor) Atende, atende... Oi, sou eu... não dá para falar
agora, entre em contato comigo, urgente! Aconteceu uma coisa incrível! Beijos! (retoma a partitura
corporal de Estela).
Configuração 1 Configuração 2
DELEGADA (ATOR 1): Hum, apartamento, modesto mas confortável! É seu ou alugado? Bem,
mas isto não importa!... Ah! O ser humano, um eterno insatisfeito!
ESTELA (ATOR 2): A senhora, quer fazer o favor de se identificar!
DELEGADA (ATOR 1): Identificar-me! (mostrando a carteira de identificação) Que diferença faz a
minha identidade! E a senhora, quem é, hein, hein? Amanhã, nada mais seremos do que somos
hoje, não é, dona Estela?
ESTELA (ATOR 2): Por favor, saia agora de minha casa!
DELEGADA (ATOR 1): Sua casa? (mudando de tom) Dona Estela, a senhora sabia que de todos os
animais, o homem é o único que, mesmo de barriga cheia, mata o seu se-me-lhan-te?
ESTELA (ATOR 2): Se a senhora não sair imediatamente da minha casa eu chamo o meu marido!
DELEGADA (ATOR 1): O seu marido? (sorri) Por que a senhora não chama o seu marido?
ESTELA (ATOR 2): Vitor! Vitor, querido!
DELEGADA (ATOR 1): Ora, Dona Estela, vamos parar com esta farsa, além de nós dois, não há
mais ninguém nesta casa!
ESTELA (ATOR 2): Vitor! Vitor!
DELEGADA (ATOR 1): Tá bom, chega de gritaria! Dona Estela, a senhora está presa!
ESTELA (ATOR 2): Presa? Mas o que foi que eu fiz?
DELEGADA (ATOR 1): Não se faça de tola! Para mim a senhora não precisa esconder! Nós
duas sabemos que a senhora matou o seu marido!
ESTELA (ATOR 2): Mas isto é loucura! O meu marido acabou de chegar de viagem e está
tomando banho. Vitor, Vitor, vem até aqui, amorzinho!
DELEGADA (ATOR 1): Não adianta, Dona Estela. O corpo do seu marido foi encontrado por
pescadores a trezentos quilômetros daqui. Ele foi envenenado e atirado ao mar, dentro de um
saco! Queira me acompanhar!
A Delegada algema Estela.
ESTELA (ATOR 2): Não é possível! Vitor! Vitor!
DELEGADA (ATOR 1): (Empurrando Estela até a porta da sala. Gritando de porta a fora) Levem-na
para o camburão, irei em seguida... (assume a partitura de Estela e faz uma ligação) Alô, sou eu, deu
tudo certo! Isto!... Estou morrendo de saudades, te ligo depois, beijos! (olha ao redor e assume a
partitura da Delegada).
Sai.
143
Configuração 1 Configuração 2
Trecho que introduz uma nova personagem, representada pelo Ator 1 que acabara de
sair na cena anterior como Vitor. Nesse momento, a trama se complica, as transformações físicas
começam aparecer, o que possibilita a criação de horizontes de expectativas no público, levando-o
a uma atenção maior na estruturação cênica, em que os gestos corporais serão mais importantes
do que suas ações. Este efeito pulsante de duas realidades, da cena e do espectador, estabelece um
convite ao lúdico. E o que poderia ter se estabelecido com uma certa gravidade, é quebrada a
partir dessa cena. Existe uma situação de REPETIÇÃO da cena anterior, mas com força cômica
superior, no momento em que a Delegada se encontra sozinha em cena e muda de partitura para a
da Estela, que acaba de sair. Antes existia apenas o mistério, depois algo a mais que é dado para o
espectador. Este passa, efetivamente, a ser cúmplice dos impostores e, ao mesmo tempo em que
se torna cúmplice, aumentam as dúvidas. Quem está mentindo para quem? Ou quem está fazendo
o outro de MARIONETE?
Trecho 4
Ator 2 e Ator 1 são, respectivamente, Pedroso e Estela (com bigode).
Estela, vindo do quarto, retorna carregando uma mala, apressadamente. Pedroso entra.
ESTELA (ATOR 1): Ai, Pedroso, você me assustou!
PEDROSO (ATOR 2): Desculpe querida... Mas o que é isto, aonde você está indo com esta
mala?
144
ESTELA (ATOR 1): Pedroso, amorzinho, aconteceu uma coisa inesperada em nossos planos!
PEDROSO (ATOR 2): Não me diga que você está grávida! E tanto que a gente se prevenia!
ESTELA (ATOR 1): Não é nada disso, Pedroso! É o Vitor!
PEDROSO (ATOR 2): (agarrando Estela) Estela, esquece o Vitor, o que importa agora é só nós
dois!
ESTELA (ATOR 1): Me escuta!
PEDROSO (ATOR 2): Pera aí, Estela! Não me venha com crise de consciência! Agora é tarde!
Nós estamos juntos nesta! Você está muito estranha! Não estou lhe reconhecendo! Tudo em você
me parece diferente! Sua voz está rouca!
ESTELA (ATOR 1): (espirrando) É este resfriado que não me larga.
PEDROSO (ATOR 2): Você não me ama mais! É, você está mudada!
ESTELA (ATOR 1): Não é nada disto, eu não mudei nada! Ainda sou a sua Estela. O que eu
estou tentando lhe dizer é que o Vitor está vivo!
PEDROSO (ATOR 2): Vivo! Estela, você está delirando?
ESTELA (ATOR 1): Querido, é verdade! Vitor apareceu aqui hoje, quase que caio pra trás!
PEDROSO (ATOR 2): Você quer que eu acredite nesta história, se fui eu mesmo que o atirei ao
mar! O que você está tramando, não está pensando em me passar a perna, não é? Pera aí! O que
tinha naquele saco era o Vitor, não era?
ESTELA (ATOR 1): Claro que era! Eu também não sei explicar! Eu o coloquei dentro do saco,
após envenená-lo!
PEDROSO (ATOR 2): Estela, Estela... (abraçando-a) Vamos fugir, vamos abandonar toda esta
sujeira!
ESTELA (ATOR 1): Oh, Pedroso, bem que gostaria, mas fugir para onde?
PEDROSO (ATOR 2): Sei lá! Qualquer lugar onde ninguém nos reconheça! Onde poderemos
construir nossas vidas. Você não pode mais permanecer aqui como escrava do Vitor!
ESTELA (ATOR 1): Pedroso, Pedroso, você tem razão, eu não agüento mais as brutalidades de
Vitor... Sinto-me frágil, me abraça, meu amor!
Eles se abraçam e, quando vão se beija, ouve-se um barulho. Pedroso sai correndo para cozinha.
Configuração 1 Configuração 2
145
Nessa cena, surge um novo personagem que complicará ainda mais a trama e o jogo
cênico, pois nenhum ator estará fazendo o papel das cenas anteriores. Neste momento o público já
deve estar devidamente informado que se trata de uma comédia de trocas de identidades. A força
cômica estará na capacidade de imitação dos atores.
Trecho 5
Estela pega a mala, e vai tentar sair pela porta da sala, quando entra Vitor.
Vitor, está sem bigode e manca de uma perna, como a Delegada.
ESTELA (ATOR 1): (assustada) Ai, meu Deus!
VITOR (ATOR 2): Que é isto Estela, está me estranhando?
ESTELA (ATOR 1): Vi... Vitor é você mesmo!
VITOR (ATOR 2): Claro que sou eu? Quem você esperava que fosse?
ESTELA (ATOR 1): Mas... Você está... Isto é... (disfarçando) o seu bigode!
VITOR (ATOR 2): O que tem o meu bigode?
ESTELA (ATOR 1): Vo..Você tinha bigode... Ou não?
VITOR (ATOR 2): Ah! Esta é boa, o marido não pode se ausentar por alguns dias, que a esposa
não mais o reconhece!
ESTELA (ATOR 1): Sua perna, que tem ela?
VITOR (ATOR 2): Estela, não estou lhe entendendo... Você está mudada!... Você deixou
crescer... O bigode! É só eu viajar, que você se solta, não é?
ESTELA (ATOR 1): Não é nada disso, amorzinho!
VITOR (ATOR 2): Amorzinho é uma ova! Onde você estava pensando ir com esta mala? Fugir?
ESTELA (ATOR 1): Fugir, eu? Isto são roupas sujas que estou levando para a lavanderia!
Vitor pega a mala de Estela, abre e retira um envelope.
VITOR (ATOR 2): Roupas sujas, é? Deixe-me ver! E isto aqui são roupas sujas? Estela, você está
querendo me enganar?
Estela cai ajoelhada chorando.
ESTELA (ATOR 1): Por favor, eu não pretendia enganá-lo, eu estava indo para a lavanderia.
Juro! E como a casa ficaria vazia, eu pensei que o mais seguro era levar este documento comigo!
VITOR (ATOR 2): Mentira! (começa a tirar o cinto da calça).
ESTELA (ATOR 1): (beijando a mão de Vitor) Vitor, querido, não me bata! Não, querido, você
precisa acreditar...
VITOR (ATOR 2): Mas o que significa isto? (vendo o casaco de Pedroso)
ESTELA (ATOR 1): Calma, Vitor, não é nada do que você está pensando...
146
Configuração 1 Configuração 2
Essa cena obedece a duas estruturas: REPETIÇÃO e INVERSÃO. Ela repete diálogos e
marcações da cena 2, no entanto, os papéis dos atores estão invertidos. Deseja-se um duplo
sentido entre as questões existenciais das personagens e seus disfarces. Em um dado momento, só
acontece a comicidade dos diálogos porque o público já está informado das trocas de identidades.
E quando há uma referência ao corpo das personagens, também deve ficar explícito que se está
também falando do corpo do ator que representa a referida personagem. A comicidade será mais
intensa se as personagens são representadas por atores de sexos opostos: ator fazendo o papel
feminino e a atriz, o papel masculino.
Trecho 6
Entra Pedroso de bigode, e muito gripado, saindo da cozinha. Quando vai tentar fugir, entra a Delegada pela
porta da sala.
DELEGADA (ATOR 2): Aonde pretendia ir, senhor Pedroso?
PEDROSO (ATOR 1): Que é isto, companheira! Escuta, a gente pode continuar o plano juntos,
nós três! Como havia combinado com a Estela! Depois, fora do país, a gente reparte o dinheiro do
seguro!
DELEGADA (ATOR 2): Sem essa de companheira, você está me confundindo com outro.
PEDROSO (ATOR 1): (olhando-o, fixamente) Vitor? (Delegada faz sinal negativo) Estela?... Quem
é você?
DELEGADA (ATOR 2): (assume a partitura de Pedroso) Pedroso!
PEDROSO (ATOR 1): Pedroso? Mas eu sou o Pedroso!
DELEGADA (ATOR 2): Será? Vamos, entre neste saco.
Delegada coloca Pedroso num saco e o arrasta até a cozinha.
ESTELA (ATOR 2) sai do quarto arrastando um saco pesado.
148
Configuração 1 Configuração 2
Este é trecho de desfecho. A troca deve ocorrer com bastante rapidez na intenção de
surpreender o espectador com as entradas e saídas, e as revelações absurdas. É uma cena de pura
ludicidade em que as INVERSÕES, as REPETIÇÕES e as REVERSÕES são constantes. Nesse
momento, as coisas se complicam, fica uma dúvida no ar: quem são realmente os impostores?
Quem engana quem? O risível cresce com as constantes mudanças de partituras corporais em
cena. Realiza-se o mecanismo de BONECO DE MOLA, pois as trocas entre personagens ocorrem
alternadamente, sempre com tensão de uma e com distensão da outra.
Pela dificuldade, tanto na sua realização como na compreensão, as modificações do texto
Os impostores foram mais evidentes e mais constantes do que nos outros esquetes. A intenção era
complicar o enredo para que o público desistisse de sua lógica e passasse a concentrar-se no jogo
corporal dos atores. Para isso, acrescentamos, nesse trecho da peça, pequenas cenas em que uns
matam os outros, não utilizando sacos, mas com tiros em que o atingido está fora de cena. Em
diversos momentos, dois personagens com partituras semelhantes se encontravam em cena,
alegando um para o outro ser o verdadeiro e não o impostor. Os diálogos foram criados, nesse
momento, por improvisos e, depois, permaneceram mais ou menos fixos entre as configurações.
Trecho 7
As luzes se acendem. Ator 1 e Ator 2 encaminham-se para o proscênio. Cada um fala o próprio nome, mas
apontado para o outro.
ATOR 1: Fala o seu nome verdadeiro, apontando para a Ator 2.
ATOR 2: Fala o seu nome verdadeiro, apontando para o Ator 1.
OS DOIS: Os impostores!
Retorna a música de suspense.
Fecha a luz.
150
Fim.
O risível é realizado pela troca de papéis (INVERSÃO) e pela revelação implícita de que
os atores são os verdadeiros impostores. Eles são os que fizeram do público as suas
MARIONETES. Neste esquete a noção do verdadeiro se dilui, se dilacera, pois se chega ao ponto
de não mais sabermos quem imita quem, se existem realmente quatro personagens ou apenas dois
que se deixaram passar um pelo outro.
Uma marcação final foi criada. Consistia na apresentação de cada partitura dos
personagens, ao mesmo tempo, pelos dois atores, na seqüência: Vitor, Pedroso, Estela e Araci.
Por fim, um ator apresenta o outro com os nomes trocados entre si. Pretendeu-se, com isso, que
o público percebesse que o enredo era apenas um pretexto para realização em cena do jogo de
partituras.
Configuração 1
Configuração 2
Comentários:
A palavra rubrica representa diversas conotações: pode ser a rubrica de um texto teatral,
uma espécie de assinatura, uma relação sexual, uma atitude moral, e outras. Este deslocamento do
sentido literal para o figurado é a estratégia cômica na qual partem todas as situações do esquete.
A MARIONETE é o brinquedo mais evidenciado, pois as ações do casal são comandadas pelas falas
da Rubrica como se fossem cordões invisíveis.
A estrutura de REPETIÇÃO acontece em diversos momentos. O gesto deve estar mais
evidenciado que a fala, pois o público deverá perceber toda a mecanicidade do gesto. A Rubrica
não pode ser somente uma voz, ela deverá ter presença marcante, da mesma forma que as demais
personagens.
Configuração 1
Configuração 2
Configuração 1 Configuração 2
As ações físicas que o texto sugere são mais cômicas que as falas em si. Não há
necessidade de coerência entre os gestos dos atores e as indicações da Rubrica. A Rubrica deve se
manifestar inicialmente neutra, para que, aos poucos, interfira diretamente na história. É,
portanto, evidente a estrutura de INTERFERÊNCIA DAS SÉRIES com o mecanismo de
MARIONETE, com os duplos sentidos das palavras.
Trecho 2
RUBRICA: Olhando para platéia.
CLEIDE: Eu fico me questionando: aonde toda esta história de rubrica nos levará?
RUBRICA: Para o público.
VALÉRIO: Uma coisa é certa: isto há de ter um final!
RUBRICA: Decidida.
CLEIDE: Mas quando, meu Deus? Vós estais obcecado por rubricas. É rubrica de manhã, tarde e
noite. Eu não agüento mais. Urge que se ponha um ponto final.
Configuração 1 Configuração 2
155
N
A situação se interpõe em três espaços/tempo: o da Rubrica, o da cena do casal e do
público. A comicidade se estabelece pelo subentendido, pois não está explicitamente definido para
quem e de quê o casal está falando: se é do conflito interno entre eles ou da peça que, como
atores, eles representam.
Trecho 3
RUBRICA: Sacudindo-o de um lado a outro.
VALÉRIO: Onde está ele agora?... Eu perguntei onde está ele agora, minha esposa?
CLEIDE: No quarto dele!
RUBRICA: Sacudindo-a para frente e para trás.
VALÉRIO: E a vossa mãe!
CLEIDE: No quarto dela!
RUBRICA: Jogando-a ao chão.
Configuração 1 Configuração 2
Uma ação acontece num espaço e tempo específico: percebemos o tempo num
contínuo, crescente. E o espaço também parece ser contínuo e homogêneo. Para se percorrer de
um ponto a outro devemos passar por pontos intermediários. Todavia tanto espaço quanto tempo
podem, em cena, ser descontinuamente deslocados, para evidenciar um gesto, por exemplo:
existe uma cena no esquete A RUBRICA em que Valério vai enforcar a esposa, Cleide.
Naturalmente trata-se de uma situação dramática, não risível. No entanto, montamos essa cena
156
com Valério e Cleide, um de costas para o outro, ele realizando o ato, num espaço vazio e Cleide
agindo como se as mãos de Valério estivessem em seu pescoço. Desse modo, o público verá
apenas a mecanicidade do gesto e não a brutalidade da ação, o que deflagra o riso.
Trecho 4
RUBRICA: Valério, olha bem no fundo dos olhos de Cleide, respira e sussurra (ele apenas
gesticula, enquanto a Rubrica sussurra). É preciso! E tenta safar das mãos de Cleide. Uma, duas,
três... Cleide solta. Cleide chora copiosamente, dizendo: A rubrica de papai não! Não! Não! E
como tomada de uma resolução repentina, levanta-se. E vai até o proscênio... Ajeita o cabelo,
limpa as lágrimas, põe batom: Um foco de luz fecha-se sobre ela. (Rubrica passa da postura neutra
para a interpretativa). Cleide, em sua solidão de mulher abandonada, tenta transmitir por imagens,
apenas com olhar, o passado de fingida felicidade. Aquela mulher tão ingênua estava
evidentemente agitada, um quê de constrangimento e mesmo de cólera alterava aquela expressão
de serenidade profunda, e como acima de todos os interesses vulgares da vida, dava tantos
encantos aquele semblante celeste. Ah! Então isto é a vida? Questiona-se com as sobrancelhas.
Viver é achar-se de repente tendo que ser e existir num imprevisto. Subjugada por uma voz
desconhecida, a comandar-nos como títeres, forçando-nos as diversas possibilidades a que não
temos outro remédio senão obedecer?
RUBRICA: Cleide com a mão esquerda nas costas e a mão direita apontando para o infinito.
(dramaticamente) Assim, a vida é prisão na realidade circunstancial. (pausa, por alguns segundos.
Rubrica e Cleide paralisadas. Cleide pigarreia. Rubrica se recompõe). Por fim, Cleide acorda de seu
devaneio, lembra-se de seu marido e visivelmente consternada, filosofa.
Configuração 1 Configuração 2
157
Configuração 1 Configuração 2
Configuração 1 Configuração 2
158
Configuração 1 Configuração 2
159
Configuração 2
Trecho 1
Entra o Garçom
GARÇOM: (para o público) Um boteco qualquer. O garçom, que sou eu, a personagem e não eu,
o ator, limpa a mesa. A minha única função na peça... Quero dizer, a única função do garçom na
peça é: presenciar um crime!
O homem entra. Dá um forte abraço no garçom.
Pretende-se, nesse momento, colocar o espectador em suspense, alerta para o que está
por acontecer. Já se aponta certa comicidade, quando o Garçom se apresenta, indicando uma
diferenciação conflituosa entre o eu da personagem e o eu do ator. Quebra-se a ilusão,
mostrando-se a mecânica do jogo teatral.
Trecho 2
HOMEM: Zé, uma cervejinha bem gelada, que hoje estou muito feliz (para o público) Duvido que
continue neste estado de alegria, se soubesse que daqui a pouco alguém viria a este bar para acabar
com a minha vida... Minha vida não, a da minha personagem. Porque ela está muito perto de
morrer na primeira cena desta peça. Mas a minha personagem ainda mantém a ilusão de que
permanecerá viva por muitos anos. O meu futuro assassino, que eu sei quem é, mas minha
personagem não, entrará por aquela porta, daqui a alguns segundos.
O Garçom serve a cerveja. A Mulher entra, sem que o Homem perceba.
Configuração 1 Configuração 2
162
MULHER: (para o Garçom) Onde está ele? (o Garçom apenas aponta.) Eu estou fula da vida! Eu não,
a minha personagem. Eu, atriz, estou muito feliz por ser protagonista pela primeira vez de uma
peça. Ruinzinha, concordo. Já a minha personagem está preste a matar o marido. Eu, a atriz,
jamais faria uma tolice dessas. Porém está é uma história de crime passional. Um tema banal. Com
motivações éticas comuns! Também pudera, o autor não é lá essas coisas. Nunca escreveu uma
peça em que apresentasse personagens densos que, através de um tema simples, conseguisse
revelar a complexidade da condição humana! Escreve à moda antiga, cheio de “apartes”.
Configuração 1 Configuração 2
um pio, é de lascar! Já para minha personagem está tudo bem, tanto faz. Ela é garçom mesmo! Ela
só tem que servir os seus clientes.
Configuração 1
Configuração 1 Configuração 2
164
A música inserida neste trecho funciona como fios de uma MARIONETE, determinando
as ações dos atores, que finalizam a cena com uma pequena e lúdica coreografia, retirando a
densidade que poderia apresentar.
Trecho 5
HOMEM: Como?... Como?... Como? (para o público) Ensaiei muito este “Como”. Até descobrir
o tom mais adequado que revelasse o caráter da minha personagem. No começo, tinha dúvidas se
a personagem era cínica, se tinha crises de consciência, se estava surpresa com a descoberta da
esposa. Até que percebi que era um fingido... Eu não, a minha personagem, é claro! (rindo)
Como? Rá, rá, rá.
Configuração 1 Configuração 2
A comicidade aqui está mais nas ações físicas possíveis do que nas falas das personagens.
Temos um mecanismo de MARIONETE entre a atriz e sua personagem. As falas são como os fios
condutores para as ações da Mulher. Há também uma estrutura de REVERSÃO na continuidade
linear da peça.
Trecho 7
GARÇOM: E o garçom?
MULHER: Não teria garçom!
GARÇOM: Um bar sem garçom?
MULHER: Claro! O papel do garçom é extremamente redundante. O teatro hoje em dia
privilegia essencialmente os símbolos. Uma mesa de bar, uma cerveja, já simbolizam a presença
do garçom. Além de ter a vantagem de economizar um ator!
HOMEM: Eu discordo de sua proposta. E as minhas falas iniciais? Zé, uma cervejinha bem
gelada, que hoje estou muito feliz; Você por aqui, que surpresa! Zé, traz mais um copo! Como?...
Como?... Como?... Como? Rá, rá, rá.
MULHER: Desnecessárias! A ação já fala por si!
HOMEM: E a densidade da minha personagem, como fica, sem nenhuma fala?
MULHER: Não há necessidade que a sua personagem fale para que o público saiba quem é você.
Basta que as outras personagens, que sou eu mesma, fale de você, num magnífico monólogo que
se daria numa cena a seguir.
Configuração 1 Configuração 2
Configuração 1
GARÇOM: Ei, espere! Uma garrafa não é arma de crime! (tirando um revólver do bolso) Pegue esta.
Agora repita a sua última fala para me dar a deixa!
MULHER: Você ouviu muito bem!
O Garçom se mete entre o Homem e a Mulher.
GARÇOM: Não! Mulher atira no Garçom, que cai, baleado. Mulher e Homem se entreolham. A Mulher
larga a arma e sai correndo.
HOMEM: (chorando) Zé, Zé, você não pode morrer... Assassina! Assassina! Diz alguma coisa!
GARÇOM: (esforçando para falar) O final deve ser uma surpresa! (morre)
HOMEM: Zé, Zé, meu amor, minha vida, não faz isto comigo, Zezinho!!
Fim.
Configuração 1 Configuração 2
Comentários gerais
Ao tomarem o primeiro contato com o texto completo, a reação da maioria foi
inusitada. Alguns ficaram bastante descontentes com os seus papéis, outros desgostosos com os
esquetes impostos. Eles haviam esquecido o objetivo primeiro de todos os nossos trabalhos: uma
investigação de procedimentos do ator para a cena cômica.
Por diversas vezes chamei a atenção dos atores-pesquisadores para que não perdessem as
suas matrizes corporais, pois alguns deles encontravam-se bastante resistentes em compor as
partituras de seus personagens a partir das matrizes criadas no primeiro módulo da oficina. Esses
atores acreditavam que tais matrizes não combinavam com as personagens. Passaram, então, a ter
a preocupação tradicional em moldar os seus personagens, inspirados em circunstancias do texto e
em aspectos psicológicos, conforme me escreveram alguns deles sobre o processo de montagem:
170
O texto agora aparece como uma espécie de vilão que está querendo travar os
personagens. Refletindo sobre isso, acho que não é simplesmente o texto em
si, acho que se trata na realidade de espécie de pressão psicológica. O medo de
esquecê-lo nos pressiona, assim como qualquer outra preocupação pessoal que
não estejamos conseguindo esquecer ou controlar. E quem controla o
psicológico de si mesmo? (Fábia, 07/09/2007).
Admito que no início do nosso processo foi muito dolorido. Acredito que
todo início é difícil, mas o nosso tinha um diferencial: uma nova proposta de
encenação e montagem. Acho que o fato de não gostar de uma das minhas
matrizes me prejudicou bastante. Além de minha teimosia, o fato de não
conseguir criar, para mim, era uma tortura. Acho que não consigo, ainda,
lidar bem com isso. Mas foi incrível como, depois de montado, de levantado,
o esquete tomou conta de mim. Onde antes havia dúvida, houve vontade de
aprender. (Elaine, 10/11/2007).
É muito difícil romper com as técnicas já incorporadas e partir para novas possibilidades.
Principalmente, quando acreditamos que nos foi muito árduo chegar àquele caminho. Porém o
artista que não se apega às formas fixas estará muito mais aberto às possibilidades criativas.
O texto era apenas um pretexto para esta investigação, uma vez que num outro
momento, todos experimentariam suas matrizes nos diversos esquetes. Diversas alternativas
seriam experimentadas em cena para percebermos as diferentes reações do público. No entanto,
algumas vezes, as situações são mais engraçadas e interessantes que o próprio texto e, se não
desenvolvermos essas situações com naturalidade, o texto poderá engessar a cena, pois qualquer
cena deverá ser para o ator um desafio, principalmente aquelas com as quais ele não simpatiza.
Os impostores: o nosso calo, que ainda dói! Sempre soube que esse era o esquete mais
difícil de realizar, tanto cenicamente, como atingir o seu
potencial de comicidade. Muitos do grupo não percebiam os pontos de
comicidade a serem explorados. Não me detive nesses aspectos, pois a
pesquisa não era de dramaturgia. Por isso não fiz um estudo detalhado do
texto, procurei, no processo, que a comicidade surgisse naturalmente, a partir do corpo dos
atores, mas ainda estamos longe do que espero realizar com este esquete. Sei como realizá-lo
172
comicamente, apelando para o deboche, o escracho, porém desejo que esteja dentro do princípio
bergsoniano. EIS A NOSSA DIFICULDADE! O figurino e os adereços não estão funcionais. As
marcações de direção estão imprecisas. Quanto aos atores, ainda há muita
insegurança por não se ter definido exatamente os objetos de cena. Nas
primeiras apresentações, em dezembro de 2007, Larissa e Jeniffer
conseguiram um salto de qualidade substancial. No entanto, nas primeiras apresentações de 2008,
houve uma perda de ritmo, de manutenção das partituras e de presença de
palco, mas recuperando-se satisfatoriamente nas últimas apresentações. Elaine e Henrique vêm
crescendo a cada apresentação, mas ainda estão inseguros devido a fatores que fogem ao controle
deles: uma definição precisa e prática dos adereços.
Um homem, uma mulher, para não falar do garçom: sem concorrentes! É o esquete de maior
potencial cômico, tanto em texto como em proposta para cena. A primeira configuração chegou
em um nível bastante satisfatório, a segunda configuração ainda tem altos e baixos, com muita
insegurança dos atores e limitado domínio de palco.
Ao finalizar esta etapa, conclusão dos relatos da pesquisa, encontro-me ainda repleto de
dúvidas e de curiosidades a respeito da comicidade, o que só me instiga a continuar ampliando as
experimentações em uma nova etapa, com os atores pesquisadores do Grupo de Comicidade e
Riso do IFCE.
Quando propus aos atores que fossem realizados os “diários-comentários”, a idéia era
que pudéssemos estabelecer um diálogo e, juntos, construíssemos as reflexões desse processo. Se
encontrei uma trilha, mesmo que ínfima, para os procedimentos do ator na cena cômica, deveu-se
exclusivamente à disponibilidade e ao interesse que percebi em todos, sem exceções.
173
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes de uma pesquisa começar, o que se tem apenas é um projeto (quando se tem!). E
como o nome mesmo diz, projeto é uma projeção para um futuro, muitas vezes, incerto. Mas este
é que traça o caminho o qual, ao longo dos trabalhos, vai se ramificando em novas rotas.
Neste trabalho tracei uma rota para o ator na cena cômica, apoiado nos ombros de
outros mestres, utilizei-me dos diversos processos artísticos consagrados, que eram mais úteis
para os procedimentos que desenvolvi. Num primeiro momento foram criadas matrizes corporais
para personagens totalmente independentes de um texto e nenhuma concepção psicológica.
Depois, essas matrizes foram exercitadas em situações diversas, o que deu ao ator uma confiança
maior, e possibilidades de acrescentar às matrizes novos elementos de corpo, de voz e de
movimento. Por fim, as matrizes compuseram as partituras corporais das personagens e
assumiram uma personalidade tanto pelos aspectos físicos das matrizes como pelas circunstâncias
apresentadas no texto dramatúrgico.
O que proponho, nesta pesquisa, é um percurso, uma trilha a ser seguida no intuito de
tornar o ator risível cenicamente. Qualquer tentativa de provar as teorias do risível baseadas em
autores, cai no terreno estéril da relativização da cultura. Portanto, quando me apóio em Bergson,
faço-o mais para firmar um direcionamento de posições do que para confirmar convicções. A idéia
não é conferir uma função instrumental para se chegar à legitimação pela prática, a intenção é
retirar dessa abordagem mecanismos práticos para a realização do cômico.
174
Bergson, com apenas o leitmotiv, do mecânico colado no vivo, explica o risível que castiga
os costumes da desarmonia, do contraste, da contradição, da incongruência, da zombaria, do
inesperado, do exagero, da mentira, da imitação, das palavras, do caráter da personagem, das
situações repetidas e invertidas, dos equívocos, das superposições de idéias, do farsesco, do
absurdo, enfim, o risível dos costumes sociais.
Não pretendo dominar o riso nem seu mecanismo de comicidade, mas me deixar
dominar por ele e levá-lo a territórios inimagináveis. Ao dominarmos o riso, perdemos a sua
graça; pretendo apenas persegui-lo, deixar que ele circule, deslize pelo corpo, brincar com as suas
possibilidades de desordem, quebrando a rigidez das regras gramaticais que constroem uma
semântica socialmente estabelecida. Fazer valer a palavra do louco, não para dar uma razão ao seu
discurso, mas para que esse discurso seja a própria razão.
Por mais que o artista reflita e tente justificar a razão do riso, a experiência de quem ri
obedece a caminhos imprevistos, não tem uma meta, é repentina, prima pelos desvios da vida e
suas surpresas. Por isso a experiência através do risível é reveladora, abre a portas, liberta-nos da
alienação, cativa-nos, nos toca o coração pelo prazer. A experiência do riso nos conduz a
territórios de passagem que requerem certa passividade, uma receptividade e disponibilidade para
a abertura de caminhos labirínticos. A experiência do risível tem uma qualidade existencial que a
vida cotidiana não consegue alcançar.
Assim como na realidade cotidiana, que nos faz seres inacabados, deverão também ser as
nossas criações, abertas ao inesperado, ao improviso para que haja sempre o pulsar necessário à
revelação da eterna novidade da vida a cada apresentação.
Pela técnica consagrada, buscamos encurtar os caminhos; pela pesquisa, buscamos novos
caminhos. E toda técnica só é válida para arte, se dela podemos tirar lúcidos proveitos. Por isso,
os procedimentos que desenvolvo só têm sentido se puderem ser realizados cenicamente,
afetando o espectador, no sentido de que este não perceba o processo, os mecanismo, mas apenas
o seu resultado. Portanto, não precisamos estar justificando aos outros os fracassos e os êxitos de
nossas realizações pelo simples fato de se tratar de uma pesquisa. O público assiste a um
175
espetáculo na esperança que ele seja bom, independente dos procedimentos que o originaram,
pois, como sabiamente disse Chaplin: “A arte consiste em esconder o seu artifício!”
176
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182
Amidete Aguiar
Nome da Fonte geradora Composição
Matriz
1 – Eliza Inspirada na Gorete O nome dela é Eliza devido à música de Beethoven, mulher com
mais ou menos 27 anos, de postura formal, peito para fora,
barriga para dentro e anda com os pés rentes e como se desse
chutes pequenos para fora, passos de modelo. Trabalha como
perfumista em uma boate gay, descobriu-se nesta profissão num
dia em que brincava com um amigo gay, utilizando sua
maquiagem e roupa; gosta de seu trabalho mais se sente
envergonhada dele. Sempre é muito simpático, olho arregalado.
2 – Flor Inspirada num gato Seu corpo é disposto por desproporções, ela é meio pensa para
frente com ombros para frente, e braços encolhidos, pernas
inquietas e sempre em base, e anda com as pontas dos pés, olhos
curiosos, olfato aguçado e boca sempre esticada, como se
estivesse rindo a todo o momento; o seu andar é comparado com
a aguar, pois ela não tem um ritmo certo, uma seqüência de
andar. Ela, ainda em idade de gato, tem uns 4 meses, então é
toda brincalhona e atrapalhada, senta-se como se estivesse de
cócoras e também gosta de se espalhar no chão. É uma gatinha
que morava em apartamento e como ela achava que Flor e o
apartamento não combinavam, achou melhor para a saúde dela
virar uma andarilha. Ela é muito esperta e devido à sua imagem
de gatinha boazinha, se utiliza disso para comer, compadecendo
as pessoas.
3 – Onofre Inspirada na figura de Homem de 53 anos, rabugento, avarento, ignorante casado.
Rabujo Pantaleone Filhos, ainda não sei se possui, e como bichinho de estimação
possui um calango (Agenor). Ele é comerciante, vendedor de
lambedor, sandálias de couro, chapéus, roupa, comida. Também
faz penhores, agiota e vende da mãe à mulher e o resto do
parentesco, se derem um bom valor a ele, se pagarem bem, mas
muito bem. Postura: peito estufado, barriga para frente, coluna
para frente, um dos braços fica sempre para trás e com punho
fechado e outro braço para frente, grudado ao tronco e com o
punho fechado, mas com o polegar e o indicador a se tocarem
(esfregarem um ao outro, sinal de dinheiro), pernas estendidas,
pés de pato e um andar reto. O rosto sempre cabisbaixo,
emburrado e curioso, investigando a vida financeira de todo
mundo.
183
Henrique Bezerra
Nome da Fonte geradora Composição
matriz
1 –“Gesto Inspirada na Samanta Ele se caracteriza por ter a coluna extremamente reta, ombros
Largo” ou abertos, uma sobrancelha mais alta que a outra e a posição de
Souza repouso da língua na frente dos dentes. Sua voz é colocada na
garganta e fala rápido. É chamado de Gesto Largo porque tem
gestos grandes e desnecessários enquanto fala. Seu apelido, Souza
Duas Vezes, dá-se porque, quando fica nervoso, ele começa a
repetir o que já fez ou falou. Incrivelmente extrovertido, é um
dos personagens mais comunicativos dentre os três; sua profissão
é a advocacia, devido à sua capacidade de oratória. Anda
balançando os braços e pisa com o calcanhar antes de encostar o
resto do pé, também balança um pouco a cabeça enquanto
caminha. Este balançar de cabeça dá-se porque ele tem a mania
de falar muito e falar sozinho.
2 – Doutor Inspirada no bicho Este é um dos personagens em que me sinto mais confortável.
preguiça Suas características físicas são: ombros caídos pra frente, peito
pra dentro acentuando assim uma corcunda, pernas um tanto
abertas para melhorar a base, uma máscara que tem os olhos
semicerrados e um sorriso “abestalhado”. Os braços ficam
largados ao longo do corpo. Pelo fato de ter sido inspirado no
bicho preguiça o ritmo deste personagem é bem lento, uma ou
duas velocidades abaixo dos demais. Sua voz é relativamente
baixa e muito arrastada, demora pra completar o pensamento na
voz.
3 – Seu Loro Inspirada na figura de Caracteriza-se por: tronco inclinado pra frente, pés que, em
Pantaleone posição de repouso, geralmente ficam cruzados. Ele pisa com as
pontas dos pés primeiro, o queixo é levemente inclinado pra
cima, a máscara é a de um senhor de mau humor, as mãos
geralmente ficam cruzadas nas costas. Seus gestos geralmente são
retilíneos, ou seja, dificilmente faz gestos redondos. Sua voz é
como se fosse um escarro, vindo também da garganta.
184
Jociel Carvalho
Nome da Fonte geradora Composição
matriz
1 – Bruninha Imitação da Fábia Tipo físico: tem sempre os braços abertos, está sempre apoiado
“Uau-Uau”! em uma das pernas, mordendo os lábios.
2 – Não Inspirada em um gorila Tipo físico: tem ombros pra baixo, é cambota, tem uma cara
definido meio fechada, braços pra baixo, sempre.
Voz: uma voz bem grave.
Profissão: ele é uma pipa ambulante, seria uma inspiração
desses homens que trabalham no interior sempre
carregando águas nas costas, acho que por isso o personagem
deveria ser mais sertanejo.
3 – Enoque Inspirada na figura de Tipo físico: tem ombros projetados para frente, assim como a
Pantaleone cabeça que fica com uma inclinação para cima, para sempre
observar bem; a projeção começa da cintura e é usada também
com o tronco todo pra frente.
Voz: é meio grave, mas com a tentativa de usar um pouco de
agudo, estou tentando conseguir ainda.
185
Deninha Carvalho
Nome da Fonte geradora Composição
Matriz
1 – Maria Inspirada na Rafaele Características físicas principais: coluna arqueada para frente,
Foguinho cabeça sempre erguida, dando sempre bruscas “rabissacas”. O
rosto está, às vezes, meio desolado (a angústia de suas
incertezas), às vezes com a expressão de quem acabou de ter uma
grande idéia (aspecto de sua criatividade e impulsividade).
Voz: mais ou menos aguda e esganiçada.
2 – Faro Firo Inspirada num gato Característica física: corcunda, mãos caídas na altura do peito,
movimentos com a cabeça para os lados, rápidos e bruscos. Seus
olhos e boca acompanham o movimento da cabeça, só que para
lados opostos. Ex.: enquanto a cabeça vai para a direita os olhos
sobem na direção da esquerda e assim por diante.
3 – Esparrela Inspirada na figura de Características físicas: as pernas são duras e arqueadas, os braços
Arlechino são esticados, sempre fazendo movimentos diversos. Para cima,
para os lados, para frente e movimentos opostos. Sua expressão
facial é alegre, ele faz cara de pensativo e sempre está com um
sorriso maroto.
Voz: o sotaque é meio do interior, vocabulário antiquário, o
timbre é meio grosso e alto, ele fala esticando as palavras.
186
Fábia Guedes
Nome da Fonte geradora Composição
Matriz
1 – Damião Inspirada no Henrique Ombros caídos; ventre para frente; lábio inferior para frente;
Ferreira da Silva sobrancelhas caídas.
2 – Zezinho, Inspirada no papagaio Coluna encurvada para frente; braços sempre em posição de asa;
conhecido como mãos fechadas, segurando o polegar; boca em forma de bico; 7
pestinha anos.
3 – Putisgrila Inspirado na figura de Coluna e ventres proeminentes, boca em forma de bico, quando
Pulcinella está fechada, os dentes superiores mordem os lábios inferiores.
187
Elvis Jordan
Nome da Fonte geradora Composição
Matriz
1 – Nino Foi gerada por impulso, Rosto: olhos arregalados, olhando sempre para cima e para o
a partir de um estímulo: público. Boca de Dúvida (“bico”).
criar um corpo cômico. Postura: eixos da cabeça e do tronco eretos, ombro direito com
inclinação para frente, com eixo do pulso para baixo, ombro
esquerdo com inclinação para trás, com eixo do pulso para cima;
movimentos ondulatórios de alternância entre os braços para
frente e para trás. Pernas com rotatória para fora, joelhos
flexionados, movimento de rotatória do eixo dos calcanhares
para fora.
Voz: anasalada (como se estivesse gripado).
2 – Nirvana Inspirada no bicho Rosto: sério, sempre. Olhos de medo e desconfiança, olhando
Preguiça para os lados, tendo como fim sempre o olhar para baixo.
Postura: eixo da cabeça com inclinação para frente, parte superior
sempre em postura de retração, braços cruzados na frente do
tronco, membros inferiores com rotatória para dentro e com os
joelhos flexionados.
Voz: nasal
Chirliane Alves
Nome da Fonte geradora Composição
matriz
1 – Ana Rosa Inspirada na Jeniffer Corpo: Coluna inclinada para frente, mãos postas na cintura,
joelhos flexionados, pescoço inclinado para frente. Caminha
descompassadamente.
Voz: aguda, pronuncia as palavras de forma bem aberta.
2 – Bibi Inspirada num Pintinho Frágil e delicado, meio atrapalhado, produz o som (bi, bi, bi), boca
com forma de bico, mãos fechadas e bem próximas das coxas, com
ombros levemente levantados e inclinação frontal de todo o tórax,
de acordo com o eixo da cintura; pés separados e voltados para fora
do corpo, dedos dos pés também afastados uns dos outros; olhos
bem abertos, cabeça pra frente; e anda dando pulinhos. Mãos juntas
ao corpo.
3 – Astuto Inspirada na figura de Astuto e libidinoso, máscara inspirada no cão e no gato, tórax com
Briguella inclinação frontal, andar firme e observador, olhos sempre em
busca de algo, malicioso ao falar, voz de homem forte com o som
saindo do peito, os pés com posição voltada para fora do corpo,
barriga para dentro, profissão relacionada com alguma atividade
imperial, roupa bem pomposa, com ar de autoridade.
189
Larissa Montenegro
Nome da Fonte geradora Composição
matriz
1 – Enói Mulher Inspirada em uma tia Pés para fora, quadris para trás, peito para frente. Mão direita fica
com a palma para baixo, voltada ao chão, que mexe de acordo com
o caminhar, que é o mais rebolado possível, mas rebola na altura do
tórax. Máscara facial: sobrancelha esquerda levantada e boca
esboçando um sorriso para o lado direito. Voz fina e nasalada.
2 – Cabocra Imitação de uma cobra Corpo todo fechado, ombros puxados para cima, escondendo o
pescoço. Cabeça levemente inclinada para baixo, deixando um
olhar rente, 'atravessado', meio misterioso. Caminhar meio
oitavado, começando o movimento pelas pernas e se estendendo
até a cabeça. Máscara facial: bochechas “chupadas”, olhar cansado.
Voz grossa, prolongada.
3 – Suvinista Inspirada na figura de Pernas retas, tendo, à direita, leve inclinação lateral fora.
Berlin Pantaleone. Corcunda, fechado. Mãos quase sempre cruzadas na altura da
barriga, como se fosse um tique do personagem, como se bolasse
um plano. Mãos quase sempre fechadas, devido à avareza. Máscara
facial: queixo para frente, sobrancelhas franzidas, olhar maligno.
Voz “escura”, grave, como se a garganta estivesse fechada.
190
Elaine Cristina
Nome da Fonte geradora Composição
Matriz
1 –Aerovaldo Inspirada na Jeniffer Anda jogando as pernas, joelhos levemente flexionados, tronco
formando uma espécie de C. Sombracelhas erguidas e olhar baixo.
Braços largados, cabeça levemente para frente.
Voz grave.
2 – Princesa Inspirada em um Pés em meia ponta, nariz empinado, quadril levemente para trás,
passarinho mãos sempre flexionadas.
3 – Sem nome Inspirada na figura do Tem uma pequena corcunda. Anda com passos pequenos. O lábio
Pulcinella inferior é “para dentro”. Mãos juntas com indicadores sempre
fazendo círculos. Voz “fanha”, ou seja, ressonância pelo nariz.
191
Jeniffer Suzana
2 – Leonel Inspirada no Leão Boca mostrando todos os dentes trincados, abre de vez em quando,
deixando cair a mandíbula, mãos tencionadas formando garras com
os dedos separados, que ficam em sincronia oposta à dos quadris.
Corpo no plano médio, coluna com lordose. Voz articulada, com
sotaque português.
3 – Vovó Inspirada na figura de Corcunda, barriga para frente, bunda para dentro. Boca oval
Puccinella horizontalmente, como que sem dentadura, olhos piscando
devagar. Voz sussurrante, puxada do diafragma, assobiada.