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[Excerto de parecer sobre a aplicação da lei no tempo do regime da resolução

bancária, abril de 2015]

[…]

§ 2.º
CRITÉRIOS DE DETERMINAÇÃO DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL: O
ARTIGO 12.º DO CÓDIGO CIVIL

2.1. O ARTIGO 12.º DO CÓDIGO CIVIL COMO FONTE DA REGULAÇÃO DA APLICAÇÃO


DE NORMAS JURÍDICO-ADMINISTRATIVAS

1. Todas as questões compreendidas na consulta que nos foi dirigida


prendem-se com a aplicação no tempo de normas reguladoras de relações
jurídico-administrativas. Em causa estão a compensação do BANCO X,
dos seus accionistas e credores, por danos causados no âmbito do processo
de resolução, o qual se inicia com um acto administrativo ablativo de
direitos da instituição objecto de liquidação, a necessidade da prática de
actos pelo Banco de Portugal no âmbito desse processo, a titularidade pelo
Banco de Portugal de poderes de resolução, bem como as implicações
desse processo na esfera dos accionistas do BANCO X.

2. Não obstante estarem em causa relações jurídico-administrativas, importa


ter presente que a determinação do âmbito temporal de aplicação das
normas em causa deve ser feito perante os critérios estabelecidos no artigo
12.º do Código Civil1.
Assim é, dado que o Código do Procedimento Administrativo não
compreende qualquer norma de direito transitório geral que discipline a
sucessão no tempo de normas reguladoras de relações jurídico-
administrativas. Carecendo o problema da delimitação do âmbito
temporal de aplicação de leis que se sucedem no tempo de uma regulação
especial, este deverá ser regulado pelas normas de direito comum. No que
concerne à sucessão de leis no tempo, esse regime comum encontra-se nos
artigos 12.º e 13.º do Código Civil2.
Versando o artigo 13.º sobre a aplicação no tempo de leis interpretativas, e
sendo que nenhum dos preceitos da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de Março,
visa a mera fixação do significado juridicamente relevante de preceitos
anteriormente vigentes, os critérios de solução para as questões
formuladas na consulta devem, desta forma, procurar-se no artigo 12.º do
Código Civil, o qual se transcreve:

1 Neste sentido, referindo o artigo 12.º como fonte dos critérios de resolução dos problemas de sucessão
de leis no tempo no domínio do direito administrativo, cfr. MARCELO CAETANO, Manual de direito
administrativo, Coimbra, 1980, 137-141, em especial 140 (“o Código Civil contém preceitos sobre estas
matérias que podem ser observados em relação a todas as leis, e não só às civis”), AFONSO
RODRIGUES QUEIRÓ, Lições de direito administrativo, Coimbra, 1976, 516-528, FERNANDO ALVES CORREIA,
As grandes linhas da recente reforma do direito do urbanismo português, Coimbra, 1993, 72, n. 52, DIOGO
FREITAS DO AMARAL, Da necessidade de revisão dos artigos 1.º a 13.º do Código Civil, in Themis, Ano 1, n.º 1,
2000, 9 ss, FERNANDO JOSÉ BRONZE, Lições de introdução ao direito, Coimbra, 2006, 852, n. 50.
2 Sobre o carácter comum dos regimes de direito civil, cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito
civil, I, Coimbra, 2012, 112 ss.

1
“Artigo 12.º
(Aplicação das leis no tempo. Princípio geral)
1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja
atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados
os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade
substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus
efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos
novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de
certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram
origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já
constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.

3. O preceito em questão deve, para maior clareza, ser decomposto em


quatro segmentos normativos diferentes:
 Em primeiro lugar, estabelece-se como princípio geral o de que as
leis apenas dispõem para o futuro, i.e. de que as leis não são
retroactivas (artigo 12.º, n.º 1, primeira parte, do Código Civil).
Assim, apenas haverá retroactividade quando o legislador o
cominar: havendo silêncio de uma lei a este respeito, ela não se
poderá considerar retroactiva.
 O segundo dos referidos segmentos estabelece que, quando o
legislador determine a retroactividade de uma lei, mas não
especifique qual o alcance dessa retroactividade, a lei não atinge
os efeitos já produzidos antes da sua entrada em vigor (artigo 12.º,
n.º 1, segunda parte).

2
Para além destes critérios, que têm a vocação de se aplicar a quaisquer leis,
independentemente do seu conteúdo, o artigo 12.º compreende, no seu n.º
2, duas normas especiais, que regulam a aplicação no tempo de normas
que regulem determinados tipos de problemas jurídicos. Assim,

 O artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil, regula a


aplicação no tempo das leis que regulam a “validade substancial
ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos”,
estatuindo que estas apenas abrangem “factos novos”;
 Por fim, o artigo 12.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil, regula
o âmbito de aplicação temporal das leis que regulam
“directamente o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo
dos factos que lhes deram origem”, estatuindo que estas se
aplicam às relações já constituídas à data da sua entrada em vigor

2.2. A REMISSÃO DO ARTIGO 12.º DO CÓDIGO CIVIL PARA NORMAS (E NÃO PARA

ACTOS NORMATIVOS)

4. Antes de se recortar com maior precisão o âmbito de aplicação de cada


uma destas normas reguladoras de conflitos intertemporais e de
concretizar o regime por elas estabelecidos, importa clarificar que a
palavra “lei” assume, no contexto do artigo 12.º do Código Civil, o
significado de norma jurídica, e não o significado de acto normativo, i.e. de
diploma do qual decorrem uma pluralidade de normas.
Dois argumentos sustentam, sem margem para dúvidas, esta
interpretação.
Em primeiro lugar, a interpretação neste contexto da palavra “lei” como se
reportando a diplomas na sua globalidade seria incongruente com a
distinção entre diferentes tipos de “leis” em função do tipo de problemas

3
por estas regulados feita no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil. Ainda que
tal fosse em abstracto possível, é dificilmente concebível que todo um acto
legislativo regule exclusivamente condições de validade ou os efeitos que
são estabelecidos por factos, ou, ao invés, que todo um diploma jurídico
regule exclusivamente o “conteúdo de relações jurídicas, abstraindo dos
factos que lhes deram origem”. Na verdade, a generalidade dos diplomas
regula diferentes tipos de problemas através de diferentes normas. É,
nomeadamente, altamente invulgar que um acto normativo regule, em
todas as normas por ele postas em vigor, apenas condições de validade de
actos jurídicos ou o conteúdo de relações jurídicas. A interpretação da
palavra “lei” como se reportando a actos legislativos na sua globalidade
levaria ao resultado absurdo de as normas constantes do artigo 12.º, n.º 2,
do Código Civil, apenas se aplicarem a esses diplomas absolutamente
homogéneos quanto aos problemas neles regulados, deixando sem critério
específico de solução os problemas relativos à aplicação no tempo
daquelas normas que, integrando-se em diplomas que compreendem
também normas que regulam outros tipos de problemas, estabelecem, por
um lado, condições de validade ou os efeitos de factos, ou, por outro,
regulam directamente o conteúdo de relações jurídicas, abstraindo dos
factos que lhes deram origem.
Em segundo lugar, e como adiante desenvolvido3, o legislador material do
artigo 12.º do Código Civil pretendeu consagrar como solução legislativa
os critérios propostos por ENNECCERUS/NIPPERDEY para os problemas de
direito intertemporal. Ora, estes autores formularam esses critérios
referindo-se ao âmbito de aplicação das leis (Gesetzen) e aos diferentes
tipos de leis, em moldes dos quais o preceito em questão é decalcado4.

3 Cfr. infra § 2.4.A)


4 Cfr. LUDWIG ENNECCERUS/HANS CARL NIPPERDEY, O domínio temporal dos preceitos jurídicos, Coimbra,
1968, passim.

4
Contudo, no contexto em que escrevem, o uso da palavra Gesetz, que tem
como tradução literal “lei”, significa “norma jurídica”, em virtude da
definição constante do artigo 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil
alemão, segundo o qual, as referências, constantes do Código Civil alemão
e dessa mesma lei introdutória, à “lei” devem ser interpretadas como
abrangendo “qualquer norma jurídica” (jeder Rechtsnorm). Quando esses
autores estabelecem critérios sobre a aplicação no tempo aplicáveis a
determinados tipos de “leis”, estes critérios devem ser lidos como
estabelecendo critérios de direito intertemporal aplicáveis a determinados
tipos de normas. Pretendendo o legislador português consagrar no artigo
12.º do Código Civil as soluções propostas por esses autores, também será,
pois, esse o significado que o legislador histórico terá pretendido atribuir à
palavra “lei” no contexto desse preceito – significado esse que, de resto, é
congruente com a definição de “lei” constante do artigo 1.º, n.º 2, primeira
parte, do Código Civil, quando estabelece que se consideram leis “todas as
disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes”.

5. Concluindo-se que os critérios de direito intertemporal estabelecidos no


artigo 12.º do Código Civil diferem consoante a matéria regulada por cada
norma jurídica, segue-se uma importante conclusão preliminar,
designadamente a de que não é possível fornece respostas unitárias sobre
o âmbito temporal de aplicação da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de Março. A
resposta sobre o âmbito de aplicação temporal dessa lei apenas poderá ser
fornecida norma a norma.

2.3. OS CRITÉRIOS DE DELIMITAÇÃO DO ÂMBITO TEMPORAL DE APLICAÇÃO DA “LEI


NOVA” ESTABELECIDOS NO ARTIGO 12.º DO CÓDIGO CIVIL

5
6. Do que anteriormente foi exposto resulta que a determinação do âmbito
temporal de aplicação da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de Março, deve ser feito
reconduzindo cada uma das suas normas a uma das normas de conflitos
constantes do artigo 12.º do Código Civil.
A este propósito é possível excluir, à partida, a relevância do artigo 12.º,
n.º 1, segunda parte, do Còdigo Civil, dado que a Lei n.º 23-A/2015, de 26
de Março, não estabelece a retroactividade das suas normas, pelo que a
questão da determinação do respectivo grau de retroactividade naturalmente
não se coloca.
A resposta às questões formuladas na consulta passa, pois, por determinar
se as normas relevantes introduzidas no Regime Geral das Instituições de
Crédito pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de Março, se reconduzem à norma
constante do artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil, à norma
constante do artigo 12.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil, ou, não se
reconduzindo a nenhuma daquelas normas especiais, se aplica
simplesmente o princípio geral constante do artigo 12.º, n.º 1, primeira
parte, do Código Civil.

7. O problema em causa configura-se como uma questão de qualificação. À


semelhança do que sucede a propósito de outro tipo de normas de conflitos,
designadamente as normas de direito internacional privado, a
determinação do âmbito de aplicação temporal das normas depende da
sua recondução aos conceitos quadro que delimitam o objecto de remissão
operado pelas normas de conflitos para a “lei nova” ou para a “lei antiga".
Essa operação de qualificação tem, como é sabido, três momentos:
Num primeiro momento, procede-se à identificação da premissa maior,
que é a previsão da norma de conflitos intertemporal. Este é um problema
de interpretação do artigo 12.º, n.º 1, primeira parte, e n.º 2, primeira e

6
segunda parte, do Código Civil5. Em particular, importa, a um tempo,
saber o que se entende por uma norma que “dispõe sobre as condições de validade
substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos”, delimitando,
assim, o âmbito de aplicação da norma constante do artigo 12.º, n.º 2,
primeira parte, do Código Civil. A outro tempo, importa determinar como
se deve interpretar o fragmento, marcadamente vago, do artigo 12.º, n.º 2,
segunda parte, que se reporta às leis que dispõem “directamente sobre o
conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram
origem”.
Num segundo momento, importa construir a premissa menor do
raciocínio qualificativo, o que consiste na caracterização de cada uma das
normas cuja aplicabilidade temporal se interroga, aferindo se nelas se
verificam as características essenciais das quais dependem o
preenchimento das previsões normativas das normas de conflitos
intertemporais em causa.
O terceiro momento traduz-se na mera subsunção. Trata-se de uma
operação que não se revela problemática uma vez consumados os dois
momentos anteriormente referidos: uma vez interpretada a previsão das
normas de direito intertemporal e caracterizada a norma cuja
aplicabilidade temporal se questiona, haverá apenas que reconduzir esta
última norma à norma de conflitos intertemporal ou, ao invés, concluir por
a sua não recondução6.

Do exposto resulta que todas as questões colocadas na consulta têm um


momento comum: em todas elas é nuclear recortar, com precisão, o âmbito

5 Cfr., em geral, LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado, I, Coimbra, 2014, 573 e,
desenvolvidamente, ISABEL DE MAGALHÃES COLAÇO, Da qualificação em direito internacional privado,
Lisboa, 1964, 21 ss.
6 Cfr. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado, cit, 574.

7
de aplicação da norma de conflitos intertemporais constante do artigo 12.º,
n.º 2, primeira parte, do Código Civil, e da norma de conflitos constante da
segunda parte do mesmo preceito. Sendo ambas estas normas especiais
face ao artigo 12.º, n.º 1, primeira parte, da delimitação do respectivo
âmbito de aplicação resultará também, pela negativa, delimitado o âmbito
de situações directamente reguladas pelo preceito por último referido.
Apenas após a determinação das previsões normativas em causa é
possível olhar para as normas introduzidas pela Lei n.º 23-A/2015, de 26
de Março, no Regime Geral das Instituições de Crédito, aferindo se elas
revestem as características das quais depende a recondução às previsões
das normas constantes do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil.
Importa, assim, em primeiro lugar, interpretar o artigo 12.º, n.º 2, do
Código Civil e, em particular, procurar recortar o que são normas que são
normas que “dispõem sobre as condições de validade substancial ou
formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos” e o que são normas
que “dispõem directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas,
abstraindo dos factos que lhes deram origem”.

2.4. A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 12.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL

8. Impõe-se, assim, a recolha de elementos de interpretação que possam


contribuir para esclarecer o significado das normas constantes da primeira
e da segunda parte do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil.
Encontram-se a este propósito dois tipos de argumentos: um referente à
vontade do legislador histórico e outro à teleologia das normas em
questão, os quais se percorrem de seguida.
Em particular, colocam-se, com especial acuidade, dois problemas de
interpretação. Em primeiro lugar, o que se deve entender por “factos

8
novos” na primeira parte do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil. Em
segundo lugar, quando se deve entender que uma norma “dispõe
directamente sobre o conteúdo de relações jurídicas, abstraindo dos factos
que lhes deram origem?” e qual a articulação desse requisito com aquele,
previsto na primeira parte do preceito em questão, que se reporta aos
“efeitos dos factos”.

A) A INTENÇÃO DO LEGISLADOR HISTÓRICO

9. A análise dos trabalhos preparatórios fornece um importante contributo


para a interpretação do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil.
A redacção do texto que hoje se encontra nesse preceito segue de muito
perto a proposta de redacção constate do artigo 11.º, n.º 2, do anteprojecto
de MANUEL DE ANDRADE sobre fontes de direito, vigência, interpretação e
aplicação da lei7, cuja redacção era a seguinte:

“Artigo 11.º
[…]
II – Quando a lei provê sobre as condições de validade
substancial ou formal, ou sobre os efeitos de actos ou factos
jurídicos, entende-se, na dúvida, que ela só visa os actos ou
factos novos. Quando provê directamente sobre a existência ou
conteúdo de relações jurídicas, entende-se, na dúvida, que ela

7 Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Fontes de direito, vigência, interpretação e aplicação da lei, in BMJ, n.º 102, 1961,
145.

9
abrange as relações já constituídas, que perduram ao tempo da
sua entrada em vigor”

10. A exposição de motivos que acompanhou a proposta de redacção não


compreende nenhuma explicitação expressa do conteúdo normativo que o
legislador histórico quis consagrar neste preceito. A propósito do preceito
que veio a ser o artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, o legislador limita-se a
“esclarecer que se pretendeu seguir a doutrina de Enneccerus-Nipperdey,
I, §§56.º e 57.º”8. Desta forma, a concretização do elemento histórico de
interpretação deve fazer-se por remissão para o referido texto.

O estudo em questão fornece contributos decisivos para clarificar o


significado do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil.

11. O estudo em questão fornece contributos decisivos para clarificar


o significado do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil. Aí os autores
distinguiam consoate uma lei nova se referisse “a um facto (cujo efeito se
determina)” ou “directamente a um direito subjectivo (a que se atribui
certo conteúdo, alcance, etc.)”9. A afirmação de que uma lei apenas vigora
para o futuro teria significados diferentes em cada uma destas situações:
incidindo a lei sobre os efeitos despoletados por factos, a não
retroactividade da lei significaria que esses efeitos apenas seriam
desencadeados por factos ocorridos após a sua entrada em vigor;
regulando a lei o conteúdo de direitos, o princípio da não retroactividade
da lei significaria que esta conformaria o conteúdo dos direitos que
existissem após a sua entrada em vigor, independentemente de serem
constituídos após esse momento, ou lhe serem pré-existentes10. Para referir

8 Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Fontes de direito, vigência, interpretação e aplicação da lei, cit., 152.
9 Cfr. LUDWIG ENNECCERUS/HANS CARL NIPPERDEY, O domínio temporal dos preceitos jurídicos, cit., 11
10 Cfr. LUDWIG ENNECCERUS/HANS CARL NIPPERDEY, O domínio temporal dos preceitos jurídicos, cit., 11-12

10
as leis deste segundo tipo, ENNECCERUS/NIPPERDEY alternam entre dois
tipos de expressões: ora se referem a elas como normas que regulam
“imediatamente” ou “directamente” o conteúdo de direitos, ora se
reportam a elas como normas que regulam o conteúdo dos direitos
“independentemente de conexão aos factos que lhes dão origem ou os
extinguem”11.
A proximidade entre a redacção do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, e os
critérios formulados por ENNECCERUS/NIPPERDEY são evidentes. Ora, o
facto de, nesse estudo, que o legislador do Código Civil cujos resultados o
legislador confessou ter querido consagrar, para ele remetendo sem
reservas quanto à fundamentação de redacção propostas, a expressão
“regular directamente o conteúdo de direitos” e “regular o conteúdo de
direitos abstraindo dos factos que lhes deram origem” serem utilizadas
como alternativas para exprimir o mesmo pensamento, permite retirar já uma
conclusão quanto à interpretação do artigo 12.º, n.º 2, segunda parte, do
Código Civil. Quando aí se referem as leis que “dispõem directamente
sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes
deram origem”, não se deve entender estar perante dois pressupostos
diferentes: antes, a referência à abstracção dos factos que dão origem à
relação jurídica deve ser vista como uma concretização do requisito de que
a lei nova incida “directamente” sobre essa relação: assim, uma lei incidirá
directamente sobre o conteúdo de uma relação jurídica quando regular o
seu conteúdo sem olhar aos factos que lhe deram origem12.

11 Cfr. LUDWIG ENNECCERUS/HANS CARL NIPPERDEY, O domínio temporal dos preceitos jurídicos, cit., 13.
12 Neste sentido, expressamente, JOÃO BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo código civil,
Coimbra, 1968, 357: “é certo que a segunda parte do n.º 2, ao referir-se a normas sobre o conteúdo
duma SJ que abstraia dos factos constitutivos da mesma, nos deixa a impressão de que existem
outras normas sobre o conteúdo das SsJs (e assim é, na verdade). Todavia não foi essa a intenção do
nosso legislador. O inciso abstraindo dos factos que lhe deram origem tem mais por função definir o
que deve entender-se por ‘normas sobre o conteúdo das relações jurídicas’ do que restringir a regra
da aplicação imediata apenas a uma parte dessas normas”.

11
12. O estudo para o qual os trabalhos preparatórios remetem permite também
clarificar o tratamento de dois universos de casos que se afiguram
duvidosos.
O primeiro prende-se com aqueles casos de fronteira em que uma lei
regula os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do conteúdo de um
direito ou de um dever. Nesses casos, de acordo com a doutrina de
ENNECCERUS/NIPPERDEY, que o legislador histórico pretendeu consagrar
no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, estar-se-ia ainda perante a regulação
dos efeitos de um facto e não sobre uma regulação directa do conteúdo de
um direito13. De onde se segue, que o elemento histórico de interpretação
aponta no sentido da qualificação das normas que regulam factos
constitutivos, modificativos ou extintivos de relações jurídicas como
normas que regulam “efeitos de factos”, nos termos do artigo 12.º, n.º 2,
primeira parte, do Código Civil14.
O segundo problema de interpretação que é expressamente abordado no
texto onde se desenvolve a doutrina que o legislador do Código Civil
expressamente quis consagrar, prende-se, em rigor, não com a
interpretação dos conceitos quadro usados no artigo 12.º, n.º 2, do Código
Civil, mas com a concretização da estatuição da norma contida na sua
primeira parte. Aí estatui-se que, entrando em vigor uma norma que
regula condições de validade substancial ou formal de um facto ou dos
seus efeitos, esta só “visa os factos novos”. A aplicação desta estatuição
mostra-se, contudo, problemática, naqueles casos – que, adiante-se, são
especialmente relevantes para a resposta à consulta – em que, de acordo
com a lei em questão, a produção de um efeito jurídico depende de uma
pluralidade de factos distanciados no tempo. A esse propósito a doutrina

13 Cfr. LUDWIG ENNECCERUS/HANS CARL NIPPERDEY, O domínio temporal dos preceitos jurídicos, cit., 14 ss
14 Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo código civil, cit., 299 ss.

12
que o legislador quis acolher no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, assenta
numa distinção:
 Nos casos em que um dos factos surge como “fundamento real de
um efeito de direito e outro como mera condição, cuja verificação
desencadeia o efeito de direito”, deve entender-se que a norma em
questão apenas se aplica quando aquele facto essencial for posterior
à sua entrada em vigor15;
 Nos demais casos em que um efeito jurídico depende da verificação
de uma pluralidade de factos ocorridos em momentos
temporalmente distintos, mas entre os quais não é possível isolar
um deles como facto fundamentante da produção do efeito, quando
o artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, determina que a lei apenas se
aplica a “factos novos”, tal significa que a norma em questão se
aplicará quando, entre os factos que preenchem a sua previsão
normativa, aquele que se verifica por último ocorrer em momento
posterior à sua entrada em vigor16

B) OS INTERESSES SUBJACENTES AO ARTIGO 12.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL

13. No recorte das previsões das normas constantes do artigo 12.º, n.º 2, do
Código Civil, bem como do alcance das remissões por elas operadas,
impõe-se, por outro lado, a consideração dos interesses tutelados nessas
normas.
A este propósito é pacífica a afirmação de que a regulação da aplicação das
leis no tempo tem sempre subjacente um conflito entre dois interesses

15 Cfr. LUDWIG ENNECCERUS/HANS CARL NIPPERDEY, O domínio temporal dos preceitos jurídicos, cit., 18.
16 Cfr. LUDWIG ENNECCERUS/HANS CARL NIPPERDEY, O domínio temporal dos preceitos jurídicos, cit., 18-19.

13
contrapostos. Por um lado, existe um interesse na estabilidade das regulações
jurídicas e, consequentemente, das situações jurídicas que integram a
esfera dos sujeitos. Esse interesse aponta, prima facie, no sentido de que os
efeitos produzidos por qualquer facto, directa ou indirectamente, sejam
integralmente regulados pelas normas vigentes ao tempo da sua prática.
Por outro lado, existe um interesse na adaptação do ordenamento e das
situações jurídicas a novas necessidades ou a novas valorações do
legislador democraticamente legitimado. Este interesse aponta prima facie
no sentido de as lei que entram em vigor regerem, automaticamente, todos
os factos já ocorridos, mesmo que isso implique a sua retroactividade17.

14. Contudo, a mera afirmação de que existem interesses conflituantes não


auxilia o intérprete na delimitação das previsões das normas de conflitos
intertemporais constantes do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil. E isto pela
simples razão de que qualquer uma destas razões em procede todos os
casos concebíveis de conflitos intertemporais de normas. Sempre que uma
norma sucede a outra no tempo há um interesse na estabilidade das
regulações jurídicas, que aponta no sentido de o maior número possível de
situações ser regulada pela lei antiga, e, simultaneamente, um interesse na
adaptação que aponta no sentido de o maior número possível de situações
ser regulada pela lei nova.
Contudo, a ideia de que subjacente a todos os problemas de lei no tempo
existe um conflito entre a estabilidade do direito e a adaptação do direito pode
ser aproveitada, na interpretação do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, a
partir do momento em que se identifica que em cada uma das normas de
conflitos decorrentes desse preceito prevalece um interesse diferente.

17 Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo código civil, cit., 56 ss, MIGUEL TEIXEIRA
DE SOUSA, Introdução ao direito, cit., 281, BURKHARD HESS, Intertemporales Privatrecht, Tübingen, 1998,
357 ss.

14
Assim, quando a norma decorrente do artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, do
Código Civil, estatui que a lei nova apenas se aplica a factos novos,
ressalvando assim os efeitos produzidos pelos factos anteriores à sua
entrada em vigor ao abrigo da lei antiga, exprime que nos casos de
sucessão de leis que regulem problemas de “validade formal ou
substancial de factos ou os seus efeitos” prevalece o interesse na
estabilidade do ordenamento. Inversamente, quando a norma decorrente
do artigo 12.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil, estatui que a lei nova
que regule “directamente o conteúdo de relações jurídicas, abstraindo dos
factos que lhes deram origem” se aplica directamente às situações jurídicas
já constituídas antes da sua entrada em vigor, revela que, nesses casos, o
ordenamento dá prevalência ao interesse na adaptação do ordenamento
jurídico e das situações dos seus destinatários.
Da exigência de congruência teleológica exigida pelo artigo 9.º, n.º 3, do
Código Civil, entre o recorte do universo de situações às quais a norma faz
corresponder a produção de um efeito jurídico e os interesses protegidos
por essa norma, decorre que, pelo menos nos casos de dúvida sobre se
uma “lei nova” deve ser reconduzida à previsão da norma decorrente da
primeira parte do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, ou à previsão da
norma decorrente da segunda parte do mesmo preceito, deve o intérprete
indagar se no tipo de situações regulada pela “lei nova” em questão se
deve considerar preponderante o interesse na estabilidade ou o interesse
da adaptação e, consoante o interesse prevalecente, privilegiar as
interpretações que reconduzam a “lei nova” em causa à norma de conflitos
intertemporais correspondente.

Para isso torna-se necessário identificar critérios que permitam determinar


quando é que cada interesse tem maior ou menor peso. Não podendo esse
juízo apoiar-se em valorações meramente subjectivas do intérprete, torna-

15
se necessário indagar quais as razões justificativas que levam à protecção
jurídica de cada um desses interesses. Apenas face a elas poderá ser
possível mensurar a relevância do interesse na estabilidade e do interesse
na adaptação perante cada caso concreto de sucessão de leis no tempo.

15. O interesse na estabilidade, ao qual é dado prevalência pela norma


constante da primeira parte do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, encontra
como fundamento da sua protecção a tutela da confiança dos sujeitos que
vêm a sua esfera jurídica conformada pela lei antiga. Em causa está
essencialmente o interesse das pessoas, singulares e colectivas, na
estabilidade das suas situações jurídicas, de forma a permitir a
organização dos seus planos de vida e de negócio18. Daqui decorre que as
situações em que a lei nova teria, se aplicada a factos passados ou a
situações jurídicas constituídas por factos passados, um impacto mais
gravoso na possibilidade de planificação do futuro pelas pessoas
singulares e colectivas sujeitas a essa regulação devem, em caso de dúvida,
ser reconduzidas à previsão da norma constante da primeira parte do
artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil. Assim, as normas que extinguem direitos,
restringem o seu conteúdo ou de alguma forma degradam a posição do seu
titular, por a sua aplicação a factos passados ou ao conteúdo de direitos
constituídos por factos passados poder tornar inviáveis cursos de acção
futuros com os quais os sujeitos por ela atingidos poderiam contar antes da
sua entrada em vigor, devem ser consideradas como implicando um maior
sacrifício do interesse na estabilidade do que aquelas normas que concedem
direitos, ampliam o seu conteúdo ou privilegiam a posição do respectivo
titular. Da mesma forma, as normas que, a serem aplicadas a factos
iniciados antes da sua entrada em vigor ou a situações jurídicas

18 Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo código civil, cit., 56-57 e ANTÓNIO
MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil, I, cit., 855 ss.

16
constituídas por factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, teriam
impacto em pontos nucleares da actividade dos sujeitos por ela afectados,
ou cuja aplicação tivesse implicações em cadeia, projectando reflexos na
validade ou na licitude de uma pluralidade de actos praticados pelos
sujeitos afectados, devem também, nos casos duvidosos, ser reconduzidas
à previsão da norma constante da primeira parte do artigo 12.º, n.º 2, do
Código Civil. Inversamente, quando as “leis novas” tenham incidência
circunscrita a pontos não nucleares da actividade dos seus destinatários as
razões para tutelar o interesse na estabilidade mostam-se menos
ponderosas, sendo consequentemente, menos onerosa a justificação da sua
recondução à norma constante da segunda parte do artigo 12.º, n.º 2, do
Código Civil. A isso obriga, repita-se, a exigência de congruência entre os
interesses tutelados por uma norma (aqui, a norma de conflitos) e a
regulação por ela instituída.
O princípio da tutela da confiança, que o ordenamento jurídico configura
como dominante nas situações de sucessão de leis no tempo reguladas no
artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil, deve levar, por outro
ângulo, a uma maior preponderância do interesse na estabilidade sempre
que a “lei nova” em questão interfira com aspectos determinantes para a
decisão da prática de uma acto, que possa ter sido praticado antes da sua
entrada em vigor. A tutela da confiança dos sujeitos reclama a
previsibilidade das consequências dos comportamentos adoptados pelas
pessoas singulares e colectivas que se sujeitam à lei. Assim sendo, se uma
lei vem estabelecer consequências que, a serem aplicadas na conformação
de situações jurídicas despoletadas por factos ocorridos no passado,
teriam sido desincentivadoras da prática de actos ocorridos antes da sua
entrada em vigor, o problema da delimitação do seu âmbito temporal de
aplicação deve, em caso de dúvida, ser resolvido nos termos da norma de
conflitos intertemporais constante do artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, do

17
Código Civil. Inversamente, se os sujeitos cuja esfera jurídica é afectada
têm um papel meramente passivo no desencadeamento dos efeitos
jurídicos pela norma material cuja aplicação no tempo se interroga – isto é,
se essa norma não tem como pressupostos da sua aplicação actos
voluntários dos sujeitos cuja esfera jurídica é por ela afectada e, dessa
forma, não tem impacto na tomada de decisão subjacente aos
comportamentos desse sujeito –, o peso a atribuir ao interesse na
estabilidade das situações jurídicas será relativamente menor e,
consequentemente, no caso de dúvida, a sua recondução à norma de
conflitos constante do artigo 12.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil
exigirá do intérprete-aplicador uma menor carga justificativa.

16. Por outro lado, ao interesse na adaptação, cuja prevalência justifica a norma
de conflitos intertemporais decorrente do artigo 12.º, n.º 2, segunda parte,
do Código Civil, é apontado um duplo fundamento.

17. A um tempo, a relevância do interesse na aptação mostra-se uma exigência


da tutela do tráfego jurídico. Sempre que uma lei já revogada é chamada
pelo direito intertemporal a regular o conteúdo de relações jurídicas, ainda
que estas tenham sido constituídas durante o seu período de vigência,
gera-se, já no domínio de vigência da lei nova, uma situação em que
pessoas singulares ou colectivas em posições idênticas entre si têm direitos
e deveres heterogéneos, consoante as respectivas situações jurídicas,
ambas subsistentes à data de entrada em vigor da lei nova, sejam
reguladas pela lei nova ou pela lei antiga. Essa heterogeneidade, sendo o
produto de uma diferença quanto à lei temporalmente competente para
reger o conteúdo das situações jurídicas, não é evidentemente
percepcionável por terceiros que com aqueles sujeitos se cruzem e que
com eles interajam de forma relevante para o direito. Desta forma, para
que os direitos e deveres dos sujeitos cuja situação jurídica dependa da

18
determinação da lei aplicável sejam cognoscíveis por terceiros será
necessário que estes levem a cabo uma indagação de qual o preciso ponto
temporal, necessariamente no passado, em que ocorreram os factos
constitutivos do direito em causa. A possibilidade de daqui decorrerem
perturbações no tráfego jurídico é evidente19. Contudo, essas perturbações
não terão necessariamente lugar, nem, tendo lugar, terão sempre a mesma
gravidade. Designadamente, as situações em que tal perturbação pode
ocorrer cingir-se-ão, pelo menos tendencialmente, a situações em que o
conteúdo das situações jurídicas dos sujeitos atingidos pela norma em
questão possa ser directamente relevante para uma pluralidade
tendencialmente indeterminada de sujeitos. Assim, nos casos em que as
situações jurídicas cujo conteúdo depende da aplicabilidade da lei nova ou
da lei antiga são puramente relativas, fixando os direitos e deveres entre
dois sujeitos, a incerteza sobre o conteúdo da situação jurídica que decorre
da possibilidade de esse conteúdo ser regulado pela lei nova ou pela lei
antiga, apenas afecta os sujeitos directamente afectados pela lei, não se
podendo, pois, afirmar que, nesses casos, a segurança do tráfego jurídico,
enquanto forma de interacção objectivada, seja posta em causa20. Por sua
vez, dentro das situações em que o conteúdo da situação jurídica em causa
pode ser relevante para terceiros (como são, por exemplo, a titularidade de
direitos absolutos, os estados relativos à capacidade de exercício, etc.), o
interesse na adaptação será tão mais premente quanto mais oneroso for
para terceiros a aferição da aplicabilidade da lei nova ou da lei antiga aos
sujeitos com os quais interagem - o que se mostraria, recorde-se,
necessário para determinar os direitos e deveres destes sujeitos. O peso do

19 Cfr. JOÃO BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo código civil, cit., 57 e BURKHARD HESS,
Intertemporales Privatrecht, cit., 375 ss
20 A relação entre oponibilidade erga omnes das situações jurídicas estabelecidas pelas normas de direito
material cujo âmbito temporal de aplicação é delimitado pelas normas de conflito em questão e a
tutela do tráfego jurídico é salientada por BURKHARD HESS, Intertemporales Privatrecht, cit., 375-376.

19
interesse na adaptação será assim maior quando as normas materiais que
regulem sectores de actividade ou tipos de relações em que a interacção é
despersonalizada e massificada. Nesses casos, havendo dúvidas sobre se uma
norma regula “directamente o conteúdo de certas relações jurídicas” deve
entender-se ser a resposta positiva, uma vez que nesses casos haverá
razões mais ponderosas para privilegiar o interesse na adaptação do
direito e ser esse o interesse prevalecente nas situações reguladas pelo
artigo 12.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil.

18. O interesse na adaptação do direito, que, como acaba de se expor, é


favorecido pela aplicação da norma de conflitos intertemporais constante
da segunda parte do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, encontra um
segundo fundamento na legitimidade do legislador para operar
transformações sociais. A legitimidade democrática do legislador deve,
nomeadamente, habilitá-lo a promover a sua concepção de progresso,
mesmo alterando estruturas sociais ou económicas cristalizada.
Procedendo o legislador a uma alteração legislativa, a subsistência da
aplicabilidade da legislação revogada para reger os efeitos de factos
ocorridos antes da sua entrada em vigor ou o conteúdo de situações
jurídicas constituídas por factos anteriores a esse momento
(designadamente, quando o conteúdo dessas situações jurídicas seja
regulado pela lei em causa, ainda que não abstraindo dos factos que lhe
deram origem) consubstancia um limite à possibilidade de conformação
da sociedade pelo legislador. Daqui decorre a existência de razões
acrescidas para, em caso de dúvida, reconhecer a aplicabilidade imediata
da lei nova – através da aplicabilidade da norma constante da segunda
parte do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil – quando a norma material cujo
âmbito temporal de aplicação se questiona visar operar alterações
estruturais na sociedade ou corrigir situações que possam ser

20
caracterizadas como de grave injustiça21. Contudo, para que tal se possa
afirmar, é necessário que a “lei nova” se traduza em normas materiais com
um forte conteúdo axiológico e que entre a “lei nova” e a “lei antiga”
exista uma marcada clivagem. Nesses casos, como visto, as situações de
dúvida sobre se uma norma que regula o conteúdo de situações jurídicas
de forma directa ou indirecta – e, consequentemente, se se deve aplicar,
respectivamente, a segunda ou a primeira parte do artigo 12.º, n.º 2, do
Código Civil – devem ser resolvidas através da aplicação da norma de
conflitos resultante da segunda parte do referido preceito. Inversamente,
quando, no extremo oposto, a “lei nova” corresponder a normas de cariz
essencialmente técnico ou procedimental, ou a normas que se limitem a
fazer ajustes de grau no conteúdo das situações jurídicas, nomeadamente
quantificando direitos e deveres dos sujeitos por ela abrangidos, o
interesse na adaptabilidade não merecerá, ceteris paribus, prevalência sobre
o interesse na estabilidade, devendo, pois, a situação de conflito de leis no
tempo, em caso de dúvida, ser regulada pela norma constante do artigo
12.º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil.

C) SÍNTESE: A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 12.º DO CÓDIGO CIVIL

19. Das últimas páginas podem retirar-se as seguintes conclusões intercalares.


Em primeiro lugar, o segmento do artigo 12.º, n.º 2, referente às
disposições que regulam “directamente” o conteúdo de relações jurídicas é
concretizado pelo segmento que se refere à “abstracção dos factos que
deram origem às situações jurídicas”, em vez de se tratarem de dois
pressupostos cumulativos. Através desta exigências visou o legislador

21 Cfr. BURKHARD HESS, Intertemporales Privatrecht, cit., 106 ss.

21
excluir do âmbito de aplicação da norma de conflitos intertemporais
constante da segunda parte do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, todas
aquelas normas que regulam os factos constitutivos, modificativos ou
extintivos de situações jurídicas: essas normas devem ser qualificadas como
normas que regulam “os efeitos de factos” e, como tal, subsumidas à
previsão da norma de conflitos constante do artigo 12.º, n.º 2, primeira
parte do Código Civil.
Em segundo lugar, nos casos de dúvida sobre se uma determinada lei se
reconduz ao âmbito de aplicação da norma de conflitos constante do
artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, ou ao âmbito de aplicação da norma de
conflitos constante da segunda parte do mesmo preceito, devem ser
considerados os interesses subjacentes à regulação de conflitos de leis no
tempo, designadamente o interesse na estabilidade e o interesse na
adaptação, devendo a norma em causa ser reconduzida à norma de
conflitos intertemporais que dê prevalência ao interesse que in casu se
mostre mais relevante.
Em terceiro lugar, quando a norma cujo âmbito temporal de aplicação se
pretende delimitar dispuser sobre “condições de validade substancial ou
formal, ou sobre os efeitos de um facto”, a estatuição do artigo 12.º, n.º 2,
primeira parte, de que, nesses casos, a “lei nova” apenas regula “factos
futuros” mostra-se problemática sempre que os efeitos tenham como
pressuposto da sua produção uma pluralidade de factos distanciados no
tempo. Nesses casos, a identificação do que conta como “facto novo”
pressupõe que se afira se, entre os vários factos aos quais a previsão da
norma material faz referência, algum pode ser identificado como
verdadeiro fundamento do efeito jurídico, relegando os demais para um
papel secundário ou instrumental. Essa aferição pressupõe uma valoração
dos factos em causa, a qual apenas pode ser feita à luz da razão
justificativa subjacente à norma em questão. Caso, à luz dessa razão

22
justificativa, seja possível salientar um dos factos referidos na previsão da
norma de direito material como verdadeira causa da produção do efeito
jurídico por ela estatuído, então o momento relevante para a aferição do
que vale como “facto novo”, no artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, do Código
Civil, será o momento da ocorrência desse facto. Caso contrário, não sendo
possível, à luz da razão justificativa subjacente à norma material em causa,
salientar um dos factos referidos na respectiva previsão como
fundamental, o momento relevante para a localização temporal do facto
que desencadeia o efeito jurídico em causa será o momento da ocorrência
do último dos factos referidos na previsão da norma.
Por fim, a delimitação que foi feita das normas constantes do artigo 12.º,
n.º 2, primeira e segunda parte, impõe a conclusão de que essas duas
normas não esgotam a totalidade do universo de situações que convocam
conflitos de leis no tempo. Afinal, nem todas as normas do ordenamento
jurídico regulam condições de validade, o efeito de factos ou o conteúdo
de situações jurídicas. Designadamente, as simples normas de conduta,
cujos efeitos se cingem na qualificação de determinadas acções ou
omissões como impostas, proibidas ou permitidas, escapam às previsões
de ambas essas normas especiais. Consequentemente, estas serão
simplesmente reguladas pelo princípio constante do artigo 12.º, n. º1,
primeira parte, do Código Civil: o estatuto deôntico das acções ou
omissões – de pessoas singulares ou colectivas (privadas ou públicas) – é
regulado pela norma que estiver em vigor no momento da prática desses
comportamentos22.

22 Cfr. AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Lições de direito administrativo, cit., 516 ss.

23
2.5. A DELIMITAÇÃO DO ÂMBITO TEMPORAL DE APLICAÇÃO DA LEI ANTIGA
NO ARTIGO 12.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL

20. As conclusões alcançadas no ponto anterior fornecem um enquadramento


face ao qual pode ser delimitado o âmbito temporal de aplicação das leis
nos termos do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil. No entanto, como resulta
do seu teor literal, este preceito apenas se preocupa com a delimitação do
âmbito de aplicação de uma “lei nova”. Os critérios de resposta aos
problemas de sucessão de leis no tempo estabelecidos pelo artigo 12.º, n.º
2, do Código Civil, são aí formulados como respostas à pergunta sobre a
partir de quando se aplica a “lei nova”. A primeira parte do artigo 12.º, n.º 2,
do Código Civil, determina quando é que a lei se aplica a “factos novos” e
a segunda parte do mesmo preceito determina quando é que uma lei se
aplica imediatamente às situações já constituídas antes da sua entrada em
vigor.
Importa, contudo, clarificar qual o direito material aplicável quando, nos
termos do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, a lei nova não é aplicável aos
factos que convocam o problema de sucessão de leis no tempo.
Esta questão não encontra tratamento expresso na lei. Inexiste, em rigor,
qualquer preceito jurídico que determine quando é que uma “lei antiga” é
temporalmente competente para regular determinada questão, o permite
revelar uma lacuna no direito de conflitos intertemporal.

21. Essa lacuna deve ser integrada através da generalização dos critérios
estabelecidos no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil para a delimitação do âmbito de
aplicação da “lei nova”, num processo em tudo idêntico ao de

24
“bilateralização” de normas de conflitos unilaterais em direito
internacional privado23.
Assim, quando a norma material cujo âmbito temporal de aplicação regule
disponha sobre a “validade formal ou substancial de factos, ou sobre os
seus efeitos”, e os factos por ela regulados sejam anteriores à entrada em
vigor da “lei nova”, deve aplicar-se por analogia o critério subjacente ao
artigo 12.º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil, o qual assenta no
princípio de que tempus regit actum. Assim, as condições de validade e os
efeitos dos factos ocorridos antes da entrada em vigor da “lei nova” são
regulados pela “lei antiga”.
Por sua vez, quando a norma material cujo âmbito temporal de aplicação
regule “directamente o conteúdo de relações jurídicas”, mas se interrogue
o conteúdo da situação jurídica antes da entrada em vigor da “lei nova”,
deve resolver-se o problema de direito intertemporal generalizando o
critério subjacente ao artigo 12.º, n.º 2, segunda parte do Código Civil,
segundo o qual, o conteúdo das situações jurídicas é regido pelas normas
que regulem directamente o seu conteúdo que, a cada momento, sejam
vigentes. O conteúdo passado das situações jurídicas é, pois, regulado
pelas normas qualificáveis como “lei antiga” que regulem directamente o
seu conteúdo.

23 Sobre a bilateralização de normas de conflito unilaterais, cfr. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito internacional
privado, cit., 285 ss.

25
[…]

26

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