Você está na página 1de 7
TRES EM UM a Semana Modernista, o Nordeste de Gilberto Freyre e o Rio Grande do Sul Ruben George Oliven © movimento modernista de 1922, com toda sua complexidade e diferenciagao ideolégica, ¢ em geral apontado como um divisor de aguas no que diz respeito a pensar o Brasil como nagao. Por um lado, significou uma procura do universal, & medida que pretendia reatualizar o Brasil em relagdo aos movimentos cultu- rais @ artisticos que estavam ocorrendo no exterior @, por outro, implicou a busca de nossas raizes nacionais, valorizando © que haveria de mais autenticamente brasileiro. Uma das contribuigdes do movimento consiste justamente no questionamento tanto da atualizagao artistico-cultural de uma sociedade subdesenvolvida, como da problematica da nacionalidade. Neste sentido, a partir da segunda fase do modernismo (1924 em diante), 0 ataque ao passadismo ¢ substituido pela énfase na elaboracaio de uma cultura nacional, ocorren- doaredescoberta do Brasil pelos brasileiros. Apesarde um certo bairrismo paulista, os modernistas recusavam Protessor do Progiama de Pés-Graduacio.m Antropologia (1) MORAES, Edo. ABr (2) Apud MORAES. Op. cit. p. £2. (3) APUAPEIRANO, M.G.8.6 Antrop6i (0) ANORADE, ge. © ust ‘Aprende. 880 Paulo, Duas Cidades, 1903, 22 © regionalismo, ja que acreditavam que era através do nacionalismo que se chegaria ao universal. Assim, “para 0s modernistas, a operacdo que possibilita o acesso ao universal passa pela afirmagao da brasilidade” (1). £0 que fica claro numa carta de Mario de Andrade a Sérgio Milliet: “Problema atual. Problema de ser alguma coisa. E 86 se pode ser sendo nacional. Nés temos o problema atual, nacional, moralizante, humano de brasileirar o Brasil. Problema atual, modernismo, repara bem que hoje sé valem artes nacionais... E nds sé seremos universais 0 dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer para a riqueza universal.” (2). Uma outra carta de Mario, dirigida a Carlos Drummond de Andrade, aponta para a mesma diregdo: “NOs 86 seremos civilizados em relagao as civilizagoes © dia em que criarmos 0 ideal, a orientagdo brasileira. Entao passaremos do mimetismo pra fase de criagao. E entao seremos universais, porque nacionais” (3). Coerente com essa postura, Mario de Andrade transfor- mou-se num autodenominado “turista aprendiz”, desen- volvendo uma intensa atividade de pesquisa e viagens, com 0 objetivo de estudar os elememtos que compoem a cultura brasileira (4). Considerando que o movimento modernista de 1922 surgiu em Sao Paulo, cidade que j4 despontava como futurametrépole industrial, é significativo que, em 1926, tenha sido langado, em Recife - a capital mais desenvolvida do Nordeste -o Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre (5). O movimento de 1926 tem um sentido, de certa maneira, invorso ao de 1922, pois, ao contrario de exaltar a inovagao que atualizaria a cultura brasileira em relagdo ao exterior, procurou preservar Nao 86 a tradig&io em geral, mas especificamente a de uma regiéo economicamente atrasada. © Manifesto Regionalista desenvolve basicamente dois temas interligados: a defesa da regido enquanto unidade de organizagao nacional; e a conservacao dos valores regionais e tradicionais do Brasil, em geral, ¢ do Nordeste, em particular. Ao frisar a necessidade de uma articulagao inter- regional, Freyre toca num ponto importante e atual, ou seja, como propiciar que as diferengas regionais con- vivam no seio da unidade nacional, em um pals de dimensdes continentais como o Brasil. Esse tipo de preocupagéo comparece também em trabalhos poste- riores desse autor. Numa conferéncia realizada em 1944, nos Estados Unidos, e sugestivamente intitulada “Unidade e Diversidade, Nagao © Regido’, ele afirma que “Uma regido pode ser politicamente menos do que uma nagao. Mas vitalmente e culturalmente 6 mais que uma nagao: 6 mais fundamental que a nag&o como con- digo de vida e como meio de expresso ou de criagao humana. Um filésofo, no legitimo sentido, tem que ser super ou supranacional; mas dificilmente ele pode ser Supra-regional no sentido de ignorar as condigées regionais da vida, da experiéncia, da cultura, da arte do pensamento que Ihe cabe julgar ou analisar” (6). E justamente a uma concluséo semelhante que chegaram os modernistas a partir da segunda fase do movimento, quando se deram conta de que a dnica maneira de ser universal € ser nacional antes. Guardadas as proporgdes, o que Freyre esté afirmando & que 0 Gnico modo de ser nacional, num pais de dimensdes como o Brasil, é ser primeiro regional. Entretanto seu modo de argumentar 6, de certa maneita, 0 inverso dos modernistas, ja que nao esta alicergado numa atualizagao cultural através de valores modemos vindos do exterior, mas, ao contrario, na (© Jeaauiminojosa ata que oovimantoRegionalists ao oipubicado om 1926 IMOJOSA, J. PA de Cal Rio da Jancie, Eltora Moo-Oia, 1978 ‘autor do Manifesto siema que text 0 iso om 1926 m0 Primo Congrésso ‘rast ae Regiorlizmo realizado em Recile «publ em pensive edie FREYRE, G. Manito Repionalisia, Racie, Insite Joaquim Nabuco o6 Pesquisas Socai, 1976, p82, (9) FREYRE, G.Unidede» dversdade, Napio o agi. Interpret lo de Janets, José Olymple. 1987, p. Masta ‘Sao Paulo em Perspectiva, 7(2):22-28, abriljunho 1993 critica aos maleficios do progresso e da importagao de costumes e de valores estrangeiros. Assim, por exem- plo, ao analisaro Nordeste, ele afirma que essa regiao estaria perdendo a consciéncia de seus valores hist6- rioos © de suas possibilidades devido a padronizagéo decorrente da conquista industrial do mundo e aos efeitos de influéncias semelhantes no Brasil. Poder-se-ia argumentar que podem ser feitas, pelo menos, duas leituras do Manifesto Regionalista. A pri- meira 0 consideraria um documento elaborado por um intelectual representante de uma aristocracia rural, que vé a ordem social passar por transformaées que colocam em xeque 0 padrao tradicional de dominagao. Sua reagao é de cunho tradicionalista e se assemetha a reagiio aristocratica frente As mudangas decorrentes da urbanizagao e da industrializago e que estavam vazadas numa critica & perda de valores comunitarios e da pureza cultural, que supostamente teriam existido no passado. Nessa linha de interpretacdo, poder-se-ia dizer que, na defesa da regido, existe uma estratégia de quem vé as oligarquias nordestinas perderem, cada vez mais, 0 poder e, por esse motivo, procura opor ao poder cen- tral uma unigo das periferias regionais. De modo seme- Ihante, poder-se-ia buscar na defesa intransigente das tradigbes & valores populares uma posigdo saudosista, que tenta erigir uma cultura popular cristalizada na forma de simbolo de nacionalidade para contrapor a uma modernidade definida como estrangeira Semdescartarnenhum desses argumentos, umase- gunda leitura ressaltaria, entretanto, que, por trés da orientag&oconservadora do Manifesto, estdo temas que continuam sendo muito atuais no Brasil. £ justamente na fuséo de uma perspectivaconservadoracomolevan- tamento de questées ainda nao resolvidas no Brasil que reside a originalidade do Manifesto Regionalista De fato, o Manifesto suscita uma série de questdes que s&o recorrentes em nossa hist6ria: estado unitario versus federapao, nado versus regido, unidade versus diversidade, nacional versus estrangeiro, popularvorsus erudito, tradigo versus modernidade. Continuamos discutindo a formulago de modelos para organizar a nagao, sendo que esse debate acaba, inevitavelmente, pasando pela discussao do que 6 nacional (2 portanto auténtico para uns, mas atrasado para outros) eo queé estrangeiro (ouseja, espiriopara uns, mas moderno para outros). Em outras palavras, continuamos girando em torno da questao da identidade nacional, que 6 reposta e reatualizada a medida que novos contextos so criados. A década de 30, no Brasil, longe de aumentar 0 poder das regides, fez crescera forca centralizadora do 23 Estado nacional. A derrota da Revolugao Constituciona- lista de 1982 € um marco nesse proceso. A tendéncia centralizadora acentua-se coma implantagaoda ditadu- ta do Estado Novo. E significativo que a constituigéo que marcou seu inicio tenha suprimido as bandeiras estaduais. Menos de um més apés a implantagao do Estado Novo, em 1937, Vargas mandou realizar a cerimonia da queima das bandeiras estaduais na Esplanada do Rusell, no Rio de Janeiro, Nesse ato, que marca, simbolicamente, uma maior unificagao do pais eumenfraquecimento do poder regional e estadual, foram hasteadas vinte e uma bandeiras nacionais em substituiao as estaduais, que foram incineradas numa grande pira erguida no meio da praga, ao som do Hino Nacional tocado por varias bandas e cantado por milhares de colegiais, sob a regéncia de Heitor Villa Lobos, figura de destaque da semanamodernistade 1922. Aceriméniada queimadas bandeiras marca, no sentido ideoldgico, 0 entraqueci- mento do poder regional ¢ estadual, podendo ser considerada um ritual de unificagdo da nagdo sob a égide do Estado. © Rio Grande do Sul, por ser o estado mais meridional do Brasil, mantém uma relagao peculiar com © pais. Constituindo-se num territério de fronteira, sua relagéo com o pais caracteriza-se pela tensdo entre autonomia @ integrago. As peculiaridades do Rio Grande do Sul contribuem para a construgao de uma série de representagdes ao seu redor, que acabam adquirindo uma forga quase mitica que as projeta até nossos dias e as fazem informara aga e criar praticas no presente. ‘Apesar da diversidade interna do Estado (a ponto de um autor falar em “doze Rio Grandes”)(7), a tradigao @ a historiografia regional tendem a representar seu habitante através de um nico tipo social: 0 gaéicho, 0 cavaleiro @ pedo de estancia da regiao sudoeste do Rio Grande do Sul. Embora brasileiro, ele seria muito istinto de outros tipos sociais do pais, guardando as vezes mais proximidade com seu homénimo da Argen- tina e do Uruguai. Na construgao social da identidade do gauicho brasileiro, hé uma referéncia constante a {7 BARBOSA LESSA, L.C. 08 Doze Rio Grandes. Poco Alegre, SAURIG, 1981 ‘halos do Azovedo fla om Wbs dione do Rio Grande do Sul: subsres gaicha.a onal @ a subarea lograndanse orginal. AZEVEDO. T.Gatenos, Notas ge Antropotogia Socla. Bahia Tipeprata Nava (@ GOULART. JS. A Formagio do (8) Sobre contitos no flo Grande do Su. Vor MOTTA, J. co P. Repdblica Fraticda, RevolugSes Rlo-Grandensos de 1895+ (G0) LOVE, J.0 Regionalismo Gadcho. S20 Paulo, Perspaciva, 1975, 24 elementos que evocam um passado glorioso, no qual se forjou sua figura e cuja existéncia seria marcada pela vida em vastos campos, a presenga do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade @ a bravura do homem ao enfrentar 0 inimigo ou as forgas da natureza, a lealdade, a honra, ete. No processo de glorificagao do gaucho, que faz parte da construgao social de sua identidade, torna-se necessério distingui-lo de seu homénimo de outros paises. Assim, em 1927, procurando tragar as aproxi- magdes entre o gaticho rio-grandense e o gaiicho platino, Jorge Salis Goulart afirmou que “O ‘gaiicho malo’ é uma criagdo da pampa platina. Esse tipo ‘sui generis’ que briga tdo-somente pelo gosto de brigar, eterno inimigo da sociedade e da justiga, guerreiro indomavel e aventureiro, dominado pelo vicio do jogo © pelo amor de luta cruenta, her6i anénimo do Pampa, 6 peculiar as populagdes castelhanas. O rio-grandense nao. E sébrio, 6 ordeiro, embora nunca tema afrontar © inimigo para que seja mantida a sua organizagao social. A longa série de fatos cruentos que a histéria do Prata registra 6 completamente alheia a histéria do Rio Grande do Sul. (...) © gaticho platino é um rebelado contra a sociedade e as leis que a dominam. O caudi- Iho que chega A suprema governanga nao visa o bem publico porque ele 0 ndo compreende. Todas as prer- rogativas estéo na sua personalidade de autocrata rude e bronco. O rio-grandense 60 contrario. Em[18]35 ele se rebela para dar & sua terra um governo mais seguro, mais de acordo com as necessidades do seu povo" (8). E interessante notar que, & época em que essas afirmagées foram {eitas, a Revolugao Farroupilha(1835- 1845) estava completando quasecem anos eas guerras do Prata ja haviam cessado ha muito. O que tinha acontecido recentemente no Rio Grande do Sul eram conilitos internos de indole extremamente sangrenta € cruel (9). Assim, de 1893 a 1895, 0 Estado esteve mergulhado na Revolugéo Federalista, a guerra civil mais cruenta da histéria do Brasil, na qual morreram de dez a doze mil pessoas, numa populagao de um milhao de habitantes (10). Em 1923 houve um novo conflito interno entre os mesmos grupos envolvidos na Revo- lug&o Federalista, que terminou com um pacto que previa a impossibilidade de o presidente do Estado “eleger-se” novamente. Nessa época, os caudilhos eram figuras centrais nos conflitos e politicas do Estado. Pode, portanto, parecer estranho falar-se, naquela época, sobre o cardter ordeiro @ a indole pacitica do gaticho brasileiro, quando acabava-se de viver momen- tos marcados por extrema belicosidade, Do mesmo modo, chama a atengao a preocupagao constante de parte da historiografia gaticha no sentido de frisar, a partir daquela época, 0 cardter ndo-separalista da Revolugdo Farroupilha, apesar desta ter proclamada a Repdblica Rio-Grandense. Essa preocupagao ja existia, 6 verdade, por casio do proprio movimento, que teve origem na insatisfagdo de estancieiros em relago & excessiva centralizagao politica imposta pelo governo central e no sentimento que a provincia era explorada economicamente pelo resto do Brasil Em 20 de setembro de 1935, data em que se come- morou 0 centendrio da Revolugdo Farroupilha, numa sessao civica promovida no Rio de Janeiro pelo governo do Distrito Federal, um deputado federal pelo Rio Grande do Sul pronunciou um veemente discurso, no qual afirmou que, para os farrapos, a revolugao “era 0 anseio de sua brasilidade; era o sentir do patriotismo gaticho; era a confissao de que (...) eles queriam mos- trar que eram brasileiros, que queriam viver, dentro da comunhao brasileira, ligados pela Federagao dos Esta- dos. Ninguém poderé obscurecer essa verdade brilhan- to". Assegurando que os rebeldes*foram, principalmente @ acima de tudo, brasileiros”.ele concluiu: “O meu brasileiro Rio Grande... Foi, pelo Brasil que lutamos, ontem, lutamos, hoje, ¢ lutaremos, amanha" (11). Mais do que uma omissdo escandalosa em relagao a0 que estava ocorrendo, 0 que se nota nos escritos desses intelectuais, quando insistem no nao-separatis- mo da Revolugao Farroupilha e nas diferengas essen- ciais entre 0 gaticho brasileiro e 0 platino, é uma tentativa de afirmar a brasilidadedo Rio Grande do Sul @ de seus habitantes. Embora atualmente isso possa parecer supérfluo, convém lembrar que boa parte deles estava escrevendo antes ou logo depois de 1930, quando ainda no havia se consolidado a integragao econdmica e politica dopais. Umdos temas centrais da intelectualidade, naquela época, era o da tormagao da nacionalidade da integragao nacional. A Revolugéiode 1930, na medida que significou um processo crescente de centralizagao econdmica e politica, acentuou a idéia de unidade nacional e atribuiu 20 Estado essa tarefa E preciso, portanto, nao sé afitmar a brasilidade do gaticho, mas também enfatizar seus tragos positives, mesmo que para isto seja necessdrio maquilar a realidade, passando por cima dos elementos que poderiam, eventualmente, ser considerados “barbaros”. Estes deveriam ser “exportados" para 0 outro lado da fronteira: 0 Prata, {11) RUSSOWANO, V-A Revolugae dos Farrapes. A de Jansivo, Ocina Grsicn ‘a Secretaria Geral do Edueagae w Cuilura, 1935, p. 24, 30.¢ 38 (02) Sobre a bandeira do Rio Grande do Su, vet SPALOING, W. Bandeia, Brasto e Mino Pie-Grandenses,Boletim do DAER ‘do Ria Grande do Sul, ano 18, 0 68, 1956, Sao Paulo em Perspectiva, 7(2):22-28, abriljunho 1993 As peculiaridades da relagdo entre 0 Rio Grande do Sule 0 Brasil ficam evidenciadas de forma simbélicana bandeira do Estado que é formada por trés faixas coloridas: uma verde, uma amarela(ambas evocandoas cores da bandeira nacional) e no meio uma faixa vermelha, denotando 0 sangue que foi derramado na histéria do Estado. No centro desta faixa vermelha, que simboliza de forma tao veemente a quota de sacriticio aga por seus habitantes ao integrarem a Federacao, héum brasdo que contém, entre outras coisas, canhées, langas, baionetas e duas frases: “Liberdade, Igualdade, Humanidade” (o lema dos farrapos) e “Repablica Rio- Grandense, Vinte de Setembro de 1835", lembrando, constantemente, que, embora o Rio Grande do Sul faga parte do Brasil, j4 foi uma repiblica independente, sendo que 0 episédio deve ficar bem presente na meméria (12). © Estado, neste século, esteve envolvido numa sé- rie de revoltas € movimentos que teriam um carater “pedagégico", através do qual interveio na politica nacional para dar-Ihe outro rumo. Assim, a *Coluna Prestes’, que foi um dos marcos do tenentismo, comegou em 1924 em Santo Angelo, na regiéo das Miss6es (fronteira com a Argentina), com o jovem capitéio do Exército Nacional, Luiz Carlos Prestes, posteriormente secretario-geral do Partido Comunista Brasileiro. A marcha da Coluna Prestes durou mais de dois anos, indo até 0 Nordeste (através do Paraguai) para, voltando por Goids @ Mato Grosso, terminar na Bolivia num percurso de mais de vinte e cinco mil quilémetros. ‘A Revolug&o de 1980, movimento que teve origem no descontentamento das oligarquias periféricas e que colocou Getulio Vargas no poder, também comegou no Grande do Sul. © movimento conseguiu fazer os politicos estaduais esqueceram suas clivagens internas em face do problema externo. Em 1961, quando o Presidente Janio Quadros re- nunciou e houve uma tentativa de nao permitir que seu vice, 0 gaticho Joao Goulart, assumisse a Presidéncia, foi novamente no Rio Grande do Sul que ocorreu uma resisténcia vitoriosa, denominada de “Legalidade. O golpe de 1964, embora nao tenha se originado no Rio Grande do Sul, nao se concretizaria sem a adesdo do onto Ill Exército, com sede em Porto Alegre, e que sempre teve o maior contingente de soldados do Brasil Dos cinco generais que governaram 0 pais de 1964 a 1985, trés eram gatichos. Porém, se esses episédios significam a intervengao do Rio Grande do Sulna politica nacional com o objetivo de corrigir os seus rumos, é interessante o fato de que, frequentemente, seus habitantes continuem se queixan- 25 do de que o Estado nao lucrou nada com sua Interveng&io, Novamente, o Estado estaria perdendocom seu relacionamento com o Brasil. Assim, por ocasiao do sesquicentendrio da Revolugdo Farroupilha, o entao Ministro da Agricultura e depois Governador do Rio Grande do Sul afirmou que “Nossa marginalizagao na vida politica nacional tem causas préximas e remotas. ‘As préximas séo bem conhecidas: muitas de nossas liderangas estiveram, nos ultimos vinte e poucos anos, intimamente associadas ao regime que se foi. O des- crédito que cobriu 0 regime passado se estendeu naturalmente a parcelas de liderangas rio-grandenses Mais grave que isso foi, contudo, o fato de tais lide- rangas terem participado da alta administragao federal sem disporem de um projeto articulado de defesa e estimulo ao desenvolvimento do Rio Grande. Recebe- mos 0 descrédito ¢ n&o ampliamos nossa faixa de participagao no processo nacional de decisées. (...) A forma pela qual o Rio Grande participa da vida nacional esté ancorada em dificuldades que vém de longa data. Refiro-me a maneira tradicional de insergao do Rio Grande na politica nacional. Nossa participagao na vida politica tem oscilado entre dois extremos. De um lado, a tendéncia a uma certa exclusdo, ao iso- lamento, de outro, a participagao periférica no sistema de poder central. Com a revolugdo de 30 nossos me- Ihores quadros politicos e administrativos emigraram para 0 centro do pais e ocuparam posigdes de desta- que na administragao federal. O projeto de moderni- Zag&o que se implantou a partir dai, entretanto, nao contemplava o Rio Grande com uma posigaodestacada, equivalente & nossa contribuigéo para a dirego da maquina estatal” (13). Osesquicentenério da Revolugao Farroupilha foi um marco amplamente comemorado. Entretanto, diferente- mente do que tinha ocorrido cingdenta anos antes, foram frisadas as diferengas do Estado em relagao ao Brasil endo a Argentina ou ao Uruguai. Isso temde ser ‘compreendido em fungao de varios fatores. Em primeiro lugar, devido ao fato de o Brasil estar forlemente integrado do ponto de vista econdmico, politico, de transportes, de redes de comunicagdo de massa, ete Nesse sentido, a integragao nacional ocorreu de forma muito clara. Nao hé mais, portanto, necessidade de enfatizar 0 quanto 0 Rio Grande do Sul pertence ao Brasil. Ao contrario, em 1985, o Estado, semethanga do que ocorrera 150 anos antes, estava “de mal” com © Brasil, pois se considerava injustigado e com seus brios feridos. argnalza¢8o potion do Rio Grande. Zero Hors. Porto Alegre, 20 bro de 1985, Suplementa“Farrapoe. p22 Chama a atencao 0 fato de como s&o recorrentes 0s temas que ocupam os gadchos em periodos tao diversos. Ha uma constante evocagao e atualizagao das peculiaridades do Estado eda fragilidade de suarolagao com 0 resto do Brasil. O Rio Grande do Sul pode ser visto como um estado onde o regionalismo 6 constan- temente reposto em novas situagses histéricas, econd- micasepoliticas. Apesarde as conjunturasseremnovas @ a roupagem dos discursos se modernizar, o substrato bisico sobre o qual estes discursos repousam é surpreendentemente semelhante. Nesse sentido, poder- se-iaafirmar que o gauchismo 6 um caso bem-sucedido de regionalismo, pois consegue veicular reivindicagoes politicas que seriam comuns a todo um estado. A continuidade e a vigéncia desse discurso regionalista indicam que as significages produzidas por ele tém uma forte adequado as representages da entidade gaticha No final dos anos 70, tornou-selugarcomumatirmar queas tradigdes gaichas estavam morrendo. A protecia n&o se concretizou, sendo que toda a década de 80 oi, na verdade, fortemente marcada pelo renascimento do gauchismo. Embora seja hoje predominantemente ur- bano e integrado ao Brasil, 0 Rio Grande do Sul tem experimentado um renascimento das tradigbes gaiichas, que muitos supunham definitivamente mortas ou restri- tas a bolsées de sobrevivéncia cultural, Este processo 6 responsdvel pela existéncia de, aproximadamente, mil centros de tradigdes gauchas filiados ao Movimento Tradicionalista Gaticho , que reivindica a posigao de maiormovimentode cultura populardo mundo ocidental, com mais de dois milhdes de participantes, mais de quarenta festivais de masica nativista, envolvendo um Piblico de aproximadamente um milhdo de pessoas, @ varios rodeios. Esse crescente interesse pelas coisas gauichas também ajuda a explicar 0 consumo de pro- dutos culturaisvoltadosateméticas gauchas: programas de televisdo e radio, colunas jornalisticas, revistas ¢ jornais especializados, editoras, livros, livrarias e feiras de livros regionais, publicidade com referéncia direta aos valores’ gatichos, bailées, conjuntos musicais, cantores e discos, restaurantes tipicos com shows de masicas e dangas gatichas, lojase roupas gauchescas, etc. Trata-se de um mercado de bens materiais e sim- bélicos de dimensdes muito significativas, que mo- vimenta grande numero de pessoas e recursos e que, pelo visto, esta em expansdo Embora sempre houvesse consumo de produtos culturais gatichos, este era bem menor e estava mais concentrado no campo ou nas camadas populares suburbanas e urbanas de origem rural. A novidade constituida pelos jovens das cidades, em boa parte de classe média, que recentemente passaram a tomar mate, vestirbombachas e curtir musica gaticha, habitos que perderam o estigma de grossura. Considerando que aproximadamente 75% da populagao do Rio Grande do Sulvivemem situagao urbana, este mercado concentra- se emcidades e formado, em boa parte, por pessoas sem vivéncias rurais. Na década de 80, a identidade gaticha transformou- se num mével de disputas, caracterizado por intensas polémicas (14). Embora procurando posicionar-se em ‘campos opostos, os principais contendores- tradiciona- lists e nativistas- no {undo estavam girando em torno do mesmo campo semantico: a figura do gaucho, o modo de construi-la, os critérios para delinir sua autenticidade, as instancias de sua legitimidade e consagragao, etc. Os primeiros e mais antigos atores do gauchismo - 08 tradicionalistas - se constituem em um movimento organizado (Movimento Tradicionalista Gaiicho) (15) @ atento a tudo que diz respeito aos bens simbdlicos do Rio Grande do Sul, sobre os quais procuramexercerseu controle e orientago. Fazem parte, deste movimento, intelectuals com produgao escrita, ocupando posigses importantes em lugares estratégicos. Para eles, é fun- damental demarcar quais sao os “verdadeiros" valores gaiichos, dai a necessidade de se erigitem em guardides da tradigao. Manter a distingdo entre o Rio Grande do Sul e 0 resto do Brasil seria uma forma de preservar a identidade cultural do Estado. Por isso, um elemento recorrente no discurso tradicionalista ¢ a referéncia & ameaga que pairaria sobre a integridade gaiicha, As ameagas & integridade gaiicha viriam de fora, através da massificagao @ da introdugao de costumes “alienigenas* disseminados pelos meios de comunica- odode massa, e de dentro, através das deturpacées de *maus" tradicionalistas, do uso inadequado da indu- mentéria por grupos artisticos, das aberragées nas coreografias das dangas gatichas, etc. Dai a necessi- dade imperiosa de definiro que écertoeoqueéerrado, ou do que 6 auténtico © 0 que é espirio. Os tradicio- nalistas estéio constantemente preocupados em de- marcar fronteiras, separando o puro do impuro. Assim sendo, todo 0 cuidado 6 pouce para frear o que é cha- (Ga) OLIVEN, RIG, A conetrugdo socal ds idenidade gaicha, A Parte © 0 Todo: 2 alvorsigade cultural no Brasil-hagSo (Capitulo V. Petropolis, Vases, ‘soa, (19) OLIVEN,R.G.Embuseadotempo pordio:o Movimento TradieionaiataGaézho, ‘Parte eo Todo: a OWversidade Cultural na Brasi-Nagio (Capito) Pevrpats, Voces, 1992. (18) ARAUO, A. Sob 0 Signe da CanpSo. Uma anslee dos Iostvalenativietas do Rio Grande do Sul. Dierarardo de Mastado Jelansida no Programa, {a Pés-Gradagao em Antropalogia Social a UFRGS. Posto Alegre, 1987, ‘Sao Paulo em Perspectiva, 7(2):22-28, abriljunho 1993 madode“atropelonadescaracterizagaodaculturae dos costumes”, Toda essa preocupagao se traduz na busca de normas ¢ na elaborago de documentos que pro- curam tragar diretrizes. Freqdentemente, os tradicionalistas atribuem a sio renascimento da cultura gadcha. O Movimento Tradicio- nalista Gadcho, entretanto, néo consegue controlar todas as expressées culturais do Rio Grande do Sul, nem disseminar hegemonicamente suas mensagens. Atualmente, existem diferentes formas de ser gaucho que néo passam necessariamente pelos Centros de Tradigdes Gauichas. O mercado de bens simbélicos gadichos ampliou-se, sendo que novos atores passaram a disputar seus segmentos © outro grupo de contendores na polémica sobre o gauchismo & formado basicamente por misicos e jornalistas que se denominam nativistas e que nao aceitam 0 controle do Movimento Tradicionalista Gau- cho, a cujos membros eles apelidaram de “aiatolas da tradig&o", acusando-os de “patronagem cultural” e de “patrulhamento folclérico”. Os festivais de misica transformam-se em arena, na qual essas divergéncias aparecem de forma mais nitida, Nestes hé uma disputa constante entre tradici- onalistas e nativistas, sendo que estes consideram seu estilo © oposto dos primeiros, que 6 rotulado como “oultura do nheco-nheco”, isto &, pobre de recursos, calcada apenas no acordeom e sem a utilizagao de recursos eletronicos, bem como presa aos temas sur- rados do passado. Jd os tradicionalistas invocam sua autoridade que seria decorrente de terem sido eles os criadores dos primeiros festivais e precursores do renascimento das coisas gauchas. Essas diferencas, apesar de gerarem acalorados debates, néo s&o, entretanto, Zo profundas, j& que tradicionalistas e nativistas giram em torno da mesma tematica, Segundo uma pesquisa sobre os festivais, observa- se que esse debate se trava entre pessoas urbanas de classe média intelectualizada. Analisando a origem social de uma amostra de compositores dos mais importantes festivais de musica do Rio Grande do Sul, Aradjo mostrou que somente 20% deles viveram o cotidiano do campo em sua infancia ou adolescéncia. A maioria nasceu ¢ cresceu em cidades. Como estas eram predominantemente do interior, e com frequéncia da regido do Pampa, isto é invocado como justificativa de conhecimento da vida campeira. No que diz respeito @ origem familiar, 05 compositores, em sua maioria, provém de grupos possuidores de algum capital eco- némico e cultural, o que acaba refletindo-se no fato de que 85% deles tiveram passagem por algum curso universitario. Apenas 15% vivem de mdsica (16). 27 Em que pesem as polémicas, as diferengas entre tradicionalistas enativistas estdo no estilo. Os primeiros assumem quase deliberadamente uma posigao mais conservadora e pouca elaborada, ao passo que os segundos seriam mais progressistas e inovadores, pretendendo fazer uma ponte entre o passado @ o presente do Rio Grande do Sul. O que eles tem em comum, além da preocupagao com as raizes gaiichas, & 0 fato de disputarem 0 mesmo mercado de bens simbélicos e utilizarem instancias de consagra¢ao como 05 festivais de musica, o debate jornalistico, etc. A primeira vista, pode parecer estranho esse re- nascimento do gauchismo na virada do século, quando © Brasil jd se encontra bastante integrado do ponto de vista politico, econdmico, cultural, de transportes e de comunicagao de massa. A crescente centralizagao eco- némica, politica eadministrativae odesenvolvimentode sofisticadas redes de comunicagao sao frequentemen- te considerados responsaveis pelo enfraquecimento do poder regional e pelo aprofundamento de um processo de homogeneizagao e padronizagao dos habitos atitudes da populagao. Apesar - ou talvez por causa - dessacrescente centralizagao, observam-se atualmente no Brasil tendéncias contrdrias a este proceso, que se manifestam através da afirmagao de identidades regio- nais, das quais 0 Rio Grande do Sul ¢ um exemplo expressivo. © culto & tradigao, longe de ser anacrénico, esté articulado com a modemidade @ 0 progresso. A evo- cago da tradigao manifesta-se freqientemente em 6pocas de processos de mudanga social, tais como a transigéo de um tipo para outro de sociedade, crises, perda de poder econdmico e/ou politico, ete. © Rio Grande do Sul 6 um exemplo expressive desse fendmeno. Significativamente, 0 gauchismo ga- nha forga outra vez quando o Rio Grande do Sul, Es- tado com um passado fortemente rural, mas cuja Populagao em sua maioria jé 6 urbana, sente que per- de cada vez mais a importancia que desempenha no Brasil Se 0 gauchismo reedita a tradigdo e a vida rural, ele 0 faz num estado urbanizado que se quer moderno. Pode parecer curioso que esse movimento lance mao de valores rurais e do passado quando o Rio Grande do Sul é predominantemente urbano e bastante in- dustrializado. Isso leva alguns a considerar o fenéme- no como um mero modismo passageiro ou como uma ideologia anacronica, mas curlosamente eficaz. Entre- tanto, pela extensdo e duragao do fendmeno, & dificil rotuld-lo como modismo ou como ideologia ultrapas- sada. Em que pese o aspecto de moda que a publici- dade ¢ capaz de imprimir a qualquer fendmeno, esse 28 & bem mais duradouro que outras ondas. Da mesma forma, embora haja um numero considerdvel de intelectuais apontando 0 aspecto ideolégico e reacio- ndrio da volta a um tempo idilico que ou ndo existiu ou que nao existe mais, essa denuncia também nao re- solve @ questao. Nesse sentido, por exemplo, fica dificil explicar por que um estado no qual uma ideologia conservadora seria hegeménica tem uma tradigao politica oposicionista, sendo considerado a unidade federativa mais politizada do Brasil Ocorre que 0 fenémeno esta longe de arrefecer corresponde a uma tendéncia que se verificou no Brasil ultimamente, Com a abertura politica que comegou no finalda década de 70, observou-se um intenso processo de constituigao de novos atores politicos e de constru- ¢40 de novas identidades sociais. Tendo em vista que identidades so representagdes formuladas em oposi ¢40 ou contraste a outras identidades, o que se busca so justamente as diferengas. Assim, a construgéo dessas identidades passa pela elaboragao de tragos da cultura brasileira, que séo apropriados e usados como sinais diacritices, isto 6, que conferem uma marca de distingdo a diferentes grupos sociais. Pode-se estabelecer um paralelo entre o que se es- 14 ocorrendo atualmente no Rio Grande do Sule o que aconteceu com o movimento modernista que comegou ‘0m Sao Paulo, Os intelectuais da semana de 1922, num primeiro momento, enfatizaram a questdo da atualiza- Ao artistico-cultural do Brasil. Mas, a partirda segunda fase do movimento, os modernistas se deram conta que 86 chegariam ao universal através do nacional e 0 ataque ao passadismo foi substituido pela énfase na elaboragao de uma cultura nacional, ocorrendo uma redescoberta do Brasil pelos brasileiros. Oque se verifica no Rio Grande do Sul parece estar indicando que, atualmente, paraos gauchoss6sechega ao nacional através do regional, ou seja, 86 é possivel ser brasileiro sendo gaucho antes, A identidade gauicha 6 atualmente reposta enquanto expressdo de uma disting&o cultural em um pais que tem dificuldade de aceitar a diversidade cultural e onde os meios de co- municagao de massa buscam homogeneizar a socieda- de culturalmente. Quando se pretende comparar o Rio Grande do Sul a0 resto do pais, apontando diferengas e construindo uma identidade social, ¢ quase inevitavel que este processo lance mao do passado rural do Estado e da figura do gaucho, por serem estes os elementos ‘embleméticos que permitem ser utilizados como sinais distintivos. a

Você também pode gostar