Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract Introdução
1 Faculdade de Letras,
This article aims to analyze the characteristics A exigência de legalização e controle das novas
Universidade do Porto,
Porto, Portugal.
in the creation and utilization of self-knowledge formas de atuação a adotar no âmbito das apli-
2 Fundação para a Ciência by physicians and “laypersons” involved in as- cações das tecnologias de reprodução assistida é
e a Tecnologia, Lisboa, sisted reproductive technologies, based on a com- potenciada, entre outros aspectos, pela percep-
Portugal.
parison of their respective discursive practices ção dos respectivos riscos e incertezas, diretos
Correspondência concerning expectations, uncertainties, and re- e indiretos, quer para a sociedade, quer para o
S. M. R. D. Silva sponsibilities associated with these techniques in indivíduo 1.
Instituto de Sociologia,
Faculdade de Letras, Portugal. Physicians evaluate the (un)certainties Em Portugal, a delegação nos profissionais
Universidade do Porto. in the application of these techniques based on médicos e investigadores e nas comissões de
Rua Ir. Miss. Espírito Santo,
naturalist and essentialist categories. However, bioética, no Estado e seus agentes e no merca-
18, 4 o Dto., 4715-340 Braga,
Portugal. such arguments are then used as an ideological do e na indústria, afiguram-se como a principal
smrds@sapo.pt instrument to disguise the lack of a “scientific” resposta às problemáticas colocadas por essas
explanation for the failures, thereby reproducing tecnologias. Nesse contexto, torna-se essencial
the belief in the "miraculous" nature of scien- promover a pluralidade dos espaços de debate
tific and technological progress. The lay under- e de decisão, o que exige o desenvolvimento de
standing of the benefits and limitations of these um novo paradigma científico e social capaz de
techniques reflects a reverential attitude towards sobrepor a emancipação ao conhecimento e à
medicine and the rationalist paradigm of the regulação através, por exemplo, da aceitação e
biomedical perspective, although it is possible revalorização do caos, do controle precário das
to glimpse some spaces for autonomy and resis- causas e da falta de controle sobre as conseqüên-
tance vis-à-vis the medical proposals. The uncer- cias das ações “científicas” 2.
tainties of these techniques are conceptualized No fundo, trata-se de compreender os usos
as exceptional and intrinsic effects of medical sociais e as implicações das tecnologias de re-
practice, to which one is required to submit in- produção assistida a partir do reconhecimento
dividually. Women are particularly identified as da existência de um conjunto de processos he-
the main parties responsible for maximizing the terogêneos e contingenciais, cujas interseções,
probability of “success" with these techniques. complexidades e (des)regulações originam con-
figurações singulares e incertas, como o aumen-
Assisted Reproductive Techniques; Informed Con- to da capacidade de ação através de nexos de
sent; Technological Development causalidade cada vez mais complexos e opacos,
a incapacidade de prever e identificar com preci- permitir uma maior ponderação das respecti-
são as respectivas conseqüências e a transforma- vas incertezas e conseqüências, numa atitude
ção dos contornos da informação médica face à de respeito pela autonomia e pelos direitos dos
emergência de uma medicina probabilística e de cidadãos. Mas essa prática também pode reve-
gestão das incertezas 3,4. lar-se problemática e as suas dificuldades pare-
De acordo com esse quadro conceitual, todas cem aumentar com a complexidade do aparato
as formas de produção de conhecimentos são biomédico: a assinatura de um documento que
perspectivadas como autoconhecimentos, com deverá conter informações sobre todos os “bene-
caráter local e argumentativo, (re)configurando- fícios e riscos conhecidos” pode criar a imagem
se o conhecimento criado, usado e distribuído de uma prática discursiva meramente contratual
por um conjunto diversificado de atores sociais que substituirá a oralidade e a interação face a
individuais ou coletivos para dar sentido às res- face entre médicos e utilizadores 11,12,13.
pectivas práticas como um novo conhecimento Neste artigo procura-se desvendar os con-
emancipatório e participativo 2,3,5. tornos das práticas discursivas que dão forma
Daqui emerge a necessidade de analisar os à criação e à utilização dos autoconhecimentos
autoconhecimentos produzidos por médicos e dos médicos envolvidos nestes processos por in-
de enfatizar as suas responsabilidades no nível termédio de duas estratégias fundamentais: (i)
da divulgação da informação e da compreensão seleção do tipo de informação a transmitir nes-
da ciência e da tecnologia pelos cidadãos portu- tes documentos; e (ii) modalidades de gestão e
gueses, de modo a promover um debate público aplicação das noções de incertezas, benefícios e
crítico, participativo e plural 6. Em particular, im- responsabilidades. Importa, em particular, evi-
porta apreender os processos de demarcação en- denciar a forma como a naturalização das incer-
tre os diversos sistemas normativos que tentam tezas e a concepção das mesmas como efeitos
regular as tecnologias de reprodução assistida no excepcionais da intervenção médica se articu-
nível da proteção dos direitos dos cidadãos fa- lam, contribuindo quer para a “purificação” dos
ce às práticas científicas e tecnológicas, que será procedimentos técnicos e dos conhecimentos
eventualmente garantida pela articulação entre “científicos”, quer para a diluição de responsa-
o direito à informação e o direito a consentir ou bilidades.
recusar submeter-se a determinados procedi- Ao mesmo tempo, comentam-se as princi-
mentos. pais modalidades de tradução, reinvenção e atri-
Nesse sentido, a lei portuguesa sobre procria- buição de significado às informações transmiti-
ção medicamente assistida 7 proclama como um das nesses formulários nos contextos cotidianos
dos direitos dos beneficiários “ser corretamente de utilização por meio da análise dos discursos
informados sobre as implicações médicas, sociais de 14 mulheres e seis homens utilizadores des-
e jurídicas prováveis dos tratamentos propostos” sas técnicas, obtidos através da realização de en-
(Art. 12o, al. c.), exigindo que estes sejam “previa- trevistas semi-estruturadas. Essas revelam uma
mente informados, por escrito, de todos os benefí- visão predominantemente positiva da ciência e
cios e riscos conhecidos resultantes da utilização da tecnologia, assim como das capacidades da
das técnicas de procriação medicamente assistida, medicina e da técnica. As representações e as es-
bem como das suas implicações éticas, sociais e colhas sociais dos entrevistados surgem domina-
jurídicas” (Art. 14o, nº. 2), de forma a poderem das pela semântica das probabilidades, naturali-
prestar um consentimento “livre, esclarecido, de zação das incertezas e orientação ativa e indivi-
forma expressa e por escrito, perante o médico res- dual para as complicações de caráter biológico
ponsável” (Art. 14o, nº. 1). Mais do que um dever eventualmente decorrentes desses processos. As
deontológico, a obtenção de um consentimento mulheres, em particular, identificam-se como
é perspectivada como um direito dos cidadãos, as principais responsáveis pela maximização da
cujo âmago é a prestação de informações “corre- probabilidade de “sucesso” dessas técnicas.
tas” sobre os respectivos estados clínicos, assim Interessa, ainda, realçar a emergência de al-
como sobre todos os “benefícios e riscos conhe- guns espaços de negociação entre os médicos e
cidos” associados às tecnologias de reprodução as mulheres e os homens envolvidos nessas téc-
assistida e as alternativas existentes 8,9,10. nicas, o que poderá configurar novas racionali-
De fato, o consentimento informado pode dades no exercício dos direitos de cidadania no
consubstanciar-se como uma estratégia de hu- âmbito das tecnologias de reprodução assistida.
manização e democratização das relações entre
os atores sociais envolvidos nas tecnologias de
reprodução assistida: ao propiciar uma ocasião
de comunicação e diálogo entre os médicos e os
indivíduos que recorrem a estas técnicas, pode
Tabela 1
Possibilidade de haver embriões “Existe, portanto, a possibilidade de (…) se obterem mais embriões do que os estritamente necessários para
excedentes realizar a transferência de embriões (…). Nestas condições, os embriões ‘excedentes’ podem ser criopreservados
[= congelados] e armazenados para utilização posterior. (…) Os potenciais benefícios da congelação são, pois, a
possibilidade de realizar transferências sem nova estimulação ovárica, a prevenção de raras situações de gravidade
potencial e a redução do risco de obtenção de gravidez múltipla”
“Se tiver havido embriões excedentes adequados, estes poderão ser criopreservados, beneficiando o casal de nova
oportunidade de transferência para o útero e gravidez”
“Damos o nosso consentimento para o congelamento de embriões destinados a novas tentativas de gravidez”
Possibilidade de cancelamento do “O ciclo de tratamento pode ser cancelado por resposta ovárica inadequada”
tratamento “Pode haver necessidade de interromper o ciclo de tratamento (…) por várias razões, a mais freqüente das quais é
a resposta deficiente dos ovários à medicação”
Possibilidade de incertezas futuras “Nós lemos e compreendemos este documento, tal como as informações verbais e escritas adicionalmente
fornecidas, e reconhecemos que este texto não pode constituir a expressão completa e exaustiva de todas as
situações e intercorrências passíveis de se verificar no futuro”
Fonte: 11 formulários de consentimento informado em contexto de procriação medicamente assistida, cedidos por sete centros portugueses em fevereiro de
2006.
lho, o que obriga à procura do equilíbrio entre cedentes e o respectivo confronto com os proces-
incertezas e benefícios a partir de uma “gestão sos de utilização e reinterpretação patrocinados
racionalizada das probabilidades” por parte dos pelos entrevistados permite evidenciar alguns
utilizadores 15. Aliás, a compreensão profana das espaços de demarcação entre esses atores sociais
incertezas eventualmente originadas pelas apli- e os médicos, que refletem considerações “cien-
cações dessas técnicas traduz uma dependência tíficas” e “não científicas” relacionadas com os
do modelo médico-científico dominante ao ser discursos e as práticas médicas neste domínio,
contextualizada num quadro em que predomi- como se mostrará a seguir.
na a disseminação da semântica das probabili-
dades e a naturalização das incertezas dos seus A impossibilidade de garantir o sucesso
resultados, assim como a orientação ativa para
as possibilidades de ocorrência de um conjunto Nesses formulários é unânime a idéia de que
de situações adstritas a complicações de caráter “não há garantia de sucesso”, termo aparente-
biológico (como as conseqüências eventualmen- mente equiparado a uma gravidez. No entanto,
te associadas à estimulação hormonal e, embora encontram-se divergências na forma de comuni-
raramente, as complicações anestésicas e a gra- car a possibilidade de não engravidar face à pos-
videz ectópica). sibilidade de obter uma gravidez – à indicação
Porém, a análise das estratégias de comuni- de taxas de gravidez contrapõem-se expressões
cação das incertezas face à impossibilidade de vagas e genéricas sem recurso a porcentagens na
garantir o sucesso, à probabilidade de gravidez comunicação da possibilidade de não haver gra-
múltipla e à possibilidade de haver embriões ex- videz (como “possível insucesso”).
Tabela 2
Possibilidade de danos físicos para “Em situações raras, a estimulação ovárica pode desencadear uma resposta excessiva dos ovários”
a mulher “Sendo a aspiração dos ovários um ato cirúrgico [embora mínimo], pode, em casos excepcionais, haver complicações
da sua execução [nomeadamente hemorragias ou infecções]”
“Estamos informados da possibilidade de ocorrência de complicações, como a hiperestimulação ovárica, a doença
inflamatória pélvica, complicações anestésicas etc., que podem obrigar a internamento hospitalar podendo mesmo
colocar em risco a vida”
Possibilidade de complicações no “Há a possibilidade de (…) abortamento, gravidez ectópica, doenças hereditárias ou malformações congênitas e
caso de gravidez possibilidade de diagnóstico pré-natal e seus riscos em caso de gravidez”
“Em caso de gravidez, mantém-se o risco de aborto, de gravidez ectópica, ou de malformação fetal, idêntico ao
da população em geral”
Eventuais riscos da gravidez “Essas gestações poderão conduzir a situações de parto prematuro com conseqüentes riscos para os recém-
múltipla nascidos”
Possíveis impactos nos recém- “Embora a maioria dos estudos não tenha detectado aumento da freqüência de malformações nos recém-nascidos
nascidos resultantes destas técnicas, alguns estudos defendem que essa possibilidade não pode ser completamente
excluída”
“A utilização de criopreservação de embriões humanos não revelou até agora um risco superior de anomalias fetais
mas é impossível assegurar a absoluta segurança da técnica”
Fonte: 11 formulários de consentimento informado em contexto de procriação medicamente assistida, cedidos por sete centros portugueses em fevereiro de
2006.
Essas visões refletem-se na forma como os en- se são silenciados nos formulários de consenti-
trevistados tendem a interpretar os “(in)sucessos” mento informado, tal como o são outros aspectos
das tecnologias de reprodução assistida, uma vez considerados não médicos que esta situação po-
que a obtenção de uma gravidez é perspectivada de implicar, nomeadamente o peso financeiro,
como dependente de alguns elementos incertos o desgaste físico e psicológico e a reorganização
fora do domínio médico e técnico, como “a von- da vida cotidiana da mãe e/ou do pai. De acordo
tade de Deus” ou da “natureza” (por exemplo, a com o discurso de um dos casais entrevistados,
qualidade dos gametas e dos embriões). Aos mé- com duas gêmeas de dois anos, esses elementos
dicos é atribuído o papel de mediadores entre são descritos por sentimentos como “pânico” e
esses elementos “naturais” ou “providenciais” e “infelicidade”, podendo até provocar a separação
“técnicos”, de cuja articulação depende a “ferti- do casal, mas não são perspectivados como “ris-
lidade”. Esses profissionais são assim perspecti- cos”, uma vez que escapam à lógica racionalista
vados como elementos que reproduzem espe- do paradigma biomédico.
ranças e encarnam as soluções dos problemas, “Começaram a fazer para a ecografia (…) e ele
uma vez que detêm um corpo de conhecimen- [o médico]: ‘São gêmeos’. (…) Eu fiquei em estado
tos técnico-científicos, constituídos em saberes de pânico. (…) [Quando nasceram] Primeiro, ti-
esotéricos, indeterminados e complexos, que in- ve de contratar uma empregada a tempo inteiro,
formam o seu diferencial de autoridade face aos para me ajudar” (Helena, 36 anos, licenciatura,
entrevistados. pequena empresária).
“Houve dias em que eu voltava para casa, às
A probabilidade de gravidez múltipla vezes, com as meninas pequenas, e lembro-me de
estar profundamente infeliz, mas profundamen-
Os “eventuais riscos” da gravidez múltipla são ex- te! (…) Acho que houve uma coisa que pairou toda
pressos em termos de morbidade e mortalidade a gravidez e também o pós-parto, que foi o tal fal-
perinatal e infantil e, em menor extensão, mater- so positivo” (Mário, 34 anos, mestrado, docente
na, como se observa na Tabela 2. universitário).
A possibilidade de vir a ter de fazer uma redu- “O nascimento delas ia dando cabo da nos-
ção seletiva de fetos e os dilemas da amniocente- sa relação. (…) Tivemos quase para nos separar”
(Helena, 36 anos, licenciatura, pequena empre- fertilização apenas do número de ovócitos que
sária). possam ser transferidos para o útero da mulher
De fato, a gravidez múltipla só é eventual- com “segurança” e da criopreservação de ovó-
mente percebida como “algum risco” pelos en- citos 8, a criopreservação de embriões para uti-
trevistados quando esta possibilidade é associa- lização posterior por parte da mulher que lhes
da à morbidade e mortalidade perinatal, infantil deu origem é apresentada como a solução para
e materna, à semelhança da tônica dos discursos a existência “inevitável” de embriões excedentes.
médicos. Ora, a gravidez múltipla é, em primeiro Logo, a produção de uma solução para um “pro-
lugar, uma gravidez, ou seja, algo que os entrevis- blema prático” é reconfigurada numa opção que
tados procuram quando recorrem às tecnologias elimina este mesmo “problema” nos formulários
de reprodução assistida, o que contribui para a analisados.
sua aceitação positiva, como nos relata um dos Mais, a Sociedade Portuguesa de Medicina
casais entrevistados ao referir-se à gravidez múl- da Reprodução 17 entende que a eventual restri-
tipla como uma “alegria dispensável”. ção do número máximo de ovócitos a inseminar
“É algum [risco], na medida em que, digamos, só poderá ser ajuizada por uma pessoa devida-
a Matilde também não tem assim grande arca- mente qualificada, atendendo às circunstâncias
bouço para ter muitos…” (Henrique, 31 anos, e às especificidades da situação clínica em causa.
mestrado, docente universitário). De fato, o discurso de um dos entrevistados evi-
“E até porque nós queremos muito ter um fi- dencia o reconhecimento da “pressão” exercida
lho, mas não é preciso tanta emoção de uma vez por parte da equipe médica para que os “leigos”
só, não é?” (Matilde, 33 anos, licenciatura, empre- perspectivem a “normalização” da existência de
gada bancária). embriões excedentes como uma conseqüência
“Seria uma alegria dispensável” (Henrique, aparentemente inevitável das aplicações de tec-
31 anos, mestrado, docente universitário). nologias de reprodução assistida, com o objetivo
Em termos gerais, as decisões dos entrevista- de aumentar a probabilidade de “sucesso” atra-
dos quanto à eventual redução da probabilidade vés da seleção dos “melhores” embriões.
de gravidez múltipla tendem a refletir as princi- “Nós perguntamos e eles [os médicos] disse-
pais indicações da literatura médica dominante ram: ‘Aí nós não podemos implantar mais de três’.
em relação às práticas clínicas neste domínio, (…) E nós dissemos: ‘Está bem; então nós não que-
nomeadamente o aumento do número de em- remos que fecundem mais de três’. Aí houve um
briões transferidos para o útero à medida que se bocadinho de pressão para que não fosse assim.
avança no número de tratamentos realizados, (…) E eles depois respeitaram isso, mas houve ali
pretensamente com o objetivo de aumentar a um bocadinho a tentativa de ‘Ah, mas já que vai
probabilidade de “sucesso” e de acordo com a estimular, porque é que não estimula mais, de-
“qualidade” dos mesmos. Ao mesmo tempo, co- pois tem mais, escolhem-se os melhores e a pro-
loca-se a responsabilidade dos eventuais “insu- babilidade aumenta’. (…) Percebemos e a nossa
cessos” sobretudo na mulher (veja-se o caso da leitura era: Ele quer ter mais sucesso” (Leandro,
possibilidade de cancelamento do tratamento na 36 anos, doutorado, gestor numa empresa de
Tabela 1) e na “qualidade” do material genético, biotecnologia).
escamoteando, por exemplo, a insuficiente es- Ainda que a maioria dos entrevistados con-
tandardização dos procedimentos de avaliação, corde com a criopreservação de embriões, pers-
classificação e hierarquização da “qualidade” dos pectivando-a como uma necessidade inevitável
embriões 10,16. e cujo destino preferencial será a reutilização
pela mulher que lhe deu origem, existe um dis-
A possibilidade de haver embriões curso alternativo minoritário, que questiona o
excedentes desenho da intervenção clínica proposta: trata-
se de dois homens, um aluno de doutorado em
Nos processos de comunicação da possibilidade ciências econômicas e um doutorado em gestão
de haver embriões excedentes não há qualquer (com licenciatura em genética), que procuram
discussão sobre a concepção de embrião e sobre uma solução para evitar os embriões excedentes
o estatuto do mesmo, e omitem-se as referências (inseminar o número de ovócitos equivalente ao
às possibilidades de investigação ou de doação número de embriões a transferir para o útero,
dos embriões a outro casal e de eventuais ma- num caso, e propor uma fertilização in vitro em
nipulações a que estes poderão estar sujeitos, ciclo espontâneo, no outro).
assim como às incertezas associadas ao próprio Essas situações são socialmente aceitas como
processo de criopreservação. racionais e moralmente corretas, porque permi-
Apesar de ser possível limitar a existência de tem reduzir as incertezas por intermédio da ação
embriões excedentes usando-se, por exemplo, a atenta, responsável e autônoma dos indivíduos,
o que poderá configurar o emergir de uma nova sados à vida, à integridade moral ou física ou à
racionalidade no exercício dos direitos de cida- saúde das pessoas 12.
dania no âmbito das tecnologias de reprodução Os médicos estão diretamente envolvidos
assistida por parte do “leigo perito” 18. nos diversos processos de tomada de decisão e
não devem, por isto, ignorar as conseqüências
que daí advêm, nomeadamente a assunção de
A diluição de responsabilidades uma atitude não diretiva e co-responsável nas
eventuais decisões das mulheres e dos homens
O processo de naturalização e biologização das com quem lidam. Aliás, a Organização Mundial
incertezas das tecnologias de reprodução assis- da Saúde (OMS) sugere que os médicos avaliem
tida encoraja a sua interpretação como riscos, a forma como os pacientes compreendem a in-
afigurando-se como uma estratégia de raciona- formação que lhes é facultada, pedindo-lhes,
lização da intervenção técnica e de “purificação” por exemplo, para descrever os objetivos, limita-
do conhecimento médico neste domínio ao tor- ções e benefícios dos procedimentos associados
nar invisíveis as problemáticas sociais, culturais, às tecnologias de reprodução assistida nas suas
psicológicas, jurídico-legais e éticas, ao mesmo próprias palavras e averiguando os respectivos
tempo que reforça a individualização e privati- conhecimentos acerca das alternativas disponí-
zação da responsabilidade pelas incertezas con- veis, incluindo a alternativa de não se submeter a
sentidas. As mulheres e os homens que procuram determinados procedimentos 10.
os serviços de medicina da reprodução vêem-se As mulheres entrevistadas, em particular,
confrontados com a necessidade de decidir cor- tendem a responsabilizar-se de forma individu-
rer as incertezas comunicadas; ora, o direito à al e privada pela inexistência de uma gravidez,
liberdade de decisão é redirecionado, transfor- mesmo quando a causa de infertilidade é “mas-
mando-se no dever de decidir correr incertezas culina”, seja porque não respondem à estimu-
e consenti-las, assumindo a responsabilidade lação hormonal, não “agarram” o embrião, não
pelas mesmas (Tabela 3). asseguram os “melhores” estilos de vida após
A exclusão da responsabilidade médica, em a transferência de embriões, são vulneráveis a
particular, ilustra uma visão contratualista e prag- determinados mecanismos psicológicos ou pe-
mática da sua atividade, o que tende a reforçar o las dificuldades que a sua idade parece impor.
caráter privatista e crescentemente despersona- Subjacente a essas representações prevalece a
lizado da mesma. Aliás, são proibidas as cláusu- concepção de infalibilidade da medicina e das
las de exclusão ou limitação da responsabilidade tecnologias de reprodução assistida, que aparece
nos formulários de consentimento informado associada à imagem de “objetividade” e “exati-
em Portugal, por danos diretos ou indiretos cau- dão”, como ilustram os seguintes depoimentos.
Tabela 3
Extratos da individualização e privatização das responsabilidades pelas incertezas nos formulários de consentimento informado.
Aceitar os riscos e as limitações “Compreendemos e aceitamos as condições, riscos e limitações destas técnicas”
das técnicas “Temos conhecimento e aceitamos os riscos de hiperestimulação ovárica bem como de gestação gemelar”
Responsabilização pelos embriões “O casal e a [clínica] declaram aceitar a criopreservação de embriões até __ anos, pelo que o casal deverá contatar
excedentes a [clínica] anualmente”
“Damos o nosso consentimento para o congelamento de embriões destinados a novas tentativas de gravidez.
Assumimos a responsabilidade pelos embriões congelados”
Aceitar excluir a responsabilidade “Concordamos em não responsabilizar (…) qualquer dos membros (…) desse hospital por qualquer efeito adverso,
médica embora remoto e imprevisível, resultante do congelamento e conservação dos nossos embriões. Mais, afirmamos
o compromisso de não envolver (…) qualquer dos membros (…) desse hospital em qualquer disputa ou litígio
respeitante ao destino dos embriões congelados, ou das crianças eventualmente resultantes deste processo”
“Mais, declaram que eximem a [clínica] e qualquer dos elementos da equipe de fertilização in vitro de todas e
quaisquer conseqüências que possam resultar do ato médico solicitado”
Fonte: 11 formulários de consentimento informado em contexto de procriação medicamente assistida, cedidos por sete centros portugueses em fevereiro de
2006.
“Mas se a causa é dele, é ultrapassada pelos porque a “compensação” de ter um filho é racio-
tratamentos, certo? (…) Portanto, o mal é meu, nalizada como um elemento que, a posteriori, irá
que não o consigo agarrar” (Custódia, 35 anos, contribuir para que as mulheres “esqueçam com
licenciatura, economista). uma facilidade muito grande” as dores que por
“A pós-transferência de embriões até fazer o ele suportaram.
teste de gravidez são muito complicadas. (…) A “É assim, qualquer mulher, se calhar, pensa
sensação que dá é: Qualquer coisa de errado que em ter um segundo filho, porque são daquelas do-
eu faça nestes 15 dias estou a estragar” (Sandra, 33 res que se esquecem com uma facilidade muito
anos, licenciatura, gestora). grande, porque depois há ali uma compensação.
“Aquilo que é matematicamente certo” (Pe- O mesmo acontece quando uma mulher conse-
dro, 36 anos, 12 anos de escolaridade, empregado guir um filho, vai pensar nisto de outra forma, é
comercial). natural! É evidente que há aqui coisas que não
Aliás, as palavras que encontramos na expli- são fáceis, há aqui coisas que doem, claro que do-
cação dos motivos que podem levar ao cancela- em…” (Matilde, 33 anos, licenciatura, emprega-
mento do tratamento (Tabela 1) assentam numa da bancária).
linguagem negativista pelo uso de termos como
“resposta deficiente” ou “inadequada” dos ová-
rios, projetando um contexto ideológico que re- Conclusão
força o sentido de inadequação e culpabilização
das mulheres. A medicina constrói retoricamente uma imagem
A “natureza” das mulheres é, dessa forma, re- de neutralidade e tecnicismo, obscurecendo as
configurada como o principal fator de limitação ambigüidades e arbitrariedades dos seus pro-
da eficácia da medicina, sendo estas duplamente cessos de criação, interpretação e utilização de
integradas nas tecnologias de reprodução assisti- determinados produtos científicos. Aliás, muitas
da – por um lado, são eleitas como atores funda- das promessas das tecnologias de reprodução
mentais no auxílio à produção médica; por outro, assistida dependem da capacidade de mascarar
são nomeadas como objeto preferencial das prá- as incertezas, em articulação com a mobilização
ticas médicas. Daí que as mulheres entrevistadas de um conjunto de expectativas e de direitos em
entendam que é seu dever “natural” colaborar torno do seu impacto futuro 18.
nos diversos tipos de intervenção biomédica, re- A linguagem escrita vertida nos formulá-
produzindo o clima de aceitação positiva da dor rios de consentimento informado no âmbito da
e da incerteza para fins de maternidade 19. procriação medicamente assistida em Portugal
As mulheres entrevistadas referem-se fre- tende a uniformizar e naturalizar a diversidade
qüentemente ao sofrimento e à dor, quer em de discursos existentes, excluindo linguagens al-
termos físicos, quer em termos afetivos e emo- ternativas ou exteriores ao sistema biomédico.
cionais, e às mudanças na forma e no funcio- Mais, as contingências eventualmente ocorridas
namento dos seus corpos (e na percepção que nessas atividades são deslocadas para fora da es-
deles têm) como características das trajetórias fera das competências e das responsabilidades
nas tecnologias de reprodução assistida. No en- dos médicos. Os argumentos de caráter natura-
tanto, esses processos de dissecação, interferên- lista e essencialista são instrumentalizados pelos
cia e transformação dos corpos das mulheres são médicos para eclipsar a ausência de explicação
desvalorizados ao serem perspectivados como “científica” para os “insucessos” de diversas ex-
uma conseqüência “comum” e “normal” dessas periências vividas por mulheres, homens e médi-
técnicas. cos. Em termos globais, essas estratégias visam a
“E as mulheres não estão preparadas para assegurar a imagem de “sucesso” das tecnologias
aquilo que vai acontecer ao corpo delas. Não es- reprodutivas, por um lado, e reforçar a não res-
tão mesmo. (…) Fica-se com um corpo de grávi- ponsabilidade dos médicos quanto à incerteza
das sem se estar grávida. (…) [E nunca vos infor- dos resultados, por outro.
maram sobre isso?] De todo!” (Pedro, 36 anos, 12 Essas estratégias têm repercussões nos dis-
anos de escolaridade, empregado comercial). cursos dos entrevistados, nomeadamente pelo
“Não! Isso são coisas paralelas, não é? (…) É uso de expressões lingüísticas de incerteza, pro-
assim: é comumente. (…) É normal, as pessoas sa- babilidade e culpabilização, estas últimas pre-
bem. (…) Eu sabia que ia engordar, não é? Sabia!” sentes sobretudo nas mulheres.
(Sandra, 33 anos, licenciatura, gestora). Essas tecnologias são reconfiguradas em di-
Mais, os procedimentos experimentais a que ferentes contextos pela multiplicidade de atores
as mulheres são sujeitas emergem como uma sociais por elas mobilizados, como os médicos
oportunidade de comprovar, por antecipação, e os “leigos”. De fato, a apreciação da qualidade,
o amor das mesmas pelos potenciais filhos, até eficácia e segurança das tecnologias de reprodu-
ção assistida resulta de processos contraditórios podem não ter meios que lhes permitam lidar
e complexos, que reclamam uma análise multi- com a quantidade e qualidade da informação
dimensional, que atenda à heterogeneidade dos eventualmente disponível, pelo que deveria ser
conhecimentos e ao dinamismo das expectativas prestado um consentimento para cada conjunto
e incertezas por elas potenciadas. Daí a necessi- de atos médicos. Essas orientações exigem o uso
dade de desenvolver estratégias flexíveis de ava- de uma linguagem, oral ou escrita, corrente e per-
liação das limitações e implicações futuras des- ceptível, num processo de comunicação capaz
sas técnicas, que representem todos os interesses de ultrapassar a ênfase nos critérios meramente
envolvidos e as necessidades eventualmente em técnicos e que atenda aquilo que os cidadãos re-
confronto. almente compreendem a partir das explicações
Para evitar que a prática do consentimento que lhes foram dadas.
informado se reduza à formalidade da assina- Nesse sentido, é essencial analisar as diversas
tura de um documento, há que compatibilizar modalidades de reinterpretação das informações
a formulação de padrões que fixem os termos prestadas pelos médicos com base na perspecti-
em que se deve prestar a informação com as ne- va dos seus utilizadores. Dessa forma, é possível
cessidades, os valores e as expectativas de cada evitar que os utilizadores dessas técnicas se co-
indivíduo concreto, contribuindo para sobrepor loquem numa mera lógica de diagnóstico e tra-
a emancipação ao conhecimento e à regulação. tamento e, ao mesmo tempo, acautelar a criação
Esse é, de fato, um dos maiores desafios que se de sobre-expectativas acerca dos poderes dos
colocam no âmbito das tecnologias de reprodu- médicos, cujas capacidades de atuação prática
ção assistida. cotidiana são muitas vezes limitadas e incertas, o
Desde logo, os diversos intervenientes valori- que não deixa de contrastar com as necessidades
zam informações diferentes, compreendem-nas das mulheres e dos homens que recorrem a essas
a partir de quadros de referência individuais e técnicas.
recordam-se delas de forma seletiva, e os “leigos”
Resumo Agradecimentos
Este artigo visa a analisar os contornos locais de cria- A autora agradece à Fundação para a Ciência e a Tec-
ção e utilização dos autoconhecimentos de médicos e nologia o apoio concedido através de uma bolsa de
“leigos” envolvidos em processos de procriação me- doutorado ainda em curso (SFRH/BD/10396/2002).
dicamente assistida a partir do confronto das prá- Agradeço ainda os comentários de Helena Machado e
ticas discursivas destes atores sociais em torno das dos dois avaliadores anônimos sobre a primeira versão
expectativas, das incertezas e das responsabilidades deste texto.
associadas a estas técnicas em Portugal. Os médicos
avaliam as (in)certezas das aplicações dessas técnicas
com base em categorias de caráter naturalista e essen-
cialista. Mais, esses critérios são instrumentalizados
para eclipsar a ausência de explicação “científica” pa-
ra os (in)sucessos, reproduzindo a crença no caráter
“miraculoso” do progresso científico e tecnológico. A
compreensão profana dos benefícios e das limitações
dessas técnicas reflete uma atitude reverencial face à
medicina e ao paradigma racionalista da perspectiva
biomédica, ainda que seja possível vislumbrar alguns
espaços de autonomia e resistência face às propostas
médicas. As eventuais incertezas dessas técnicas são
perspectivadas como efeitos excepcionais e intrínsecos
à prática da medicina, aos quais têm de se submeter de
forma individual. As mulheres, em particular, identifi-
cam-se como as principais responsáveis pela maximi-
zação da probabilidade de “sucesso” dessas técnicas.
Referências
1. Gonçalves ME. Ciência e direito: de um paradigma 11. Menegon VM. Consentindo ambigüidades: uma
a outro. Revista Crítica de Ciências Sociais 1991; análise documental dos termos de consentimento
31:89-113. informado, utilizados em clínicas de reprodução
2. Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o humana assistida. Cad Saúde Pública 2004; 20:845-
desperdício da experiência. Porto: Edições Afron- 54.
tamento; 2000. 12. Oliveira G, Pereira AD. Consentimento informado.
3. Nunes JA. The uncertain and the unruly: com- Coimbra: Centro de Direito Biomédico; 2006.
plexity and singularity in biomedicine and public 13. Rodrigues JV. O consentimento informado para o
health. In: Oficina do CES. Coimbra: Centro de Es- acto médico no ordenamento jurídico português
tudos Sociais; 2003. p. 16. (elementos para o estudo da manifestação da
4. Santos JR. Sobre as fronteiras. In: Santos BS, orga- vontade do paciente). Coimbra: Coimbra Editora;
nizador. Conhecimento prudente para uma vida 2001.
decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 14. Anderson P. On doing qualitative research linked
Porto: Edições Afrontamento; 2003. p. 511-28. to ethical healthcare. London: The Wellcome Trust;
5. Nunes JA. A pesquisa em saúde nas ciências so- 2001.
ciais e humanas: tendências contemporâneas. In: 15. Mendes FR. Risco genético: da ilusão de certeza à
Oficina do CES. Coimbra: Centro de Estudos So- disseminação da (ir)racionalidade. In: Carapinhei-
ciais; 2003. p. 36. ro G, organizador. Sociologia da saúde: estudos e
6. Caraça J. Epicuro proscrito? Ou a ciência, os po- perspectivas. Coimbra: Pé de Página; 2006. p. 17-45.
deres e a democracia. In: Gonçalves ME, organiza- 16. Land JA, Evers JLH. Risks and complications in
dor. Ciência e democracia. Venda Nova: Bertrand assisted reproduction techniques: report of an
Editora; 1996. p. 83-90. ESHRE consensus meeting. Hum Reprod 2003;
7. Portugal. Lei nº. 32/2006. Regula a utilização de 18:455-7.
técnicas de procriação medicamente assistida. Di- 17. Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodu-
ário da República 2006; 26 jul. ção. Contributo para a legislação sobre reprodu-
8. Andrews LB, Elster N. Regulating reproductive ção medicamente assistida. http://www.spmr.pt/
technologies. J Leg Med 2000; 21:35-65. news.htm (acessado em 19/Abr/2006).
9. Oliveira G. Temas de direito da medicina. Coim- 18. Webster A. Innovative health technologies and the
bra: Coimbra Editora; 1999. social: redefining health, medicine and the body.
10. European Society for Human Reproduction & Em- Curr Sociol 2002; 50:443-57.
bryology. The interface between medically assisted 19. Lupton D. Risk. London: Routledge; 2003.
reproduction and genetics: technical, social, ethi-
cal and legal issues. http://www.eshre.com/emc. Recebido em 15/Mai/2007
asp?pageId=632 (acessado em 03/Abr/2007). Versão final reapresentada em 12/Jul/2007
Aprovado em 05/Set/2007