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CAMPINAS
2014
i
ii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
CAMPINAS
2014
iii
iv
BANCA EXAMINADORA
v
vi
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
vii
viii
ABSTRACT
KEY WORDS:
ix
x
SUMÁRIO
xi
ANEXO I: REGISTRO AUDIOVISUAL RELATIVO AO FRAGMENTO DO PROCESSO DESENVOLVIDO NA DISCIPLINA
ARTES CORPORAIS DO ORIENTE I (PED/2013) SOB SUPERVISÃO DA PROFª DRª DANIELA GATTI. TRECHOS DOS
ESPETÁCULOS DESCRITOS NO CAPÍTULO QUATRO: “FIM DE JOGO”, “CONTOS E CANTOS DA ÍNDIA” E “ORÈ YÈYÈ
O, OXUM TARANGAM”. .......................................................................................................................................... 209
xii
À todos aqueles que, com seu amor e apoio, adoçam minha vida
emprestando significado e beleza à jornada.
xiii
xiv
Dias atrás ao saudar o nascer do sol,
atirei para o espaço um pensamento.
Ainda o avistei voejando nas alturas.
Então resolvi trazê-lo de volta
e fixá-lo para sempre no papel.
Indaguei o espaço e o fiquei chamando,
certo de capturá-lo em pleno voo.
Mas logo percebi que pensamento capturado
não é mais pensamento.
O que aqui lhe envio é apenas a sombra
de meu pensamento ao nascer do sol.
xv
xvi
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 - VISTA NOTURNA DE UM DOS PÓRTICOS DE ENTRADA DO TEMPLO DE CHIDAMBARAM, TAMIL NADU,
ÍNDIA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ...................................................................................................... 7
FIGURA 2 - ENCENAÇÃO DE KATHAKALI DA HISTÓRIA TRADICIONAL SANTANA GOPALA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL.
....................................................................................................................................................... 13
FIGURA 3 - SRINGARA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. .......................................................................... 24
FIGURA 4 - HASYA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL................................................................................. 25
FIGURA 5 - KARUNA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ............................................................................. 25
FIGURA 6 - RAUDRA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ............................................................................. 26
FIGURA 7 - VEERA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL................................................................................. 26
FIGURA 8 - BHAYANAKA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL......................................................................... 27
FIGURA 9 - BIBHATSA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ........................................................................... 27
FIGURA 10 - ADBHUTA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ......................................................................... 28
FIGURA 11 - VISTA DO TEMPLO BAIHAI, NEW DELHI, ÍNDIA. ........................................................................ 30
FIGURA 12 - DARPANA, REPRESENTAÇÃO ESCULTURAL DE FIGURA FEMININA COM ESPELHO. FONTE: ARQUIVO
PESSOAL. ........................................................................................................................................ 39
FIGURA 13 - BAILARINA PASSANDO ALTA NOS PÉS, PRONTA PARA APRESENTAÇÃO. FONTE: ARQUIVO PESSOAL.46
FIGURA 14 - IMAGEM TRADICIONAL DO DEUS SHIVA NATARAJA, DINASTIA CHOLA, SEC. III-IV A XII. ............. 47
FIGURAS 15, 16 E 17 - EXEMPLOS DE MOVIMENTOS CORPORAIS QUE FORMAM OS ADAVUS NO ESTILO
BHARATANATYAM. ........................................................................................................................... 49
FIGURAS 18, 19, 20 E 21 - ALGUNS DOS DESENHOS QUE REPRODUZEM AS ESCULTURAS DO 108 KARANAS. MUSEU
DO TEMPLO DE THANJAVUR, TAMIL NADU, ÍNDIA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ..................................... 53
FIGURA 22 - EXEMPLO DE MAQUIAGEM E ORNAMENTAÇÃO TRADICIONAL DO ESTILO BHARATANATYAM. FONTE:
ARQUIVO PESSOAL. .......................................................................................................................... 65
FIGURA 23 - EXEMPLO DE EXERCÍCIO RESPIRATÓRIO INICIAL. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ........................... 74
FIGURAS 24 E 25 - EXEMPLOS DE TREINAMENTO PARA OS OLHOS EM GRUPO NUM ESTÁGIO INICIAL DE
TREINAMENTO. DESLIZAR DE UM LADO A OUTRO (SACHEE DRUSTI). FONTE: ARQUIVO PESSOAL. .......... 77
FIGURA 26 - EXEMPLO DE TREINAMENTO PARA OS OLHOS, PELO ESPAÇO. PRALOKITA DRUSTI. FONTE: ARQUIVO
PESSOAL. ........................................................................................................................................ 77
FIGURA 27 - ALAPADMA, GESTO DE MÃO DO GRUPO DOS SAMIYUTAS HASTAS. QUANDO EXECUTADO DESTA
FORMA, SIGNIFICA LÓTUS. ................................................................................................................ 79
FIGURA 28 - SAMIYUTA HASTA COMPOSTO POR ALAPADMA E KATHAKAMUKHA HASTAS. A BAILARINA PODE ESTAR
DIZENDO QUE ALGUÉM PARA QUEM ELA OLHA TEM BELOS OLHOS. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ............. 79
FIGURA 29 - ASAMYIUTA HASTAS. FONTE: WWW.ONLINEBHARATANATYAM.IN .............................................. 80
FIGURA 30 - SAMYIUTA HASTAS. FONTE: WWW. RASARANG.ORG ................................................................ 81
FIGURAS 31, 32, 33 E 34 - ADAVUS SENDO EXECUTADOS COM DIFERENTES POSIÇÕES DE BRAÇOS, PERNAS,
TRONCOS E MÃOS. FONTE: ARQUIVO PESSOAL................................................................................... 86
FIGURA 35 - BHAYANAKA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ..................................................................... 90
FIGURA 36 - KARUNA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ........................................................................... 90
FIGURA 37 - BIBHATSA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL.......................................................................... 91
FIGURA 38 - ADBHUTA RASA (SURPRESA). FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ..................................................... 91
FIGURA 39 - HASYA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ............................................................................. 92
FIGURA 40 - RAUDRA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL............................................................................ 92
FIGURA 41 - VEERA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ............................................................................. 93
FIGURA 42 - SRINGARA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ........................................................................ 93
FIGURA 43 - SHANTA RASA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ........................................................................... 94
FIGURAS 44 E 45 - PRATICANTES EXPERIMENTANDO CRIAR GESTOS PARA UM TRECHO DE POEMA. FONTE:
ARQUIVO PESSOAL. ........................................................................................................................ 101
FIGURA 46 – ESQUEMA DESENVOLVIDO POR UM PARTICIPANTE DA DISCIPLINA ARTES CORPORAIS DO ORIENTE I, A
PARTIR DO ESTUDO DE SEU POEMA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL........................................................ 112
FIGURAS 47 E 48 - INTÉRPRETE EXPERIMENTANDO A RELAÇÃO ENTRE GESTO, EXPRESSÃO FACIAL E
MOVIMENTAÇÃO CORPORAL A PARTIR DO POEMA RETRATO DE CECÍLIA MEIRELES. FONTE: ARQUIVO
PESSOAL. ...................................................................................................................................... 113
xvii
FIGURAS 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56 E 57 - INTÉRPRETE EXERCITANDO UNIR OS GESTOS DE MÃO, AS
EXPRESSÕES FACIAIS E OS PRIMEIROS MOVIMENTOS PELO ESPAÇO A PARTIR DO POEMA LEITURA DE ADÉLIA
PRADO. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. ............................................................................................... 116
FIGURA 58 - ALUNO DA DISCIPLINA ARTES CORPORAIS DO ORIENTE I, REALIZANDO IMPROVISAÇÃO A PARTIR DE
POEMA EM ESPAÇO ABERTO. .......................................................................................................... 119
FIGURAS 59, 60 E 61 - ALUNOS DA DISCIPLINA ARTES CORPORAIS DO ORIENTE I, REALIZANDO IMPROVISAÇÃO A
PARTIR DA EXPERIMENTAÇÃO DOS GESTOS DE MÃO. FONTE: ARQUIVO PESSOAL................................ 119
FIGURA 62 - RODA DE CONVERSA COM PARTICIPANTES DO WORKSHOP DE ABHINAYA REALIZADO NO ESPAÇO
CALDEIRÃO. DISCUSSÃO SOBRE A ESCOLHA DOS POEMAS E COMO ABORDÁ-LOS. FONTE: ARQUIVO PESSOAL.
..................................................................................................................................................... 120
FIGURA 63 - PARTICIPANTES DO WORKSHOP DE ABHINAYA NO ESPAÇO CALDEIRÃO CONSTRUINDO VARIAÇÕES
PARA AS LINHAS DO POEMA. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. .................................................................. 120
FIGURAS 64, 65 E 66 - EXEMPLOS DE UMA CONSTRUÇÃO CORPORAL NÃO REALISTA, CAPAZ DE EXPRESSAR A
RIGIDEZ E IMOBILIDADE DOS PERSONAGENS. É POSSÍVEL VER A PROJEÇÃO PARA FRENTE DO EIXO CORPORAL
DO PERSONAGEM CLOV E A EXPRESSIVIDADE DAS MÃOS DO PERSONAGEM HAMM. FONTE: ARQUIVO GRUPO
CALDEIRÃO. .................................................................................................................................. 142
FIGURAS 67, 68 E 69 - EXPRESSÕES FACIAIS ESTILIZADAS. FONTE: ARQUIVO GRUPO CALDEIRÃO. ............ 143
FIGURAS 70 E 71 - PRIMEIROS EXPERIMENTOS DE MAQUIAGEM AINDA MUITO REALISTAS. FONTE: ARQUIVO GRUPO
CALDEIRÃO. .................................................................................................................................. 144
FIGURAS 72 E 73 - MAQUIAGEM CONSTRUÍDA A PARTIR DO JOGO DE LUZ E SOMBRA. FONTE: ARQUIVO GRUPO
CALDEIRÃO. .................................................................................................................................. 145
FIGURA 74 - CENOGRAFIA E VESTIMENTAS: OPÇÃO POR CORES FRIAS, TEXTURAS ÁSPERAS, TECIDOS PESADOS E
SOBREPOSTOS AMPLIANDO SENSAÇÃO DE IMOBILIDADE, RIGIDEZ E DESCONFORTO. FONTE: ARQUIVO GRUPO
CALDEIRÃO. .................................................................................................................................. 145
FIGURA 75 - ENTRADA DO GRUPO EM CENA CANTANDO MARACATU. APRESENTAÇÃO FEITA NA SEDE DO GRUPO
KOOHTU-P-PATTARAI EM 2007. FONTE: ARQUIVO PESSOAL. FOTÓGRAFO: MOHAN DAS VADAKARA.... 148
FIGURAS 76 E 77 - SOLUÇÃO ENCONTRADA PARA REPRESENTAR O PERSONAGEM KRISHNA. PRIMEIRO A TINTA
AZUL E, POSTERIORMENTE, A LUVA. O GESTO MAYURA E A PENA DE PAVÃO COMPLEMENTAM O SIGNIFICADO E
REMETEM AO PERSONAGEM. FONTE: MOHAN DAS VADAKARA E ARQUIVO GRUPO CALDEIRÃO. .......... 151
FIGURAS 78, 79, 80 E 81 - DIFERENTES ATRIZES CONTANDO A MESMA HISTÓRIA. GESTOS CODIFICADOS EM
DIÁLOGO COM GESTOS ESPONTÂNEOS. PRIMEIRO, KRISHNA E A CORDA QUE NÃO SE PRENDE. DEPOIS, A
CONTADORA CONVERSANDO COM A PLATEIA SOBRE O TEMPERAMENTO DE KRISHNA. NA TERCEIRA FOTO, SUA
REPRESENTAÇÃO MAIS TRADICIONAL COM A PENA DE PAVÃO NA CABEÇA E A FLAUTA E, POR ÚLTIMO, A
REPRESENTAÇÃO DOS VIZINHOS ZANGADOS. FONTE: MOHAN DAS VADAKARA E ARQUIVO PESSOAL GRUPO
CALDEIRÃO. .................................................................................................................................. 154
FIGURA 82 - FINAL DO GESTO DE RETORCER QUE CARACTERIZA O TEMPERAMENTO TORPE DO PERSONAGEM
BASMASURA. O GESTO COMEÇA COM AS MÃOS EM ALAPADMA SE RETORCENDO COMO UMA FLOR MURCHA E
SEM VIDA, PARA ENTÃO TERMINAR COMO UM NÓ NO CENTRO DO PEITO. FONTE: ARQUIVO GRUPO CALDEIRÃO.
..................................................................................................................................................... 155
FIGURAS 83 E 84 - REPRESENTAÇÃO DE SHIVA NATARAJA NO CONTO A DANÇA DE MOHINI. FONTE: MOHAN DAS
VADAKARA E ARQUIVO PESSOAL GRUPO CALDEIRÃO. ...................................................................... 157
FIGURAS 85 E 86 - REPRESENTAÇÃO DE MOHINI. FONTE: MOHAN DAS VADAKARA E ARQUIVO PESSOAL GRUPO
CALDEIRÃO. .................................................................................................................................. 158
FIGURAS 87 E 88 - REPRESENTAÇÕES DO DEMÔNIO BASMASURA COM DEDO EM RISTE PROCURANDO SUA
PRIMEIRA VÍTIMA. FONTE: MOHAN DAS VADAKARA E ARQUIVO PESSOAL GRUPO CALDEIRÃO. ........... 158
FIGURAS 89, 90, 91 E 92 - HIRANYAKASHIPU, O MENINO PRAHALADA, O DEUS NARAYANA COMO NARASIMHA E
LILAVATHI, A MÃE DE PRAHRALADA. FONTE: ARQUIVO GRUPO CALDEIRÃO. ....................................... 160
FIGURAS 93 E 94 - EXECUÇÃO DO TARANGAM SOBRE UM PRATO DE LATÃO E COM UM POTE DE ÁGUA NA CABEÇA.
FONTE: ARQUIVO NÚCLEO PREMA. ................................................................................................. 166
FIGURAS 95 E 96 - ENSAIO DE TALA E MÚSICA COM MINHA GURU MAYA VINAYAN. FONTE: ARQUIVO NÚCLEO
PREMA. ......................................................................................................................................... 167
FIGURAS 97, 98 E 99 - ENSAIO DE TALA E MÚSICA COM MINHA GURU MAYA VINAYAN E O MÚSICO PERCUSSIONISTA
K.S. KUMAR. FONTE: ARQUIVO NÚCLEO PREMA. ............................................................................. 169
FIGURAS 100 E 101 - GRAVAÇÃO DA MÚSICA EM ESTÚDIO COM OS MÚSICOS. FONTE: ARQUIVO NÚCLEO PREMA.
..................................................................................................................................................... 171
xviii
FIGURAS 102 E 103 - ENSAIO GERAL E CONVERSA SOBRE O ESPETÁCULO COM OS RENOMADOS GURUS V.
P.DHANANJAYAN E SHANTA DHANANJAYAN. FONTE: ARQUIVO NÚCLEO PREMA. ............................... 174
FIGURAS 104, 105, 106, 107 E 108 - LOCAL DA ESTREIA NA ÍNDIA – CHANDRALEKHA´S SPACE. FONTE: ARQUIVO
NÚCLEO PREMA............................................................................................................................. 176
FIGURA 109 - CARTAZ DE DIVULGAÇÃO DA ESTREIA. FONTE: ARQUIVO NÚCLEO PREMA............................. 177
FIGURAS 110, 111 E 112 - FOTOS DA ESTREIA NO BRASIL. FONTE: ARQUIVO NÚCLEO PREMA. .................. 179
FIGURAS 113, 114, 115, 116 E 117 - APRESENTAÇÃO DO ESPETÁCULO NUM TERREIRO EM ITAPECERICA DA
SERRA/SP. FONTE: ARQUIVO NÚCLEO PREMA. ............................................................................... 182
FIGURAS 118 E 119 - GURU SRIMATHI MAYA VINAYAN DA TRIVENI SCHOOL OF CLASSICAL DANCES, CHENNAI,
TAMIL NADU. EXPOENTE DE BHARATANATYAM, KUCHIPUDI E MOHINIYATTAM. FOTOS: ARQUIVO PESSOAL.129
FIGURAS 120 E 121 - SUCHI HASTA PARA APONTAR A LUA E ARTHACHANDRA HASTA PARA REPRESENTAR A LUA.
FOTO: ARQUIVO PESSOAL. .............................................................................................................. 195
xix
xx
ÍNDICE DE TABELAS
xxi
xxii
INTRODUÇÃO
Na Índia, a mesma palavra é usada para descrever tanto o teatro quanto a dança,
não sendo possível separá-los totalmente, ainda que cada manifestação artística os
agregue em proporções diferentes. Para ajudar os artistas na classificação de sua arte,
a cultura clássica hindu desenvolveu uma terminologia própria, que norteia e unifica as
diversas correntes artísticas por todo o território. São elas: Natya (teatro); Nritta (dança
pura) e Nrittya (dança dramática).
As danças clássicas indianas absorveram tanto o conceito de Nritta quanto de
Nrittya e se espalharam por toda a Índia, criando diferentes “sabores” para o prato
nacional, temperado em cada região de acordo com o gosto das pessoas que lá viviam.
Assim nasceram o Bharatanatyam, o Kuchipudi, o Mohiniyattam, o Odissi, o Kathak, o
Manipuri, o Sattrya e o Kathakali.
A linhagem das danças dramáticas na Índia é tão variada quanto complexa e
envolve uma série de preceitos e regras de criação que justificam tamanha riqueza e
pluralidade. Cada estilo citado é um universo expressivo a ser verticalizado, com muitas
nuances, similaridades e discrepâncias. O que é comum a todos os estilos é o conceito
de Abhinaya, identificado como o ato de representar, levar adiante uma ideia, que
permeia a formação dos atores-bailarinos e direciona seus processos de criação de
modo detalhado e preciso. O Abhinaya é, portanto, o conceito e a técnica de
representação que sustenta a tradição das danças dramáticas na Índia.
O impulso inicial desta pesquisa nasce da imensa paixão que tenho pela cultura
indiana em toda sua complexidade e extensão e pela influência que ela exerceu
principalmente na formação da atriz e bailarina que sou. Acredito que essa experiência
possa ser compartilhada com outros artistas em favor do enriquecimento de seus
processos de treinamento e produção artística, sem a pretensão de criar modelos ou
manuais de exercícios que possam ser seguidos. O que interessa é despertar a
atenção para as possibilidades expressivas inerentes à técnica apresentada, deixando
ao leitor cuidadoso a responsabilidade de transpô-la ao seu universo corporal, poético,
imagético, sensível e expressivo.
1
Entendo por corpo narrativo a capacidade do artista de comunicar-se utilizando
todas as suas faculdades físicas, mentais e emocionais na construção de uma cena
dramática, com ou sem o uso de palavras. Por isso, acredito que o Abhinaya possa
interessar igualmente a bailarinos e atores e, mais especialmente, àqueles que
transitam entre esses dois universos na busca de uma reaproximação entre essas
esferas de criação.
Não é de hoje que o Oriente exerce grande fascínio sobre os artistas ocidentais.
No entanto, por muito tempo suas formas artísticas, principalmente as dramáticas,
foram vistas como manifestações excêntricas, exóticas ou simplesmente estranhas
demais para os padrões ocidentais1.
Para se compreender as formas artísticas tradicionais do Oriente é necessário
antes compreender seus rígidos, complexos e codificados padrões estéticos,
fundamentados em tradições milenares que ultrapassam o próprio objeto artístico,
criando formas de arte extremamente refinadas e construídas sob anos de dedicação e
disciplina física, mental e espiritual. Acredito que é somente por meio dessa percepção,
que se pode fazer uso real de seus conhecimentos em favor dos treinamentos e
espetáculos no campo das artes cênicas.
Nesta dissertação, estuda-se o conceito e a técnica do Abhinaya, investigando
suas possíveis contribuições para a formação, treinamento e produção de espetáculos
dos artistas da cena contemporâneos, quando transposto para fora de seu contexto
original, somando-se a outras referências e repertórios.
Abhi da raiz sânscrita quer dizer ‘adiante’ e nii quer dizer ‘guiar, levar’, ou seja,
‘levar a audiência a experiência estética que Rasa propicia’ e é dividido em quatro
grupos que abrangem todo o processo de criação cênica: Angika (significado obtido por
meio dos movimentos corporais), Vachika (significado obtido por meio da palavra),
Aharya (significado obtido pelos elementos complementares à atuação, como
vestimentas, maquiagem, cenografia e adereços) e Sattvika (significado obtido por meio
da percepção e ampliação dos estados mentais e sentimentos). Cada grupo envolve
uma série de ações, procedimentos, regras que, compreendidas e aplicadas, se
1Ver a este respeito em: SAID, 2007. O texto analisa de forma crítica e pertinente a visão ocidental do
mundo oriental e suas distorções.
2
encarregarão de trazer à superfície da encenação a riqueza interior dos artistas e dos
personagens que eles representam.
Abhinaya é a arte da revelação por meio da sugestão. Nesse processo, o ator-
bailarino conta uma história, alternando momentos de atuação e narração, num jogo
dialético e dinâmico, que exigirá muito de suas faculdades. Parte do segredo dessa
técnica consiste em compreender exatamente o que deve ser mostrado, o que deve ser
apenas sugerido e o que deve permanecer no campo do mistério, para que o próprio
espectador o desvende com sua luz. Do ponto de vista técnico, o Abhinaya demanda
muitos anos de estudo e experimentação porque necessita não só do domínio corporal,
mas de um profundo conhecimento da natureza interior do artista, bem como de sua
humanidade.
Nós, artistas da cena, estamos sempre interessados em novas técnicas que
possam auxiliar em nossos treinamentos e processos de criação. Infelizmente, não
dispomos no Brasil de escolas e centros de formação e pesquisa em número suficiente
para suprir tal demanda, o que torna nosso processo de formação descontínuo e, por
vezes, deficitário e supérfluo.
Em contrapartida, no Oriente como um todo, mas especialmente na Índia, escolas
e centros de formação e pesquisa estão por toda parte, nas mais diferentes
especialidades do fazer artístico. Portanto, é comum que um artista passe muitos anos,
as vezes toda uma vida, dentro desses espaços de ensino, aperfeiçoando sua arte sob
a tutela de um mestre experiente até que ele próprio venha a se tornar mestre.
E é exatamente esse processo de formação contínuo, teórico-prático, que permite
o surgimento de uma base de criação orgânica, absoluta e bem testada (BARBA, 1995,
p. 8), servindo de apoio e orientação para os artistas e lhes dando liberdade e
segurança para executar suas funções de forma consciente, controlada e clara.
É recorrente o interesse de artistas de todo o mundo em estudar as possíveis
contribuições que as formas de arte e treinamento orientais podem fornecer aos artistas
ocidentais e o que pode nascer desse encontro que seja novo e significativo para
ambos. Nomes como E. Barba, P. Brook, B. Brecht, A. Artaud, J. Grotowski, entre
3
tantos outros que, em algum momento de suas pesquisas, se voltaram para as formas
artísticas do Oriente, oferecem referências substancias ao meu trabalho artístico.
A pesquisa realizada para esta dissertação foi gestada em anos de experiência
pessoal com a técnica do Abhinaya, atuando como atriz, preparadora corporal, bailarina
e professora de danças clássicas indianas. Desde o ano 2000, venho desenvolvendo
sistematicamente junto aos atores-bailarinos do Grupo Caldeirão, com o qual trabalho
há vinte anos, uma linha de pesquisa corporal baseada em tais princípios. Os
resultados dessas ações podem ser vistos nos espetáculos produzidos pela companhia
entre 2000 e 2011 e são exemplos concretos de como a técnica do Abhinaya pode ser
assimilada e utilizada por artistas ocidentais, fora de seu contexto original.
Os espetáculos nos quais a técnica foi empregada pela companhia são: Fim de
Jogo, de Samuel Beckett (2001); Histórias que o mundo conta (2002); Contos e Cantos
da Índia (2007) e Lorca em Ouro e Prata (2007-2011). Em dois deles, a técnica foi
utilizada apenas no processo de preparação do elenco e, em outros dois, a técnica foi
empregada diretamente na cena.
Em 2007, criei junto ao Grupo Caldeirão o Núcleo Prema, voltado para pesquisa e
intercâmbio entre as culturas brasileira e indiana. Esse núcleo de investigação prática e
teórica oferece uma série de atividades aos interessados que vão de vivências curtas e
cursos permanentes a palestras e apresentações.
Em 2013, com suporte do Ministério da Cultura do Brasil, viajei para a Índia, onde
pude aprofundar meus estudos sobre o tema desta pesquisa e produzir o espetáculo de
dança Orè Yèyè O, Oxum Taragam, cuja proposta consiste no diálogo entre a técnica
da dança clássica indiana e a cultura afro-brasileira, em especial, os mitos de Oxum.
Trata-se de uma proposta ainda inédita no Brasil e que aponta para um dos
desdobramentos práticos possíveis desta pesquisa no campo da dança.
As atividades desenvolvidas na Índia junto à Triveni School Of Classical Dances,
que deram origem ao espetáculo, constituem material fundante para a escrita desta
dissertação, visto que contextualizam, exemplificam e validam a aplicabilidade da
técnica do Abhinaya na formação dos artistas da cena e na produção de espetáculos.
4
Ainda em 2013, sob a orientação da Profª Drª Daniela Gatti, ministrei a disciplina
Artes Corporais do Oriente I para os alunos de graduação em dança da Unicamp, como
bolsista do Programa de Estágio Docente. Essa experiência também foi de grande valia
para a organização da escrita desta dissertação, oferecendo subsídios concretos para
validar a aplicabilidade da técnica com outros artistas que não tenham,
necessariamente, formação prévia em nenhuma modalidade de dança clássica indiana.
Esta dissertação inclui uma ampla fundamentação teórica em seus dois primeiros
capítulos para que todos tenham acesso ao arcabouço conceitual que estrutura as
diversas manifestações cênicas indianas. A maior parte destes conteúdos não pode ser
encontrada em língua portuguesa, daí a opção rigorosa por manter as nomenclaturas
originais em sânscrito e não me limitar à exposição superficial dos conceitos. A
relevância dos conteúdos e a ínfima bibliografia em português, sem dúvida, justificarão
as possíveis dificuldades encontradas diante de tantos termos estrangeiros. Pensando
no leitor, um glossário foi criado com a função de minimizar essas dificuldades e fazer
fluir a leitura.
Todo esse manancial de informação, no entanto, precisa ser encarado como um
guia de referência que estabelece diretrizes e dá suporte ao desenvolvimento de
práticas muito diversas no universo das próprias danças dramáticas e dos diferentes
tipos de teatro tradicional.
Seria uma redução tentar encontrar, em suas linhas, parâmetros definitivos, que
acabariam por nivelar todas essas manifestações culturais a um único modelo
esquemático de treinamento e representação. É certo que há muitos elementos
conceituais, técnicos, didáticos e metodológicos comuns nas tradições dramáticas
indianas que, no entanto, levam a resultantes estéticas bastante variadas, o que nos
leva a crer que há algo na abordagem desse material extremamente subjetivo e
intimamente ligado à região onde determinada forma de arte dramática nasce, suas
características geográficas, climáticas, religiosas, linguísticas etc.
Aos capítulos teóricos, seguem-se dois capítulos em que discorro sobre minhas
experiências com a técnica ao longo dos últimos quinze anos, atuando como atriz,
bailarina ou preparadora corporal, seja nos processos de treinamento ou na criação de
5
espetáculos. A função destes capítulos é oferecer exemplos que auxiliem na
compreensão dos conceitos apresentados anteriormente, de modo a esclarecer como a
teoria fundamenta a prática, seja na aplicação tradicional da técnica ou em releituras.
Aproveito também para discorrer sobre o Guru Shishya Parampara, a relação
mestre-discípulo que é o sustentáculo de toda tradição dramática na Índia e esteio
desta pesquisa.
A tradição, corporificada na relação mestre-discípulo, é apresentada não como
uma doutrina rígida e imutável, mas como um organismo vivo, em constante
transformação, a partir de parâmetros muito precisos. Não há nisso nenhum paradoxo
ou mistério. Quando as bases de criação estão devidamente absorvidas e
incorporadas, quando o intérprete não está mais preocupado em saber onde está o seu
pé e o que fazer com suas mãos, então ele estará livre para saborear a experiência
artística em sua completude, num nível mais profundo, se quisermos, espiritual.
O rigor formal e ético proposto pelo Guru Shishya Parampara não é encarado
como limitação ao gênio criativo do intérprete, mas como veículo ou, se preferirmos,
caminho para o desenvolvimento de uma forma de expressão verdadeiramente genuína
e comprometida com os valores éticos que sustentam a tradição.
Nas considerações finais, procuro refletir sobre o estágio de desenvolvimento da
pesquisa até este momento, os apontamentos futuros e seus desdobramentos.
Aproveito também para traçar paralelos entre as experiências orientais de transmissão
de conhecimento e as experiências ocidentais, no campo da pedagogia teatral, como
um vislumbre de algo que possamos chamar de Tradição no Ocidente.
6
CAPÍTULO 1 – NATYASASTRA: A CIÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO E
DO GESTO
Figura 1 - Vista noturna de um dos pórticos de entrada do templo de Chidambaram, Tamil Nadu, Índia. Fonte:
arquivo pessoal.
Após a Idade do Ouro e a Idade da Prata, veio a Idade do Cobre, quando os seres
humanos tornaram-se vítimas da luxúria e da mesquinharia, engajados em rituais
grotescos, oprimidos pelo ciúme e pela desilusão, experimentando igualmente a
felicidade e a miséria.
Nesse tempo, todas as deidades estabelecidas solicitaram ao grande Deus
Brahma a criação de um passatempo que fosse ao mesmo tempo visível, audível e
acessível a todo tipo de audiência. Uma forma de entretenimento que pudesse educar e
civilizar as classes mais baixas, pois, ao serem excluídas de todo conhecimento e
sabedoria, tornavam-se violentas e agressivas. Neste tempo, a sabedoria dos Vedas3
não era acessível a todas as castas, especialmente as mais baixas.
2 Narrativa livremente adaptada pela autora a partir do primeiro capítulo da obra Natyasastra, The Origin
of Drama (BHARATAMUNI, 1986).
3 Os Vedas são as quatro escrituras sagradas hindus. Nelas estão descritos os complexos e elaborados
rituais védicos, centrados na adoração dos elementos naturais e personificados na figura de deuses, tais
quais: Indra (Deus dos Céus), Vaiyu (Deus das Águas), Varuna (Deus dos Ventos) e Agni (Deus do
Fogo). Nos quatro Vedas: Rig, Yajur, Sama e Atharva, estão contidos todos os conhecimentos filosóficos
e espirituais que conduzem ao processo de autorrealização (ZIMMER, 1986).
7
Brahma concordou com o pedido e, a partir de informações recolhidas dos quatro
Vedas (Rig, Atharva, Sama e Yajur), criou um quinto Veda ao qual chamou Natyaveda.
Brahma disse:
– Esse Veda deverá conduzir aos princípios da Verdade e da Virtude, da
Prosperidade e do Sucesso. Deverá conter princípios didáticos e servir de guia para as
atividades humanas e suas futuras gerações, demonstrando as várias modalidades
teatrais e artesanais. Do Rigveda extrairei o discurso; do Samaveda a música; do
Yajurveda a ciência do gesto e da atuação (Abhinaya); e do Atharvaveda, os
sentimentos (Rasas).
Então Brahma chamou Bharatamuni e pediu que esse conhecimento fosse
transmitido a seres de alma nobre e elevada, que fossem capazes, perspicazes,
maduros e infatigáveis. Ouvindo suas palavras, Bharatamuni replicou que os deuses
não estavam aptos a obter tal conhecimento porque eram incapazes de receber, conter
e compreender a amplitude desse tratado e pô-lo em prática. Então Brahma determinou
que o próprio Bharatamuni ficasse responsável por essa tarefa.
Assim, ele aprendeu diretamente de Brahma todo o conhecimento contido no
Natyaveda e o transmitiu aos seus 100 filhos, dando-lhe a correta aplicação. Sua
intenção era ver como os seres humanos podiam ser beneficiados por esse
conhecimento e, assim, cada filho engajou-se na tarefa que lhe parecia mais
interessante.
Bharatamuni concentrou-se nos aspectos principais da encenação teatral: Vrttis
(os estilos dramáticos), Sattvati (a concepção mental), Bharathi (o discurso verbal) e
Arabathi (o discurso corporal). Brahma sugeriu a ele que acrescentasse um quinto
elemento: Kaisiki (charme e graça). E disse: “Para desenvolver Kaisiki necessitamos de
Angaharas (gesticulação suave dos membros); Rasa (sentimento corretamente
aplicado); Bhavas (estados emocionais claros) e Kriya (atividade física)”.
(BHARATAMUNI, 1986, cap. I, vs. 45-46, tradução livre).
Após dizer essas palavras, Brahma concluiu que nenhum homem ou mulher no
mundo estava apto a desenvolver tal ciência e criou uma classe de seres celestiais
capazes de ensinar aos homens tal arte: as Apsaras e os Ghandharvas.
8
Quando tudo estava devidamente compreendido, chegou a ocasião da
performance no grande Festival de Mahendra (a vitória do Deus Indra contra os
demônios). No entanto, no dia da apresentação, os Vighnas (espíritos malignos),
usando seus poderes, fizeram com que os atores se esquecessem de seus textos e
movimentos e ficassem completamente desconfortáveis no palco, gerando grande
sentimento de aflição.
Vendo o sofrimento dos atores e percebendo a situação, Indra aniquilou uma série
de Vighnas, o que só serviu para aumentar a ira desses contra os atores e a encenação
teatral. Não podendo mais suportar aquela situação, Bharatamuni foi até Brahma pedir
uma solução para o problema. Então Brahma disse:
– Chame Visvankarmam (o arquiteto celestial) e diga a ele que construa uma casa
teatral cercada de todos os preceitos védicos para manter afastados os maus espíritos.
Esse teatro deverá ser protegido em todas as suas partes.
Ainda assim, os Vighnas continuavam a perturbar as apresentações. Inquiridos
por Brahma, eles disseram:
– Queremos uma forma de arte na qual nós também estejamos representados,
com a qual possamos nos identificar. Não gostamos dessas histórias falando só sobre
os deuses e os seres celestiais.
Ouvindo tais palavras Brahma determinou:
A arte teatral representará todos os seres presentes em todos os mundos.
Deverá conter referências a sentimentos como piedade, prosperidade, paz,
humor, guerra, matança e cenas eróticas.
Deverá conduzir ao caminho da virtude os que trabalharem duro.
Deverá conduzir aos caminhos do amor e civilizar nossa natureza animal,
encorajando o autocontrole por meio da disciplina, fazendo forte o fraco.
Deverá trazer luz aos pobres de intelecto e engrandecer as almas nobres,
ampliando-lhes a sabedoria.
Esta arte se destinará a todos os seres sem distinção de castas.
9
Deverá conter imitações de ações, de condutas humanas de diferentes tipos e
situações cômicas e trágicas. Nenhum ser deverá se ofender com esse tipo de
imitação porque ela é a base da arte dramática nos sete continentes.
Toda peça deverá conter um agente educacional ampliando os aspectos Bhava,
Kriya e Rasa.
Deverá conduzir as pessoas que padecem de aflições mentais à aquisição de
uma vida longa e plena por meio do aprendizado da conduta correta.
Deverá conter todos os ramos do conhecimento.
O propósito maior da arte é eliminar o sofrimento causado pelos conflitos
próprios da natureza humana.
As pessoas que visitam os teatros não podem ter preconceitos de espécie
alguma. Devem possuir elevado senso estético, estando aptos a absorver os
conhecimentos transmitidos pela performance.
4No original: “No wise utterance, no means to achieve learning, no art or craft and no useful device is
omitted or ignored in it” (BHARATAMUNI, 1986, cap. I, vs 116).
10
Assim como as pessoas versadas em culinária desfrutam do consumo de várias
especiarias que dão sabor aos seus pratos, assim também os homens
desfrutam de Bhava por meio da ciência da gesticulação. Por isso, ela recebe o
nome de Natya Rasa5 (BHARATAMUNI, 1986, cap. 6, vs. 32-33, tradução livre).
Idêntica incerteza envolve seu autor, Bharata. Seria inútil procurar por detrás
desse nome, que sugere relações simbólicas com algumas divindades, uma
individualidade sobre a qual pudéssemos ter um conhecimento histórico.
Bharata não é mais que um sábio mítico a quem os deuses ordenaram que
criasse o teatro (SCHERER, 1996, p. 31).
5 No original: “Just as the people conversant with foodstuffs and consuming articles of food consisting of
various things and many spices enjoy their taste, so as the learned men enjoy the Sthayi Bhavas in
combination with gesticulations of Bhavas, mentally. Hence they are remembered as Natya Rasas”
(BHARATAMUNI, 1986, cap. 6, vs. 32-33).
6 No original: “There are many historians who would like to assert that Bharata himself is a composite
figure; the Natyasastra with its collection of borrowed texts devoted to a multiplicity of different arts and
disciplines, they argue, cannot be the work of an individual. The work is, in their opinion, like many other
ancient Indian texts, a compilation” (LATH, 2007, p. 127).
11
um texto sagrado, o Natyasastra estava acima de questionamentos mundanos. Assim
como os demais Vedas, devia ter seus preceitos obedecidos rigidamente. Esse é o
contexto religioso que assegura o florescimento do Natysastra e o legitima. Natya é um
veículo para a compreensão da verdade. Da experiência estética que ele proporciona,
nasce uma compreensão holística do universo.
O Natyasastra representa para as artes clássicas da Índia, aquilo que a Poética,
de Aristóteles, representa para as artes cênicas ocidentais. Ambos são produtos do
apogeu da cultura de seu tempo e denotam o grau de refinamento cultural, artístico,
estético e ético de suas sociedades. Segundo Bharatamuni:
O teatro que eu inventei é uma imitação das ações e das condutas dos homens.
É rico em emoções variadas, e descreve diferentes situações. As ações dos
homens que ele relata são boas, más ou indiferentes. Ele dá coragem,
divertimento, felicidade e conselhos a todos. (...) Não há máxima sabedoria,
ciência, arte ou ofício, procedimento, ação que não se encontre no teatro. É por
isso que imaginei um teatro em que se reúnam todas as províncias do saber, as
artes e as ações mais variadas. A imitação do mundo é a regra do teatro
(BHARATAMUNI apud SCHERER, 1996, p. 37).
12
Figura 2 - Encenação de Kathakali da história tradicional Santana Gopala. Fonte: arquivo pessoal.
7 No original: “Indian plays are compositions in which rhythm and lyrical elements preponderate, and
action is allotted a minor scope. (…) the highest aesthetic enjoyment is not possible without giving the
greatest possible scope to imagination, and does not insist on realism” (COOMARASWAMY, 2006, p.5).
13
O Natyasastra não propõe um discurso moralizante, embora, em seu bojo, possa
ser altamente instrutivo. Seu objetivo maior é apresentar, sem juízo de valor, os
aspectos atrativos e repulsivos da existência, assumindo o risco de, eventualmente, os
aspectos negativos tornarem-se mais atrativos para a audiência que os aspectos
positivos (como temia Platão).
O teatro clássico hindu, ao contrário do teatro clássico grego, não se destina a
representar homens e ações superiores. Ele se destina a representar a natureza
humana em sua amplitude, apostando no discernimento humano para escolher entre
uma conduta boa ou má e arcar com as consequências de suas escolhas (o que se
relaciona com o conceito hinduísta de Karma).
A audiência reconhece o caráter ficcional de Natya e o ator como instrumento,
veículo ou portador de uma história que será passada adiante. Não há qualquer
intenção de se criar uma ideia de ilusionismo teatral e a forma mais evidente de se
atestar isso é observar os elevados graus de estilização no corpo do ator e nas
soluções cênicas apresentadas. Tudo remete ao caráter supranatural da experiência
cênica. A realidade do palco é uma realidade ampliada e transformada propositalmente.
Portanto, não devemos considerar contraditório o fato de Bharatamuni dizer que “a
imitação de condutas humanas repletas de fervor emocional, representando situações
variadas é o ponto mais importante do drama criado por mim”8 (BHARATAMUNI, 1986,
cap. I, vs.111-112, tradução livre). A imitação a que ele se refere não é uma cópia do
mundo como ele se apresenta, mas sua recriação a partir da experiência teatral,
valendo-se de elementos amplificadores dessa realidade que são, por natureza,
artificiais, codificados e estilizados.
Assim, podemos concluir que para Bharatamuni o teatro deve colocar sobre a vida
uma lupa, que acabará por revelar espectros e nuances que a experiência cotidiana
não alcança, sem, contudo, afastar-se dela a tal ponto que já não seja mais possível
para a audiência encontrar pontos de comunicação entre a experiência estética e suas
próprias experiências. Partindo dessa constatação, torna-se mais fácil compreender o
8 No original: “Imitation of the conduct of the people full of emotional fervour while depicting different
situations is the main item in the type of drama evolved by me” (BHARATAMUNI, 1986, cap. I, vs.111-
112).
14
porquê dos altos graus de estilização e codificação desenvolvidos pelas artes cênicas
hindus.
Seus elementos constitutivos são:
BHARATHI: Discurso Verbal Inclui não apenas o uso das palavras, mas
da música e seus elementos constitutivos
(O Eloquente)
15
partindo da construção do edifício teatral e dos rituais que precedem a encenação, até
chegar aos elementos constitutivos de Natya, com ênfase na descrição de conceitos
filosóficos, estéticos e regras normativas para a criação cênica. Toda forma de arte que
está em perfeita harmonia com as diretrizes expressas pelo Natyasastra é considerada
clássica na Índia.
Após a independência da Índia, em um levante nacionalista, o Natyasastra foi
reconhecido como o principal tratado das artes dramáticas hindus e guia de referência
para o soerguimento das artes clássicas reprimidas ou solapadas durante o período
colonial, como, por exemplo, o Bharatanatyam e o Odissi, tornando-se o responsável
por uma unificação das diversas manifestações artísticas presentes em todo seu
território, dando-lhes um caráter nacional dentro de sua imensa diversidade regional.
Na Índia, existe um número enorme de línguas e dialetos que ajudaram a formar
diferentes concepções de vida, diferentes hábitos, costumes e, portanto, diferentes
concepções estéticas. Isso ajuda a entender porque em um único país existem tantos
estilos de dança e teatro considerados clássicos, ainda que guardem imensas
diferenças estilísticas entre si.
O Natyasastra foi criado não com o propósito de ser um manual a ser reproduzido,
o que sem dúvida resultaria num grande empobrecimento cultural. Ao contrário, foi
criado para ser um guia de criação que, a partir do olhar do artista, pudesse ganhar
novas tintas e contornos e, por isso mesmo, permitisse o florescimento de centenas de
formas artísticas conectadas a conceitos centrais e unificadores: “Natya não nos diz o
que é certo ou errado, mas nos apresenta toda a variedade de padrões de vida
existentes”9 (SHAH, 2007, p. 25, tradução livre).
Ainda hoje, na Índia, um grupo seleto de estudiosos e pesquisadores da Sangeet
Natak Akademi, situada em Nova Déli, dedica-se a investigar formas de dança e teatro
folclóricas em busca de vestígios de elementos clássicos que remetam ao Natyasastra.
Muito recentemente, em 2000, uma forma de dança dramática da região de Assam,
conhecida como Sattriya, criada no século XV, muitos séculos depois da escrita do
Natyasastra, foi considerada clássica, passando a figurar ao lado das outras sete
9No original: “The natya does not tell us what is right and wrong but presents to us the varieties of
patterns of life” (SHAH, 2007, p. 25).
16
danças-dramáticas já reconhecidas: Bharatanatyam, Odissi, Mohiniyattam, Kathakali,
Kuchipudi, Kathak e Manipuri.
O Natyasastra continua a ser um elemento vivo e pulsante dentro da cultura
contemporânea da Índia, na qual a palavra Clássico, mais do que remeter a um período
histórico, se refere a um ethos, um valor de identidade social e cultural e, por
consequência, a um modo de se pensar e produzir arte. Conforme um dos
comentadores dessa obra:
Escreveu centenas de textos comentando o Natyasastra, dentre eles, o mais conhecido é o Abhinav
Bharath, em que aparece pela primeira vez a inclusão do nono Rasa: Shanta (sentimento de plenitude).
12 No original: “Bharata´s scheme... is obviously hostile to drama as an art where action, if not thought
requires in importance and in truth, a dominant role. Bharata´s aesthetic of seeking coherences in the
17
Ainda que a palavra Natya se aplique ao teatro e à dança, fica cada vez mais
evidente que, mesmo em tempos antigos, os estudiosos e pesquisadores já intuíam
diferenças significativas entre ambos.
Atualmente é fácil perceber essa distinção no cenário contemporâneo na Índia.
Basta observar como as danças clássicas estão caminhando cada vez mais para a
abstração e o virtuosismo corporal, enquanto o teatro reivindica para si o domínio da
palavra e da narrativa (ação).
A influência inglesa, seja do ponto de vista estético ou linguístico, também aparece
como elemento importante para se compreender os rumos do teatro na Índia. Ressalta-
se o crescente interesse por espetáculos produzidos em língua inglesa, em formatos
não característicos da cultura hindu, como, por exemplo, as pantomimas de Natal; em
detrimento dos espetáculos produzidos nas línguas locais, de autores locais e
baseados em questões e inquietações que lhes são próprias.
O processo de achatamento cultural, efeito colateral do processo mundial de
globalização, é hoje o principal obstáculo ao ethos teatral proposto pelo Natyasastra.
Enquanto as formas tradicionais de teatro vão perdendo gradativamente espaço e
interesse por parte do público, estéticas importadas passam a figurar como a faceta
contemporânea da produção teatral na Índia.
O que se vê é um projeto de teatro ainda disforme, anacrônico e elitizado, sem a
coesão e inserção social observáveis nas formas tradicionais. Creio que o impacto
causado à prática teatral pelo afastamento gradativo da tradição e o abandono das
línguas locais em favor da língua inglesa ainda não podem ser mensurados. É certo
que existem outras correntes artísticas engajadas em refletir sobre tradição e
contemporaneidade de modo mais colaborativo, valorizando os aspectos próprios da
cultura hindu frente às informações que chegam, de modo cada vez mais assolapador,
do Ocidente.
world of felling and emotions could form a meaningful model for arts such as music, dance or poetry,
which are not really about human action. But drama cannot be drama with the role of action reduced to a
subsidiary position” (SHARMA, 1996, p. 16).
18
De que modo os pressupostos contidos no Natyasastra ainda serão úteis a essa
nova geração de artistas e de público não é possível prever. Entretanto, dada a
habilidade histórica de seu povo em assimilar influências sem jamais descaracterizar-
se, pode-se apostar em um futuro promissor a longo prazo.
A dança clássica, por outro lado, é ainda bastante fiel aos preceitos do
Natyasastra no que concerne aos seus treinamentos e aos seus espetáculos.
Propostas contemporâneas que fujam demais às regras clássicas ainda são vistas com
certa suspeita por mestres e bailarinos conceituados. Talvez isso apenas reforce a
afirmação de Abhinavagupta de que o Natyasastra aplica-se mais diretamente à arte da
dança do que ao teatro e, por isso, na dança clássica, suas diretrizes estão mais
sedimentadas e encontram maior reverberação.
O fato concreto é que, em tempos atuais, a distinção entre ambos torna-se
evidente, como também é evidente a elitização do público que consome estas formas
de arte, em detrimento de uma massa que permanece alheia tanto a um, quanto a
outro. Os desafios para este século são grandiosos, como os são também a própria
cultura tradicional da Índia.
Nos capítulos The Origins of Drama, The Distinction between Sentiment and
Emotional Fervour e Exposition on Bhavas (Emotional Tracts and States) do
Natyasastra estão contidos os conceitos mais relevantes da estética teatral hindu. No
primeiro capítulo, podem ser compreendidos sua origem e propósitos. Nos capítulos
seguintes, entram em questão os conceitos de Rasa (sentimento estético) e Bhava
(estados emocionais), que são o sustentáculo de Natya, conforme idealizado por
Bharatamuni, e que se corporifica por meio do Abhinaya.
No entanto, a tradução desses conceitos em termos apreensíveis, se comparados
à nossa tradição teatral, é algo extremamente complexo e confuso. Ainda que
possamos estabelecer alguns paralelos com a Poética de Aristóteles, de modo geral, os
pontos de distanciamento são muito maiores. Não há nada na cultura teatral ocidental
19
que possa se comparar à teoria estética proposta pelo Natyasastra, embora seus
elementos não sejam, de fato, desconhecidos no Ocidente.
Neste tópico, abordarei os conceitos de Bhava e Rasa e sua relevância para a arte
dramática hindu. O desenvolvimento do conceito de Abhinaya será feito posteriormente.
A primeira pergunta que nos cabe fazer é: o que é Rasa? E, a partir daí, o que se
entende por conhecimento teórico (Vicara), por conhecimento prático (Acara) e por
experiência subjetiva (Jnana)? Segundo muitos estudiosos da arte dramática hindu13,
Rasa é a exata combinação de todos estes elementos. Apenas pela articulação entre
teoria, prática e experiência subjetiva é que a performance teatral pode atingir seus
objetivos ou Purusarthas (os quatro objetivos centrais da existência humana, a saber:
Kama, os prazeres sensuais; Artha, a prosperidade; Dharma, a conduta moral e ética; e
Moksha, a liberação espiritual).
Trata-se, portanto, de um conceito estético que expressa claramente os propósitos
da arte da representação: elemento de depuração do indivíduo e sua coletividade; do
refinamento das energias grosseiras rumo a estágios de existência mais sutis e
elevados. A mesma ideia que podemos reconhecer muitos séculos depois, na proposta
da “arte como veículo” de Jerzy Grotowski e outros encenadores contemporâneos
ocidentais.
20
Assim, fica evidente que o conceito de Rasa não se aplica apenas ao artista, mas
também e fundamentalmente à experiência estética que proporciona ao espectador,
aquele que frui da experiência cênica e é potencialmente transformado por ela. Isso não
quer dizer que o artista também não possa ser tomado pelo sentimento estético que
Rasa propicia. No entanto, segundo a concepção de Bharatamuni, o mais importante é
a competência profissional do artista durante a representação e não seu
comprometimento emocional, que poderia colocar em risco exatamente aquilo que ele,
arduamente, tenta comunicar mediante sua técnica. Essa ideia reforça a concepção de
que a arte é uma atividade artificial, criada com um propósito específico e no qual os
papéis “artista/espectador” estão muito bem definidos.
O papel da audiência na concepção teatral hindu é tão importante que se criou
uma palavra para designá-la: Rasika, aquele que está apto a “saborear” Natya. Isso
exige dele um elevado senso estético e conhecimento intelectual, estudo e refinamento,
sem os quais não é possível atingir as quatro metas principais da experiência humana,
os Purusarthas. Podemos constatar, portanto, que o papel da audiência não é menos
importante do que o papel do artista. O artista está engajado em produzir Rasa e a
audiência em saboreá-lo. Se um dos elos da corrente se rompe, a arte teatral fica
impossibilitada de alcançar seus objetivos.
No entanto, se Rasa se aplica mais diretamente ao espectador, o que dizer do
artista que também é transformado pela experiência cênica? Daí nasce o conceito de
Bhava, ou estados emocionais perenes e/ou transitórios, dos quais trataremos adiante,
e que são a matéria bruta sobre a qual o artista se debruçará durante o processo de
criação.
No que diz respeito ao conhecimento teórico/prático, pode-se dizer que, no
Natyasastra, Bharatamuni menciona a existência de oito Rasas ou padrões de
sentimento. São eles:
21
Sringara - Amor
Veera - Heroísmo
Raudra - Ira
Bhibhatsa- Desgosto
Hasya - Humor
Adbhuta - Maravilhamento
Karuna - Apatia
Bhayanaka - Medo
QUADRO 3 - Rasas segundo Bharatamuni.
22
Veera, e dois notadamente negativos, Raudra e Bhibhatsa. Dentre os secundários,
destacamos Hasya e Adbhuta, que decorrem de Sringara e Veera; e Karuna e
Bhayanaka, que decorrem de Raudra e Bhibhatsa.
Ou seja, dos oito Rasas descritos por Bharatamuni, primários e secundários,
chegamos a apenas duas possibilidades da experiência humana: as favoráveis e as
desfavoráveis. Cada Rasa foca em um aspecto da experiência humana, seja ela bem
ou mal sucedida, porque é um dos objetivos centrais de Natya representar toda gama
de padrões comportamentais; mas, em síntese, sua proposição é bem clara e direta: ou
uma emoção é positiva ou é negativa, em proporções variáveis.
Contudo, baseados nesta afirmação, não podemos concluir que os Rasas sejam
padrões imutáveis de comportamento. Muito pelo contrário, eles possuem um amplo
espectro de variações, que bem representam os diversos sentimentos humanos e suas
sutilezas. Não é casual o fato de que cada Rasa esteja relacionado a uma cor
específica, como a nos lembrar das inúmeras variações de tonalidade que uma mesma
cor pode ter.
Se aplicarmos essa ideia à encenação teatral e seus efeitos sobre a audiência,
fica evidente que um mesmo Rasa, quando despertado, suscitará um grande número
de sentimentos correlatos, mas não necessariamente idênticos em quem assiste. A isto,
damos o nome de Rasasvadana ou o “sabor” característico de cada Rasa, a
contemplação estética que ele propicia.
Peguemos, por exemplo, a ideia de Sringara, traduzido, de modo simples, por
amor. Amor é uma ideia abstrata que pede contextualização: Que tipo de amor?
Erótico? Filial? Amor à natureza? Amor aos bens materiais (neste caso, representando
aspectos negativos da experiência do amor)? Cada tipo específico de amor leva a
diferentes graus de reconhecimento e identificação por parte da audiência: se a
experiência amorosa é bem sucedida ou não, se encontra reverberação ou não na
história pessoal de quem a vê e etc.
Tudo isso posto, fica claro tratar-se de conceitos bastante amplos que dependem
inteiramente da habilidade do intérprete em criá-los e da sensibilidade do espectador
23
em compreendê-los para concretizarem-se. Aqui voltamos à imagem do elo que une o
ator/dançarino (Nartaka) e o espectador (Rasika).
Posteriormente, Abhinavagupta acrescentou um nono Rasa, chamado Shanta ou
sentimento de plenitude. Santa seria a cessação de todo desejo humano, a plenitude e
a paz que são as metas últimas da existência (Moksha). Assim, nasceu a terminologia
Navarasas para representar os nove (Nava) sentimentos (Rasas) presentes na
humanidade.
Alguns artistas e estudiosos acreditam que a função primordial de Rasa, em todas
as suas variantes, é conduzir o homem à Moksha, à liberação espiritual. Assim, não há
nenhuma necessidade de se haver um nono Rasa com essa função específica. Cabe a
cada linhagem, a cada corrente artística, avaliar se deseja seguir as indicações de
Bharatamuni ou de Abhinavagupta, segundo suas próprias convicções acerca do
assunto, visto não haver uma opinião conclusiva sobre esse ponto.
Segue adiante uma breve descrição de cada um dos oito Rasas, conforme
apresentado no Natyasastra, por Bharatamuni:
24
HASYA: Sentimento de incongruência. O grotesco que gera o
insólito e o insólito que provoca o riso. Pode ser de dois tipos:
Atmastha – quando o personagem ri de si mesmo; Parastha –
quando ri de outros. Há 6 tipos de risos:
25
RAUDRA: Pode ser traduzido por ira.
26
BHAYANAKA: Pode ser traduzido por sentimento terrível, medo.
27
ADBHUTA: Pode ser traduzido por maravilhamento ou
surpresa.
28
Embora difiram em número, oito Rasas para Bharatamuni e nove Rasas para
Abhinavagupta, ambos concordam com a afirmação de que todos eles conduzem a um
único e grande caminho por meio do qual o homem pode alcançar os quatro objetivos
da existência humana ou Purusarthas. Não podemos esquecer que toda forma clássica
de arte na Índia nasceu associada à religião e é, portanto, marcada por um profundo
sentimento religioso. A arte é também uma experiência metafísica e transcendental,
como o Yoga e outras disciplinas espirituais, que visam ao religare da alma individual
(Atman) à alma universal (Paramatman).
14No original: “Both the aesthetic beholder (rasika) and the yogin are freed from an involvement with their
egos. While the rasika reaches this freedom because of the generalized character of aesthetic emotions,
the yogin reaches it by rising above his identification with his body and by unifying with an all pervasive
consciousness. Despite their different paths, the objective of both the yogin and the rasika is the same –
the realization of one´s essential nature in its perennial repose and equanimity” (JHANJI, 2007, p. 97).
29
Assim, o Belo da flor que se reflete nos olhos do público e a alma da flor que
nasce do sentimento do ator, formam o verso e o reverso de uma mesma flor,
que se misturam sutilmente, refletindo a complexidade deste termo (GIROUX,
1991, p. 107, grifos do autor).
Podemos comparar o “Belo da flor que se reflete nos olhos do público” ao Rasa,
e a “alma da flor que nasce do sentimento do ator” ao Bhava. Conceitos
interdependentes que se alimentam mutuamente.
Tanto no Japão como na Índia, vislumbramos uma concepção artística na qual
mente e corpo estão perfeitamente integrados. Essa integração dá ao intérprete as
condições necessárias para criar uma presença cênica e ao espectador as condições
para viver a experiência estética em sua plenitude.
Segundo Ananda Coomaraswamy, nos ensaios The Hindu View of Art e That
Beauty is a State”, o Rasa (Belo) não resulta exatamente da técnica do intérprete ou do
engenho teatral, mas antes de uma predisposição interna dos indivíduos em contemplá-
lo. A habilidade de apreciar o Belo é uma capacidade inata ao ser humano, relacionada
à sua história pessoal e ancestralidade, que pode ser cultivada e aperfeiçoada pela
educação. Mesmo quando um artista, segundo os cânones da tradição clássica,
executa um papel de modo incorreto, seja do ponto de vista técnico ou expressivo,
ainda assim é possível chegar à Rasasvadana (contemplação estética), porque a
imaginação do espectador é capaz de preencher as lacunas deixadas com sua própria
experiência emocional.
30
A ideia principal se transforma em Rasa pela própria capacidade do rasika de
encantar-se – e não por causa de um personagem do herói imitado, nem
porque o trabalho tem como objetivo a produção de emoção estética 15
(DASARUPA, n/d, apud COOMARASWAMY, 1985, p. 34, tradução livre).
O Belo, segundo Coomaraswamy, está em tudo e não pode ser qualificado. Não
há coisa mais ou menos bela em termos estéticos: a beleza seria um estado
permanente que circunda todas as coisas. A nossa capacidade em apreendê-la é que
varia. Ou seja, o que determina nossa capacidade de capturar o Belo que há no mundo
e não apenas na arte é a nossa experiência física, sensorial e atemporal de contato
com a beleza.
15 No original: “The permanent motif becomes rasa through the rasika´s own capacity for being delighted –
not from the character of the hero to be imitated, nor because the work aims at the production of aesthetic
emotion” (DASARUPA, n/d, apud COOMARASWAMY, 1985, p. 34).
16 No original: “Precisely as Love is reality experienced by the Lover, and Truth is reality as experienced
by the Philosopher, so Beauty is reality as experienced by the Artist: and these are phases of Absolute”
(COOMARASWAMY, 1985, p. 36).
17 No original: “For beauty does not arise from the subject of a work of art, but from the necessity that has
been felt on representing that subject” (MILLET apud COOMARASWAMY, 1985, p. 40).
18 No original: “Everyone chooses his Love out of the objects of beauty according to his own taste”
31
Do ponto de vista estético, o sentido do Belo, ou Rasa, é resultado de um longo
processo que nasce na intuição do artista, a ideia central que dá origem a uma obra,
suas conexões com a vida. Essa intuição dá origem a uma série de imagens e símbolos
que brotam do universo imagético do artista. Por meio da linguagem artística, esse
universo interno de imagens ganha sua expressão concreta, física, tornando-se objeto
de comunicação e, finalmente, pode ser compartilhado com outros. Quando essa
intuição inicial atinge seu objetivo, o sentido de Rasa está completo.
Assim, podemos concluir que Rasa, num aspecto mais amplo, é a experiência
total da fruição artística que se dá entre o artista e aquele que experimenta sua obra.
Isso nos leva a outra afirmação importante: a de que Rasa não pode ser resumido à
experiência subjetiva, é algo muito mais complexo, para além dos limites de tempo e
espaço. Os Bhavas são, portanto, o instrumental do artista para tornar esse encontro
possível. Nas palavras de Tripathi, em seu estudo sobre Rasa:
19No original: “There is no parallel to what takes place in an aesthetic experience. Mundane experience is
always temporal, spatial as well tied to a particular relational awareness, but rasa is neither a spatio-
temporal experience, nor characterized by a mere relational experience. Therefore, it cannot be termed as
a subjective experience. It is a unified and integral experience where the dichotomy of subject and object
merges into one. However, it remains a private experience in the sense that it is one´s own involvement
with the art” (TRIPATHI, 2007, p. 81).
32
1.3.2 – BHAVAS: ESTADOS EMOCIONAIS PERENES OU INTERMITENTES
A nascente do intérprete
20 No original: “(...) the work of art is not only a means of expression of the ‘experienced truth’ but a vehicle
of ‘understanding even that truth, which has not been experienced’” (TRIPATHI, 2007, p.71).
33
Neste ponto da leitura devemos nos perguntar: os Bhavas precedem os Rasas?
Isso pode ser melhor esclarecido nas palavras de Bharatamuni.
Não há bhava que não seja seguido por rasa e não há rasa que não seja
precedido por bhava. A eficácia de ambos é mutua no que concerne ao
Abhinaya21 (BHARATAMUNI, cap. 6, verso 34-38, tradução livre).
21 No original: “There is no Rasa devoid of Bhava nor Bhava devoid of Rasa. Their effectiveness is mutual
in regard to Abhinaya” (BHARATAMUNI, cap. 6, verso 34-38).
34
Os Bhavas estão em íntima relação com os Rasas e, por isso, também são parte
fundamental do teatro projetado por Bharatamuni. Experimentar um Rasa nada mais é
do que vivenciar concretamente um ou mais Sthayibhavas e suas ramificações. Através
da articulação de seus componentes organiza-se a construção de um discurso poético
por meio de palavras, ações e reações psicofísicas. Esse discurso organizado e
consciente atinge o espectador, que pode então “saborear” a experiência imaginativa e
a vivência do Belo, que são a resultante final deste longo processo de comunicação.
Num contexto maior da obra de arte, Bhava é o ‘mood’ ou atmosfera que envolve
um espetáculo teatral. Para o intérprete, Bhava é a ideia de um autor (Sthayibhava)
manifesta em palavras e ações (é importante ressaltar que, no teatro clássico hindu, o
texto – e em decorrência, o dramaturgo ou poeta – ocupa um espaço determinante).
Para o espectador, Bhava é o ponto de partida da experiência estética ou Rasa.
Assim como a madeira seca é penetrada pelo fogo, o corpo físico também é
penetrado pelo Rasa que é agradável ao coração. O Bhava então faz brotar o
sentimento22 (BHARATAMUNI, 1986, cap. 7, verso 7, p. 87, tradução livre).
Segue abaixo um quadro que explicita a relação que há entre Rasas e Bhavas
de acordo com o Natyasastra:
STHAYIBHAVAS RASAS
RATI - Amor SRINGARAM – Experiência do amor
HASYA – Incongruência HASYA – Experiência risível, grotesca
SOKA – tristeza ou apatia KARUNA – Experiência do sofrimento
UTSAHA - entusiasmo VEERA – Experiência heróica
KRODHA – Ressentimento ou raiva RAUDRA – Experiência da violência
VISMAYA - Maravilhamento ADBHUTA – Experiência do contentamento
JUGUPSA - Desgosto BIBHATSA – Experiência da repulsa
BHAYA – Terror ou medo BHAYANAKA – Experiência terrível
22 No original: “Just as the dry wood is pervaded by fire so also the physical body is pervaded by Rasa
which is congenial to the heart and Bhavas thus gives rise to the sentiment” (BHARATAMUNI, 1986, cap.
7, verso 7, p. 87).
35
Bharatamuni descreve ainda os trinta e três tipos de Viabhichari Bhavas (estados
transitórios, como, por exemplo: fraqueza, alegria, dissimulação, crueldade etc.) e os
oito tipos de Sattvaja Bhavas (reações psicossomáticas, como por exemplo: tremores,
calafrios, paralisia, palidez etc.).
O Sthayibhava é o sustentáculo do conceito de Bhava e o ponto de comunicação
com os oito Rasas ou “experiência estética/imaginativa”, apresentados acima. Sem a
existência dos Sthayibhavas seria impossível chegar à compreensão dos Rasas, que
são sua manifestação concreta. Eles são ideias abstratas e genéricas que, para se
concretizarem, precisam dos outros tipos de Bhavas existentes.
23 No original: “Just as the king is considered the greatest among men and the perception among the
disciples so also the Sthayi Bhava is the greatest among all the Bhavas” (BHARATAMUNI, 1986, cap. 7,
verso 8, p. 88).
36
importância dada à construção da técnica corporal do intérprete para dar conta do
desafio de recontar a vida sem a pretensão de copiá-la.
24No original: “The actor cannot produce personal sorrow similar to that of Rama, because it is absolutely
absent. If it were present, it would not be a reproduction. Nor is there anything in the actor, which may be
similar to the sorrow (of Rama). It is true that the actor produces the anubhavas, but they are of the same
category (as those of Rama) and not similar to them” (TRIPATHI, 2007, p. 78).
37
Do mesmo modo, não se espera que o Rasika viva um processo de “catarse
aristotélica”. Ele está inteiramente ciente do caráter ficcional da encenação, de seus
aspectos artificiais e técnicos. Seu papel mais se assemelha ao de um crítico de arte do
que ao de um espectador inexperiente. Ao Rasika interessa mais “como algo é dito” e
não tanto “o que é dito”. No “como algo é dito”, os aspectos técnicos da encenação
ganham relevância: a técnica corporal e vocal, a qualidade da música, da dança, do
texto, a maquiagem, os ornamentos e objetos cenográficos etc.
O teatro hindu não foi projetado para produzir terror e piedade. Ao Rasika não
cabe ficar aterrorizado com o destino do herói que vive a experiência trágica e nem
sentir piedade por suas falhas, que redimem a humanidade. O teatro hindu é
propositadamente transcendental. O indivíduo experimenta e, portanto, colhe os
resultados diretos e indiretos de suas ações e pensamentos no mundo (a lei do Dharma
e do Karma). Sentir terror ou piedade por sua condição é tão inútil quanto “levar um
copo às águas das fontes”, como diz Fernando Pessoa (1981, p. 140).
A generalização de um estado emocional apresentado em cena desobriga o
espectador a se identificar com o personagem ou situação encenadas. Inibe o desejo
de colocar-se naquela situação, de – por assim dizer – possuí-la. A verdadeira
apreciação estética, portanto, só pode existir quando o Rasika está perfeitamente ciente
do artifício cênico proposto e se compraz não do pesar de Rama, mas do modo como a
encenação e o artista o vivificam.
38
CAPÍTULO 2 – ABHINAYA: O ELEMENTO EXPRESSIVO DE NATYA
Figura 12 - Darpana, representação escultural de figura feminina com espelho. Fonte: arquivo pessoal.
Fotógrafa: Keila Mendes.
39
Tal compilação foi feita com o propósito de ser um guia de referência para a
criação corporal em dança e, posteriormente, passou a ser aplicada também ao teatro.
Os primeiros registros significativos sobre a utilização do Abhinaya o situam no século
IV a.C, tendo passado por muitas transformações depois desse período. Acredita-se
que o ápice da produção de peças de Abhinaya se deu no Período Gupta (entre os
séculos IV, V ou VI), em que viveu o poeta e dramaturgo, Kalidasa, cujos poemas
figuram até os dias de hoje nos repertórios das diferentes linhagens e escolas de
dança.
O Abhinaya é parte fundamental das diversas formas de arte dramática
tradicionais da Índia, com reverberações não apenas na tradição clássica, mas em toda
tradição popular.
Além do Abhinaya Darpana, existem outros livros de referência, como: o Abhinaya
Chandrika, utilizado pelo Odissi, o Nrityaratnavali do Kuchipudi e o Hasta Lakshana
Deepika, utilizado pelo Kathakali e Mohiniyattam. Trata-se de versões posteriores
adaptadas às exigências formais de cada estilo, nitidamente influenciadas pelo
Abhinaya Darpana e o Natysastra.
40
Mais do que delinear ações, a concepção de dança e drama clássicos trabalha no
campo da sugestão de estados psicológicos (Bhavas) e na expressão e evocação de
sentimentos (Rasas). O poeta não expressa, ele sugere. E a codificação corporal e
gestual, construída como aparato simbólico e imagético, é a ferramenta prática para
alcançar esse objetivo.
O abhinaya como uma peça é um poema (drsya-kavya) para ser visto, onde o
ritmo em todos os seus aspectos desempenha um papel importante. E seu
caráter rítmico, expresso por meio do abhinaya e da dança, faz com que ele se
torne adequado para a sugestão das mais profundas e ternas emoções que
evocarão rasa (sentimento) nos espectadores27 (COOMARASWAMY, 2006, p.8,
tradução livre, grifo do autor).
Nota-se que o autor emprega o termo Abhinaya de duas formas diferentes: uma,
para designar a própria ação de representar que, ao lado da dança e do ritmo, são os
veículos de Rasa; e outra, para nomear as peças dramáticas do repertório tradicional.
Neste caso, histórias, mitos ou trechos de épicos são narrados com ou sem
26 No original: “It is the doctrine of suggestion that lies at the basis of Ancient Indian plays and indeed of
all other arts of India (...) depicting a character, is different from that of his fellow-artist in the West. Instead
of giving prominence to his varied activities, the ancient Indian playwright would build up the character by
mentioning characteristic emotional complexes suggestive of it as a whole” (COOMARSAWMY, 2006, p.
7).
27 No original: “Abhinaya of a play which is but a poem to be seen (drsya-kavya), rhythm in all its possible
aspects plays an important part. And its rhythmical character conveyed through abhinaya and dance,
makes it suitable for the suggestion of the deepest and the most tender emotions which go to evoke rasa
(sentiment) in spectators” (COOMARASWAMY, 2006, p.8).
41
acompanhamento musical e são conhecidos como peças de Abhinaya ou
Padarthabhinaya (representação de ideias por meio de palavras). Elas podem ser de
dois tipos: Nrittya Abhinaya, quando envolvem recitação musical e dança, Natya
Abhinaya, quando se referem ao drama falado.
Assim, voltamos à constatação de que na cultura clássica hindu um mesmo termo
possui conceituações muito complexas e abrangentes, sendo difícil sua tradução em
termos simplistas. O próprio conceito de Rasa tem variantes que já foram apresentadas
no primeiro capítulo: teoria estética, sentimento estético vivido pelo espectador e
técnica expressiva para o intérprete: os Navarasas (cf. p.23).
O mesmo acontece com o conceito de Abhinaya, empregado ainda para se
referir aos quatro grandes grupos expressivos que compreendem todos os elementos
de Natya (teatro/dança), conforme exposto por Bharatamuni. Nesse caso, ele será
chamado de Abhinayabheda e compreende Angikabhinaya, Vachikabhinaya,
Aharyabhinaya e Sattvikabhinaya.
O Abhinayabheda é o instrumental dos artistas da cena (dramaturgos, intérpretes,
músicos, cantores, maquiadores, figurinistas, cenógrafos etc.) para darem expressão
aos inúmeros aspectos de Bhava e Rasa, dentro dos cânones estabelecidos pela
tradição. Não há forma de arte dramática clássica na Índia que não se reporte a eles
em sua estruturação, ainda que as variantes sejam muitas. Do ponto de vista do
intérprete, o Abhinayabheda funciona como um guia de referência, que orienta os
processos de treinamento, oferecendo as bases expressivas, já profundamente
sedimentadas, a serem absorvidas e aprimoradas à exaustão.
O grau de sofisticação e elaboração dos conteúdos de cada grupo é tão vasto que
um intérprete levará muitos anos de sua vida para absorvê-los e há dúvidas de que isso
realmente seja possível para um único artista. O processo mais comum é que os
artistas optem por verticalizar seus estudos em um ou outro grupo, de modo a se
tornarem especialistas em diferentes áreas: técnica corporal, domínio de talas (ritmos),
técnica expressiva e assim por diante. Pela colaboração mútua entre vários artistas-
especialistas, o rigor da tradição pôde ser mantido, no decorrer dos séculos, sem
empobrecimento ou perdas significativas.
42
Os quatro grupos que compreendem o Abhinayabheda são:
28Teatro pós dramático: conceito formulado pelo professor de teatro e crítico alemão, Hans-Thies
Lehmann, no livro Postdramatisches (Teatro pós-dramático), publicado em 1999. Ele analisa a evolução
43
está, portanto, a serviço desse projeto, que não se dissocia do profícuo manancial de
textos consagrados pela tradição. A busca desenfreada por uma criação que se
pretenda original não é, de modo algum, uma prerrogativa do teatro clássico hindu. O
mérito de um artista consiste em sua capacidade de representar à perfeição o que os
cânones estabelecem algo que, em termos ocidentais, pode ser comparado aos rigores
do Ballet Clássico. No entanto, não é incomum que essa característica do teatro hindu
tradicional seja vista, no Ocidente, como uma deficiência ou um limitante de sua
capacidade expressiva, como se trabalhar sobre um repertório pré- estabelecido fosse,
necessariamente, uma atividade menos criativa. Corroborando essa prerrogativa, os
comentários de Coomaraswamy no prefácio da obra Abhinaya Darpana são bastante
esclarecedores, como a seguir:
Talvez seja interessante abrir parênteses para comentar a citação acima. Não é
fácil para um artista ocidental contemporâneo, acostumado a entender o processo de
criação como um exercício autoral e singular, aceitar que a afirmação feita possa ser
verdadeira e que a isso se dê o nome de arte e não qualquer forma de arte, mas aquela
considerada a mais nobre e elevada. Primeiramente, devemos nos perguntar no que
consiste a representação do mesmo, de que nos fala Coomaraswamy. Seria a utilização
sem alterações dos mesmos códigos gestuais ou uma ideia um pouco mais sutil? Os
códigos são o instrumental e estão a serviço de algo bem maior e mais profundo, que é
a revelação das quatro verdades fundamentais da existência humana, pela experiência
teatral após as vanguardas do século XX, rejeitando o modelo burguês de teatro e apresentando novos
paradigmas de construção para a encenação e a dramaturgia.
29 No original: “The code of gestures and movements prescribed for the different limbs was binding on the
nata; so much so, that in the matter of gesticulation the term ‘originality’ can scarcely be applied to him, for
what is required to him, is not his own interpretation of a play, but a representation of the same in
accordance with the prescribed rules” (COOMARASWAMY, 2006, p. 11).
44
com o Belo (como estado que permeia todas as coisas). Se seguirmos esse raciocínio
então é possível aceitar a validade da afirmação de que o mais do mesmo refere-se
não à forma em si, mas à experiência que a arte propicia com a verdade e o belo, por
meio da forma.
O que se deseja perpetuar é essa qualidade específica de experiência,
transcendental e transformadora do sujeito, que necessita de parâmetros claros e
rigorosos para acontecer. Não pode ser confundida com nenhuma experiência
mundana e requer, portanto, protocolos específicos, daí a necessidade do rigor formal.
Ou seja, no caso da arte dramática, padrões de movimento, gesticulação, vocalização e
outros elementos específicos. Isso não quer dizer, no entanto, que todos os artistas
representarão da mesma forma e que toda interpretação de Arjuna (herói do épico
Mahabharata) será idêntica. Mesmo dentro de uma estruturação rigorosa, existem
graus de expressão que só são identificáveis exatamente porque existem parâmetros. É
pela comparação entre o Arjuna do artista A e o Arjuna do artista B que se reconhece o
grau de maestria de cada um deles e o que há de singular em suas interpretações.
Dessa forma, as noções de criação e autoria não são eliminadas, apenas não são
supervalorizadas como os elementos centrais do processo criativo.
45
e, em última instância, todos os demais elementos, como iluminação e características
do espaço onde se dará a apresentação. Antes do advento da eletricidade, o sol era a
grande fonte de iluminação e, por isso, ainda hoje podemos ver em algumas
apresentações a recitação de slokams (poemas laudatórios), saudando àquele sem o
qual nada pode ser visto. Assim como em outras formas tradicionais de arte do Oriente,
também na Índia, a caracterização e transformação do intérprete na personagem
representada é um dos grandes segredos que envolvem o processo de preparação de
um artista. A feitura de uma maquiagem no Kathakali, por exemplo, pode levar horas: o
ato de vestir-se, colocar todos os ornamentos no corpo, em especial na cabeça, é um
processo cerimonioso, solene e de profunda transfiguração psíquica do intérprete rumo
a outros níveis de existência e relação necessários à execução de sua arte ritualística.
As vestimentas e todo seu conjunto visual foram projetados para atuar sobre os
sentidos, provocando um deleite sensorial, que também leva à expansão da
consciência do espectador 30.
Figura 13 - Bailarina passando Alta nos pés, pronta para apresentação. Fonte: arquivo pessoal.
30 Gostaria de abrir parênteses aqui para narrar uma experiência pessoal. Sempre que me visto para
dançar, o momento mais importante é quando pinto as pontas dos dedos das mãos e dos pés com a
tradicional tinta vermelha, conhecida como Alta. Algo ocorre naquele instante, que modifica
sensivelmente a densidade do ar à minha volta, a qualidade de energia e meu estado mental. Ao finalizar
a pintura, sinto que outro nível de consciência se instalou. Como a pintura é a última coisa a ser feita,
creio que esse momento condensa, na verdade, toda a energia que vai sendo acumulada durante o longo
processo de preparação, que remete à preparação dos xamãs nos antigos rituais primitivos.
46
Tudo o que foi dito aqui é apenas uma breve apresentação da importância do
Abhinayabheda para os artistas tradicionais e a complexidade de conceitos e
procedimentos que ele encerra.
No próximo tópico, será abordado cada grupo detalhadamente, tendo como
referência a aplicação do Abhinayabheda nas técnicas de Dança Clássica Indiana com
as quais trabalho: Bharatanatyam, Kuchipudi e Mohiniayattam. Na Índia existem oito
estilos clássicos de dança e, embora todos tenham como referência central o
Natyasastra, as técnicas e estéticas resultantes desse contato variam muito de estilo
para estilo. Aquilo que é perfeitamente natural e aceitável em um pode ser
absolutamente inapropriado e estranho em outro. Assim, não é possível generalizar as
formas de aplicação. Cada técnica encontra seu caminho, sua forma singular de
transitar por um manancial de conhecimento coletivo.
A valorização do caminho (conhecimento estabelecido) em detrimento do
caminhante (gerações de artistas) é uma das razões que explicam a longevidade
dessas formas de arte na história da humanidade. O caminho relaciona-se ao
atemporal, enquanto o caminhante é sempre temporal e sujeito às investidas de Maya
(ilusões do mundo material). Sua jornada será sempre apenas uma pétala de lótus no
infinito lótus onde repousa o conhecimento.
Figura 14 - Imagem tradicional do Deus Shiva Nataraja, Dinastia Chola, sec. III-IV a XII.
47
2.2.1 – ANGIKABHINAYA: ASPECTOS CORPORAIS
31No original: “To understand the proper value of gestures which furnish the basis of the angika abhinaya
one should observe their application in other departments of social activities. Gestures are first met with in
the language of the primitive people. It is sure that these played an important role in the evolution of
human speech” (COOMARASWAMY, 2006, p. 22).
48
Figuras 15, 16 e 17 - Exemplos de movimentos corporais que formam os Adavus no estilo Bharatanatyam.
É isso que, de fato, cria a identidade expressiva de cada estilo, não apenas pelo
tipo de movimento praticado, mas pela qualidade de energia empregada na execução
deles ou pelo reforço de determinadas características fundamentais. O Bharatanatyam
caracteriza-se pela sua natureza geométrica, pela rapidez e sobriedade com a qual é
executado. Suas linhas e ângulos são rigorosamente definidos e a busca pela simetria
é uma constante. Um movimento deve ser executado com a mesma qualidade pelo
lado direito e esquerdo do corpo, em velocidade ascendente/descendente, em total
harmonia e equilíbrio e, só assim, sua execução será considerada perfeita.
Todas as formas de dança na Índia desenvolveram suas próprias unidades
básicas e deram diferentes nomes a elas, com diferentes números de sequências e
modos de treiná-las. A dança clássica indiana não teria sobrevivido às profundas
transformações sofridas se não fosse por essa rigorosa sistematização.
49
1) SHAREEJA compreende os movimentos dos membros do corpo que se subdividem
em:
50
2) MUKHAJA compreende as expressões faciais e gestos de mão que se subdividem em:
UPANGAS HASTAS
Expressões Faciais Gestos de Mão
Drishtibheda: 8 movimentos de olhos Asamiyutas: 28 gestos simples
Bhrubheda: 7 movimentos das Samiyutas: 23 gestos compostos
sobrancelhas
Putabheda: 9 movimentos das Devatahastas: 16 gestos para deuses
pálpebras
Tarabheda: 9 movimentos dos globos Rakshasahasta: 1 gesto para demônios
oculares
Kapolabheda: 6 movimentos das Dashavatarhastas: 10 gestos para as
bochechas encarnações de Vishnu
Narabheda: 6 movimentos de nariz Jatiyahastas: 4 gestos para as castas
Adharabheda: 6 movimentos dos Bhandhavahastas: 12 gestos para relações de
lábios parentesco
Jihvabheda: 6 movimentos da língua Navagrahahastas: 9 gestos para os planetas
Dashana, Chibuka e Hanubheda: 7 Saptakash e Saptapatalahastas: 7 gestos
movimentos dos dentes, queixo e para os mundos superiores e 7 gestos para os
mandíbula mundos inferiores
Vadanabheda: 6 movimentos da boca Nakshatrahastas: 27 gestos para as estrelas
Swad: 6 gestos para descrever sabores
Sankya: 10 gestos para representar números
Varna: 4 gestos para cores
Prakritihastas: 56 gestos para descrever
elementos naturais
Pashu Pashihastas: 51 gestos para descrever
pássaros e animais
QUADRO 15 - Nomenclatura e quantidade de movimentos possíveis para a face e mãos.
51
3) CHESHTAKRITA compreende as posturas corporais
Mandala: postura estática
Bhanga: curvas
Utplavana: saltos
Bhramaris: giros
Charis: movimentos dos pés
Gatis: modos de caminhar
QUADRO 16 - Nomenclatura e tipos de posturas corporais.
A junção dessas posturas levará à produção dos Karanas, que envolvem diversas
partes do corpo (angas) e fundem o elemento estático ao elemento dinâmico.
Aparecem normalmente nas danças como o ápice de um movimento que, então, se
congela numa postura. Os Karanas se dividem em 10 categorias de acordo com sua
fluência rítmica, totalizando 108 posturas. Quando há a junção de seis ou mais partes
do corpo para formar um Karana, ele recebe o nome de Angahara.
O templo de Thanjavur, em Tamil Nadu, no sul da Índia, tem importância
fundamental para os artistas e pesquisadores das artes performáticas hindus porque,
em suas paredes, estão esculpidos os 108 Karanas os quais, acredita-se, foram criados
pelo próprio Deus Shiva.
52
Figuras 18, 19, 20 e 21 - Alguns dos desenhos que reproduzem as esculturas do 108 Karanas. Museu do
Templo de Thanjavur, Tamil Nadu, Índia. Fonte: arquivo pessoal.
Este grupo possui duas vertentes principais: uma voltada para o estudo da palavra
falada aplicado ao teatro, e outro voltado para a música e o canto aplicado às danças
dramáticas. Vários capítulos do Natyasastra dedicam-se a tratar das regras da
prosódia, métrica e uso da linguagem aplicada ao drama. Entretanto, tratarei
especificamente do Vachikabhinaya aplicado à dança dramática.
A música e o canto ocupam papel de destaque nas diversas danças dramáticas.
Elas são responsáveis por criar o ambiente propício para a manifestação dos Bhavas e
o afloramento de Rasa na audiência. Há uma profunda simbiose entre o intérprete, os
instrumentistas e o vocalista da orquestra em cena, que sustenta a tônica emocional do
espetáculo. Não há Natya sem música, definitivamente.
Existem dois sistemas musicais principais na Índia: o Hindustani, do Norte, e o
Carnático, do Sul. Cada sistema engloba um universo de subsistemas, regras e códigos
específicos que não teremos condições de aprofundar neste trabalho. Assim, me
deterei sobre o estilo Carnático, que é o utilizado nas formas de dança no qual me
baseio para o desenvolvimento desta dissertação.
Cada estilo de dança dramática segue um sistema musical que define, por
exemplo, o espectro de padrões melódicos utilizados, os padrões rítmicos recorrentes,
53
os instrumentos musicais adequados, entre outros aspectos. O intérprete não precisa
dominar todos esses conteúdos, mas precisa conhecê-los o suficiente para a perfeita
execução de suas funções. Por isso mesmo, é fundamental a cooperação permanente
entre músicos, cantores e dançarinos.
O intérprete precisa estar familiarizado com algumas terminologias próprias do
universo musical e compreender suas funções e formas de aplicação no campo da
dança. É preciso, por exemplo, saber que Shruti quer dizer tonalidade e que ela está
em íntima relação com os diferentes Ragas, os padrões melódicos criados pela
combinação ascendente e descendente das Saptaswaras, as sete notas que perfazem
a escala musical: Sa Re Ga Ma Pa Da Ni; apresentadas em diversos padrões rítmicos,
ou Talas, e sujeitos a diferentes contagens de tempo, ou Laya.
Não podemos nos esquecer de que o bailarino, dos diversos estilos clássicos,
dança com guizos presos aos tornozelos, o que faz dele também um instrumentista. O
som dos guizos devem estar em total harmonia com toda a produção musical da
orquestra e com cada movimento em seus mínimos detalhes, para que o correto Bhava
(tônica emocional) se estabeleça. Artaud, quando em contato com o Teatro Balinês,
observou:
54
A alma da música indiana é o raga. Os ragas são estruturados para terem um
determinado apelo emocional e ragas específicos são cantados em certas
horas do dia ou em certas estações do ano, para que se obtenha o efeito ideal.
Por exemplo, nas primeiras horas da manhã são mais adequados para cantar
os ragas Bhoopalam no estilo Carnático e o Bhairavi no estilo Hindustani.
Quando um raga é cantado com as gamakas, modulações tonais apropriadas, a
beleza do raga é realçada32 (VAIDYANATHAN, 1996, p. 150, tradução livre,
grifos do autor).
CHAPU TALAS33
TISRA (3 Tempos) – TA KI TA
CHATURASRA (4 Tempos) – TA KA DI MI
KHANDA (5 Tempos) - TA KA TA KI TA
MISRA (7 Tempos) – TA KI TA TA KA DI MI
SANGEERNA (9 Tempos) – TA KA DI MI TA KA TA KI TA
32No original: “The soul of Indian music is the raga. Ragas are meant to have an emotional appeal and
particular ragas are sung at certain hours of the day and in certain seasons of the year for optimal effect.
For instance, early morning hours are best suited for singing Bhoopalam in Carnatic style and Bhairavi in
the Hindustani style. When a raga is sung with appropriated gamaka of the tonal sounds, the beauty of the
raga is enhanced” (VAIDYANATHAN, 1996, p. 150).
33Padrões rítmicos básicos utilizados na criação coreográfica e musical, em especial, no estilo Carnático,
próprio do sul da Índia.
55
modo significativo a execução daquela unidade fundamental de movimento, exigindo do
bailarino grande domínio rítmico e corporal. Um movimento executado numa Tala de
sete tempos tem, evidentemente, um grau de complexidade maior se comparado à
execução do mesmo movimento numa Tala de quatro tempos. O mesmo vale para as
Talas mais complexas, como aquelas de 12, 13, 14 ou 17 batidas.
As sequências de movimento são construídas variando graus de dificuldade,
partindo de Talas mais simples para proposições rítmicas cada vez mais intrincadas. É
curioso notar como os movimentos mais simples, quando executados sobre Talas muito
complexas, se tornam muito difíceis. O que fica evidente aqui é o fato de o intérprete
lidar com dois graus diferentes de exigência técnica: um, relativo à construção do
movimento per si, e outro, relativo à execução do movimento sobre diferentes Talas.
Isso, de certo modo, nos ajuda a entender porque o treinamento é tão longo e
minucioso. Um artista mal formado pode corromper uma tradição estabelecida há
milhares de anos.
As coreografias também são construídas sobre diferentes Talas e, assim como
nos exercícios, uma mesma coreografia pode ter variação de Tala durante sua
execução. Isso quer dizer que podemos começar uma coreografia numa Tala de cinco
tempos e depois mudar para uma de nove tempos. O que determina essa escolha é o
efeito estético que se deseja obter e ele sempre estará associado à escolha dos Ragas
mais apropriados. Tudo deve funcionar como um conjunto harmônico cuja finalidade
central é a experiência estética que se saboreia, ou Rasa.
56
personagens apresentados consigam convencer o espectador de sua existência, de
sua realidade fictícia, caso contrário a experiência emocional de Rasa não será
alcançada.
No ocidente, é comum utilizarmos o termo verdade para dizer a mesma coisa: a
verdade da personagem, a verdade da cena etc. Nas formas dramáticas da Índia
existem regras específicas para se alcançar essa verdade da experiência cênica, que
não está de modo algum subjugada ao acaso. Ela não é resultado de uma força
sobrenatural misteriosa, daquela mística em torno da ideia de energia que, muitas
vezes, é aplicada erroneamente apenas para justificar ou esconder as deficiências do
artista e da encenação. Ela é resultado da utilização e construção consciente de uma
série de padrões mentais e físicos que levarão à experiência com o belo e com a
verdade. Isso não quer dizer que não existam energias poderosas e invisíveis atuando
sobre o intérprete, que variam de dia para dia, contribuindo para a plenitude da
experiência cênica. Quer apenas dizer que não se pode deixar nas mãos do acaso o
sucesso ou o fracasso de uma encenação e que a energia colocada em movimento
pelo artista é o complemento necessário a todo esse arcabouço técnico-racional.
Nesse grande grupo de estudo, o intérprete voltará a entrar em contato com os
conceitos de Bhava e Rasa, mas agora por um prisma um pouco diferente. O Bhava
será identificado com a tônica emocional da personagem e da cena como um todo. O
que move aquele ser? Por que suas ações são de determinada natureza? Suas
motivações mais profundas justificarão toda a construção corporal, visual e sonora
posterior.
Já o Rasa será identificado com as diferentes emoções humanas, divididas em
nove sentimentos primordiais, os Navarasas. Para cada Rasa haverá, portanto,
indicações técnicas de como se alcançar aquele estado em cena de forma verossímil.
Por exemplo, Karuna pode ser apresentado como tristeza. A coloração da pele é pálida
e o ator deve fazer uma respiração lenta e com suspensões. O olhar não deve ter brilho
ou mover-se rapidamente de um lado a outro. A sobrancelha deve ficar franzida. A face
é ligeiramente tombada para um dos lados, os lábios tencionados para baixo, os
57
ombros caídos. A movimentação deve ser lenta e contida e o ator deve cultivar uma
expressão de desesperança e angústia.
O intérprete poderá praticar exercícios diversos para essa finalidade: trabalhar a
musculatura facial e a respiração, por exemplo. No entanto, essas são apenas
indicações gerais de sentido e cada artista terá que encontrar os meios mais
satisfatórios de alcançar a excelência da comunicação. Ou seja, mesmo seguindo à
risca todos os exercícios prescritos, ainda caberá ao intérprete fazer a leitura interna
desses elementos, pelo filtro de sua própria sensibilidade e experiência emocional.
Quanto mais se torna maduro emocionalmente, mais qualidade emocional o intérprete
conseguirá emprestar à forma preestabelecida, criando graus mais profundos de
experiência estética para ele e para a audiência: “o mais do mesmo”, de que falava
Coomaraswamy (2006, p.11) a respeito dos “códigos gestuais e movimentos prescritos”
(cf. p. 42).
Nas danças dramáticas da Índia, à exceção do Kathakali – em que os artistas se
especializam em papéis específicos – os bailarinos interpretarão uma gama de tipos:
deuses, heróis, heroínas, demônios e animais. Será necessária toda uma vida de
treinamento mecânico-emocional conjugados para se chegar a um estágio elevado de
representação.
Sattivikabhinaya oferecerá aos intérpretes o instrumental técnico, as diretrizes de
criação da personagem, mas não poderá ensiná-los a fazer isso em cena sem que eles
próprios estejam emocionalmente e integralmente comprometidos com o processo
criativo. Seja no Ocidente ou no Oriente, com maior ou menor grau de liberdade de
criação, o problema central do intérprete permanece o mesmo.
Ressalta-se a relevância dos exercícios respiratórios que, executados de forma
consciente e em diferentes ritmos, ajudam a provocar determinados estados
emocionais. Todo o treinamento facial expressivo é um desdobramento do treinamento
facial mecânico, cujo foco passa a ser a utilização dos recursos mecânicos para a
produção de emoção e significado na construção de cenas. Enfim, há toda sorte de
exercícios de improvisação e criação a que alguns Gurus menos ortodoxos recorrem.
58
No próximo capítulo, descreverei alguns exemplos práticos desse treinamento que
desenvolvo com atores e bailarinos, a partir da técnica tradicional. Por agora, detalharei
as especificações de Sattvikaabhinaya conforme descrito no Abhinaya Darpana.
Stambha: atordoamento
Sweda: transpiração
Romancha: excitação
Swarabheda: mudança de voz
Vepathu: tremores
Vaivarnya: mudança de cor
Ashru: lágrimas
Pralaya: desmaio
QUADRO 17 - Os oito estados psicofísicos.
59
Swabhavika: coloração natural (calma, tranquilidade,
relaxamento)
Seus atributos são descritos segundo o nascimento (classe social), relação com o
herói, maturidade/idade e temperamento.
Existe ainda uma classificação chamada de Nayikalankara que define o tipo de
embelezamento próprio para cada heroína. A beleza física é um atributo importante na
caracterização de cada tipo de personagem e sua função é, primordialmente, erótica.
Uma personagem Sweeya (casada e feliz) usa determinados tipos de adornos,
enquanto uma Samanya (mulher liberal) utilizará outros. Ambas querem despertar o
mesmo sentimento erótico, mas em diferentes nuances, de acordo com o que convém
para cada uma, na posição social que respectivamente ocupam.
60
Classificação por Classificação pelo Classificação por Classificação por
classe social ou tipo de relação que grau de temperamento
origem estabelece com o maturidade/idade
herói
Kanishta: preterida
61
Swadheenapatika: mulher certa do amor de seu homem
Vasakasajja: mulher à espera de seu homem
Viramotkhanthita: mulher desapontada ou desesperada porque seu
homem não veio/voltou
Abhisarika: mulher impaciente que deseja ir atrás de seu homem
Vipralabdha: mulher traída
Kandita: mulher que manda amante embora
Kalahantarita: mulher que repensa ato precipitado
Proshitapatika: mulher incapaz de suportar a ausência do parceiro
62
masculinos são: o amigo fiel, o amigo falastrão, o mecenas, o guia espiritual e o
assistente.
34Há um paralelo evidente entre a noção de encanto e estranhamento no teatro clássico hindu com os
conceitos de Insólito e Interessante, descritos por Zeami no Tratado Fûshikaden. Zeami utiliza desses
63
que confere ao artista uma aura sobrenatural e à encenação um caráter solene e
cerimonial, remontando às suas origens ritualísticas.
Há uma lenda hindu conhecida que relaciona a descendência das bailarinas às
Apsaras, dançarinas celestiais, cuja função era entreter os deuses. Daí o motivo pelo
qual elas devem usar figurinos tão elaborados, joias e ornamentos vistosos e uma
maquiagem exuberante. Sua apresentação exterior faz parte de um ritual extremamente
elaborado de conexão com esferas suprassensíveis e divinas, sendo a dançarina um
veículo, um canal de comunicação entre esses dois mundos.
Nos teatros orientais, de modo geral, os aspectos exteriores da encenação são
tratados com muito rigor e têm a mesma importância dos demais elementos que
compõem a encenação. Eles seguem regras muito precisas de composição e
adequação por região, idade, status social da personagem, estado emocional etc.
Nas danças dramáticas solo, em que o intérprete executa diferentes papéis, o
figurino é sempre o mesmo, com pequenas variações de estilo e gosto. No entanto, o
conceito original que confere ao deleite dos sentidos um caráter espiritual é preservado.
Seguem-se as nomenclaturas apresentadas no Abhinaya Darpana e que servem
de referência até os dias atuais:
conceitos para explicar por quais meios o intérprete pode despertar a Flor, o Belo, na audiência e
completar a experiência artística. Segundo ele, ainda que a técnica seja excelente, sem a presença do
Insólito, que gera um Interesse, não há arte. Ver a esse respeito em: ZEAMI, 1999.
64
Considero interessante mencionar que a maquiagem feita nas danças dramáticas
tem uma função importantíssima na caracterização dos personagens e no
estabelecimento do Bhava e Rasa corretos. Os olhos são, sem dúvida, o grande
elemento de comunicação do intérprete, associados aos gestos de mão e à
movimentação corporal. São eles que se encarregam, também, de comunicar à
audiência os estados emocionais dos personagens.
Daí a importância da tradicional maquiagem preta em torno dos olhos, tão
característica das danças indianas, e a pintura com tinta vermelha nas pontas dos
dedos. Os demais elementos podem, assim, ser suavizados para que a maquiagem
ganhe um aspecto de naturalidade, valorizando-se a graça e a beleza do intérprete,
sem caracterizações muito determinantes. Desse modo, ele pode transitar com
tranquilidade entre diferentes personagens e estados emocionais sem que a
maquiagem comprometa a verdade da interpretação.
65
NATYAMANDAPA (Tipos de auditórios):
Vikrishta: retangular
Chaturasra: quadrado
Tryasra: triangular
Jyeshtha: grande
Madhyama: médio
Kanishtha: pequeno
QUADRO 23 - Tipos de Auditórios.
66
TAMANHOS E MEDIDAS:
8 anus = 1 raja
8 rajas = 1 bala
8 balas = 1 liksa
8 liksas = 1 yuka
8 yukas = 1 yava
8 yavas = 1 angula
24 angulas = 1 hasta
4 hastas = 1 danda
QUADRO 24 - Medidas das casas teatrais.
35 Com função similar ao Quarto do Espelho no Teatro Nô. Ver a esse respeito em: ZEAMI, 1999.
67
68
CAPÍTULO 3 – FORMAÇÃO E TREINAMENTO: A TÉCNICA COMO
CAMINHO
69
inúmeras gerações de artistas que se sucedem e que desenvolvem uma postura
criativa autônoma, capazes de projetar e produzir novas obras, além das que
pertencem aos repertórios tradicionais de seus estilos.
No entanto, existem outros artistas que, desejosos de ir mais a fundo em alguns
aspectos específicos do treinamento, criam metodologias próprias de trabalho que não
estão contidas no sistema tradicional, mas que se propõem a encontrar novos modos
de enriquecer seus processos de formação e produção. Existem muitos exemplos
espalhados por toda a Índia. Para efeito deste trabalho, me apoio no método
desenvolvido por Shrimathi Kalanidhi Narayanan (1994)36, expoente do estilo
Bharatanatyam, para estudo e desenvolvimento do Abhinaya (elemento expressivo).
Trata-se de uma metodologia não convencional, inovadora, defendida por muitos e
renegada por tantos outros. Tudo o que relato a seguir é resultado do contato que tive
com este método de trabalho e suas reverberações no meu processo de trabalho, sem
a pretensão de negar ou diminuir o valor do sistema tradicional de ensino.
Durante oito anos fui treinada dentro do sistema de aprendizado por imitação.
Então, em 2006, fui apresentada a este novo modo de pensar o processo criativo
dentro da dança indiana, que me permitia assumir uma postura mais ativa. Senti que ali
se abria todo um campo novo para ser explorado, no qual finalmente se encontravam a
atriz ocidental e a bailarina de danças indianas. Foi como uma epifania poder
vislumbrar os fios tênues e delicados que ligavam essas duas personas artísticas, até
então distintas, finalmente em um só ser criativo.
Os exemplos de práticas que apresento a seguir são resultados dessas vivências.
Somam-se a essas aquelas desenvolvidas durante o período em que participei no
Programa de Estágio Docente, realizado entre março e junho de 2013, sob a
supervisão da Profª Draª Daniela Gatti, com alunos de graduação em dança na
Unicamp e do workshop realizado para atores e bailarinos no Espaço Cultural
36 Kalanidhi Narayanan começou seus estudos de Bharatanatyam aos 7 anos de idade e dançou até os
16 anos, quando casou-se e assumiu as obrigações de sua vida familiar. Em 1973, depois de trinta anos,
retornou ao cenário artístico pelas mãos de Sri Y. G. Doraiswamy, como professora de Abhinaya, assunto
considerado relegado ao segundo plano na formação dos bailarinos de Bharatanatyam. Desde então,
formou diversos artistas e contribuiu para o desenvolvimento de uma nova abordagem do Abhinaya no
treinamento clássico.
70
Caldeirão, em maio de 2013. Ambas as experiências serão também comentadas neste
capítulo.
É importante acrescentar que não houve a pretensão de criar um compêndio de
exercícios para serem aplicados indiscriminadamente. Não creio que, a partir das
informações aqui condensadas, seja possível fazer isso. Trata-se de compartilhar um
modo de trabalho, uma proposta de treinamento para atores e bailarinos, que possa
servir de estímulo e orientação.
Claramente será possível traçar paralelos, ainda que esse não seja o objeto de
estudo desta pesquisa, entre o treinamento do Abhinaya e conceito de Memória
Emotiva37 e o Método das Ações Físicas38 criados por Stanislavsky, ou mesmo as
propostas de treinamento psicofísico desenvolvidas por Grotowsky, Barba e Zarrilli.39
No entanto, traçar estes paralelos, nos ajuda a visualizar esta prática dentro de um
contexto maior, a compreender melhor o universo expressivo em que estamos
transitando e constatar que não se trata de um conhecimento exclusivamente oriental.
Sem dúvida, trata-se de um estudo interessantíssimo que (quem sabe) pode ser o
ponto de partida para uma futura tese de doutorado, mas que não será aprofundado
agora.
Por hora, procurarei ser o mais objetiva possível, descrevendo as práticas como
as aplico na sala de ensaio, de modo que o leitor possa começar a criar as pontes entre
essas práticas e tudo quanto já foi dito nos capítulos anteriores.
O primeiro passo consiste, portanto, em contextualizar o que é Abhinaya dentro
das danças dramáticas indianas, os quatro principais grupos e suas funções. Conceitos
mais complexos como Rasas e Bhavas virão posteriormente, no decorrer da própria
prática.
71
3.1 – TREINAMENTO MECÂNICO
Assim, no início de nosso trabalho, vocês não podem conceber o mal que
resulta dos espasmos musculares e da contração física. Quando essa condição
ocorre nos órgãos vocais, uma pessoa, normalmente dotada de boas
tonalidades naturais, fica rouca ou chega mesmo a perder a voz. Se a
72
contração ataca as pernas, o ator anda como um paralítico; se está nas mãos,
ficam dormentes e movem-se como pedaços de pau. O mesmo tipo de
espasmo ocorre na espinha, no pescoço e nos ombros. Em cada um desses
casos, eles tolhem o ator, impedindo-o de atuar. O pior, contudo, é quando
essa condição lhe afeta o rosto, distorcendo-lhe as feições, paralisando-as ou
petrificando a expressão. Os olhos se esbugalham, os músculos tensos dão ao
rosto um aspecto desagradável, fazendo-o exprimir exatamente o contrário do
que vai dentro do ator, sem qualquer relação com suas emoções. Os espasmos
podem atacar o diafragma e outros órgãos ligados à respiração, interferindo
com seu procedimento e encurtando o fôlego. Essa rigidez muscular também
afeta outras partes do corpo e só pode exercer um efeito destruidor nas
emoções que o ator experimenta, na sua forma de expressá-las e no seu
estado geral de sensibilidade (STANISLAVSKY, 1994, p. 122).
Podemos começar por exercícios simples, como por exemplo, inspirar pelo nariz
em 4 tempos e soltar pela boca em 4 tempos e ir gradativamente aumentado a
contagem para 8 tempos, 16 tempos. Ou qualquer outra proposta do gênero que leve
ao controle da respiração e, como consequência, ao apaziguamento físico-mental e à
conquista de um estado de presença e calma, necessários a todo processo criativo.
Com o passar do tempo, costumo propor exercícios mais elaborados como, por
exemplo, fazer as práticas respiratórias associadas à execução de uma partitura física
ou com uma caminhada pelo espaço o mais lentamente possível, com o olhar num
ponto fixo, atentos à fluidez da respiração e do deslocamento em si, buscando manter a
mente e a musculatura relaxadas.
As alternativas são muitas e sempre é possível inventar novas práticas e
exercícios durante o processo. Por isso, acho importante não valorizar demasiadamente
a descrição de exercícios, que levam sempre ao risco de engessamento de uma ideia
ou proposta. O foco deve estar no propósito que se espera alcançar e, a partir daí,
deixar que sua intuição e sua própria experiência como artista o oriente no processo de
encontrar as melhores práticas, levando em consideração o estado emocional e a
experiência do grupo de trabalho com a técnica.
No meu caso, tenho como referência, diferentes práticas respiratórias oriundas de
anos de aulas de canto, exercícios teatrais diversos nos quais a respiração é trabalhada
e as práticas respiratórias do Yoga. A partir desse conjunto prático de referências sigo,
ora revisitando antigas práticas, ora elaborando novas propostas.
73
Figura 23 - Exemplo de exercício respiratório inicial. Fonte: arquivo pessoal.
Há toda uma profusão de gestos rituais cuja a chave não temos e que parecem
obedecer a determinações musicais extremamente precisas, com alguma coisa
a mais que não pertence em geral à música e que parece destinada a envolver
o pensamento, a persegui-lo, a conduzi-lo através de uma malha inextrincável e
certa (ARTAUD, 2006, p. 60).
74
Primeiro, sugiro os movimentos contínuos, de deslizar: de um lado ao outro, de
cima para baixo, em círculos. Os olhos devem estar bem abertos, mas sem tensão e
deve-se evitar piscar em demasia. Todo restante do corpo e da musculatura facial deve
estar relaxado, por isso, normalmente realizo essas práticas sentada no chão. Depois,
sugiro os movimentos descontínuos, em Stacatto: de um lado a outro, debaixo para
cima, da diagonal alta para diagonal baixa oposta e vice-versa. Finalmente, posso
sugerir os movimentos compostos, como por exemplo, ir para o lado direito em
Stacatto, deslizar até o lado esquerdo passeando com os olhos pelo alto e repetir o
processo da esquerda para direita, variando as Talas.
É importante ressaltar que todo esse processo não acontece em um único dia, são
necessários vários encontros para que os participantes se familiarizem com as Talas e
adquiram um grau considerável de controle de sua musculatura ocular, relaxamento
facial, fluidez e naturalidade dos movimentos.
Quando chega esse momento, podemos incluir alguns movimentos de pescoço e
de sobrancelha. Utilizo os movimentos mais básicos como deslizar a cabeça e o
pescoço lateralmente ou diagonalmente, mover as sobrancelhas para cima e para baixo
em conjunto ou separadamente, em diferentes Talas. O grande desafio consiste, na
verdade, em unir esses movimentos à movimentação dos olhos, amplificando
muitíssimo sua expressividade natural.
Mas, como acontece com todo treinamento extremamente técnico, às vezes os
participantes se cansam e ficam entediados. Quando percebo que a prática mecânica
começa a ficar cansativa, peço que se levantem e rapidamente sugiro uma
improvisação de movimento pela sala explorando as novas descobertas de utilização
dos olhos, sobrancelhas, cabeça e pescoço. Algumas vezes, opto por colocar uma
música, outras vezes por cantar Talas variadas ou até mesmo produzir sons com
instrumentos musicais que ofereçam estímulos ao processo de investigação. Não existe
uma regra, o importante é que seja dinâmico e criativo o bastante para evitar o
esvaziamento do treinamento mecânico e manter vivo o interesse dos praticantes pela
técnica.
75
Peço para que não se limitem ao que já foi trabalhado e procurem por
possibilidades e combinações que, na prática convencional, não aparecem. Peço que
percebam as relações e conexões do que foi trabalhado e o restante de seus corpos,
questionando como isso reverbera no conjunto de toda improvisação. É um modo
interessante também de alimentar a percepção de que a técnica apresentada não é um
fim em si mesma e que, sua eficácia, depende de sua integração ao processo criativo
como um todo, o que inclui a totalidade de seu corpo e mente.
Segue quadro com os principais movimentos de olhos:
76
Figuras 24 e 25 - Exemplos de treinamento para os olhos em grupo num estágio inicial de treinamento.
Deslizar de um lado a outro (Sachee Drusti). Fonte: arquivo pessoal.
Figura 26 - Exemplo de treinamento para os olhos, pelo espaço. Pralokita Drusti. Fonte: arquivo pessoal.
77
3.1.3 – GESTOS DE MÃO
78
Figura 27 - Alapadma, gesto de mão do grupo dos Samiyutas Hastas. Quando executado desta forma,
significa lótus.
Figura 28 - Samiyuta Hasta composto por Alapadma e Kathakamukha Hastas. A bailarina pode estar dizendo
que alguém para quem ela olha tem belos olhos. Fonte: arquivo pessoal.
79
Figura 29 - Asamyiuta Hastas. Fonte: www.onlinebharatanatyam.in
80
Figura 30 - Samyiuta Hastas. Fonte: www. rasarang.org
81
Asamyuta Hastas: alguns significados40
Apenas para que se tenha uma ideia da complexidade que envolve os Hastas, vou
citar alguns dos significados possíveis atribuídos aos Asamiyuta Hastas. No entanto, é
importante saber que o escopo de significados é muito maior porque depende da
junção com outros Hastas, do contexto da cena e das variações existentes de estilo a
estilo dentro das diferentes danças dramáticas indianas. Não é possível, de modo
teórico, esgotar todas as possibilidades de significado que eles englobam.
1) Pataka: para apresentar-se, apresentar uma pessoa, mostrar uma rua, um rio,
uma bandeira, dizer ‘não’, dizer ‘venha’, dizer ‘se afaste’, tapar os ouvidos, abrir ou
fechar uma porta ou janela, cortar algo, oferecer algo etc.
11) Kapitha: pode ser utilizado para representar as deusas Lakshmi e Saraswati,
segurar as pontas de algo, tirar leite, fazer oferendas, segurar coisas etc.
82
12) Kartarimukhan: pegar ou oferecer flores, colocar colar, aplicar algo no corpo
etc.
14) Padmakosha: lótus, frutas, panela, formigueiro, ovo, bola, objetos circulares,
seios redondos etc.
19) Alapadma: lótus, beleza, devoção, lua cheia, o florescimento de algo, colina,
montanha etc.
20) Chatura: musk, pequena quantidade, ouro, cobre, ferro, um olho, molhado,
tristeza, prazer estético, diferença de castas, a prova, a doçura, a marcha lenta,
quebrando algo em pedaços, o rosto, óleo, manteiga.
22) Hamsasya: bico de pássaro, pureza, pérolas, jasmim, escrever, pintar, dar
nó, meditar etc.
83
Com esse novo alfabeto em mãos fazemos pequenas brincadeiras, como tentar
expressar ideias simples; por exemplo: ‘O sol apareceu no horizonte’, ‘Não vá embora’,
‘Lábios doces feito mel’ etc., usando alguns dos gestos apresentados.
Normalmente, esse é um período muito prazeroso, quando se descobre o poder
de comunicação das mãos, os significados que nascem da combinação de diferentes
gestos. Essa é a hora propícia para traçar paralelos com nossa própria gestualidade.
Como utilizamos as mãos em nossa comunicação cotidiana? Que gestos de mãos
codificados reconhecemos em nosso dia a dia? De que forma eles contribuem no
processo de comunicação?
Os praticantes rapidamente embarcam na brincadeira e muitos gestos começam a
aparecer. É fácil constatar que, em todas as culturas, falamos com as mãos, a diferença
é que na Índia isso foi sistematizado para uma finalidade artística. Muitos dos Hastas
são estilizações conscientes de gestos extraídos do cotidiano que viraram uma
linguagem altamente especializada. Partindo desse pressuposto, podemos estimular os
praticantes a criar seu próprio gestual e investigar formas de atribuir significado a eles,
quando inseridos dentro de um contexto específico. Ou seja, o contexto sempre será
importante. O treinamento facial e gestual não é um fim em si mesmo, aplicável de
modo genérico a qualquer coisa. Definir o contexto é fundamental para se chegar à
acuidade da expressão, da comunicação desejadas.
Se, nesse primeiro estágio do treinamento, essa percepção tiver aflorado em
relação à utilização das potencialidades da face e das mãos, podemos então caminhar
para o treinamento expressivo, no qual, de fato, a questão do contexto se coloca de
forma mais concreta.
84
3.1.4 – ADAVUS
Embora não tenha pretensão de ensinar dança indiana nas minhas vivências com
a técnica do Abhinaya, muitas vezes utilizo algumas de suas células de movimento
corporal no treinamento inicial. A ideia é fazer com que os praticantes vejam como os
movimentos da face e das mãos aparecerão nas danças quando associados ao
movimento das demais partes do corpo, ainda sem finalidade expressiva. Essa
experiência pode ser muito esclarecedora e dar um sentido de completude ao
treinamento até então segmentado: primeiro olhos, depois sobrancelhas, mãos etc.
Os Adavus são células de movimento com começo, meio e fim, executadas sobre
diferentes Talas, em velocidade ascendente e descendente. Cada Adavu compreende a
produção de padrões rítmicos produzidos por meio dos movimentos dos pés,
associados a movimentos de pernas, quadril, tronco, braços, mãos, pescoço, cabeça e
olhos. Os Adavus possuem graus diferentes de complexidade e execução e, assim
como no Ballet Clássico, seu domínio é fundamental para a formação do bailarino e
assimilação do repertório corporal que perfaz o estilo.
Cada uma das oito danças clássicas indianas tem seu grupo próprio de Adavus,
que geralmente é muito extenso e demanda vários anos de treinamento. O termo
Adavu é próprio do estilo Bharatanatyam e quer dizer exercício. Outros estilos utilizam
outras nomenclaturas para designar esse mesmo tipo de treinamento corporal.
Não costumo me aprofundar muito nesse quesito, mas considero válida a
experiência de vivenciar na prática como todos os elementos trabalhados anteriormente
podem funcionar em conjunto. Aos que realmente se interessarem pela técnica, sugiro
que façam aulas de dança indiana.
85
Figuras 31, 32, 33 e 34 - Adavus sendo executados com diferentes posições de braços, pernas, troncos e
mãos. Fonte: arquivo pessoal.
86
Para finalizar, sugiro que nenhum exercício seja feito de frente ao espelho. Com o
tempo, aprenderemos a identificar intuitivamente quando a execução de determinado
movimento foi realizada a contento ou não. A percepção deve ser sempre interna e sua
experiência individualizada. Não cabe estabelecer padrões ou estimular a cópia como
modelo de aprendizado dentro de uma perspectiva contemporânea de utilização da
técnica do Abhinaya. A observação do outro será muito válida em algumas ocasiões,
mas nunca um substituto à auto-observação.
3.2.1 – NAVARASAS
87
que haja bastante proximidade entre as experiências relatadas. Essas percepções
serão fundamentais para o desenvolvimento do treinamento de Abhinaya num estágio
mais avançado.
As experiências devem ser devidamente relatadas nos diários pessoais seja por
meio de palavras ou desenhos. Os praticantes vão identificando em suas expressões e
de seus colegas indícios claros de sentimentos humanos universais. Não afirmo com
isso que exista a expressão de felicidade ou a expressão definitiva de tristeza, mas
existem respostas físicas, musculares que são comuns e identificáveis em todos os
seres humanos intuitivamente.
Nos anos 60, o psicólogo americano Paul Ekman, desenvolveu uma técnica de
detecção de mentiras baseada nas chamadas micro expressões do rosto. Elas
são acionadas por 43 músculos faciais, que compõem 10.000 expressões, das
quais 3.000 estão relacionadas a sentimentos, divididos em sete categorias:
medo, tristeza, nojo, alegria, desprezo, surpresa e raiva (BEER; CAPUTO,
2014, p. 57).
88
Por isso, em minhas práticas, evito mostrar exemplos de expressões faciais para
os participantes. Não quero que meu modo de fazer se torne um padrão ou modelo a
ser seguido e tomo muito cuidado para não cair na tentação de simplesmente mostrar
como se faz! Costumo dizer que uma expressão cujo resultado é sublime, quase divino
em um artista, pode ser simplesmente grotesca em outro simplesmente porque física e
emocionalmente somos diferentes. Toda vez que tentamos copiar um jeito de mover a
cabeça, de virar os olhos ou de sorrir de outra pessoa, corremos o risco de nos
tornarmos um simulacro de nós mesmos. Mas sabemos que é inevitável ser
influenciado por outros artistas, especialmente quando o que vemos nos encanta e
cativa. Creio que a melhor atitude seja considerar os modelos externos como estímulos
para encontrar nossas próprias soluções encantadoras e cativantes e, nesse caso, a
imitação pode ser um ponto de partida válido.
Nosso primeiro exercício consiste em experimentar cada um dos Navarasas tendo
como parâmetro nossas próprias experiências emocionais. Os participantes podem se
valer de suas memórias, lembranças, imagens pessoais que deverão ser exteriorizadas
em suas expressões faciais. Normalmente, faço isso com todos sentados no chão para
que não seja necessário se preocupar com mais nada. Peço para que fechem os olhos,
respirem (retomando as práticas iniciais), concentrem-se no sentimento ou Rasa que
desejam expressar (a cada encontro trabalharemos apenas um ou dois deles), ativem
suas imagens pessoais e, quando sentirem que estão, de fato, tomados por aquele
sentimento, que abram os olhos e o exteriorizem. Os participantes não devem se
preocupar com a duração da expressão, mas que elas sejam autênticas, mesmo que as
mantenham por poucos segundos. Mais vale um segundo de uma expressão genuína a
muitos segundos de uma caricatura facial.
Para evitar que o Abhinaya (as expressões) se torne uma máscara facial rígida ou
mera macaqueação facial, faço apontamentos que possam ajudar a encontrar as
melhores respostas, mas não estabeleço o que é mais correto ou mais expressivo.
Como já disse anteriormente, o grau de eficiência expressiva dependerá do contexto
onde ela se desenvolve e não do modo como uma sobrancelha se move. Mas existem
vestígios de humanidade que todos compartilhamos, percepções das respostas
89
humanas frente aos diferentes sentimentos que são comuns e que podemos aproveitar
sem a pretensão de torná-las uma regra absoluta ou um manual expressivo a seguir.
Alguns exemplos a seguir podem ilustrar melhor tais considerações.
Quando sentimos medo (Bhayanaka) as sobrancelhas tendem a ficar tensionadas
e elevadas, as pálpebras superiores sobem e as inferiores se contraem, os olhos ficam
arregalados e os lábios ficam tensionados.
90
Quando sentimos nojo (Bibhatsa) o nariz franze, as bochechas são puxadas para
cima e o lábio superior se eleva e o inferior cai.
91
Quando sentimos desprezo (Hasya) apenas um dos cantos da boca se eleva num
sorriso dissimulado, uma sobrancelha se eleva e a outra desce, as pálpebras
superiores ficam ligeiramente fechadas e as expressões são menos simétricas.
92
Quando sentimos orgulho (Veera) nossas sobrancelhas se elevam, há um discreto
sorriso, os olhos se abrem como se olhassem ao longe, o queixo se eleva.
93
Quando estamos em estado de paz, plenitude (Shanta) nossas expressões
tendem a ser mais discretas. Os olhos permanecem serenos, podem ficar fechados,
fixos no horizonte, ou voltados para cima, pode haver um sorriso discreto, o restante da
musculatura permanece relaxada.
94
observamos e, nessas circunstâncias, considero a observação fundamental. Ela permite
diminuir nossa autocrítica, o medo da exposição e do ridículo que esse tipo de situação
suscita, pelo simples fato de percebermos que outros enfrentam as mesmas
dificuldades e dúvidas que nós enfrentamos.
É um momento muito delicado do processo e assim deve ser encarado. Se os
participantes duvidarem de si, da proposta, se não puderem acreditar que, por esses
meios, é possível produzir expressões faciais conectadas a uma verdade interior,
anterior à construção de um personagem, como exercício técnico e preparatório, não há
como prosseguir. E é muito fácil duvidar porque, a princípio, tudo nos parecerá tão
artificial e forçoso, visto que não se tratar de uma prática comum no Ocidente, mas,
com um pouco de boa vontade e dedicação, o treinamento começará a oferecer
resultados.
95
situada no tórax, que subitamente desce para o diafragma, entremeada por suspiros e o
esvaziamento muito lento dos pulmões, pode levar à sensação de abatimento, tristeza e
apatia, que relacionamos ao Karuna Rasa. Uma respiração torácica muito rápida pode
desencadear sentimentos de agitação, descontrole e ira associados ao Raudra Rasa.
Uma respiração diafragmática entremeada por suspensões de ar pode levar a
sensação de mal estar, enjoo, nojo, associadas ao Bibhatsa Rasa etc.
A ideia é que os participantes percebam que cada tipo de respiração desencadeia
determinado tipo de sensação e, a partir daí, sejam capazes de mensurar o que
acontece com seus corpos, suas expressões faciais, seu estado mental. Para onde vão
as tensões na face e no corpo? Qual o tônus corporal ativado? Qual a intensidade
experimentada? Todas essas informações ficarão registradas em nossos corpos e
poderão ser úteis na construção futura de um personagem, uma cena, sem que se
precise toda vez recorrer a esses métodos. É como se criássemos uma memória
corporal e emocional que, posteriormente, poderá ser ativada por outros estímulos que
não esses.
Após realizar essa experiência, peço que os participantes registrem o que
perceberam em seus diários. Que tipo de padrão respiratório leva a determinado
sentimento e o que acontece com seus corpos e rostos em decorrência. Se isso leva à
criação de imagens internas ou não e, em caso positivo, quais são essas imagens,
apenas para registro, pois não há nenhum psicologismo envolvido.
É muito válida também a experiência de trocar com outros participantes, conversar
e perceber o que é comum e o que é singular, identificar o que é resultado do
treinamento, de nossa subjetividade e, mais importante, como tudo se liga e dialoga
com o que já foi feito nas primeiras incursões aos Navarasas.
Tais práticas ainda podem ser encontradas no treinamento dos atores de
Kathakali e outras formas tradicionais de teatro, mas não são muito comuns atualmente.
Elas são provenientes do Yoga e foram adaptadas ao treinamento expressivo, mas,
infelizmente, quase não há material bibliográfico disponível sobre o assunto.
A experiência que tive com esse tipo de exercício foi absolutamente inusitada e
informal. Um amigo, ator de Kathakali, começou a me explicar como eram os exercícios
96
faciais e de olhos durante os extensivos anos de treinamento. É importante saber que
as outras danças clássicas indianas não vão tão a fundo nesse tipo de treinamento e eu
já manifestava uma curiosidade latente sobre o assunto.
Em dado momento, ele começou a falar sobre as práticas respiratórias e a mostrar
alguns exercícios, sem nenhuma cerimônia ou preparação. Vi como, por meio das
respirações colocadas nos locais corretos e no ritmo certo, seu rosto, suas expressões
se transfiguravam, até mesmo a coloração facial se alterava. Isso, somado ao refinado
treinamento mecânico, o extremo controle das musculaturas faciais, o tornava capaz de
expressar sentimentos muito complexos com extrema rapidez e mobilidade. Mas não
estávamos numa situação de representação, estávamos sentados numa sala, tendo
uma conversa casual e despretensiosa. Sem dúvida, aquela foi a primeira vez que
percebi o potencial da técnica na formação de um intérprete, não apenas para os atores
de Kathakali.
Com esse tipo de exercício os participantes começam a entender alguns dos
segredos da técnica, dos muitos caminhos possíveis que podemos nos valer para
chegarmos à acuidade da expressão. Nosso ponto de partida foram as experiências
pessoais, as memórias e lembranças relacionadas aos nove sentimentos primordiais,
então tomamos consciência do potencial da respiração como detonador desse
processo e estamos prontos para seguir para o próximo experimento, que oferecerá
outras possibilidades de abordagem da técnica.
O segundo exercício consiste em desenhar rostos em nove diferentes folhas, cada
uma referente a um Rasa: Sringara, Karuna, Veera, Adbhuta, Raudra, Bibhatsa,
Bhayanaka, Hasya e Shanta. Cada participante deve, então, a partir das vivências
anteriores, procurar retratar no papel as tensões faciais que foram mais marcantes.
Nunca utilizamos espelhos nesse processo. A percepção deve ser interna ou corre-se o
risco de nos perdermos na autocrítica ou no narcisismo.
Embora eu esteja tratando os dois exercícios de formas separadas, eles
funcionam conjuntamente e demandam muitos encontros para serem devidamente
vivenciados. Não é interessante que se trabalhe mais de um Rasa por dia. O
participante deve vivenciar o exercício respiratório que leva a Adbhuta (surpresa,
97
maravilhamento, espanto), por exemplo, fazer seus registros pessoais (textos,
imagens), trocar com outros participantes e então chegar ao desenho da face; tudo isso
já demanda muito tempo e energia.
No desenho, peço que os participantes coloquem os traços faciais que
caracterizam aquele sentimento segundo suas experiências, que atribuam cores
segundo suas próprias sensações, sem se preocupar com as relações estabelecidas
tradicionalmente entre Rasa e Cor (Quadro 4, p. 21), conforme descritas no
Natyasastra. Solicito também que criem associações com situações nas quais aquela
expressão determinada poderia acontecer, por exemplo: quando recebo uma notícia
inesperada, quando sou surpreendida fazendo algo, quando vejo uma cena inusitada
etc.
O objetivo desse exercício é criar referências externas para cada Rasa, mas que
partam de nossa experiência e não mais da observação ou imitação de outros. Os
desenhos são como testemunhas, provas documentais do que já vivenciamos.
Observando-os podemos, por exemplo, constatar sobre quais Rasas transitamos com
mais facilidade e quais temos mais dificuldades em realizar, podemos compreender
melhor a importância do contexto, as singularidades de cada sentimento, a importância
da experiência emocional anterior etc.
No entanto, assim como na vida, os sentimentos (Rasas) não são uniformes e
quase sempre aparecem em conjunto, associados a outros sentimentos. O amor
(Sringara) pode vir acompanhado de tristeza (Karuna) ou de raiva (Raudra), a felicidade
(Adbhuta) pode vir acompanhada de orgulho (Veera) ou desprezo (Hasya) e assim por
diante. A complexidade da manifestação dos sentimentos humanos é evidente e,
certamente, espera-se que o intérprete a compreenda e seja capaz também de
desenvolvê-la em seu treinamento expressivo.
Costumo usar a seguinte metáfora para elucidar melhor esse ponto, evitando que
o Abhinaya seja erroneamente compreendido como máscara facial: assim como cada
cor primária possui diferentes matizes e tonalidades que surgem de sua mistura em
proporções variadas, segundo a intenção de quem as manipula, do mesmo modo cada
sentimento possui diferentes intensidades e colorações. Nunca será possível chegar a
98
um denominador comum, a uma expressão definitiva de determinado sentimento. Sua
coloração, ou seja, sua singularidade, vivacidade e autenticidade dependerá do
contexto onde se insere, das misturas de cores que, conscientemente, produzimos para
melhor expressar aquilo que a cena ou o personagem nos solicita. Compreender essa
mutabilidade empresta humanidade à técnica e permite que os participantes
vislumbrem a utilidade do treinamento em favor de seus processos criativos. Como diz
Kapila Vatsyayan no prefácio do livro de Kalanidhi Narayanan sobre esse assunto:
41No original: “The different rasas are all but colours of a single white light. The dancer´s movement is
that prism which facilitates the seeing of the spectrum of the colours but it is never complete unless both
the dancer and the audience experience the luminosity of the 'one light' (NARAYANAN, 1994, prefácio).
99
poetas como Andal (sec. VII), Jayadeva (sec. XII), Vidyapati (sec. XIV-XV), Kabir (sec.
XV-XVI), Meera Bai (sec. XV-XVI), Purandharadasa (sec. XV-XVI), Surdas (sec. XV-
XVI), Tulsidas (sec. XVI-XVII), Tukaram (sec. XVII), Tyagaraja (sec. XVIII-XIX), Tagore
(sec. XIX-XX), entre outros.42
A profunda relação entre o que é expresso em palavras e a concepção corporal
também foi objeto de apreciação de Artaud, no Teatro Balinês:
Essa linguagem feita para os sentidos deve antes de mais nada tratar de
satisfazê-los (...). E isso permite a substituição da poesia da linguagem por uma
poesia no espaço que se resolverá exatamente no domínio do que não
pertence estritamente às palavras (...) capaz de criar como que imagens
materiais equivalentes às imagens das palavras (ARTAUD, 2006, p. 37).
Por ser nossa primeira incursão no uso de material textual, dou indicações para
que procurem optar por poemas mais descritivos, que oferecem um grau de dificuldade
menor para serem trabalhados, ideais para um primeiro experimento. Com o poema em
mãos, peço que se espalhem pela sala, sozinhos e releiam o poema diversas vezes
procurando descobrir aquilo que está além das palavras: Quem diz estas palavras?
Com que intenção? Qual ou quais sentimentos predominam? Que imagens o poema
sugere? Que cor tem esse poema? E assim por diante.
Depois de um tempo, peço que fechem os olhos e abandonem o pedaço de papel.
Que se voltem para seu interior e que, a partir do que ficou registrado em suas mentes
e corpos, comecem suas investigações pelo espaço tentando fazer uso de tudo o que
trabalhamos até então: desde os exercícios mecânicos, passando pelos gestos de mão
(Hastas) até chegar às primeiras experiências com os sentimentos primordiais
(Navarasas). Tudo pode e deve estar a serviço do propósito de dar corpo ao poema.
Num determinado momento da improvisação, mas sem pressa, peço que cada
participante procure fazer uma síntese da experiência, tentando fixar as soluções,
propostas e ideias que lhe pareceram mais interessantes e eficientes, tendo sempre em
mente o propósito de comunicar o poema. Dou ainda um tempo longo para que, da livre
100
improvisação, cheguem a algo mais estruturado, o embrião de uma pequena cena a ser
compartilhada.
Figuras 44 e 45 - Praticantes experimentando criar gestos para um trecho de poema. Fonte: arquivo pessoal.
A próxima etapa consiste em pedir para que cada participante leia seu poema
para o grupo e apresente seu embrião de cena. Todos assistem a todos e, ao final,
abrimos um debate no qual cada participante pode colocar suas questões,
101
inquietações, as dificuldades enfrentadas, trocar experiências e avaliar em que medida
todo arcabouço técnico desenvolvido até aquele ponto se mostrou útil ou não ao
processo.
Essa experiência é repetida mais de uma vez, com variações e aprofundamentos
até que o grupo se familiarize com a prática e possa avançar para experimentos mais
complexos, com textos mais longos e difíceis. Um bom exercício é formar duplas e pedir
para que um dos participantes fique sentado apenas lendo o trecho do poema escolhido
pelo seu companheiro. A cada leitura ele deve mudar o ritmo, a cadência das frases, a
ordem das palavras, a intensidade da voz, repetir palavras, acrescentar pausas etc.,
alterando e ampliando sensivelmente o escopo do poema.
O outro coloca-se disponível no espaço para, a partir dos estímulos oferecidos
pelo seu parceiro, dar corpo àquele texto, da forma como ele se apresenta a cada nova
repetição. Deixo os participantes livres para investigarem diferentes possibilidades de
abordagem do texto: das mais naturalistas às mais expressionistas e abstratas. Ainda
não estamos preocupados em formalizar nada, nem em apontar o que é bom ou ruim
em termos de solução cênica, mas em ampliar os potenciais expressivos e, nesse
intuito, nada deve ser ignorado ou subestimado. Depois invertemos os papéis e
repetimos todo o processo, seguido do debate coletivo.
Todo esse processo é entremeado pela leitura de textos e por vídeos que possam
oferecer mais informações e subsídios, presentes na bibliografia apresentada aqui. Os
vídeos trazem um rico material proveniente das danças e do teatro hindus, mas também
procuro exemplos ocidentais que possam corroborar o que estamos fazendo. Considero
particularmente interessante o filme La Passion de Jeanne d´Arc (1928), de Carl
102
Theodor Dreyer. Trata-se de um filme que serve de exemplo de uso do Abhinaya fora
do contexto oriental e amplia muito o escopo do assunto. Em todas as ocasiões em que
o filme foi visto, abriu-se uma discussão muito interessante a respeito, não apenas da
técnica, mas sobre interpretação, caracterização de personagem e a relação entre
expressão externa e verdade interior.
Nessa etapa do processo com o qual trabalho, os participantes já terão
desenvolvido uma ideia bastante clara da técnica e podeem avançar para o próximo
estágio do treinamento, no qual serão tratados os demais aspectos do Sattvikabhinaya
(elementos expressivos): Bhavas, Sthayibhavas, Vibhavas, Anubhavas, Viabhichari e
Sattvaja Bhavas (cf. p. 31) como instrumentos para a construção de personagens e
cenas, além de outros elementos do Vachikabhinaya (elementos discursivos, cf. p. 50) e
Aharyabhinaya (elementos externos, cf. p. 59).
103
Aduvum Sholuval Padam43
Compositor: Subbarama Iyer
PALLAVI (refrão)
ADUVUM SHOLUVAL AVAL ANEHAM SHOLUVAL
AVAL MIDE KUTRAM IENADI
ADIE PORI
Ele é Murugam, o herdeiro das terras de Vaitishvaram – aquele que leva a meia lua na cabeça
e o rio Ganga. Este homem é que é o responsável pelo que ela se tornou.
REPETIÇÃO PALLAVI
Ela pode dizer tudo isso. Isso e muito mais. Como posso culpá-la? Vá amiga, encontre algo
para fazer. Não falemos mais nisso.
Agora ela anda toda cheia de jóias e roupas caras quando antes não tinha nada e vinha pedir-
me tudo emprestado. Mas esses tempos já se foram.
Hoje ela é minha rival, compete comigo e me afronta. Hoje ela tem uma grande casa bem em
frente à minha e ostenta toda sua riqueza frente aos meus olhos.
43Recomendo que se assista um trecho de um padam tradicional no You Tube para que se compreenda
sua estrutura de composição coreográfica em relação ao elemento textual. Digite: Bharatanatyam
Abhinaya - Rama Krishna Leela e assista a bailarina Priyadrsini Govind.
104
Hoje ela se senta nos melhores assentos e encostos e veste belíssimos sarees de seda.
Hoje ela tem muitas pessoas para servi-la quando antes não tinha nem amigas e vivia só.
REPETIÇÃO PALLAVI
Ela pode dizer tudo isso. Isso e muito mais. Como posso culpá-la? Vá amiga, encontre algo
para fazer. Não falemos mais nisso.
Para quem antes não tinha duas rúpias ela tornou-se muito arrogante.
Para quem antes não podia comprar nem o mais simples colar de contas ela agora ostenta no
pescoço muitos colares de ouro e pedras preciosas.
Para quem mal saia de casa hoje ela vive cercada por seguranças e come e bebe nos melhores
lugares.
Hoje ela possui não apenas uma vaca, mas um rebanho inteiro.
REPETIÇÃO PALLAVI
Ela pode dizer tudo isso. Isso e muito mais. Como posso culpá-la? Vá amiga, encontre algo
para fazer. Não falemos mais nisso.
105
Dentro dessa estrutura nos perguntamos: O que é o Bhava? A conjectura
emocional da cena que provém da imaginação do artista, o mood da cena, como
costumamos dizer. Na peça em questão, podemos visualizar uma mulher nobre,
abandonada pelo marido por outra mulher de posição inferior. Embora sinta-se
preterida, ela mantém certa dignidade e reluta em revelar seus reais sentimentos. O
ambiente é de disputa, dissimulação e mágoa.
O que seria o Sthayibhava? O Bhava (emoção) dominante aqui é Jugupsa
(desgosto), mas também é Rati (amor) em seu aspecto Vipralambha (separação),
resvalando em emoções como Hasya (sarcasmo), Soka (pesar) e Krodha
(ressentimento). Nossa heroína é uma Kulastri (nobre), Kanishta (preterida pelo herói),
Pragalbha (mulher madura), Uttama (de temperamento controlado), Vipralabdha
(mulher traída). Sua rival é Jyeshta (preferida), Madhiama (parcialmente controlada),
Swadeenapatika (certa do amor de seu homem) e Samanya (mulher que se entrega por
dinheiro). O herói é Dheeroddhata (altivo), Vaisika (anda com prostitutas), Dakshina
(envolvido com outra), Adhama (descontrolado).44
O que seria o Vibhava? A causa de toda essa situação. Ou seja, o abandono por
parte do marido, que a trocou por uma mulher socialmente inferior e, aparentemente,
mais jovem. Esse será o contexto onde a cena se desenvolve. Não podemos
desconsiderar o peso social implícito nesse tipo de situação, em um país como a Índia,
onde o divórcio ainda é um tabu e o abandono por parte do companheiro, uma grande
vergonha. Todas essas informações dão subsídios ao artista no processo de
construção da personagem, antes mesmo que uma palavra seja dita. Essa é a carga
emocional que deve estar colocada em cena.
O que seria o Anubhava? Todas as ações que a heroína realiza em cena
motivadas por essa situação e que são expressas nas linhas do poema. Tudo o que ela
diz e não diz, a forma como se porta, o que revela de si e o que esconde pertencem ao
campo do Anubhava. Aqui está o grande escopo de criação do intérprete que deve se
valer de todos os seus recursos técnicos para emprestar humanidade a essa heroína.
44 Ver a esse respeito em: quadro 13, p. 34; quadro 19, p. 57; quadro 20, p. 58; quadro 21, p. 59.
106
O que seriam os Viabhichari bhavas e Sattvaja bhavas? As reações
psicossomáticas em diferentes graus de controle. Por exemplo: ao ver a outra ela pode
franzir as sobrancelhas, arregalar os olhos e tensionar os lábios sem se dar conta.
Trata-se de uma resposta involuntária, mas que pode ser controlada, basta que ela a
perceba, isto é Viabhichari bhava. Em uma outra situação, ao ver a rival, ela pode
começar a tremer de raiva e a suar frio. Nesse caso, mesmo que perceba sua reação,
ela não poderá controla-la, isto é Sattvaja bhava.
De posse dessas informações, o intérprete abordará o poema acima de modo a
transformá-lo em cena dançada, poesia em movimento. As palavras ficarão a cargo da
orquestra de músicos; ao ator-bailarino restará a responsabilidade de corporificar as
palavras em cena, emprestando humanidade ao personagem, profundidade emocional
e verdade cênica, por meio de todo seu repertório técnico-expressivo. É exatamente
nesse ponto, a metodologia desenvolvida por Kalanidhi Narayanan (1994) começa a ser
aplicada.
Em minhas vivências, peço que os participantes escolham o texto que desejam
trabalhar. Continuamos a trabalhar com poemas, pela afinidade natural da técnica com
esse tipo de material textual. Alguns consideram isso uma limitação, mas vale lembrar
que o Abhinaya é apenas mais um instrumento a serviço do processo criativo e não
uma técnica que ofereça respostas para todas as demandas, em suas múltiplas formas.
Mesmo quando ela não é aplicada diretamente na construção de uma cena, seus
resultados aparecerão no corpo do intérprete que vivenciou a fundo o mergulho no
universo poético-simbólico-emocional-expressivo que ela comporta. Quando trabalho
com atores e bailarinos de outros estilos, essa é a minha abordagem. Valemos-nos
daquilo que a técnica pode nos oferecer e depois, como artistas criadores, somos livres
para fazer uso desse conhecimento em favor de nossos processos, seja aplicando-os
diretamente na cena, seja como treinamento expressivo complementar.
107
Abhinaya; os movimentos são a superestrutura que bailarino cria45
(VATSYAYAN, 1994, foreword, tradução livre).
Nessa etapa os poemas deverão ser mais longos e complexos e, apesar disso,
terão que sofrer adaptações para chegarem ao formato proposto: Pallavi, Anupallavi e
Charana. É preciso que o intérprete aborde o texto com muita liberdade usando todas
as informações prévias sobre os Bhavas para ajudá-lo nesse processo de adaptação. A
escolha do que e como deve ser mantido, deve estar de acordo com esse estudo prévio
do contexto maior da cena que se deseja criar. O participante deve se perguntar: qual o
Bhava, o Sthayibhava e o Vibhava desse texto? O que é fundamental para corroborar
essa ideia? E assim proceder para chegar a um novo texto a partir do poema original.
Aqui começamos a abordar aspectos do Vachikabhinaya (elemento discursivo) em
profundidade.
O processo de reescrita é individual, mas cada proposta é discutida em grupo
exaustivamente, durante muitos encontros. O grupo pode questionar o porquê da
escolha daquele texto, quais as imagens mais fortes ou recorrentes, o que o intérprete
deseja dizer com ele e pode sugerir ideias, melhorias, ajudar a visualizar pontos que
estão obscuros ou imprecisos, mas, ao final, cada participante é responsável pela sua
própria adaptação.
45 No original: “Abhinaya is the ability of the dancer to communicate through body language, movement of
the limbs, stance, gait and, most of all, the face, the content and imagery word, the poem. This is
understood and appreciated. The verbal imagery provides the foundation and is the bedrock of the
Abhinaya; the movements are the superstructure which dancer creates (VATSYAYAN, 1994, foreword).
46 No original: “Equally effective in her analysis of the dancer´s ability to move in time freely, of time past,
of time present, and time future. This free play of the three levels of time connected with both memory and
hope, constitute a very special ability of the dancer to interpret not character but states of mind, more
being. It is this which enables the dancer to create metaphors in movement, metaphors which may have
been only implied in the poetic text” (VATSYAYAN, 1994, foreword).
108
Aqui reside um dos pontos cruciais da técnica: seu foco não é criar personagens
em cena, mas delinear, com precisão, estados emocionais e, nesse intento, o jogo com
o texto e as palavras não precisa seguir uma relação lógica de começo, meio e fim;
passado, presente e futuro. É comum que o artista transite livremente entre esses
tempos e recorra a diversas figuras de linguagem como metáforas, comparações,
sinestesias, alegorias, anacolutos, anáforas47, transposições poéticas, imagéticas e
perceptíveis sensorialmente na construção de seu texto e, posteriormente, na
construção dos tais ‘estados emocionais’ em cena, se valendo de flashbacks, projeções
futuras, sonhos e dados da realidade, de que nos fala Kapila Vatsyayan (1994). Isso
garante extrema liberdade ao intérprete, ao contrário do que possa parecer
inicialmente, por partirmos de um texto poético fechado. Todo esse estudo pertence ao
campo do Vachikabhinaya e está associado a propostas de utilização do texto em cena
(criação de trilha sonora, narração em off, narração ao vivo por terceiro ou pelo próprio
intérprete etc.), em outro estágio do processo.
Quando cada participante tiver seu texto definido então começamos o exercício de
criar variações para cada trecho. Cada parte deve ter um mínimo de três variações,
podendo conter mais, de acordo com o grau de experiência do artista. Isso porque,
como se trata de delinear estados emocionais, a plateia necessita de tempo para
compreender e absorver as imagens e emoções sugeridas. Se o intérprete executasse
apenas uma vez o Pallavi descrito acima, não seria possível para a audiência
experimentar com ele a ‘luminosidade de uma única cor’. Então ele o fará pelo menos
três vezes, procurando explorar em cada uma delas um sentimento diferente. Por
exemplo:
109
Ela pode dizer tudo isso. Isso e muito mais. Como posso culpá-la? Vá amiga, encontre algo para
fazer. Não falemos mais nisso.
Fica claro, portanto, que cada abordagem envolve uma conjectura emocional,
expressiva diferente, o que leva a uma movimentação corporal, gestual, a uma
construção espacial da cena também diferente. É como se brincássemos de encontrar
formas diferentes de dizer a mesma coisa, surpreendendo o espectador a cada nova
variação, não permitindo que o personagem se torne “chapado” e sua ação previsível.
Não se deve, no entanto, valorizar a super dramatização. É importante lembrar que
outros elementos cênicos, funcionando em conjunto, darão o tom exato da cena e nem
tudo deve estar expresso no corpo do intérprete. Sugerir mais do que mostrar é o
conselho comum dos Gurus aos seus discípulos.
Tudo isso é feito sentado, valorizando a construção gestual, facial e emocional. Os
tempos internos, as respirações, tudo aquilo que podemos associar a uma verdade
interior que, posteriormente, sustentará a construção espacial. Desse modo,
avançamos para as outras partes do texto: Anupallavi e Charana. Mas o que significa
exatamente essa divisão? O Anupallavi são as primeiras linhas do poema e, portanto,
estão colocadas logo no início da cena. São linhas de baixa complexidade expressiva,
mas fundamentais para que se estabeleça a conexão entre o artista, a audiência e o
que se deseja expressar. Já o Charana são as linhas mais complexas, que exigirão
mais do intérprete tanto a nível emocional, quanto na construção física da cena.
Podemos ter mais de um Charana, mas em geral isso só ocorre em poemas muito
complexos e executados por bailarinos muito experientes. O Pallavi funciona como um
refrão, retomando a tônica emocional da peça e entremeando o Anupallavi e os
Charanas. Segue outro exemplo de como podemos abordar uma linha específica do
poema:
ANUPALLAVI
Ele é Murugam, o herdeiro das terras de Vaitishvaram – aquele que leva a meia lua na cabeça
e o rio Ganga. Este homem é que é o responsável pelo que ela se tornou.
110
1) Que tipo de homem é esse? (interrogativa)
2) Que homem age desta maneira? (indignada)
3) E ele ainda se considera um homem? (sarcástica)
4) Quem ele pensa que é?! (raivosa)
5) Que tipo de homem ele costumava ser... (triste)
6) Por Deus, não reconheço mais esse homem! (assustada)
Vocês poderão se perguntar: mas o poema não tem essa linha? É verdade. Outra
característica da técnica do Abhinaya é ir além daquilo que o texto diz explicitamente,
para que não haja redundância entre o que se diz e o que se faz. Ora, se alguém está
cantando ou falando em cena o Anupallavi como o descrevi, não há necessidade de
que a ação executada reforce o que já está sendo dito e compreendido. O intérprete
pode ir além. Pode, por exemplo, numa variação falar sobre como era a vida dos dois
em comum antes do aparecimento da outra, valorizando que Murugam é o filho altivo
de Vaitishvaram, o próprio Deus Shiva. E terminar dizendo desolada: “Que tipo de
homem ele costumava ser”. Numa segunda variação, podemos valorizar aquilo em que
ele se tornou, um homem baixo e descontrolado, dizendo em tom sarcástico: “E ele
ainda se considera um homem?”. Numa terceira variação, podemos ressaltar toda a
mágoa da heroína que responsabiliza o herói pelo seu sofrimento. Então ela poderá
dizer indignada: “Que tipo de homem age dessa maneira?”.
Nesse tipo de Padam (poema musicado) temos uma situação bastante concreta,
de cunho social, que apresenta uma visão crítica da sociedade indiana e do papel da
mulher. Mas nem todos os itens expressivos são assim. Existem histórias de deuses,
heróis, poemas eróticos, devocionais e cada um deles permite um grau diferente de
abordagem. Quando tratamos de deuses e heróis, abrimos naturalmente espaço para
construções de imagens menos realistas e o mesmo vale para os poemas de amor
erótico que, para não se vulgarizarem em cena, acabam sendo expressos por
metáforas e outras figuras de linguagem. O intérprete pode dizer coisas como: “meu
corpo estremeceu ao toque de suas mãos quentes”, usando a metáfora de uma flor
que, quando tocada pela luz do sol, se deixa seduzir pelo seu calor e se abre. Ou como
111
um rio que se agita quando o barqueiro passa, criando ondas que tocam gentilmente
sua proa. O erotismo, nesse caso, está no poder de sugestão da imagem, naquilo que
ela insinua, o que a torna mil vezes mais potente para nossa imaginação do que uma
mão tocando um corpo.
Cada intérprete deverá desenvolver variações para todas as linhas do seu texto,
fixando uma partitura de gestos e expressões faciais, associados a diferentes estados
emocionais. Apenas quando isso estiver fluindo naturalmente, chega o momento de sair
do chão e projetar como essa superestrutura criada será colocada em movimento.
Nesse momento, começamos a fazer algumas opções estéticas: o texto aparecerá em
cena ou funcionará apenas como subtexto para a ação? Se ele aparecerá em cena,
como faremos isso? Haverá uma trilha sonora gravada com alguém cantando ou
recitando? O intérprete falará alguns trechos e omitirá outros, optando apenas pela
ação cênica? Haverá um narrador?
Alguns exemplos de desenvolvimento das atividades aqui comentadas podem ser
vistos a seguir.
Figura 46 – Esquema desenvolvido por um participante da disciplina Artes Corporais do Oriente I, a partir do
estudo de seu poema. Fonte: arquivo pessoal.
112
RETRATO
Figuras 47 e 48 - Intérprete experimentando a relação entre gesto, expressão facial e movimentação corporal
a partir do poema Retrato de Cecília Meireles. Fonte: arquivo pessoal.
113
Segue outro exemplo de poema que deu origem a uma sequência coreográfica.
LEITURA
114
115
Figuras 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56 e 57 - Intérprete exercitando unir os gestos de mão, as expressões faciais e os
primeiros movimentos pelo espaço a partir do poema Leitura de Adélia Prado. Fonte: arquivo pessoal.
Do ponto de vista corporal, cada artista deverá buscar em seu próprio repertório
corporal, o instrumental para soerguer a cena. Não há como indicar este ou aquele
caminho. Um bailarino contemporâneo utilizará o repertório corporal de que dispõe,
assim como um ator se valerá do instrumental expressivo de que dispõe, que
certamente difere do instrumental de um mímico ou um artista circense. O processo é
longo, cheio de incertezas e dúvidas como em qualquer outro processo de criação. A
técnica do Abhinaya planta a semente, mas cabe ao artista fazê-la germinar. O que é
importante saber é que, muitas vezes, todo esse treinamento será apenas uma
preparação para a cena e não será visível para o espectador e em outros casos ele
será a própria cena e a técnica estará muito evidente. Ofereço como exemplo dois
espetáculos que fiz: Fim de Jogo, de Samuel Beckett, no qual a técnica é utilizada
exclusivamente na construção corporal, gestual e facial dos personagens. E o
espetáculo Orè yèyè O, Oxum Tarangam, cuja técnica do Abhinaya é utilizada em seu
aspecto mais tradicional, porém dentro de um contexto cultural diferente. Sobre isso
tratarei no próximo capítulo.
116
Depois de ter construído a superestrutura do texto, o intérprete é livre para
recolocá-la em cena segundo sua própria opção estética. Não há a obrigatoriedade de
seguir toda a sequência de gestos e expressões construídas, todo esse material pode
se juntar a outros materiais, formando uma terceira coisa, que é a cena em si. Se
trabalho com bailarinos de dança indiana, logicamente eles querem chegar a
coreografias de dança indiana, mas quando trabalho com bailarinos de outros estilos ou
atores, as demandas são diferentes e é preciso ajustar e definir quais os limites de
abrangência da técnica. Quando alguém me diz “sinto que a técnica não funcionou para
mim” eu pergunto: “em que nível?”. Muitas vezes queremos que uma técnica seja a
resposta rápida e óbvia para todas as nossas inquietações, dúvidas e dificuldades, mas
não é assim que acontece. Pensamos que se ela não nos leva onde queremos então foi
ineficiente, ao invés de pensar para onde ela nos levou, de fato. O que revelou, onde
tocou, o que mobilizou, transformou. Nem tudo pode estar a serviço da cena, da
formalização externa. Creio que o Abhinaya, para aqueles que não praticam dança
indiana, seja mais fértil no campo do trabalho sobre o intérprete, do que no trabalho
sobre a formalização da cena, mas esta é uma constatação que ainda busco elaborar
mais profundidade.
Nesse processo, naturalmente vamos discutindo os elementos que comporão a
cena: cenografia, figurinos, iluminação, maquiagem, objetos de cena (Aharyabhinaya).
As cenas são individuais, mas, como trabalhamos em grupo, todos colaboram uns com
os outros, em um processo compartilhado. Segue anexo a este trabalho (Anexo I), um
vídeo realizado com uma aluna do curso de graduação em dança da Unicamp, durante
a realização do Programa de Estágio Docente, no qual podemos acompanhar, de modo
condensado, todo esse processo de criação até a formalização de uma cena. Creio que
seja interessante interromper a leitura ao final deste capítulo para assistir ao vídeo.
Para finalizar este capítulo, incluo alguns depoimentos de participantes da
disciplina Artes Corporais do Oriente I, realizada na Unicamp em 2013. A pergunta
formulada aos alunos faz parte do questionário final de avaliação: “De que modo você
avalia que a técnica pode contribuir ou dialogar com seu repertório/trajetória
profissional?”. Exemplifique.
117
Pode contribuir muito para a minha expressividade como bailarino. Eu, em
específico, sempre tive problemas com as extremidades, mãos e pés, e uma
expressão um pouco quanto congelada, ainda possuo, mas as aulas tocaram
nesse ponto de fraqueza que vou poder trabalhar mais arduamente agora. E na
aula foram exatamente esses 3 lugares que obtiveram o foco principal, a
possibilidade de manuseio desses locais, ferramentas para como usá-los e por
que usá-los. Também me iluminou no sentido da gestualidade, como achar um
gesto, como codificar um tipo de linguagem para que chegue no público, e
chegue com força nele. Além das propostas de experimentação com os textos,
frases de movimento e dinâmicas que foram inesperadamente interessantes e
ricas, mas que não tivemos tempo de aprofunda-las e chegar a algum produto,
mas que foram ferramentas muito ricas para todo tipo de linguagem quando se
trata da experimentação e processos artísticos (Depoimento Aluno A).
118
Figura 58 - Aluno da disciplina Artes Corporais do Oriente I, realizando improvisação a partir de poema em
espaço aberto.
Figuras 59, 60 e 61 - Alunos da disciplina Artes Corporais do Oriente I, realizando improvisação a partir da
experimentação dos gestos de mão. Fonte: arquivo pessoal.
119
Figura 62 - Roda de conversa com participantes do workshop de Abhinaya realizado no Espaço Caldeirão.
Discussão sobre a escolha dos poemas e como abordá-los. Fonte: arquivo pessoal.
120
3.3 – GURU SHIYSHIA PARAMPARA: CONECTANDO ARTISTAS ATRAVÉS DO
TEMPO
Antes de seguir para o próximo capítulo, onde irei expor minha experiência na
aplicação da técnica no processo de criação de espetáculos, gostaria de tratar de um
assunto pertinente ao escopo deste capítulo, para que o leitor possa melhor
compreender os fatos, percursos e experiências que me trouxeram até aqui, neste
estágio de aplicação da técnica: a relação entre mestre e discípulo, o Guru Shishya
Parampara, que é o sustentáculo de todas as formas de artes tradicionais da Índia e
referência fundante para esta artista. Este assunto, me parece, também desperta muita
curiosidade nos artistas ocidentais e está repleto de mistificações e preconceitos que
merecem ser melhor elucidados.
Quando opto por tratar deste assunto, não estou, de modo algum, elegendo o
sistema hindu como modelo ideal de aprendizado e transmissão de conhecimento,
mesmo porque todo sistema feito por e para homens sempre estará sujeito a abusos e
distorções. O foco está em refletir sobre métodos de transmissão de conhecimento que
sejam capazes de manter gerações de artistas conectados por um elo estético, ético,
espiritual e de preservar determinados conteúdos e práticas que, sem esse
instrumental, se perderiam e desapareceriam no tempo. Claro que podemos
argumentar que nem tudo merece ser preservado, mas o sistema de transmissão de
conhecimento possui mecanismos próprios de autorregulação, que servem de régua
niveladora entre o que merece ser preservado e o que deve ser desprezado.
Entretanto, somente quando estamos realmente dentro desta engrenagem é que
nos damos conta de como ela funciona e seu grau de complexidade. E cientes dessa
complexidade e da responsabilidade que ela nos incute é que podemos fazer um uso
consciente, embasado e responsável de seus conteúdos em favor de nossos processos
pedagógicos e de criação.
Apresento abaixo trecho do artigo publicado na Conceição/Conception – Revista
do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, em 2013. Neste artigo discorro
sobre o Guru Shishya Parampara, as Escolas Filosóficas da Antiguidade, seus
desdobramentos no desenvolvimento de uma pedagogia teatral no início do século XX
121
e suas influências e reverberações na prática teatral contemporânea. Por agora, me
atenho apenas à primeira parte do artigo.
O trecho selecionado abre espaço para que façamos as seguintes perguntas, de
acordo com o escopo desta pesquisa: De que modo o Guru Shishya Parampara
permitiu à artista chegar ao estágio atual de desenvolvimento de sua pesquisa e prática
cênicas? De que modo esta relação modificou a artista e contribuiu para a criação de
uma determinada postura ética frente à profissão e o mundo?
A Índia, assim como muitos outros países orientais, é berço de tradições milenares
sustentadas durante séculos quase que exclusivamente pela tradição oral.
Especialmente no que tange às artes corporais, como o teatro e a dança, em que a
representação viva do conhecimento é uma necessidade premente (ANTZE, 1995), a
transmissão oral personificada na figura de um mestre, tornou-se eficiente instrumento
pedagógico para a preservação da memória e da identidade cultural hindus,
contribuindo de modo definitivo para a sobrevivência de inúmeras formas de arte
tradicional na contemporaneidade.
O mestre ou Guru, como é chamado na Índia, é o sustentáculo ético, filosófico,
espiritual, moral e estético da tradição. De sua conduta e habilidade dependerá não
apenas a perpetuação de seu próprio nome, estilo e linhagem (Parampara), mas a
perpetuação da própria forma de arte a que se dedica. O Guru é, portanto, aquele que
incorpora o conhecimento passado de geração à geração e garante sua continuidade
no curso da história, sem grandes desvios. Este é, aliás, o ponto central de sua
responsabilidade: a preservação de um conhecimento que vai além dele mesmo e que
não deve ser maculado. Como diz Coomaraswamy:
122
gesticulação o termo ‘originalidade’ dificilmente pode ser aplicado. O que é
requerido do ator não é a sua interpretação de uma peça, mas a representação
do mesmo, em conformidade com as regras prescritas 49 (COOMARASWAMY,
2006, p. 11, tradução livre).
49 No original: “The code of gestures and movements prescribed for the different limbs was binding on the
nata; so much so, that in the matter of gesticulation the term ‘originality’ can scarcely be applied to him, for
what is required to him, is not his own interpretation of a play, but a representation of the same in
accordance with the prescribed rules” (COOMARASWAMY, 2006, p. 11).
50 No original: “Natyasastra as a manual of performance arts or as a textbook of dramatic aesthetics;
rather, they wished to investigate the ethical assumptions that informed argument and held it together as a
coherent philosophical text” (KARNAD, 2007, p. ix).
123
Trata-se de uma relação um a um, que não se aplica a generalizações. Um Guru
certamente terá mais de um discípulo, mas não é dado ao discípulo a escolha de ter
mais de um mestre. Pelo menos, não simultaneamente ou num plano ideal de relação.
Ao Shishya, discípulo, cabe a responsabilidade de absorver corretamente os
saberes de sua linhagem, como possível sucessor de seu mestre. Mas nem todo
Shishya virá a ser um dia Guru. Os anos de trabalho e dedicação são tão intensos e
exaustivos, exigem tantos sacrifícios pessoais, que nem todos os ingressantes chegam
a concluir sua formação e, mesmo entre os que chegam, nem todos recebem de seus
mestres o aval para darem prosseguimento à linhagem. Sem a benção e autorização do
Guru, mesmo o discípulo mais dedicado, terá dificuldades em seguir adiante.
É certo que as rupturas entre mestres e discípulos sempre existiram e que
discípulos renegados tenham criado, eles mesmos, linhagens importantes e
duradouras, superando seus mestres. Mas estamos tratando de um projeto pedagógico
ideal que, quando colocado em prática, estava sujeito a todo tipo de perversão, abuso e
também novas soluções encontradas por cada mestre no dia a dia de seus Gurukulas
(internatos).
É importante lembrar que o mestre não é apenas um professor especialista que
ensina determinado conteúdo. Ele é uma referência moral, ética, para seus discípulos.
Não é incomum que seja considerado como um segundo pai (ou mãe), ou mesmo que
adote seu discípulo mais querido como filho. Ele dá conselhos pessoais, auxilia nos
estudos, participa da escolha do esposo ou esposa e, não raramente, pune o discípulo
por faltas cometidas além do espaço de trabalho que compartilham.
A decisão de fazer de um discípulo sucessor em sua linhagem englobará todos
esses aspectos, que contém muitos elementos objetivos e subjetivos. O que está em
jogo vai muito além dos indivíduos ali envolvidos e diz respeito à preservação de um
bem maior, que passa pelo tangível, mas atinge a esfera do invisível. A sobrevivência
de uma visão de mundo e de homem, da memória coletiva de um povo e suas
inquietações.
O Parampara, a linhagem, é, portanto, um parâmetro sólido, que cria meios
práticos para garantir a eficiência desse processo. Ela cria uma relação de colaboração
124
espiral entre homens através dos séculos, retomando sempre os mesmos saberes em
espaços-tempos diferentes, preservando não apenas a representação exterior de um
determinado modo de olhar o mundo (a forma artística), mas, principalmente,
garantindo a preservação de todo um universo de imagens coletivas arquetípicas que
as sustentam e definem.
O Guru Shishya Parampara cumpre assim duas funções primordiais: a
preservação de formas artísticas tradicionais no que tange a suas técnicas e
procedimentos; e a perpetuação de uma visão particular de mundo, o hinduísmo, no
qual a ordem humana e a ordem cósmica se completam.
É importante lembrar que essa relação no campo das artes, deriva da relação
estabelecida entre os mestres espirituais e seus discípulos. A doutrina religiosa exige
do ingressante um profundo grau de entrega e dedicação, sem as quais os segredos do
mundo manifesto e não manifesto não lhes serão revelados e a liberação não será
possível.
A arte é, portanto, uma outra forma de acessar esse manancial sagrado, dar
vasão à necessidade humana de experimentar o desconhecido por meios controlados,
simbólicos e imagéticos, de vivenciar o mundo transcendente a partir do mundo físico,
sensorial. E por isso preserva muitas características que podem ser facialmente
associadas aos rituais religiosos e suas práticas.
O discípulo tem diversas obrigações para com seu mestre, desde aquelas que são
materiais e monetárias, até obrigações mais comezinhas, como realizar pequenos
favores cotidianos e domésticos. Mas muitas obrigações assumem o status de ritual
pela meticulosidade das ações que envolvem e pelo fato de que serão repetidas
durante toda a vida comum entre ambos: fazer o pedido de permissão, oferecer a
Dakshina, oferenda ao Guru, sempre que a formalidade de uma ocasião assim o exigir.
O discípulo deve sempre levantar-se quando o mestre chega, tocar seus pés
como sinal de respeito, nunca chamá-lo por seu nome, nem justificar-se quando for
corrigido. Não deve queixar-se do rigor do treinamento, demonstrar cansaço ou dor
física. Não deve encarar seu mestre quando esse lhe chama atenção ou questionar
125
suas decisões e escolhas, dentre uma lista enorme de outras obrigações que vão
sendo estabelecidas no dia a dia, nas dinâmicas do próprio fazer, no um a um.
Ações que, a princípio parecem mero jogo de poder e dominação, subjugando o
discípulo a autoridade do mestre, mas que, ao longo do tempo, revelam-se meios
concretos de definir uma ética da relação, moldando o caráter do discípulo aos valores
colocados pela tradição que não desconsideram os valores morais, filosóficos e
religiosos que guiam a vida social e espiritual dos seus indivíduos.
Em retribuição, o mestre lhe transmitirá o saber de que é depositário e que dará
ao discípulo a chance de elevar-se social e espiritualmente, levando adiante o nome de
sua linhagem, o nome de seu mestre e o saber secreto de sua arte.
O Guru Shishya Parampara é um sistema claramente hierárquico e define com
precisão os papéis de cada um de seus membros para minimizar ao máximo a
possibilidade de insucesso. O mestre e o discípulo cumprem seus papéis, o Dharma
(dever) que lhes cabe. E onde o Dharma é corretamente vivenciado, segundo a tradição
filosófica hindu, não há espaço para culpa ou arrependimento e o sucesso é certo.
É interessante lembrar que os hindus elegem quatro objetivos centrais da
experiência humana, conhecidos como Purusarthas: Kama (os prazeres sensuais),
Artha (a prosperidade), Dharma (conduta moral e ética) e Moksha (a liberação
espiritual). Esses objetivos que pertencem a toda a humanidade são também aplicados
à formação do discípulo tanto nos aspectos práticos e técnicos da apreensão da
linguagem artística, quanto nos aspectos subjetivos de sua formação ética e espiritual.
Mas tudo isso estará diluído no próprio treinamento e será aprendido de forma
indireta. Ao contrário de um mestre espiritual que tratará destes assuntos de modo
direto, por meio do estudo das escrituras sagradas. No campo das artes, estas
questões aparecerão nos mitos, nas diversas histórias sobre deuses, heróis, demônios
e homens santos que os artistas interpretarão. No intuito de representar esses seres,
dar-lhes vida e a apropriada forma externa, o discípulo e o mestre terão muitos embates
filosóficos sobre cada mito, cada personagem e seus conflitos éticos e morais. O
conhecimento transcendental e metafísico será agregado ao treinamento técnico desse
126
modo e então talvez haja a necessidade de se recorrer às escrituras em busca de
aprofundamento.
É comum no Ocidente a crítica a esse sistema por ser considerado um modo
autoritário de relação, que priva o aprendiz de sua autonomia crítica e estética, mas se
nos abstivermos de estabelecer juízos morais sobre o que é mais correto ou apropriado
em termos de pedagogia e didática, veremos que é um sistema que se provou eficiente
através dos séculos, dentro do contexto maior em que se insere.
As linhagens possuem nomes e árvores genealógicas próprias, por meio da qual
identificamos as especificidades de determinado estilo e sua evolução na história, que é
crítica e independente. É assim que ainda hoje podemos contextualizar determinado
artista ou determinada corrente artística, seus maiores expoentes e contribuições mais
significativas para a preservação do patrimônio cultural da Índia, no campo da dança e
do teatro, por exemplo.
Nos dias atuais, quando os artistas estão sendo formados em grandes instituições
de ensino, como a Kalakshetra e a Kerala Kalamandalam51, sob a tutela de diferentes
mestres, numa estrutura de funcionamento que mescla elementos do modelo
universitário ao Guru Shishya Parampara, as transformações decorrentes dessa
mudança ainda não podem ser mensuradas.
De que modo afetarão a transmissão de conhecimento, a preservação da tradição
e do ethos entre as gerações de artistas que se sucederão, é um terreno ainda novo e
inexplorado.
É certo que há uma tentativa consciente de preservar o modelo do sistema
tradicional, mantendo vivo alguns de seus preceitos mais importantes, mas é inegável
que as mudanças estruturais interferem sobremaneira nesse processo. A formação
integral de um discípulo que antes perdurava por toda a vida, numa relação de profunda
entrega e intimidade com seu mestre, segundo o sistema atual, se completa em quatro
ou seis anos. Os alunos saem formados das instituições, mas é difícil precisar se estão
51 Kerala Kalamandalam e Kalakshetra Foundation são duas renomadas instituições do sul da Índia,
engajadas no ensino de formas tradicionais clássicas e folclóricas de teatro, dança e música indianas. A
primeira foi fundada em 1930 por Valathol Narayana Menon em Kerala, e a segunda em 1936 por
Rukmini Arundale Devi, em Tamil Nadu.
127
realmente preparados para serem instrumentos vivos e conscientes de perpetuação da
tradição milenar que representam.
A tudo isso se soma a influência do modelo ocidental de educação, em especial os
modos de relação professor-aluno; as exigências do mercado e a alta competitividade
que leva a posturas profissionais predatórias; o crescente número de estrangeiros
praticantes, dentre tantas outras variantes que afetam diretamente a tradição e seus
instrumentos de perpetuação.
De todo modo, é inegável que esse sistema tenha impregnado de tal maneira a
sociedade indiana, que resquícios dele apareçam nas mais diversas áreas e campos do
saber, como algo já absorvido, um bem inquestionável, que se coloca em prática
mesmo quando não é conscientemente acionado. Trata-se de uma precária e instável
luta de forças, entre o poder de avançar da modernidade e o poder de perdurar da
tradição.
Neste ponto da leitura, acho que seja pertinente apresentar meus mestres a quem
devo, não apenas todo o conhecimento prático-teórico que embasa a pesquisa
realizada para esta dissertação, mas as fundações éticas da artista que hoje sou:
Srimathi Kalamandalam Sumathi Teacher, da Natyalaya School of Classical Dances
(Kerala); Srimathi Priyadarsini Govind (Tamil Nadu), atual diretora da Kalakshetra
Foundation; Srimathi Kalanidhi Narayanan (Tamil Nadu); Srimathi Maya Vinayan, da
Triveni School of Classical Dances (Tamil Nadu); e Nellai Manikandam (Tamil Nadu).
Sem dúvida, houve outros mestres para além das danças indianas que também
contribuíram para essa pesquisa. Alguns, dentro da academia, mas a maior parte na
lida do mundo, nos embates do dia a dia, nos encontros fortuitos que o destino nos
propicia. Dentre todos eles, devo citar Edilson Castanheira, fundador do Grupo
Caldeirão, meu primeiro professor de teatro, diretor, marido e grande companheiro de
jornada e aventura nos últimos vinte anos!
128
Com todos eles aprendi coisas diferentes de valor inestimável. Graças a eles sei
que tenho me tornado não apenas uma artista mais capacitada, mas um ser humano
mais íntegro e sensível. Isso não significa que nossos encontros tenham sido ou sejam
pefeitos, angelicais. Não gosto de relações idealizadas, de mistificações. Como tudo
que é humano e envolve subjetividades, sentimentos e emoções, muitas vezes nossas
relações foram, são e serão conflituosas. Isso não diminui o valor das experiências, ao
contrário, reforça sua dimensão humana, os encontros, desencontros e embates entre
indivíduos que escolheram a arte como caminho de crescimento e aprimoramento neste
mundo, dentre tantas possibilidades que ele nos oferece.
Figuras 64 e 65 - Guru Srimathi Maya Vinayan da Triveni School of Classical Dances, Chennai, Tamil Nadu.
Expoente de Bharatanatyam, Kuchipudi e Mohiniyattam. Fotos: arquivo pessoal.
129
* De que modo o Guru Shishya Parampara permitiu à artista chegar ao estágio
atual de desenvolvimento de sua pesquisa e prática cênicas?
* De que modo essa relação modificou a artista e contribuiu para a criação de uma
determinada postura ética frente à profissão e o mundo?
Sendo uma artista ocidental não foi nada fácil para mim entrar em contato com o
Guru Shishya Parampara. É difícil para a maioria de nós lidar com as questões de
interrelação pessoal, estabelecidas de modo rígido e hierárquico, cheia de regras e
preceitos, muito mais do que com as questões de forma e conteúdo estruturados da
técnica de dança. Comigo também não foi diferente. Minha primeira experiência na
Índia foi a mais dura nesse sentido. Durante três meses morei na casa da Guru
Kalamandalam Sumathi, o que fazia com que nossa relação e convivência extrapolasse
em muito o espaço da sala de aula. Foi uma legítima experiência de Gurukulam. Ela
pouco falava inglês e nossa comunicação era reduzida, quase mimética e, muitas
vezes, creio que não nos entendíamos bem. Durante as aulas, uma outra bailarina,
mais jovem e fluente em inglês, nos acompanhava mostrando os movimentos e
funcionando como tradutora de parte a parte.
Minha mestra era rígida: com horários, vestimenta, aparência, disposição. Se
chegasse na sala de aula com a cara abatida ou se reclamasse de alguma dor ela
rapidamente retrucava: “Se quiser, não fazemos aula hoje”. Como a me lembrar que
quem havia atravessado o oceano e investido rios de dinheiro para estar ali era eu e
não ela. Aprendi logo a não reclamar e a sempre entrar na sala de aula com um sorriso
no rosto. No começo tudo parecia falso e formal, mas, com o tempo, essa prática
operou um pequeno milagre: as dores não sumiram, mas deixei de ter pena de mim
mesma e tornei-me mais disciplinada; o cansaço não desapareceu, mas não virou
desculpa para não me dedicar e o sorriso foi se tornando dia após dia mais autêntico,
130
porque a disciplina física e mental desenvolveu em mim, aos poucos, uma firmeza
interna que me deixava verdadeiramente feliz e satisfeita.
Eu não podia me sentar durante a aula, não podia beber água ou pedir para
descansar. Nas três horas consecutivas que trabalhávamos diariamente, debaixo de um
calor típico do sul da Índia, usando uma vestimenta típica e também quente, nem
mesmo o ventilador da sala podia ser ligado. Eu fazia o pedido de permissão 52 para
abrir e fechar os treinos, me colocava em pé no centro do espaço e ficava disponível
para o que desse e viesse. Eram horas intensas das quais me lembro com saudade e
um pouco de medo. Eu nunca sabia o que esperar, só sabia que me custaria muito
esforço e suor.
No entanto, muito do que aprendi com ela se deu literalmente na cozinha,
enquanto ela preparava nossas refeições. Discutíamos o Natyasastra, a conduta do
bailarino, a história das danças, mitologia, filosofia... Ela me falava sobre sua vida, suas
experiências, seus mestres, às vezes com a presença de seu filho a intermediar a
conversa, às vezes só nós duas mesmo, ela no fogão e eu sentada no chão. Com o
tempo, mesmo sem o inglês, nossa comunicação tornou-se mais fluente. Nessas
ocasiões aprendi muito sobre arte, mais ainda sobre a diversidade e beleza do ser
humano e um pouquinho sobre culinária.
Entretanto, a interferência de minha Guru não se restringia apenas à sala de aula.
Ela determinava como eu deveria me vestir para sair à rua, como arrumar os cabelos,
me maquiar. Se não estivesse vestida de acordo, ela não hesitava em me pedir para
que voltasse ao quarto e me trocasse. Ela também determinava quantas horas eu podia
passar fora de casa, no único dia da semana em que me era permitido ir até o centro
comercial mandar e-mails para casa e fazer compras de provisões. Também havia todo
um protocolo de tratamento das pessoas que frequentavam a casa que eu devia seguir
52 Todas as formas de dança clássica indiana possuem seu próprio pedido de permissão que as
caracteriza. Ele deve ser realizado diariamente no início dos treinos (para abrir) e no final dos treinos
(para fechar). Trata-se da ritualização do espaço/tempo da aula, do encontro, demonstração de respeito
à linhagem e àquele através de quem o conhecimento continua a fluir para as gerações futuras. Nele,
saudamos à Deus, ao Guru e à humanindade pedindo que aquele encontro seja benéfico para nós e
produza beleza para o mundo. É comum tocar os pés ou as mãos do Guru no pedido de permissão. O
desrespeito a essa conduta é considerada uma falha gravíssima, que desqualifica o discípulo frente ao
seu mestre.
131
rigidamente: não apertar as mãos, me levantar sempre que alguém mais velho que eu
entrasse no recinto, dentre outras formalidades. Quando, inadvertidamente, eu me
esquecia de algo e agia por impulso, ela me corrigia na frente de todos com severidade.
Não é fácil para uma mulher adulta, independente, aceitar esse tipo de conduta.
Confesso que em muitos momentos fiquei profundamente irritada, sem compreender
qual a necessidade de tudo aquilo. Hoje, mais distanciada emocionalmente, continuo
achando algumas práticas antiquadas e desnecessárias, mas compreendo que elas
tenham sido forjadas dentro de um sistema tradicional, onde o respeito à hierarquia é
determinante. Podemos questionar, como ocidentais, a validade desse sistema, mas
em última instância penso: que direito temos de julgá-los quando seus métodos têm se
mostrado eficazes ao longo dos séculos?
Depois dessa primeira experiência, como uma prova de fogo, as outras
experiências com outros mestres foram mais tranquilas. Minha primeira decisão foi
nunca mais hospedar-me junto ao meu mestre. Para mim era uma questão de saúde
mental ter um espaço para ser simplesmente “ocidental”. Usar minhas roupas, portar-
me como de costume, agir com naturalidade. Até hoje acho que foi a decisão mais
acertada que tomei.
Por obra do destino, acabei indo parar em outro estado do sul da Índia onde fiz
novos amigos e relações. Nesse estado, conheci outros Gurus e tive experiências com
mestres cuja postura diferia muito de minhas primeiras experiências. Esses mestres
eram mais jovens, acostumados a conviver com ocidentais e seus hábitos
comportamentais. Sabiam que algumas coisas eram simplesmente impossíveis ou
mesmo ofensivas para alguns de nós e se mostravam dispostos a relativizar algumas
posturas em prol de viabilizar o encontro.
Isso levava a dois resultados antagônicos: tornava o processo todo mais palatável,
mais digerível para os estrangeiros habituados ao formato das academias e escolas de
dança ocidentais, mas também tornava a relação mais esvaziada, “only comercial”, com
bem menos comprometimento e envolvimento de parte a parte. Esse é o reverso da
moeda. Não é incomum ouvir estrangeiros reclamando de que seus mestres os tratam
como uma nota de dólar ou euro. Devo admitir que, se há mestres inescrupolosos e
132
gananciosos, preocupados exclusivamente com o vil metal, nós também temos nossa
responsabilidade nessa conjectura à medida que, procurando fugir das regras e
deveres que o sistema tradicional nos coloca, contribuímos para o surgimento de um
Guru Shishya Parampara de “boutique”, para estrangeiros endinheirados (mesmo que
isso nem sempre seja verdade), levando a um esvaziamento dos valores da tradição.
Tudo se resume a uma troca comercial e, portanto, tudo tem seu preço.
Eu tive a oportunidade de conhecer alguns profissionais desse tipo e muitos
outros, a maioria que, fazendo da dança sua profissão, ainda conseguem manter uma
postura ética frente a seus discípulos, revendo e revisitando a tradição, sempre
conectados ao tempo presente, suas demandas e o crescente número de praticantes
estrangeiros.
Em 2006, com uma bolsa de estudos da UNESCO, voltei à Índia para fazer uma
residência com a companhia teatral Koothu-p-pattarai. Por intermédio deles, consegui
contatar a famosa Guru Kalanidhi Narayanan que aceitou me receber em sua casa. Eu
desejava fazer aulas de Abhinaya com ela, quesito no qual é especialista, mas não
sabia o que esperar. Afinal, ela era uma sumidade e eu, apenas uma estrangeira
praticante de Bharatanatyam. Fui cordialmente recebida e orientada. Infelizmente, pelo
adiantado da idade, ela já não dava mais aulas para iniciantes (sim, mesmo com oito
anos de dança na época eu era considerada iniciante!), preferia centrar seus esforços e
energias em bailarinas profissionais. Mas não sai de lá desassistida. Ela pegou o
telefone, ligou para uma de suas discípulas e disse que mandaria uma aluna
estrangeira para estudar Abhinaya. Mais tarde vim a saber que não havia se tratado de
um pedido, mas de uma ordem e que ela já tinha definido naquele único telefonema a
frequência das aulas – que seriam diárias –, seu custo e conteúdo programático.
Belíssimo exemplo de funcionamento da linhagem, do Guru Shishya Parampara.
Antes de deixar sua casa, ela me perguntou qual era meu repertório expressivo de
Bharatanatyam. Titubeei, pois não sabia os nomes das coreografias direito e não sabia
cantar as músicas, minha pronúncia em tâmil era péssima. Ela me olhou seriamente e
apenas disse: “Se você não sabe cantar e não sabe o que as canções querem dizer,
você não sabe nada de Bharatanatyam”. Depois de estudar Abhinaya pude
133
compreender e concordar plenamente com ela. Os poemas musicados são o alicerce,
as fundações das coreografias expressivas, os Padams. Não é possível chegar à
acuidade da expressão, da técnica do estilo, sem conhecê-los profundamente. Quando,
em 2007, iniciei o projeto que originou o espetáculo Orè Yèyè O, Oxum Tarangam, não
me esqueci de suas palavras e a primeira coisa que fiz foi escrever o poema-canção e
me debruçar sobre ele.
Graças a esse contato, cheguei à também renomada bailarina e professora,
Priyadarsini Govind. Com ela fiz dois meses de aulas intensivas de Abhinaya e descobri
que sim, havia espaço – e muito – para a criação e a invenção na dança indiana. Ela
me dava total liberdade para criar a partir dos códigos do estilo Bharatanatyam que eu
já dominava e ia, literalmente, me orientando a melhorar a escolha dos gestos,
tornando-os mais elaborados, menos óbvios, buscando uma expressão exterior mais
conectada às emoções e imagens internas. Foi um período extremamente prazeroso e
de muitas descobertas. Eu nunca tinha estudado dessa forma. Até então meu
aprendizado tinha se dado todo por cópia e pela primeira vez me reconheci como
criadora. Ao final dos dois meses, recebi a notícia que tínhamos sido intimadas a
comparecer à casa de Srimathi Kalanidhi Narayanan para mostrar os resultados. Meu
coração quase parou de tanto medo. Me lembrei de sua expressão sóbria, do olhar
penetrante e das palavras cortantes e tive medo do que estava por vir.
Quando chegamos, fizemos as saudações de praxe e sem muita formalidade,
começamos a trabalhar. Kalanidhi Mammy, como é carinhosamente chamada por seus
discípulos, começou a cantar e eu a dançar. Foi literalmente um caos. Eu não entendia
o que ela dizia, pois ela cantava de modo diferente ao que eu estava acostumada. Tudo
ficou confuso e sem sentido. Minha professora, Priyadarsini Govind, interferiu e sugeriu
que ela mesma cantasse. Então as coisas se acalmaram e eu pude dançar as duas
coreografias que tínhamos criado juntas. Para qualquer outro artista talvez isso não
seja grande coisa, mas, para um bailarino de dança indiana, dançar numa salinha
pequena, tão próxima, para a grande Guru Kalanidhi Narayanan, lenda viva da dança,
tendo a música cantada pela renomada bailarina Priyadarsini Govind, era um feito de
tirar o fôlego.
134
Quando terminei de dançar houve um silêncio na sala. Kalanidhi disse algumas
coisas para Priyadarsini em tâmil e pude compreender que estava dando seu feedback
para minha professora e perguntando detalhes do processo. Então, ela sobriamente se
virou para mim e disse: “Para apenas dois meses de treino, você aprendeu o que era
possível aprender, mas ainda falta muito”. Fiquei feliz e aliviada! Aquilo era quase um
elogio para quem conhece o comportamento dos Gurus. Essa experiência me
encorajou a voltar para o Brasil e começar toda essa empreitada.
Nesse mesmo ano conheci o mestre Nellai Manikandan, também através do grupo
Koothu-p-pattarai. Ele ensina uma forma de dança folclórica conhecida como
Devarattam, inspirada no movimento dos pássaros, da colheita e das artes marciais do
estado de Tamil Nadu, o Silambam. Nellai é um homem pequeno, de expressão forte e
temperamento doce. Suas aulas eram alegres, divertidas e muito estimulantes. Mesmo
nas tradições folclóricas prevalecem determinados tipos de formalidades entre mestre e
discípulos, só que de modo menos rígido. Nós também tocávamos seus pés e o
chamávamos de Guru, mas para além do espaço de treino, as relações eram bem
horizontais. Nellai é eletricista e mestre de uma forma de arte popular, a terceira
geração de uma família que preserva uma das formas de dança mais tradicionais do
estado de Tamil Nadu. Com ele fui apresentada ao universo das danças populares, os
pontos de contato com as tradições clássicas e as diferenças mais significativas entre
ambos. Ampliei meu repertório corporal, gestual e, com sua autorização, me tornei a
primeira bailarina brasileira a praticar e ensinar esta forma de dança no Brasil.
Atualmente, estudo com uma Guru mais jovem com quem, ainda sem estabelecer
uma relação francamente horizontal, tenho muito espaço para dialogar, debater, propor
e até mesmo discordar. Sem dúvida, se houver um impasse e não pudermos chegar a
um consenso, sua decisão prevalecerá sobre a minha porque ela é a mestra e eu a
discípula e quanto a isso nós duas concordamos. No entanto, para quem já viveu
situações onde o diálogo não era possível, isso já representa um grande avanço.
Graças a essa parceria, pude aprofundar muito meus estudos de dança clássica
indiana, ampliar meu repertório e desenvolver a etapa teórica-prática desta dissertação.
135
Foi com a orientação de minha atual Guru, Maya Vinayan, que coreografei o espetáculo
Orè Yèyè O, Oxum Tarangam sobre o qual tratarei no próximo capítulo.
Quanto à segunda pergunta: de que modo esta relação me modificou e contribuiu
para a criação de uma determinada postura ética frente à profissão e o mundo, começo
citando um trecho de meu artigo:
O Guru, que é o paralelo hindu do filósofo antigo, continua sendo o esteio ético
e moral de uma determinada visão de mundo, mantenedor da memória oral e
dos conhecimentos tradicionais. Um exemplo vivo de sabedoria e virtude a ser
seguido. E a sabedoria de que dispõe não é apenas aquela referente a
determinado ofício, mas uma sabedoria maior sedimentada num conhecimento
que transcende a experiência material (CIPPICIANI, 2013, p. 46).
136
O carpinteiro não vem e diz: “Escute os meus argumentos sobre a arte da
carpintaria”, mas se compromete a construir uma casa e a constrói. Faça você o
mesmo53 (HADOT, 2006, p. 239, tradução livre).
Todos os mestres com quem tive contato eram categóricos nesse ponto. Nellai
Manikandam, mestre de Devarattam, uma vez me disse: “Sempre dance junto de seus
alunos, treine, se esforce e fique cansado para que eles saibam que seu professor não
apenas sabe ensinar, mas também sabe dançar”. Parece um contracenso dizer algo
assim, mas trata-se de uma observação muito interessante sobre o valor do fazer junto,
de criar esse laço estreito com seus pupílos não apenas pelo que se diz, mas
principalmente pelo que se faz. De fato, essa postura acaba sendo aplicada às demais
esferas de relacionamento entre mestres e discípulos de modo que a conduta do
mestre passa ser um guia valoroso para o crescimento pessoal do discípulo fora do
âmbito da sala de aula. É o mestre preparando o esteio ético e moral que levará a
tradição até às gerações futuras.
Ou seja, não basta preparar o discípulo tecnicamente para a execução de seu
ofício, é necessário prepará-lo para tornar-se agente transmissor de um conhecimento
que atravesse o tempo, tendo total consciência de seu papel e da importância de sua
função para que esse mesmo conhecimento não seja deturpado, negligenciado ou
esquecido.
Observando essa complexa rede de relações entre mestres e seus discípulos
comecei a pensar com mais afinco sobre o porquê me tornei artista, qual meu
compromisso com o mundo e os homens, o que realmente desejo dizer por meio da
arte e tantas outras perguntas similares que, não tendo uma resposta definitiva, vão
norteando minhas ações como uma bússola, um sonar. Perguntas que, como colunas
de uma fundação, vão construindo um sólido edifício, experiência por experiência,
aprendizado por aprendizado, ano após ano.
53No original: “El carpintero no viene y os dice: “Escuchad mis argumentaciones sobre el arte de la
carpintería”, sino que se compromete a construir una casa y la construye (...). Haz tu tambien lo mismo”
(HADOT, 2006, p. 239).
137
transformar e atingir um certo modo de ser. Considero assim o ascetismo em
um sentido mais geral do que aquele que lhe dá, por exemplo, Max Weber; mas
está, em todo caso, um pouco na mesma linha (FOCAULT, 2004, p.1).
138
CAPÍTULO 4 – PRODUÇÃO ARTÍSTICA: A TÉCNICA COMO
ESPETÁCULO
Este espetáculo foi produzido pelo Grupo Caldeirão em 2001.54 Nele atuei como
atriz encenando o personagem Clov. Ele foi apresentado pela última vez em 2008, na
mostra comemorativa dos 20 anos de existência da companhia, o Caldeirão´20.
No ano de 2001 eu era ainda uma jovem praticante de dança clássica indiana,
com não mais do que dois ou três anos de estudo e não tinha o conhecimento teórico-
prático de que hoje disponho sobre o assunto Abhinaya. O que me movia era certa
intuição, ainda sem nenhuma comprovação concreta, de que o treinamento expressivo
proveniente da dança e do teatro indianos poderia ser muito útil em meus processos
criativos no teatro.
Quando optamos pelo texto de Samuel Beckett, não havia nenhuma intenção da
companhia em criar pontes entre a montagem e as formas artísticas provenientes da
54Assista trechos do espetáculo no material audiovisual em anexo ou no sítio do Youtube, digitando “Fim
de Jogo Grupo Caldeirão”.
139
Índia. Essa aproximação se deu exclusivamente no âmbito da preparação dos atores de
modo muito natural e despretensioso, colaborando no processo de construção das
personagens, em especial do personagem Clov, e em outros aspectos complementares
da montagem.
Fim de Jogo não é um texto realista. É comum que ele seja definido
genericamente como “teatro do absurdo”, embora Beckett preferisse o termo “teatro da
condição humana” ou “comédia sombria”, lembrando-nos, desse modo, que absurda e
patética é a própria condição humana. Trata-se de uma obra extremamente complexa
com diferentes camadas de leitura e construção, que exigem um grande empenho por
parte dos artistas para acessar suas imagens e símbolos, capturando aquilo que as
palavras de Beckett apontam, mas não explicitam. Partindo desse pressuposto, já
sabíamos que seria necessário construir um corpo, uma gestualidade e uma voz que
fossem capazes de dar conta daquele discurso, aparentemente absurdo, mas
incrivelmente coerente.
Durante seis meses nos debruçamos sobre as versões originais do texto em
francês e inglês para produzir uma tradução integral em língua portuguesa. Durante
esse longo processo, optamos por centrar nossa montagem apenas nos personagens
Hamm e Clov, criando uma terceira versão adaptada a partir da versão completa em
português, sem os personagens Nagg e Nell. Tudo estava centrado na presença física
de Hamm e Clov em cena, dois homens presos num espaço não definido do qual não
conseguiam sair, entregues a um diálogo absurdo, numa tentativa de restabelecer
sentimentos de humanidade e afeto que a todo o momento se mostravam impossíveis.
Foi um longo processo de construção e a técnica do Abhinaya apareceu nos
ensaios de modo natural. Era preciso encontrar esse outro corpo, essa outra voz e isso
exigia grandes esforços por parte da equipe (atores e direção) em buscar outras
referências, outros pontos de partida que pudessem levar a outras respostas. Nesse
momento, me lembrei dos atores de Kathakali e suas expressões faciais estilizadas, do
corpo transfigurado e ampliado pela adoção consciente de posturas corporais não
naturalistas, criando presença física em cena de aspecto sobre-humano. Achei que
havia relação entre essa estética e aquilo que estávamos tentando fazer.
140
Partindo desses pressupostos, começamos a explorar em nossos próprios corpos
o que seria esse corpo transfigurado e ampliado. Usei como referência as próprias
indicações de Beckett quanto ao personagem Clov, por exemplo. Logo no início do
texto ele nos diz que Clov nunca se senta! Imaginei as tensões acumuladas em um
corpo que nunca relaxa, nunca se entrega à gravidade, sem flexibilidade e as
implicações dessa rigidez cadavérica sobre sua respiração, sua feição, seu modo de
comportar-se e relacionar-se, sua condição psicológica e emocional.
Já o personagem Hamm era paralítico, o que exigia do ator que ia representá-lo
uma profunda consciência corporal capaz de manter sua presença viva e interessante
em cena para a plateia, por quase duas horas ininterruptas, movendo apenas a metade
superior de seu corpo. Aqui se abria um campo fértil para a investigação desse corpo
não realista, dessa expressão facial estilizada, de uma gestualidade conscientemente
ampliada.
A partir dessas indicações, nos dispusemos a explorar diferentes modos de andar,
apoiar os pés no chão, posicionar a coluna, os ombros, o pescoço, as mãos etc. O
treinamento da dança indiana, por meio dos Adavus, já tinha me ensinado como um
corpo pode assumir conscientemente posturas não naturais com o propósito de
alcançar um efeito estético não realista. Portanto, fizemos uso desse instrumental
utilizando, no processo de ensaio, sequências corporais de deslocamento, oriundas do
treinamento tradicional e outras elaboradas por mim a partir dessas referências,
levando em consideração o que a construção de cada personagem nos exigia.
Começamos a brincar de experimentar diferentes eixos corporais, tentando perceber as
tensões que cada nova postura gerava em nossos corpos e como eles se
reorganizavam para dar conta dessas mudanças em termos físicos e mentais. O
personagem Clov, por exemplo, tinha o eixo corporal ligeiramente projetado para frente,
a coluna e o peito muito enrijecidos, as pernas permaneciam afastadas e os joelhos
travados, o braço, o antebraço e as mãos estavam sempre rígidos e afastados do
corpo. Toda essa construção corporal corroborava aquilo que vislumbrávamos no texto
de Beckett.
141
Figuras 66, 67 e 68 - Exemplos de uma construção corporal não realista, capaz de expressar a rigidez e
imobilidade dos personagens. É possível ver a projeção para frente do eixo corporal do personagem Clov e a
expressividade das mãos do personagem Hamm. Fonte: arquivo Grupo Caldeirão.
142
adquirido com a dança indiana. Investimos no uso não natural dos movimentos dos
olhos, sobrancelhas, pescoço; investigamos os Navarasas e sua utilidade na
construção das expressões faciais, levando em consideração as necessidades e
reviravoltas do próprio texto.
143
suporte em cena. Foi um período interessante, no qual investigamos diferentes estilos
de maquiagem e propostas de figurino, até chegar àquela que considerávamos mais
adequadas às exigências daquele corpo que estávamos construindo.
Essa foi a primeira oportunidade que tive para estudar o que seria o
Aharyabhinaya (elementos externos da encenação: figurinos, maquiagem cenografia)
dentro da tradição clássica hindu. E como foi difícil encontrar material bibliográfico a
respeito! Pude apenas concluir que havia intencionalidade entre as cores e padrões
utilizados nas maquiagens e o status social, as características emocionais dos
personagens; que as cores das vestimentas, assim como sua forma, também eram
indicativos da posição social e da natureza interna dos personagens e que tudo isso
devia estar em perfeito acordo como a gestualidade assumida em cena.
Tendo isso em mente, começamos a experimentar diferentes propostas de
maquiagem, cuja cor, forma, jogo de luz e sombra dessem conta de exprimir a natureza
mais íntima dos personagens. Ancorados nesse mesmo pensamento, optamos pela
confecção de figurinos pesados, sobrepostos, com cores escuras e frias. A cenografia
também refletia a esterilidade exigida pelo texto, era cinzenta, áspera, iluminada por
uma luz fria e impessoal.
Figuras 72 e 73 - Primeiros experimentos de maquiagem ainda muito realistas. Fonte: arquivo Grupo
Caldeirão.
144
Figuras 74 e 75 - Maquiagem construída a partir do jogo de luz e sombra. Fonte: arquivo Grupo Caldeirão.
Figura 76 - Cenografia e vestimentas: opção por cores frias, texturas ásperas, tecidos pesados e sobrepostos
ampliando sensação de imobilidade, rigidez e desconforto. Fonte: arquivo Grupo Caldeirão.
145
Com os conhecimentos que dispúnhamos naquela ocasião, não creio que fosse
possível ir muito além do que foi exposto aqui nesse primeiro contato com a técnica do
Abhinaya. Entretanto, essa experiência foi fundamental para a consolidação daquela
intuição inicial de que a técnica da dança e do teatro indianos podia sim ser útil à
criação cênica fora de seu contexto original, nos encorajando a investir nesse caminho
em projetos futuros de treinamento e montagem.
Tudo se deu de modo empírico, sem muito embasamento teórico, a partir da
pouca experiência prática que eu tinha com a técnica e os parcos referenciais
bibliográficos disponíveis em português, naquela época. Creio que mesmo isso foi de
grande valia para o grupo, pois não se tratava de tentar provar a utilidade da técnica,
não estávamos nos predispondo a criar um nicho de mercado como um grupo que fazia
teatro “aos moldes orientais”, muito menos demonstrar erudição. Partimos do material
humano presente, do que cada um tinha a oferecer ao processo de criação e essa foi a
contribuição que pude dar, acolhida e aceita pelos meus parceiros de trabalho. No
espetáculo não há indícios que remetam à estética hindu. A técnica, nesse caso, nos
deu referenciais para a criação, associada a outras informações e práticas que, juntas,
se encarregaram de produzir o resultado esperado em cena.
No ano de 2007, por conta dessa montagem, fomos convidados a realizar um
intercâmbio cultural na Índia junto à companhia Koothu-p-pattari. Eles tiveram a
oportunidade de assistir trechos do espetáculo em português e, embora sem poder
compreender o que era dito e sem conhecer o texto de Beckett, ficaram interessados no
modo como tínhamos construído e caracterizado os personagens. Fato curioso e
embaraçoso foi eles saberem, quando já estávamos lá, que um dos elementos centrais
para construção dos personagens, o Abhinaya, vinha da própria Índia e que a maioria
dos atores ali presentes pouco ou nada sabiam a respeito. Há, sem dúvida, uma grande
cisão na Índia entre as formas tradicionais de teatro e os experimentos
contemporâneos, seja do ponto de vista estético, seja do ponto de vista da formação de
seus intérpretes. Infelizmente, nessa ocasião, não pudemos apresentar o espetáculo, o
que teria sido, sem dúvida, uma experiência incrível e muito enriquecedora.
146
4.2 – CONTOS E CANTOS DA ÍNDIA: CORPO-PALAVRA PARA CONTAR
HISTÓRIAS
Esse espetáculo foi produzido para ser apresentado na Índia durante intercâmbio
cultural do Grupo Caldeirão em 2007.55,com apoio do Ministério da Cultura (SEFIC).
Como o elenco brasileiro não falava inglês em sua totalidade, estava descartada a
possibilidade de produzir algo em língua inglesa, passível de entendimento para o
público indiano. A solução encontrada foi partir de referenciais que pudessem ser
acessados independentemente das barreiras impostas pela língua e a mitologia hindu
nos pareceu a resposta mais satisfatória e lógica.
O espetáculo consistia em contar quatro diferentes histórias provenientes da
mitologia hindu e de amplo conhecimento local, de tal modo que o público, mesmo sem
compreender a língua, soubesse do que se tratava e pudesse se ocupar não no ‘o quê’,
mas no ‘como’ estávamos contando aquelas histórias já tão familiares. E não nos
interessava fazer isso reproduzindo seus códigos e estéticas. Queríamos que eles
assistissem a uma companhia brasileira engajada em dar vida a histórias muito diversas
de seu próprio repertório cultural, tendo como ponto de partida suas matrizes culturais.
Como o Grupo Caldeirão já trabalhava com elementos da cultura popular brasileira em
outros projetos, as danças, os ritmos e os folguedos, foram naturalmente integrados
àquela proposta.
O resultado final foi um espetáculo que contava histórias tradicionais hindus, em
português, se valendo de elementos da música e de algumas danças populares
brasileiras. Nesse espetáculo, o mantra favorito de Mahatma Gandhi ganhou uma
levada de Coco, as Talas (padrões rítmicos) viraram um sambinha cadenciado para
embalar a dança de Mohini, Krishna dançou ao som de um Ijexá e Rama cruzou a
ponte dos macacos em direção ao Sri Lanka, embalado pela percussão forte do
Guerreiro, irmão alagoano do Reisado. Sem falar no Maracatu que embalava nossa
chegada no espaço com os dizeres: “Bandeira Branca subiu no mastro a nação toda
estremeceu. Se fez o rei, se fez rainha, a dama do passo apareceu. Virou noite virou
55Assista uma das histórias do espetáculo no material audiovisual em anexo ou no Youtube, digitando:
‘Contos e Cantos da Índia Grupo Caldeirão’.
147
dia, virou noite virou dia e a nação amanheceu”. Uma das tantas composições musicais
feitas pelo grupo, que entrava em cena todo vestido de branco, uma clara referência a
aspectos da cultura brasileira na qual a roupa branca tem um significado especial, além
de ser um contraponto à profusão de cores, formas e texturas do teatro tradicional
hindu ao qual estavam familiarizados. A Índia vista pela sensibilidade de brasileiros.
Figura 77 - Entrada do grupo em cena cantando Maracatu. Apresentação feita na sede do grupo Koohtu-p-
pattarai em 2007. Fonte: arquivo pessoal. Fotógrafo: Mohan Das Vadakara.
Por se tratar de duas culturas musicalmente muito fecundas, não é preciso dizer a
empatia e comoção que esse diálogo despertou em nós. Esse espetáculo ainda faz
parte de nosso repertório, mas talvez nenhuma plateia tenha se deliciado tanto com ele
em todos esses anos e inúmeras apresentações pelo Brasil, quanto nossas plateias
indianas. Mas o leitor pode se perguntar: e o Abhinaya, onde entra em tudo isso?
Bom, primeiro podemos dizer que o Vachikabhinaya (elementos discursivos que
incluem a música) foram os primeiros a serem abordados nesse processo por uma
questão de necessidade: a barreira linguística. Tivemos que nos debruçar sobre o
desafio de encontrar meios discursivos de viabilizar a comunicação com uma plateia
que falava outro idioma. A escolha das histórias e todo o trabalho de elaboração sobre
elas para definir como contá-las, o que valorizar, quais aspectos eram fundamentais,
mesmo que as palavras não pudessem ser compreendidas em sua totalidade. Todo o
148
estudo musical feito para favorecer essa comunicação, visto que a música é por si só
uma comunicação de caráter universal.
Saber dessa afinidade, saber que na cultura hindu a música desempenha um
papel tão importante quanto em nossa própria cultura foi fundamental para encontrar o
melhor caminho para viabilizar aquele projeto. Sem essas referências prévias do
Vachikabhinaya talvez não tivéssemos conseguido chegar a uma resultante tão
satisfatória para a ocasião, mas as aproximações não pararam por aqui.
A técnica do Abhinaya também foi útil no modo como abordamos algumas
histórias, em especial Krishna, menino azul e A dança de Mohini na primeira versão e,
após nosso retorno ao Brasil, na história Prahralada Charithram que conhecemos em
contato com o grupo Koohtu-p-pattarai e que, posteriormente, foi agregada ao
espetáculo.
Krishna, o menino azul conta uma das muitas histórias do deus-menino Krishna.
Nessa história ele e todos à sua volta estão começando a reconhecer seu aspecto
divino, “Krishna não era uma criança comum”, como dizia o texto; e ao mesmo tempo
era uma criança como outra qualquer: adorava comer manteiga e aprontar travessuras.
Aqui aparecia nosso primeiro desafio: não tinha como ignorar o fato de que, o que para
nós era apenas uma boa história, tinha um caráter religioso para nosso público. Como
abordar um personagem tão emblemático sem ferir suas convicções religiosas?
Lembrei-me então que no teatro tradicional hindu existe a tendência a se
representar os personagens divinos caracterizando-os exatamente como são descritos
nos livros sagrados. Essa fidelidade às descrições religiosas é tida em mais alta conta.
Se digitarmos a palavra Krishna na internet e solicitarmos imagens como resposta,
veremos que todas têm elementos em comum: a cor da pele, da vestimenta, das joias,
a flauta, as vacas à sua volta, as mesmas posturas físicas, a pena de pavão etc. Trata-
se de representações que já fazem parte do imaginário coletivo daquele povo, assim
como, para os cristãos, existe uma representação de Jesus que é reconhecível e aceita
pelos seus seguidores.
Pensamos em evitar essa resposta mais imediata e propor outra abordagem. Não
nos sentíamos confortáveis com a possibilidade de pintar a pele de um dos atores de
149
azul, por exemplo, e partir para uma caracterização mais tradicional. Mas sabíamos que
a coloração azul era um dos aspectos fundamentais para a identificação do
personagem, assim como a pena de pavão que enfeita sua coroa. Então surgiu a ideia
de representar Krishna por meio dos Hastas (gestos de mão) provenientes da dança
indiana. O gesto escolhido foi o Mayura que quer dizer pena de pavão. A atriz
encarregada de contar essa história usava primeiro uma tinta e depois uma luva azul na
mão direita e uma pequena pena de pavão no dedo anelar. Acreditávamos que isso
seria o suficiente para remeter a figura de Krishna sem a necessidade de caracteriza-lo
de modo convencional. A aposta deu certo e toda a história foi construída tendo como
suporte o gestual das mãos para complementar aquilo que era dito pelas palavras. O
mesmo recurso que a dança indiana usa há centenas de anos, aplicado a uma
produção contemporânea, feita em língua estrangeira.
A plateia logo reconheceu nos elementos escolhidos o personagem em questão e
não houve nenhum choque cultural ou incômodo causado por essa abordagem. Na
verdade, muitos atores da companhia com a qual estávamos trabalhando vieram
parabenizar a engenhosidade da solução e que algo assim só poderia ser feito por um
time de artistas estrangeiros visto que, a representação de um Deus ou personagem
mítico no teatro ainda enfrenta muitos tabus e restrições, que remetem aos dogmas
religiosos. Para um hindu talvez fosse uma heresia representar Krishna dessa forma,
mas para um estrangeiro...
150
Figuras 78 e 79 - Solução encontrada para representar o personagem Krishna. Primeiro a tinta azul e,
posteriormente, a luva. O gesto mayura e a pena de pavão complementam o significado e remetem ao
personagem. Fonte: Mohan Das Vadakara e arquivo Grupo Caldeirão.
Esse espetáculo ainda faz parte do repertório da companhia e tem sido feito por
atores diferentes desde então. Essa alternância da equipe permitiu estabelecer
métodos bastante definidos de treinamento e assimilação desse gestual pela equipe,
que não tinha contato prévio com os Hastas (gestos de mão) indianos.
No processo de ensaio, a primeira atriz que assumiu o papel teve um duplo
desafio: assimilar os gestos tradicionais e cuidar de sua perfeita execução e criar outros
gestos complementares para contar a história. Nem tudo provinha da dança indiana,
mas era necessário que o gestual escolhido fosse capaz de comunicar cada momento
da história com clareza. Como mostrar, por exemplo, os vizinhos zangados ou a corda
que não se prendia em torno de Krishna? Por ser a pessoa que dominava esse
repertório, estava claro que era meu papel conduzir as investigações e orientar a
construção da cena visando obter essa clareza e intencionalidade da comunicação
gestual.
Essa junção entre os gestos tradicionais, apresentados por mim, e uma
gestualidade mais espontânea, trazida pela atriz, criou um resultado bem interessante
porque não era nem uma reprodução fiel aos códigos da dança indiana e nem um
gestual totalmente casual. Tudo queria dizer alguma coisa, viesse de onde viesse, não
151
havia gratuidade em nenhum gesto. E esse contraponto entre gesto codificado e gesto
espontâneo dava um colorido especial à história.
Nos workshops de Abhinaya que conduzo sempre chamo a atenção dos atores
para esse fato. Podemos assimilar o gestual próprio da dança indiana e isso será útil,
mas não devemos esquecer que o mais importante é a tomada de consciência da
expressividade natural das mãos em qualquer cultura, inclusive a nossa, e nos valer
desse recurso de modo criativo e inovador em nossos processos artísticos. Não há
nenhuma necessidade de se prender ao repertório gestual indiano, a não ser que se
queira isso. Essa sempre foi uma prerrogativa do Grupo Caldeirão para esse
espetáculo. Não queríamos apenas reproduzir a estética indiana, mas dialogar com ela
enquanto artistas brasileiros, produtos de um determinado tempo e um determinado
olhar sobre a cultura e a arte. Entretanto, como falávamos para indianos, também era
importante que existissem códigos reconhecíveis para eles.
O processo de treinamento pelo qual os atores do Caldeirão passaram é
exatamente o mesmo que descrevo no capítulo anterior quando da abordagem dos
Hastas. Começamos pelo repertório tradicional e caminhamos gradativamente para a
exploração de gestos provenientes de nossa própria cultura, criando pequenas frases e
depois tentando aplicar esse conhecimento às narrativas. O recurso acabou sendo
utilizado apenas na história de Krishna, mas toda a equipe teve oportunidade de
experimentar a técnica durante o processo de criação. Nessa ocasião, tive a certeza
convicta de que minha intuição inicial estava certa. A técnica podia mesmo ser aplicada
a outros contextos e a artistas não familiarizados com a cultura hindu.
152
153
Figuras 80, 81, 82 e 83 - Diferentes atrizes contando a mesma história. Gestos codificados em diálogo com
gestos espontâneos. Primeiro, Krishna e a corda que não se prende. Depois, a contadora conversando com a
plateia sobre o temperamento de Krishna. Na terceira foto, sua representação mais tradicional com a pena de
pavão na cabeça e a flauta e, por último, a representação dos vizinhos zangados. Fonte: Mohan Das
Vadakara e arquivo pessoal Grupo Caldeirão.
Nas histórias A dança de Mohini e Prahralada Charithram, que eram narradas por
mim, pude explorar mais a fundo não apenas os Hastas, mas o repertório de
movimentos corporais e expressões faciais da dança indiana. O diferencial é que, nas
danças dramáticas, a bailarina não utiliza palavras, apenas seu corpo para contar a
história. A palavra fica a cargo da orquestra. Nesse espetáculo, eu fazia as duas coisas:
contava e dançava a história, tentando encontrar o justo equilíbrio entre o que devia
apenas ser dito, o que devia ser transformado em movimento, gesto de mão e
154
expressões faciais e o que podia contar com estes recursos simultaneamente,
procurando fugir da armadilha da redundância entre contar e mostrar.
O que se mostrava nem sempre era o que se contava, mas um complemento à
narrativa. Como, por exemplo, o gesto de retorcer as mãos no centro do peito para
demonstrar o caráter torpe do demônio Basmasura. O texto não diz que ele é torpe e
dissimulado, mas o corpo sim e, dessa forma, o público recebe uma informação
adicional que não está sendo expressa pela palavra e conhece o caráter do
personagem de um modo mais profundo do que as palavras dariam conta de alcançar.
Pode parecer um exemplo bobo de aplicação da técnica, mas demora-se muito
para se chegar a esse tipo de síntese cênica. Na maior parte do tempo ficamos nos
debatendo, tentando fugir dos clichês gestuais que nos levam a tocar o coração toda
vez que falamos nele e coisas do gênero. Criar outras pontes entre um gesto e uma
palavra, que passem por relações menos condicionadas, é um exercício hercúleo para
qualquer intérprete.
Figura 84 - Final do gesto de retorcer que caracteriza o temperamento torpe do personagem Basmasura. O
gesto começa com as mãos em alapadma se retorcendo como uma flor murcha e sem vida, para então
terminar como um nó no centro do peito. Fonte: arquivo Grupo Caldeirão.
155
Entretanto, havia momentos em que era importante que o gesto fosse um reforço
muito direto da palavra, nessas ocasiões ele podia corroborar exatamente o que o texto
dizia. Por exemplo: quando o Deus Shiva aparecia em cena, eu fazia uma das
representações mais características do Deus, em seu aspecto Nataraja, o Deus
dançarino. Uma imagem tradicional e reconhecível por todos. Nesse momento, era
importante que a ação e a palavra convergissem na imagem grandiosa e poderosa do
Deus.
De fato, o processo utilizado na criação do espetáculo é o mesmo desenvolvido no
treinamento descrito no capítulo anterior, mas a partir de um texto narrativo e não de
um poema. Não há a necessidade de seguir a estrutura Pallavi, Anupallavi e Charana
porque a narrativa conta com outros recursos de linguagem que são mais diretos, não
cabe repetir duas ou três vezes o mesmo trecho de história. Você cria uma partitura
gestual e expressiva para determinado trecho, pontua onde o gestual complementará a
palavra, onde palavra e o gesto acontecerão simultaneamente e onde só a palavra
basta para dar conta do que precisa ser dito ou só o gesto. Ou seja, é preciso saber
adaptar a estrutura original ao tipo de material textual com que se trabalha e a técnica
responderá, dentro dos seus limites, a essa adaptação.
Mas é importante saber preservar o gesto construído. Se o ator criar um
determinado gesto para dizer Shiva, por exemplo, é interessante que ele retome esse
gesto quando for referir-se novamente à Shiva para que o público consiga compreender
a relação entre o gesto e o personagem. Assim é que estabelecemos os códigos da
cena, mesmo que o gestual tenha sido inventado, não seja pré-estabelecido. Desse
modo, atribuímos um significado ao gesto e, uma vez assimilado o código, o ator
poderá usá-lo sem a necessidade de palavras para explicá-lo.
156
Figuras 85 e 86 - Representação de Shiva Nataraja no conto A dança de Mohini. Fonte: Mohan Das Vadakara
e arquivo pessoal Grupo Caldeirão.
Nessa cena, utilizo vários gestos e movimentos provenientes das danças indianas,
mas também invento outros. Quando nos apresentamos na Índia era importante que
eles reconhecessem os gestos, já que não podiam compreender a língua. Quando nos
apresentamos no Brasil, os gestos se tornam mais herméticos e é justamente a palavra
que lhes completa o significado. O público sabe que determinado gesto quer dizer
Mohini não porque conheça o significado daquele gesto isolado, mas porque ele é
usado toda vez que a personagem aparece em cena. Então se cria um vínculo e não
precisamos mais dizer, “esta é Mohini”, pois o público já compreendeu a relação.
Existem aqueles momentos em que apenas a gestualidade é o suficiente,
ancorada nas expressões faciais e movimentos corporais como um todo. Quando o
demônio Basmasura sai para procurar sua primeira vítima entre as crianças da plateia,
não é necessário que ele grite, urre e diga o que pretende fazer. Basta que ele caminhe
até elas com seu dedo em riste, procurando uma cabecinha para transformar em cinzas
e elas já se sentirão assustadas e excitadas ao mesmo tempo, sabendo exatamente o
que as aguarda.
157
Figuras 87 e 88 - Representação de Mohini. Fonte: Mohan Das Vadakara e arquivo pessoal Grupo Caldeirão.
Figuras 89 e 90 - Representações do demônio Basmasura com dedo em riste procurando sua primeira vítima.
Fonte: Mohan Das Vadakara e arquivo pessoal Grupo Caldeirão.
158
Já o conto Prahralada Charithram, incluído no espetáculo após nosso retorno ao
Brasil, é um desdobramento dessa mesma experiência aplicado a uma história mais
elaborada, com mais personagens, nuances emocionais e reviravoltas narrativas. É,
sem dúvida, a história mais complexa do espetáculo e a mais polêmica para a plateia
brasileira, porque trata de um assunto tabu: um pai que deseja assassinar o próprio
filho por que ele não o reverencia como um grande Deus. Hiranyakashipu é um
demônio que passa a se considerar um Deus e obriga todos a saudá-lo dizendo: “Salve
Hiranya, aquele que é mais que um Deus!”. No entanto, seu próprio filho se recusa a
fazê-lo e Hiranya manda matar o menino que, magicamente, sobrevive a todas as
tentativas.
Trata-se de uma história extremamente popular na Índia, passada de geração a
geração e conhecida por todas as crianças que, num misto de terror e encantamento,
acompanham a saga do menino Prahralada, salvo da morte pelo Deus Narayana. Nos
contos hindus, deuses e demônios são vistos como forças complementares e as
histórias, assim como nos contos de Andersen e dos irmãos Grimm, são pontuadas de
ações violentas e de episódios infelizes. É dada à criança a oportunidade de elaborar
essas experiências no campo da ficção, do imaginário, sem menosprezar sua
capacidade de apreensão e leitura simbólica dos acontecimentos.
Creio que seja interessante pontuar a diferença de receptividade desse espetáculo
nos dois países: enquanto na Índia a aparente crueza das histórias não causa nenhum
espanto e a fusão com elementos de outra cultura gera admiração, no Brasil, ao
contrário, o espetáculo sempre enfrentou algumas dificuldades: a primeira relacionada
ao conteúdo das histórias em si, consideradas “pesadas demais” para nossas crianças
e a segunda, de ordem religiosa. Num país de maioria cristã, colocar demônios em
cena em pé de igualdade com os deuses gera alguns desconfortos. A simples palavra
demônio dita em cena é um tabu, ainda mais em um espetáculo para crianças.
Numa participação em um festival no interior de São Paulo vivemos uma
experiência intrigante. Fomos questionados pelos jurados, pessoas com anos de
formação e experiência teatral, se nosso espetáculo tinha cunho religioso. Foi curioso
perceber quanto preconceito e desconhecimento há em relação à cultura hindu no
159
Brasil. Ora, se montássemos um espetáculo contando histórias de Apolo, Afrodite ou
Pã, o mesmo questionamento seria feito? É como se existissem conteúdos
provenientes de outras culturas que podem ser abordados e outros que simplesmente
não podem, sob pena de se incorrer em apologia religiosa. Contraditório é saber que na
Índia, nosso espetáculo nunca foi encarado como pregação religiosa. Era apenas teatro
feito por um grupo de estrangeiros, contando histórias que, aos seus olhos, eram
extremamente familiares.
Figuras 91, 92, 93 e 94 - Hiranyakashipu, o menino Prahalada, o Deus Narayana como Narasimha e Lilavathi, a
mãe de Prahralada. Fonte: arquivo Grupo Caldeirão.
160
Contos e Cantos da Índia foi um experimento bastante interessante porque, ao
contrário do que havia acontecido em Fim de Jogo, já existia um domínio maior da
técnica do Abhinaya e intencionalidade em seu uso. Nada foi escolhido por
casualidade, mas com o claro propósito de criar uma ponte entre elementos da cultura
indiana e elementos da cultura brasileira, favorecendo o contato do público (daqui e de
lá) com o espetáculo.
Naquela mesma ocasião, durante nosso intercâmbio com a companhia Koothu-p-
pattarai na Índia, o Grupo Caldeirão entrou em contato com a dança folclórica
Devarattam, inspirada em gestos marciais, gestos de plantio e colheita e no movimento
dos pássaros. Durante nossos dois meses de estadia no país, estudamos diariamente
com o Mestre Nellai Manikandam essa forma de arte, além das aulas de Silambam (arte
marcial) e Thudumbhu (tambores), com outros mestres.
Em contrapartida, os integrantes do Grupo Caldeirão também compartilharam
suas experiências oferecendo treinamento em algumas danças populares brasileiras
como jongo, cacuriá, ciranda, boi, maracatu; além de treinamentos corporais, vocais e
de interpretação que fazem parte de nossa dinâmica de trabalho no Brasil.
Ao final, produzimos um espetáculo bilíngue, O pequeno retábulo de Dom
Cristóvão de Garcia Lorca, falado parte em português e parte em tâmil, língua local.
Esse foi o desfecho da experiência que teve início com o espetáculo Contos e Cantos
da Índia. Ainda hoje, somos o único grupo brasileiro a conhecer e utilizar em seus
treinamentos as sequências de movimento do Devarattam como instrumento de
preparação corporal e expressiva.
Se é verdade que já chegamos à Índia com um manancial grande de informações
sobre a cultura local é bem verdade também que saímos de lá com esse conhecimento
extremamente ampliado e essa expansão trouxe novos ingredientes e instrumentos de
trabalho à companhia e, especialmente, à minha pesquisa sobre o Abhinaya, no que
tange à sua aplicabilidade na preparação de atores e na criação de espetáculos
teatrais.
161
4.3 – ORÈ YÈYÈ O, OXUM TARANGAM: A DANÇA INDIANA E A CULTURA
BRASILEIRA
Orè Yèyè O, Oxum Tarangam é o estágio atual das pesquisas que venho
desenvolvendo a partir da técnica do Abhinaya, visando a produção de espetáculos
contemporâneos.56 Trata-se de uma montagem de dança-teatro que faz parte de uma
trilogia intitulada PADAM: à procura de um corpo narrativo, que, não por acaso, é
praticamente o mesmo título desta dissertação de mestrado, sendo também, por sua
vez, o desdobramento acadêmico dessa longa investigação que teve início em 2007.
O projeto, em sua totalidade, contempla ainda a produção de mais dois
espetáculos: Cantiga Moura, inspirado em um conto de cavalaria da península ibérica e
Sonidos da Mata e Além inspirado em mitos indígenas de diferentes etnias. Nesses três
espetáculos estão contemplados os povos que, juntos, representam o tripé de formação
do que chamamos Brasil: africano, europeu e ameríndio57, como apresentado por Darcy
Ribeiro, no livro O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil.
As primeiras ideias e intuições sobre tudo quanto foi posto até aqui, seja do ponto
de vista do treinamento ou da produção de espetáculos, começaram a nascer em 2007,
mas apenas em 2009, profundamente tocada e estimulada pelas palavras de Darcy
Ribeiro e seu tripé de formação do povo brasileiro58 é que este projeto tomou forma.
162
iniciado nesta dissertação ganhasse forma. Mas, entre a conceituação de uma ideia e
sua realização, existe um abismo escuro e disforme que demanda anos de pesquisa e
aprofundamentos. Saber o que se quer fazer é apenas meio caminho andado, depois é
necessário descobrir como fazer, especialmente para um artista da cena.
Em 2009 empreendi uma dupla jornada: viajei para a Índia disposta a estudar os
Padams (coreografias que contam histórias) e me dediquei a estudar mais a fundo
alguns folguedos brasileiros, especialmente aqueles que também contam histórias,
como os Reisados e o Bumba-meu-Boi, entre outros. Tal projeto se firmava com o
propósito de criar pontes entre elementos da cultura indiana e da cultura brasileira, se
valendo da técnica do Abhinaya para contar histórias provenientes de nossa tradição
cultural mestiça. Foi um ano extremamente produtivo, onde muitas coisas começaram a
ganhar forma e definição.
Naquele mesmo ano, nasceram as duas primeiras composições ou, se quisermos
manter a mesma nomenclatura utilizada até aqui, os poemas musicados que sustentam
os espetáculos Orè Yèyè O, Oxum Tarangam e Cantiga Moura. Estudando os Padams
descobri que o texto tinha papel fundamental na construção coreográfica e, portanto,
para dar início a esse projeto era necessário que o material textual estivesse pronto ou
parcialmente pronto.
Os poemas-canção foram surgindo aos poucos, como resultado de um amplo
estudo da cultura africana no Brasil59 e, sendo filha de mãe portuguesa, todo o
imaginário da cultura da península ibérica já me era bastante familiar. Para escrever o
poema Cantiga Moura me inspirei no conto de cavalaria A Princesa Fátima, que trata do
amor trágico entre um cristão e uma moura.
Os poemas seguem a estrutura Pallavi, Anupallavi e Charana, que já descrevi no
capítulo 3, mas se valem de estratégias diferentes. Orè Yèyè O, Oxum Tarangam é
mais imagético e simbólico, não havendo relação cronológica dos acontecimentos entre
as diferentes partes do poema. Cada parte em si encerra um conteúdo, ligados apenas
pela figura mitológica do Orixá Oxum. Já Cantiga Moura é mais narrativo, remetendo à
tradição dos menestréis da idade média e/ou dos cordéis nordestinos; os
163
acontecimentos descritos em cada parte do poema têm uma relação causal entre si,
como num conto tradicional com começo, meio e fim.
Se falo pouco sobre o terceiro espetáculo que compõe essa trilogia é porque tudo
ainda está por ser feito! Existem alguns esboços, intuições, mas ainda falta muita
informação. De repente acordei para o fato de quão pouco sei sobre a cultura indígena,
embora tenha nome de índio, e, ciente da minha falta e ignorância, deixei esse desafio
para o final, de modo a ter tempo para preencher as lacunas que a dizimação e séculos
de preconceito incutiram em mim e em muitos brasileiros. Para cada coisa haverá seu
tempo.
Mas não foi exatamente uma opção começar pelo poema-canção de Oxum.
Quando cheguei na Índia em 2013, com apoio do Ministério da Cultura por meio do
Programa de Intercâmbio e Difusão Cultural (SEFIC), para dar vida a esse projeto, eu
não sabia por onde começaríamos. Creio que seja importante dizer que viajei para a
Índia, onde, em parceria com minha Guru, Maya Vinayan, me predispus a dar o primeiro
passo dessa empreitada.
Se eu pouco sabia de concreto, o que imaginar de uma indiana que quase nada
sabia sobre a cultura brasileira. Claro que, antes da viagem, mandei para ela os textos
em inglês e algum material falando sobre o Brasil, a mitologia afro-brasileira, os contos
de cavalaria.... Claro que expliquei detalhadamente o teor do projeto... Claro que não
era o suficiente para nenhuma das duas. Tínhamos dois meses para levantar um
espetáculo absolutamente do zero. Tudo o que sabíamos é que seria um item
expressivo, contando uma história e que nos valeríamos da técnica da dança indiana
para fazer isso.
Em nossas primeiras conversas sobre a proposta e os textos, deixei minha
mentora e parceira completamente livre para decidir por onde começar. O texto que,
aos seus olhos oferecesse mais pistas de por onde ir, seria o escolhido. Não à toa, o
poema de Oxum foi o eleito. É bastante fácil para um indiano, familiarizado à profícua
mitologia hindu, estabelecer paralelos com a mitologia afro-brasileira. Oxum, no seu
entender, era como Lakshmi, Deusa da beleza, da riqueza e parecia que ali se abria um
caminho comum para trilharmos juntas.
164
Falamos muito sobre Oxum, contei inúmeras histórias do Orixá e, para cada uma
delas, ela me contava histórias similares da mitologia hindu. Foi um período muito
divertido. Mostrei vídeos dos rituais afro-brasileiros, as vestimentas, a musicalidade, o
gestual codificado, assim como na dança indiana, inerente à aparição do Orixá. Foi a
primeira vez que ela me perguntou por que eu tinha escolhido aquela ‘divindade’ para
representar, quando compreendeu que, no Brasil, tratava-se de um conteúdo religioso.
Qual a minha motivação, se não era praticante daquela religião? Nunca pude responder
ao certo a pergunta e não porque não haja uma resposta, mas porque elas são tão
profundas e subjetivas, que fiquei com medo de empobrecê-las tentando racionalizá-
las.
Então chegamos ao segundo momento: qual estilo de dança clássica indiana, dos
três que praticávamos, seria o mais adequado para dar vida a esse personagem.
Estava claro que não era possível misturar tudo. Todos os estilos: Bharatanatyam,
Kuchipudi e Mohiniyattam contam histórias, mas cada um tem sua característica e era
preciso encontrar aquele cuja essência dialogasse com o, digamos, temperamento do
Orixá e o teor do poema-canção.
Optamos pelo estilo Kuchipudi, marcado por um forte caráter dramático, sua
origem remonta a formas tradicionais de teatro do estado de Andhra Pradesh. Um estilo
ágil, repleto de pulos, giros e movimentos virtuosísticos, muito gracioso e feminino. Seu
item de resistência é o Tarangam no qual a bailarina dança sobre um prato de latão, por
vezes com um pote de água sobre a cabeça. O significado dessa ação tem um cunho
espiritual: assim como a bailarina move-se sobre o prato sem abalar-se frente às
dificuldades, do mesmo modo devemos nos mover na vida, inabaláveis. A palavra
Tarangam quer dizer onda e a simbologia é deslizar sobre as ondas, o instável, as
dificuldades. Parecia perfeito para falar sobre um personagem cujo temperamento é
volúvel e imprevisível, cujo elemento é a própria água.
165
Figuras 95 e 96 - Execução do Tarangam sobre um prato de latão e com um pote de água na cabeça. Fonte:
arquivo Núcleo Prema. Fotógrafa Figura 94: Keila Mendes.
166
Figuras 97 e 98 - Ensaio de tala e música com minha Guru Maya Vinayan. Fonte: arquivo Núcleo Prema.
167
e experimentar muito, mesmo porque a canção tinha muitas partes a e era preciso
conceber um Abhinaya variado, que surpreendesse a plateia a cada novo momento ou
ela se tornaria tediosa.
Então veio a ideia de apimentar um pouco mais o projeto. Um Padam é um item
expressivo sem grande complexidade técnica. Como o foco é a narrativa, os
movimentos são mais contidos e mais simples, realizados num tempo médio ou lento
para que a plateia tenha tempo de saborear a história. Mas existem outros itens que
são mistos, ou seja, agregam trechos de história e trechos intrincados de dança pura ou
Nritta, de grande complexidade técnica, velocidade e virtuosismo. E o Kuchipudi é o
estilo que talvez mais explore esse componente, dentre os que trabalho.
O item mais importante do estilo, como já foi dito, é o Tarangam. Então pensamos
na possibilidade de compor não mais um Padam, mas um Tarangam. Isso significava
seguir a estrutura de criação desse tipo de item que mescla momentos de dança
expressiva e momentos de dança abstrata em igual proporção, num crescente
emocional e técnico, cujo ápice é a aparição da bailarina em cena desenvolvendo
intrincados padrões rítmicos sobre um prato de latão. Um Tarangam sempre termina
numa curva ascendente, ao passo que um Padam segue a curva ascendente e
descendente. No primeiro, a expectativa é que o final da coreografia coincida com o
ápice emocional do espectador. No segundo, que haja uma conclusão, um fechamento
emocional satisfatório, como uma história que chega ao fim, quando o espectador pode,
finalmente, se distanciar dela.
Essa opção, se enriqueceu muito a proposta original, também aumentou
consideravelmente o grau de dificuldade de sua realização. Aos trechos de dança
expressiva, que já eram longos, foram somados trechos de dança abstrata,
desenvolvidos sobre Talas (padrões rítmicos) cada vez mais rápidas e complexas, em
contagens de 3, 5, 7 ou 9 tempos. Podia-se vislumbrar a fina flor da técnica
característica do estilo e já não bastava contar uma história, mas ser capaz de continuar
contando depois de realizar trechos longos e árduos de dança abstrata. Não é à toa
que, em todos os estilos clássicos, os itens mistos, como o Tarangam no Kuchipudi, são
168
considerados os mais avançados. Eles exigem muito do intérprete do ponto de vista
técnico e expressivo e, geralmente, são itens de resistência, muito longos.
Figuras 99, 100 e 101 - Ensaio de tala e música com minha Guru Maya Vinayan e o músico percussionista
K.S. Kumar. Fonte: arquivo Núcleo Prema.
E ainda havia o desafio do prato, que seria colocado na parte final da coreografia,
antes do Slokam final (hino laudatório) à divindade. Mesmo quando não há uma
intenção religiosa explícita, se uma divindade for retratada em cena, é comum, na
169
abertura e no encerramento de uma coreografia, que ela seja saudada, garantindo
proteção e benção para o intérprete e a audiência. Ao final, o item completo contava
com Pallavi (abertura/refrão), Anupallavi e Charana (linhas expressivas), intercalados
por Jatis (trechos de dança pura), Tarangam (trecho executado sobre prato) e Slokam
(encerramento). Uma estrutura coreográfica extremamente superior àquela que
havíamos projetado inicialmente.
Ao contrário da primeira parte do processo, os trechos de dança abstrata e a
evolução sobre o prato foram inteiramente coreografados pela Guru. O grau de
conhecimento técnico exigido era imensamente superior aos meus conhecimentos
rítmicos. Só me restava manter uma postura receptiva e aproveitar a oportunidade para
aprofundar meus estudos no assunto. Foi nesse momento que um percussionista
clássico foi convidado a se juntar a nós. Minha mestra queria criar trechos refinados e
complexos de dança abstrata, algo que revelasse não só a qualidade técnica do
intérprete, mas principalmente o requinte do coreógrafo.
Os dois, observados pelos meus olhos atentos, criaram diferentes sequências
rítmicas, uma mais difícil que a outra para os Jatis e o Tarangam. Entre espanto e
admiração eu só podia intuir o quanto aquilo ia me custar de suor e sacrifício. A
musicalidade por si já era linda e perfeita e eles riam a cada novo ciclo finalizado, como
profissionais experientes que sabiam bem o valor de sua criação. Quando uma
sequência parecia comum demais aos seus ouvidos, eles a descartavam e procuravam
soluções rítmicas menos óbvias. O resultado esperado é simples: quanto mais
elaborado o material rítmico, mas elaborada será a criação coreográfica.
Ao final de um mês e meio de trabalho já tínhamos empreendido uma longa
jornada. Nesse ponto já havia ficado claro para mim que não seria possível deixar para
fazer a trilha sonora no Brasil, a não ser que eu pudesse levá-los na mala comigo.
Quem cantaria aquelas Talas dificílimas? E a percussão tão característica do estilo e
necessária à execução dos movimentos? Não havia outra solução, era necessário
encontrar outros músicos para, juntos, irmos ao estúdio gravar a composição. Os vocais
em português ficaram por minha conta, as Talas sob responsabilidade de minha mestra
170
e mais três músicos se juntaram a nós: K. S. Kumar na percussão, Sunil Kumar na
flauta e Mudikondan Ramesh na veena.
Figuras 102 e 103 - Gravação da música em estúdio com os músicos. Fonte: arquivo Núcleo Prema.
171
composição, tudo ficava mais difícil para eles, mas a música não tinha sido construída
dessa maneira e nem eu sabia como fazê-lo. Eu simplesmente tinha escolhido
intuitivamente uma melodia e cantava sobre ela, simples assim.
Por fim, chegamos a uma solução intermediária. No modo como eu cantava eles
perceberam alguma similaridade com um Raga conhecido como Bhupalam. Este Raga
normalmente é executado pela manhã, para garantir que o dia seja auspicioso e
produtivo. Ele é doce e suave e se relaciona ao elemento água. A imagem que o
representa é o da aparição matinal do sol, quando o orvalho da noite ainda está sobre a
vegetação. De fato, parecia que isso se aplicava à figura de Oxum, à coreografia, à
melodia e à minha própria voz, de modo bastante curioso.
Definimos então que essa seria nossa base melódica e, nos momentos onde eu
inadvertidamente não conseguia manter o Raga, eles, como músicos experientes,
faziam pequenas concessões melódicas para que tudo pudesse se encaixar. Até hoje
não sei bem ao certo quando isso acontecia porque eles tão rapidamente se
reorganizavam e continuavam a tocar, já que meus parcos conhecimentos da música
Carnática não me permitiam compreender a complexidade da operação. Eu apenas
esperava pelo melhor e agradecia.
Foi um período angustiante para mim, no qual em vários momentos desacreditei
que conseguiríamos chegar a um bom termo. Não bastava conseguir cantar e tocar
juntos. Em estúdio eu precisaria ficar numa sala isolada dançando, para que tudo fosse
gravado exatamente no tempo em que os movimentos eram executados por mim e, ao
mesmo tempo, o vocal era meu. Sem isso, a sincronicidade ficaria comprometida. Perdi
muitas noites de sono pensando em como resolveríamos essa equação quando
chegasse a hora de ir para o estúdio, já que não era possível cantar e dançar ao
mesmo tempo.
A previsão inicial é que precisaríamos de quatro a cinco horas de estúdio para
finalizar a gravação, mas, de fato, levamos mais de dez horas. A primeira tentativa não
foi satisfatória, minha voz e a parte instrumental não se encaixaram. Na segunda
tentativa, gravei minha voz com a percussão e a tala e, posteriormente, a flauta, a
veena e os trechos de dança abstrata foram acrescidos. Mais umas oito horas de
172
mixagem e masterização e, finalmente, a trilha sonora estava pronta. Desafio maior do
que concluir a coreografia foi finalizar a gravação musical! Creio que, assistindo a
alguns trechos do espetáculo, possa se ter uma ideia da dimensão dessa aventura:
fazer música Carnática em língua portuguesa.
Como se já não houvesse pressão suficiente sobre o trabalho, minha Guru propôs
que fizéssemos nosso ensaio geral para uma plateia, mas não qualquer plateia, uma
plateia de especialistas. Assim, um dia antes da estréia, fomos na Bharata Kalanji,
tradicional escola dirigida pelos renomados Gurus V.P. Dhananjayan e Shanta
Dhananjayan, renomados expoentes do estilo Bharatanatyam e mestres da minha
mestra.
Obviamente na noite anterior mal pude dormir pensando na responsabilidade de
dançar para artistas, que são lendas vivas, a própria história da dança clássica indiana
no século XX. Chegando à escola, descobri que não apenas os mestres assistiriam à
minha performance, mas todos os alunos séniors que estavam presentes.
Falamos pouco no início. Imagino que minha Guru já tivesse explicado
minimamente para eles qual era a proposta do trabalho. Então eu fiz uma saudação,
tocando os seus pés, como é de praxe. Saudei minha mestra e me preparei para
dançar. Apresentei toda a coreografia sob os olhos atentos da audiência. Os mestres às
vezes comentavam algo entre si, que eu não podia entender, mas a expressão geral
era positiva. Às vezes, balançavam a cabeça num típico aceno indiano expressando
agrado, mas de modo muito discreto. Os Gurus raramente deixam transparecer quando
gostam de algo, mas quando não gostam ... são bem explícitos. Ou seja, o silêncio,
nesse caso, é considerado algo muito positivo.
Ao final, sentei no chão e respondi a todas as perguntas que me fizeram sobre
quem era Oxum, o porquê daquela proposta, qual era a recepção esperada do público
brasileiro. Pediram para que eu cantasse trechos da canção e explicasse algumas
passagens. Senti que tinham ficado impressionados com a qualidade da coreografia, a
síntese que tínhamos conquistado em tão pouco tempo de trabalho. Olhei para minha
mestra e vi que ela também estava feliz. Isso era um bom sinal, afinal.
173
Devo confessar que me senti muito lisonjeada quando o mestre Dhananjayan
perguntou à minha mestra porque ela não tinha me levado para fazer aula com eles
antes. Só soube disso porque uma amiga, que filmava tudo e falava a mesma língua,
mais tarde me segredou esse diálogo. Foi uma experiência incrível que me encheu de
coragem para enfrentar a estreia oficial no dia seguinte.
Figuras 104 e 105 - Ensaio geral e conversa sobre o espetáculo com os renomados Gurus V. P.Dhananjayan e
Shanta Dhananjayan. Fonte: arquivo Núcleo Prema.
Nunca foi um objetivo estrear na Índia, mas de repente era o desfecho óbvio de
toda aquela empreitada. Os músicos, minha mestra, os técnicos do estúdio e todos os
amigos que vinham acompanhando a realização do projeto, estavam curiosos para ver
onde aquilo tudo tinha chegado. Todos queriam saber qual a recepção do público
indiano a uma proposta tão inusitada: dançar Kuchipudi, contando histórias de Oxum,
cantadas em português, ao estilo Carnático. Nada poderia soar mais antropofágico para
ouvidos brasileiros, mas como os indianos reagiriam?
Graças a uma rede de amigos afetuosos, em especial Kalairaani e Sadanad
Menon, consegui um dos locais mais incríveis disponíveis na cidade de Chennai. A
174
estreia aconteceu em março de 2013 no Spaces Cultural Centre, fundado pela
renomada bailarina e coreógrafa, Chandralekha Prabhudas Patel, falecida em 2006.
Artista engajada na aproximação da dança clássica indiana ao universo da dança
moderna e contemporânea ocidental. Chandralekha foi a precursora de um
movimento que hoje se espalha por toda à Índia, abrindo caminho para as novas
gerações de artistas interessados nessa aproximação e recebeu em seu espaço
diversos coreógrafos estrangeiros, dentre eles, Pina Bausch. Sem dúvida, era uma
grande honra poder estrear Orè Yèyè O, Oxum Tarangam no espaço idealizado por ela
às margens da baía de Bengala. Sim, o local situa-se bem em frente ao mar. Dentro dele
é possível ouvir o som das ondas ao longe, ainda mais quando a noite cai e o
movimento de carros e pessoas diminui.
175
Figuras 106, 107, 108, 109 e 110 - Local da estreia na Índia – Chandralekha´s Space. Fonte: arquivo Núcleo
Prema.
176
Figura 111 - Cartaz de divulgação da estreia. Fonte: arquivo Núcleo Prema. Fotógrafo: Kenny Rogers
177
pelo projeto, a ponto de torná-lo também seu. Não fosse por essa gente criativa,
divertida e generosa, esse espetáculo nunca teria sido finalizado a contento.
Agora era hora de voltar para casa e descobrir como o espetáculo chegaria ao
público brasileiro, mas antes de ir embora tive mais uma grata surpresa. Um canal local
de televisão me convidou para filmar o espetáculo e ele foi exibido na íntegra na
programação local. Isso aconteceu meses depois do meu retorno ao Brasil, mas ouvi
dizer que a recepção do público foi muito boa.
Em maio de 2013 estreei o espetáculo em São Paulo, no Espaço Cultural
Caldeirão, sede do Núcleo Prema desde sua fundação. Estava imensamente curiosa
para saber como o público reagiria quando ouvisse a canção em português e pudesse
compreender a intima relação estabelecida entre ela e a gestualidade criada. Mas do
que isso, queria saber se o espetáculo tinha o poder de tocar, de encantar, de ir além
das questões técnicas e estéticas, de chegar naquele lugar dentro de cada pessoa onde
a mágica realmente acontece. Não fiz este espetáculo ou qualquer outro em minha vida
profissional para exibir tecnicidades, mas para me comunicar, para tocar, ser tocada e
comungar os valores que acredito. Me restava saber se tinha conseguido atingir meu
objetivo ou não.
A experiência foi incrível e tocante. Senti as pessoas muito conectadas e
encantadas. Algumas, realmente seguidoras de cultos afro-brasileiros, profundamente
emocionadas, me agradecendo muitíssimo por ter oferecido uma prenda tão bonita ao
seu Orixá. Até o axé de uma Mãe de Santo eu recebi em minha estreia. Ela se
aproximou de mim e disse: “Posso lhe dar um abraço?”. Nos abraçamos e ela continuou:
“Sou Mãe de Santo e senti a presença de Oxum nesta casa enquanto você dançava.
Sem dúvida, ela lhe abençoou e está muito contente com o presente que lhe foi dado”.
Depois da estreia tive oportunidade de fazer mais quatro apresentações: uma
dentro da Mostra Caldeirão´25, no espaço sede do grupo. A segunda, no Sesc
Campinas numa noite estrelada para um público caloroso e receptivo. A terceira, no
CEU Uirapuru, dentro do I Encontro Nacional de Pesquisadores de Dança Indiana, para
uma plateia de crianças. Foi maravilhoso ver o encanto e a reação de tantos erês que,
ao final, tinham muitas perguntas interessantes a fazer. Crianças de uma das tantas
178
periferias de nossa cidade, que nunca tinham visto dança indiana em suas vidas e que,
cheias de curiosidade, me perguntavam: “O que são deuses?”; “Por que pintar os pés e
as mãos?”; “Por que você dança sobre um prato?”, e por aí vai.
Figuras 112, 113 e 114 - Fotos da estreia no Brasil. Fonte: arquivo Núcleo Prema. Fotógrafa: Keila Mendes.
179
uma pesquisa prévia e que as histórias foram preservadas, mas o modo de mostrar o
Orixá é o amalgama dessa pesquisa e de minha própria idealização do Orixá. Como
uma comunidade religiosa encararia essa licença poética? Tive medo de, sem querer,
ofender suas crenças e valores. De que eles achassem meu trabalho sem fundamento.
Mas o convite estava feito, o desafio lançado e eu sabia que era uma daquelas
coisas que não se pode recusar: dançar para Oxum, num terreiro de Oxum, no dia da
festa de Oxum! Se o Orixá queria tanto, quem era eu para negar? No dia e horário
combinados, lá estava eu pronta para entrar em cena, com o coração saindo pela boca
de tanto nervoso e as pernas trêmulas. Eu ouvia o som dos atabaques, os cantos, a
energia se avolumando e pensava: “O que vim fazer aqui!? Que responsabilidade Oxum
tinha dado a alguém que nem era iniciado!”
O terreiro estava lotado e eu dançaria exatamente no salão central, onde estavam
plantados os fundamentos do Orixá da Terra, o Axé e o Pilar da casa. Quando entrei
houve um grande silêncio antes que a música começasse a soar. Eu vestia uma roupa
branca e dourada, com ornamentos dourados, flores nos cabelos e uma longa trança.
Sem dúvida, uma visão muito diferente da tradicional aparição do Orixá. Formando um
círculo, sentados no chão, estavam os Filhos de Santo e a assistência. Ao fundo, em
cadeiras altas de madeira, estavam Pais e Mães de Santo, convidados para a festa,
vindos de outros terreiros, além do Pai de Santo da casa.
O espetáculo tinha sido concebido para palco italiano, mas lá era uma arena e eu
deveria dançar para as quatro direções, mas isso não era um problema. Como bailarina
de dança indiana, com anos de experiência, eu já havia dançado em lugares e
condições inimagináveis. O espetáculo começou e as reações foram muito variadas: a
assistência parecia curiosa e entusiasmada; os Filhos de Santo sentados no chão me
olhavam com desconfiança e certo desdém, às vezes cochichando algo entre si; os
Filhos de Santo mais antigos e os outros Pais e Mães de Santo me olhavam com aquela
gravidade de quem entende do assunto, como uma banca que analisa o mérito de uma
pesquisa enquanto o pesquisador expõe seus resultados. Um turbilhão de emoções e
pensamentos passou pela minha cabeça. Então, decidi fazer apenas o que tinha me
proposto a fazer: dançar! Que cada um achasse o que quisesse, afinal. A oferenda era
180
para Oxum, por vontade dela tudo tinha se dado como deveria até aquele instante e seja
lá qual fosse o desfecho, ainda sim seria por vontade dela.
Tendo chegado nesse estado, dancei com alegria e total entrega. Naquele instante
me foi revelado o porquê de toda aquela jornada e me lembrei da pergunta de minha
Guru: “Por que uma dança para Oxum?”. A resposta é menos importante que a tomada
de consciência e a revelação é de cunho íntimo, não pode ser dividida ou explicada. O
espetáculo é a única forma que tenho de compartilhá-la minimamente com outros
indivíduos. Sim, Oxum tinha me dado uma missão, eu a tinha cumprido e como
retribuição ela também me dava uma prenda: alguns dias antes eu tinha descoberto que
estava grávida. Mamãe Oxum estava feliz e eu também!
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Figuras 115, 116, 117, 118 e 119 - Apresentação do espetáculo num terreiro em Itapecerica da Serra/SP.
Fonte: arquivo Núcleo Prema.
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No entanto, o final dessa apresentação foi um tanto quanto esquisito. Mesmo
dançando pude perceber o incômodo do Pai de Santo da casa com a reação de seus
Filhos de Santo. Imagino que ele se sentiu fragilizado, afinal, ele tinha autorizado e
endossado aquela “heresia”! Por fim, creio que num gesto desesperado para não perder
sua autoridade frente aos seus filhos, o Pai de Santo começou a bater palmas e
interrompeu minha dança dizendo para a audiência: “Vamos aplaudir!”.
A situação era, no mínimo, patética. Eu fiquei uns instantes sem entender o que
acontecia, então, percebi que ele desejava que eu parasse de dançar. Não tive outra
opção senão fazer uma saudação para a audiência e me retirar dignamente. Eu tinha
feito a minha parte, estava lá de corpo e alma para fazer minha oferenda. Agora era
entre ele e o Orixá. Até hoje não consegui decifrar o que Oxum queria me dizer com
esse desfecho. Talvez algum dia isso também me seja revelado. Ainda agora quando
me lembro do episódio, acho engraçada a situação toda. Não consigo sentir raiva,
apenas penso: “Faltavam apenas mais seis minutos de dança!”.
Esse espetáculo foi o primeiro de uma trilogia que se propõe a criar pontos de
contato entre a técnica expressiva da dança indiana e a cultura brasileira. Minha
avaliação sobre sua realização, já distanciada emocionalmente do processo de criação,
é que se trata de uma proposta realmente interessante e inovadora, que pode ser muito
mais aprofundada e desenvolvida, de modo a trazer mais elementos da cultura brasileira
para esse caldo.
Orè Yèyè O, Oxum Tarangam ainda preserva uma estética muito indiana, embora
a narrativa seja proveniente de nossa cultura todos os outros elementos de linguagem
vem da dança indiana: o repertório de movimentos, a estrutura coreográfica, a música.
Não que isso seja um problema, ao contrário. Sendo bailarina de danças indianas há
quinze anos é natural que esse fosse meu ponto de partida. Procurei estabelecer
horizontes realistas de trabalho para não me frustrar na empreitada. Ainda haverá mais
duas montagens, dois longos e intensos projetos de pesquisa e criação nos quais, passo
a passo, o “namoro” entre Brasil e Índia vai se firmar.
183
Meu desejo para os dois próximos espetáculos é que eles me levem a outras
proposições estéticas, outros repertórios de movimento, outra gestualidade, outras
sonoridades, em que as coisas se entrosem de modo mais profundo e orgânico. A
técnica do Abhinaya ainda será o objeto central dessa investigação, mas sua execução
poderá ganhar outros contornos, indo buscar em nossa própria cultura essa
gestualidade codificada para contar histórias. De fato, tudo ainda está por ser feito e há
um longo e prazeroso caminho a se trilhar, sem pressa.
184
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CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
187
cerne da discussão está, portanto, em saber se posso chegar neste mesmo grau de
profundidade, ou mesmo ir além dele, com outros artistas. Até agora não tive
experiências suficientes para sustentar esta afirmativa, posso apenas apresentar os
resultados a que cheguei em experiências pontuais dentro do Instituto de Artes da
UNICAMP, com o Grupo Caldeirão e o Núcleo Prema.
Como um desdobramento desta pesquisa, a partir de trabalho desenvolvido com
alunos da graduação, na disciplina Artes Corporais do Oriente I (PED/2013), sob
supervisão da Profª Drª Daniela Gatti, faço parte do projeto de Iniciação Científica
‘Relações entre tradição e contemporaneidade na criação em dança: uma experiência
de criação a partir de releitura de gestuais codificados da dança indiana’, aprovado pela
FAPESP e orientado pela Profª Drª Mariana Baruco Machado Andraus, cuja proposta
consiste em utilizar a técnica do Abhinaya na criação de um espetáculo de dança. Creio
que esta experiência, como diretora artística do projeto, poderá me fornecer o
instrumental necessário para mensurar o grau de eficiência da técnica quando aplicada
em artistas sem formação prévia em dança indiana.
A segunda questão, mais profunda, diz respeito a saber em que medida quando
uma técnica é extraída de seu contexto original ela se transforma a ponto de assumir
contornos que a levam longe demais de suas origens. E, neste caso, em que medida
ela ainda pode ser considerada como Abhinaya, na acepção tradicional do termo, ou
precisa receber outra nomenclatura que a qualifique e estabeleça seu raio de alcance,
sua metodologia, didática etc, de modo a validá-la como proposta de treinamento. Esta
é uma discussão longa e delicada, ainda fora do alcance desta pesquisa, mas, sem
dúvida, interessante de se aprofundar numa tese de doutorado.
Certamente esta pesquisa não se encerra aqui. Segue, tanto no âmbito teórico
quanto prático, envolvendo a produção do segundo espetáculo da trilogia Padam:
‘Cantiga Moura' (cf. p. 134), que será objeto de estudo de um provável projeto de
doutorado. Nele, espero poder avançar nas questões que ficaram em aberto,
especialmente no que tange a uma metodologia de aplicação da técnica.
188
5.2 – PEDAGOGIA TEATRAL NO OCIDENTE E INFLUÊNCIAS DO ORIENTE
Para concluir, levanto uma última questão que permite refletir sobre as
intersecções Oriente-Ocidente no campo das artes cênicas contemporêneas:
189
transmissão e perpetuação de saberes entre gerações de artistas ao longo da história
das artes cênicas ocidentais.
Aproveito também para refletir criticamente sobre o modo como nos apropriamos,
hibridizamos, antropofagizamos, fundimos e misturamos tudo quanto vem do Oriente
aos nossos treinamentos e produção de espetáculos, muitas vezes sem critério,
seduzidos pela beleza da forma e sem uma compreensão profunda das engrenagens
que as criaram. Para tanto, retomo o trecho final do artigo O problema da transmissão
do conhecimento no Oriente-Ocidente60
190
acerca da prática teatral. Diferentes didáticas e metodologias eram postas em prática
com o objetivo de refletir sobre o processo criativo, de modo livre, quase como uma
espécie de “autopedagogia”. Não havia um guia prático a seguir, um manual que
estabelecesse os parâmetros para a criação cênica, cada centro de pesquisa criava
suas próprias estratégias de transmissão de conhecimento e aprendizado, segundo
suas próprias necessidades e descobertas.
Hoje compreende-se a importância desses locais para a produção de uma
vanguarda teatral, conectada com a ressignificação do teatro em um momento histórico
onde as mudanças sociais aconteciam de forma extremamente rápida e brutal, diante
dos olhos atônitos da sociedade. Era também um momento de grande otimismo, as
utopias apontavam para a realização de um futuro promissor, de um homem e uma
sociedade renovados.
Nesse contexto, criar espetáculos já não era o bastante. Produzir uma pedagogia
do teatro era essencial para conectar a arte teatral à atmosfera social reinante. Não
bastava mais “[...] ensinar teatro como na velha escola teatral, era necessário educar”,
nas palavras de Vakhtangov (apud CRUCIANI, 1995, p.26).
Assim, nasce a figura de diversos diretores-professores envoltos no desafio de
descobrir e definir não ‘o que’ ensinar, mas ‘como’ fazê-lo. Era necessário desmistificar
a ideia de talento, do gênio teatral, e focar na experiência e maestria do intérprete que
faz do treino o espaço de desenvolvimento de suas faculdades e potencialidades
artísticas. Nada estava dado, tudo pedia o esforço e a elaboração consciente de
debruçar-se sobre si e encontrar as respostas criativas mais adequadas.
Todas essas experiências eram feitas coletivamente, por grupos de artistas que
se alimentavam mutuamente, refletindo sobre seus processos, reformulando ou fixando
práticas, segundo sua aplicabilidade às demandas internas e a visão de teatro por eles
estabelecida. A tônica era a transmissão do conhecimento essencialmente oral e
prática, vivenciada no corpo e transmitida pela palavra.
191
sendo invocada hoje, pareceu-me ser a primeira renovação do homem no teatro
(COPEAU apud CRUCIANI, 1995, p. 28).
192
Oriente. Em síntese, deseja-se a tradição sem abrir mão da experimentação, sem
abdicar da ideia de um indivíduo independente que faz próprias suas escolhas
estéticas, não se subjugando à palavra e vontade absoluta de um mestre, de um
modelo já estabelecido de antemão.
Os artistas querem desenvolver sistemas de ensino semelhantes ao Teatro Nô, ao
Teatro Kabuki, ao Kathakali e às danças dramáticas indianas, ao Teatro Balinês
pautados pela tradição, que funcionam como um “conjunto de bons conselhos”
(BARBA, 1995, p. 8), sedimentados sobre códigos corporais e gestuais específicos,
altamente refinados e elaborados.
Aspira-se ao que essa experiência traz de ganho para a construção desse outro
homem de teatro que passa, inevitavelmente, pela construção de outra corporeidade,
uma segunda natureza do intérprete, uma visão de mundo específica, fundamentada na
prática disciplinada a longo prazo, mas ficamos desconfortáveis diante dos meios que
levam a isso.
Nesse sentido, dois pontos críticos podem ser vistos: a ideia, ainda disseminada,
de que um sistema fechado, baseado na repetição de códigos gestuais e movimentos
preestabelecidos, implica no empobrecimento das potencialidades expressivas do
intérprete e a ideia de que a obediência ao mestre implica na perda de autonomia
criativa e na dissolução da identidade do artista. Trata-se de um paradoxo entre forma e
conteúdo, em termos pedagógicos. São aceitos os conteúdos e reconhecidos seu valor
em favor do treinamento e na produção de espetáculos, mas não são aceitos, com a
mesma desenvoltura, a forma como eles se sedimentam.
Contudo, o fervor pela livre experimentação impele muitos ao Oriente e um
número crescente de artistas tem se dedicado a estudar suas formas de arte, tornando-
se eles mesmos praticantes e, desse modo, a longo prazo, contribuem para a
desmistificação de alguns estigmas que ainda cercam a formação do artista oriental,
como os expostos acima.
Na concepção oriental, a liberdade só existe pela prática da disciplina, pela
repetição consciente e minuciosa das formas, que liberam a mente/espírito do
193
praticante para estabelecer um contato mais profundo com o mundo físico e metafísico,
de onde emana a experiência expressiva mais autêntica.
A autonomia criativa, por outro lado, nada tem a ver com o desejo permanente de
originalidade, que parece uma tônica no Ocidente. Ser autônomo não é criar sempre
algo novo, como se o saber fosse algo que brotasse do nada e não fosse influenciado
direta ou indiretamente por nossas experiências com outros seres, com a natureza, com
o cosmos. Autonomia é a capacidade de diminuir a distância entre aquilo que se projeta
no plano das ideias e aquilo que se constrói em termos práticos, tem mais a ver com
acuidade do que com inovação.
A identidade de um artista se define, portanto, por sua competência para
corporificar essa visão de mundo e de homem que a forma artística comporta. Ele não
precisa ser original, necessariamente, embora a originalidade não esteja descartada do
processo ou seja renegada. Muitas vezes, os artistas descobrem formas diferentes de
fazer um gesto, um movimento e tornam-se célebres por isso. A questão é valorizar
mais a capacidade de comunicação, de colocar-se a serviço de algo maior que a
experiência individual, à busca desenfreada da autoafirmação.
Se o artista deseja realmente se beneficiar dessa aproximação com o Oriente, e
aqui me incluo nesse grupo, é preciso combater enfaticamente a visão simplista de
aprender uma técnica para colocá-la a serviço de nossos espetáculos, como se o
exotismo da forma bastasse para configurar realmente uma nova estética, um novo
pensamento teatral. O que está em jogo não é a estética da obra, mas o grau de
profundidade da escuta de quem a realiza.
Se as técnicas não forem capazes de transformar o sujeito receptor, alterando não
apenas suas potencialidades expressivas, mas a totalidade do seu ser, atingindo
também quem o assiste, sua eficácia não será duradoura e seu valor estético,
questionável. O que é preciso compreender é que, seja por meio da livre
experimentação ou da obediência ao mestre, o importante, de fato, acontece no ‘entre’:
entre o professor e aprendiz; entre a forma e o conteúdo; entre o artista e o público;
entre a arte e o mundo. É nesse espaço abstrato, simbólico, impalpável, impossível de
ser mensurado, mas tão concreto para nós quanto uma parede, que reside o cerne da
194
experiência artística, o compromisso ético do artista para com a preservação de sua
arte e o mundo a sua volta. Finalizo esta dissertação com uma frase do ator Yoshi Oida,
que resume lindamente o ofício do intérprete e o poder simbólico do gesto em cena:
Posso ensinar-lhe o padrão gestual que indica olhar para a lua. Posso ensinar-
lhe como fazer o movimento da ponta do dedo que mostra a lua lá no céu. Mas
da ponta do dedo até a lua, a responsabilidade é inteiramente sua (OIDA, 2001,
p. 174).
Figuras 120 e 121 - Suchi Hasta para apontar a Lua e Arthachandra Hasta para representar a Lua. Foto:
arquivo pessoal.
195
196
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Hope India Publications, 2007. p. 23-67.
200
GLOSSÁRIO
201
Arjuna – herói do épico Mahabharata, figura central do Bhagavagita.
Alta – tinta vermelha a base de hena que as bailarinas utilizam para pintar as mãos e
os pés em apresentações.
Asamiyuta hastas – gestos que, executados por apenas uma das mãos ou pelas duas,
não têm seu significado alterado.
Ayêye Oxum – saudação tradicional feita ao Orixá Oxum nos rituais afro-brasileiros.
Bharatanatyam – estilo de dança clássica indiana, originário do estado de Tamil Nadu.
Bhava – relaciona-se as emoções humanas primordiais, aspecto fundamental para a
compreensão da técnica do Abhinaya.
Bharatamuni – sábio mítico hindu a quem se credita a compilação do Natyasastra.
Bharati – referente ao discurso verbal na encenação.
Bhibhatsa – um dos Navarasas, corresponde ao sentimento de nojo, desgosto.
Bhaya – terror.
Bhayanaka – um dos Navarasas, corresponde ao sentimento de medo, desespero.
Basmasura – demônio que recebe de Shiva o poder de transformar tudo em cinzas
com o toque de um dedo, presente no conto A dança de Mohini.
Charana – linhas mais complexas do poema, que pedem variações.
Chowka – padrões de movimento, executados em progressão rítmica ascendente e
descendente, que compõem o corpo técnico do estilo Odissi.
Churippu – padrões de movimento, executados em progressão rítmica ascendente e
descendente, que compõem o corpo técnico do estilo Kathakali e Mohiniyattam.
Carnático – estilo de música proveniente do sul da Índia.
Cheshtakrita – parte integrante do Angika Abhinaya; compreende as posturas
corporais.
Chaputalas – os cinco padrões rítmicos principais para as danças dramáticas indianas
(tisra – 3 tempos; chaturasra – 4 tempos; kanda – 5 tempos; misra – 7 tempos e
sangeerna – 9 tempos).
Darpana – figura feminina representada segurando um espelho.
Dharma – padrão de conduta ética, moral e religiosa estabelecido pelo hinduísmo.
202
Drusti Bheda – conjunto de exercícios básicos para os olhos descritos no Abhinaya
Darpana;
Devarattam – dança folclórica do estado de Tamil Nadu inspirada em movimentos
marciais, em gestos de plantio e colheita e no movimento dos pássaros da região.
Guru Shishya Parampara – sistema de sucessão discipular, responsável pela
transmissão dos conhecimentos tradicionais de geração a geração. Linhagem.
Hasya – um dos Navarasas; corresponde ao sentimento de sarcasmo, ironia, humor.
Hindustani – estilo de música proveniente do norte da Índia.
Hasta – pode significar apenas mãos ou gestos de mão.
Hasta Lakshana Deepika – livro de referência utilizado pelos praticantes do estilo
Kathakali e Mohiniyattam.
Hiranyakashipu – demônio do conto Prahralada Charithram.
Indra – rei dos Céus, segundo tradição Védica.
Janana – um dos aspectos da criação cênica: a experiência.
Jugupsa – desgosto.
Jatis – trechos de dança pura.
Kudiattam – forma de teatro tradicional proveniente do estado de Kerala.
Kathakali – forma de dança dramática oriunda de Kerala.
Kuchipudi – forma de dança dramática oriunda de Andhra Pradesh.
Kathak – forma de dança dramática oriunda da região norte da Índia.
Kriya – um dos elementos constitutivos do drama; refere-se à atividade física.
Kaisiki – um dos elementos constitutivos do drama; refere-se à graciosidade.
Kama – uma das quatro metas da existência; refere-se aos prazeres.
Karuna – um dos Navarasas; refere-se ao sentimento de apatia, tristeza, pesar.
Kala – Deusa hindu da morte e destruição.
Kroda – raiva.
Karma – refere-se às atitudes humanas e suas consequências no tempo.
Kalidasa – renomado poeta e dramaturgo sânscrito que viveu no período Gupta.
Karanas – poses praticadas nas danças clássicas indianas.
Krishna – um dos mais amados deuses de toda a Índia.
203
Laya – tempo.
Lakshmi – Deusa hindu da prosperidade.
Lilavathi – mãe de Prahralada do conto Prahralada Charithram.
Mohiniyattam – forma de dança clássica oriunda de Kerala.
Manipuri – forma de dança dramática oriunda de Manipuri.
Muni – sábio.
Moksha – a última meta da existência: a liberação.
Mahakala – um dos nomes de Shiva, um dos deuses da trindade hindu.
Mahendra – um dos nomes de Indra, rei dos céus.
Mahabharata – épico hindu que narra a saga dos Pandavas e Kauravas.
Maya – ilusão.
Mukhaja – parte dos Angika Abhinayas, referente às expressões faciais e gestos de
mão.
Mukharaga – parte dos Sattvika Abhinaya, referente à coloração facial.
Mayura – gesto de mão dos Asamiyuta Hastas.
Mohini – A palavra quer dizer encantamento, mas é também o nome da personagem
que, dançando, destrói o demônio Basmasura do conto A dança de Mohini.
Natya – palavra sânscrita para designar dança e teatro.
Nritta – elemento abstrato das danças dramáticas.
Nrittya – elemento expressivo das danças dramáticas.
Natyasastra – tratado mais importante para as artes dramáticas indianas, escrito entre
os séculos IV a.C e II d.C. Sua autoria é comumente atribuída a Bharatamuni.
Natyaveda – por sua importância e amplitude, o Natyasastra é também conhecido
como Natyaveda, ou o 5º Veda.
Nartaka – Ator/Bailarino.
Navarasas – os nove sentimentos primordiais humanos.
Nandikesvara – a quem se atribui a escrita do livro Abhinaya Darpana.
Nrityaratnavali – livro de referência em Abhinaya no estilo Kuchipudi.
Nrittya Abhinaya – representação de ideias por meio de recitação musical e dança.
Natya Abhinaya – representação de ideias por meio do drama falado.
204
Naiykas – heroína.
Nayakas – herói.
Nepathya – parte dos Aharya Abhinayas; refere-se aos aspectos exteriores da
encenação (cenários, vestimentas, maquiagem etc.).
Natyamandapa – parte dos Aharya Abhinayas; refere-se aos tipos de auditório.
Nataraja – um dos nomes de Shiva. Aquele que, com sua dança cósmica, destrói o
universo para que as forças da criação novamente se restabeleçam.
Narayana – um dos nomes do Deus Vishnu em seu aspecto incorpóreo.
Narasimha – é a quarta encarnação do Deus Vishnu, sendo metade homem e metade
leão. É ele quem derrota o demônio Hiranyakashipu no conto Prahralada Charithram.
Odissi – forma de dança dramática proveniente do estado de Orissa.
Orè Yèyè O, Oxum – expressão Iorubá que significa “chamemos a benevolência da
grande mãe”.
Pallavi – refrão do poema.
Padam – item expressivo que conta uma história.
Prayoga – refere-se à práxis.
Purusarthas – conjunto das quatro metas da existência humana: Artha, Kama, Dharma
e Moksha.
Pramatha – senhor dos espíritos.
Paramatma – alma universal.
Padarthaabhinaya – representação de ideias por meio de palavras.
Pratyanga – parte dos Angika Abhinayas, refere-se as partes secundárias do corpo
(ombros, costas, barrigas, tíbia, coxa, pulso, joelho, pescoço).
Rasa – sentimento estético vivenciado pela audiência diante da encenação.
Rasika – espectador, na visão clássica hindu, quase um crítico de arte.
Rasasvadana – o ‘sabor’ característico de cada Rasa, suas nuances e sutilezas.
Rigveda – escritura sagrada do hinduísmo junto ao Atharvaveda, Samaveda,
Yajurveda.
Raudra – um dos Navarasas; refere-se ao sentimento de ira, raiva.
Rudra – um dos muitos nomes de Shiva, Deus das tempestades e trovões.
205
Rati – amor.
Rama – encarnação do Deus Vishnu, príncipe arqueiro, herói do épico Ramayana.
Raga – sistema melódico/harmônico hindu.
Satvika – surreal, subconsciente.
Sattvati – concepção mental.
Sattvaja bhavas – reações psicofísicas sobre as quais não temos controle: desmaios,
vômitos etc.
Samaveda – escritura sagrada do hinduísmo junto ao Atharvaveda, Rigveda,
Yajurveda.
Sangeet Natak Akademi – Academia Nacional de Artes da Cena (teatro, dança,
música), criada pelo governo indiano com o propósito de promover a cultura tradicional.
Sringaram – um dos Navarasas; refere-se ao sentimento de amor, encantamento,
prazer.
Santa – um dos Navarasas; refere-se ao sentimento de paz, plenitude, liberação
espiritual.
Sambhoga – um dos tipos de Sringaram. No caso, aquele que se refere a experiências
amorosas bem sucedidas.
Sthayibhava – Bhava dominante; refere-se aos estados emocionais primordiais e
presentes em todos os seres humanos.
Soka – pesar, apatia.
Slokam – hinos laudatórios.
Shareeja – parte integrante dos Angikabhinaya; refere-se aos tipos de movimento das
diferentes partes do corpo.
Shaka – parte integrante dos Angikabhinaya e do Shareeja. Refere-se aos membros
auxiliares (calcanhar, tornozelo, sola do pé e dedos dos pés e das mãos).
Sruthi – tonalidade de uma melodia.
Samanya Rasa – peças amorosas.
Sahanayaka – personagem masculino secundário.
Sahanayika – personagem feminino secundário.
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Stacatto – designa um tipo de fraseio ou de articulação no qual as notas e os motivos
das frases musicais devem ser executadas com suspensões entre elas, ficando as
notas com curta duração.
Shiva – Deus hindu da destruição, integrante da trindade ao lado de Brahma, Deus da
criação, e Vishnu, Deus da conservação.
Shivalinga – símbolo fálico que representa a união do feminino (Shakthi) ao masculino
(Shiva).
Saraswati – Deusa hindu da sabedoria e das artes.
Samiyuta Hastas – gestos de mãos que, necessariamente, precisam das duas mãos
para terem seu sentido completo. Os gestos podem ser iguais nas duas mãos ou
diferentes.
Silambam – forma de arte marcial proveniente de Tamil Nadu.
Teyyam – forma de teatro ritualístico do estado de Kerala.
Tala – ritmo.
Tarangam – palavra que significa onda. Para o estilo Kuchipudi; trata-se do item mais
importante de seu repertório executado sobre um prato de latão e, muitas vezes, com
um pote de água sobre a cabeça. Tem um significado espiritual para seus praticantes:
mover-se na vida frente às dificuldades do mesmo modo que a bailarina move-se no
palco sobre o prato e com o pote de água na cabeça.
Thudumbu – tambores caraterísticos de Tamil Nadu, acompanhados de dança.
Utsaha – um dos Sthayibhavas. Denota entusiasmo.
Upanga – parte integrante dos Angikabhinaya; refere-se às expressões faciais
(movimentos de olhos, bochecha, sobrancelhas, pálpebras, nariz, boca, lábios, globo
ocular, língua, dentes, queixo e mandíbula).
Vachika – parte integrante do Abhinaya; refere-se ao discurso verbal e/ou musical, no
caso das danças dramáticas.
Vedas – escrituras sagradas hindus, compostas por quatro livros: Samaveda,
Yajurveda, Atharvaveda e Rigveda.
Vrittis – estilos dramáticos (épico, lírico etc.).
Vighnas – espíritos malignos.
207
Visvankarmam – arquiteto celestial.
Vicara – os aspectos teóricos da aprendizagem.
Veera – um dos Navarasas; refere-se ao sentimento de heroísmo, nobreza de caráter.
Vishnu – Deus da trindade hindu, responsável pela manutenção da ordem universal.
Vipralambha – um dos aspectos de Sringara; refere-se a situações amorosas mal
sucedidas.
Vibhava – são as causas, fatores externos, que levam a determinados estados
emocionais. Exemplo: o ranger de uma porta pode suscitar a emoção do medo.
Viabhichari bhavas – reações emocionais transitórias, efêmeras.
Vismaya – um dos Sthayibhavas. Denota maravilhamento.
Veena – instrumento típico do sul da Índia, da família do sitar.
Yakshagana – forma de dança-teatro própria do estado de Karnataka. Uma variação
menos sofisticada pode ser encontrada no estado de Andhra Pradesh e é conhecida
como Yakshaganamu.
Yajurveda – escritura sagrada do hinduísmo junto ao Atharvaveda, Rigveda,
Samaveda.
Yama – Deus da morte.
Yogin – praticante da disciplina do Yoga.
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ANEXOS
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