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O jornalismo desonesto e o mito do

“crime organizado”
Por Gustavo Barreto em 25/11/2010

Atualizado em 25/11/2010 – 14h29

O “Jornal da Globo” fechou com chave de ouro o dia de uma emissora empenhada em
assustar e desinformar o público, enquanto outras emissoras e rádios acompanharam a
tática do pânico. A velha técnica do “Mantenham a calma” seguido de imagens
impactantes da violência no Rio de Janeiro é a melhor forma, do ponto de vista da
cultura do medo que tenta se impor, de pôr em ação esse objetivo. É como você dizer
“Fique à vontade” quando recebe alguém pouco conhecido em sua casa, provocando o
efeito contrário. Neste caso é bem pior: trata-se do imaginário social de um conjunto de
milhões de brasileiros que está em jogo. E neste caso há consequências políticas.

Não há dúvidas de que (1) o índice de criminalidade no Rio é muito alto, inaceitável, e
que (2) a lógica que rege o projeto da polícia comunitária, que esse governo chama da
“UPP” e que outros governos já tentaram com outros nomes, é um bom caminho, desde
que proponha de fato a participação da comunidade no processo decisório e que seja
mais amplo. Atualmente é um conjunto de projetos-piloto.

No entanto, estratégias diversas estão em jogo. A saber:

A. O Governo do Estado, principalmente por meio do governador Sergio Cabral, tenta


capitalizar a crise politicamente. Aparece como o “líder destemido” que as pessoas
assustadas das classes A e B exigem nessa hora. Ao mesmo tempo, desvia a atenção da
plena incompetência do governo nas áreas de educação e saúde – incluindo a recente
busca e apreensão na casa de Cesar Romero, o ex-subsecretário-executivo de Saúde,
primo da mulher do secretário Sérgio Côrtes e braço direito dele na secretaria. A
acusação: fraude em licitação ao contratar manutenção de ambulâncias superfaturada
em mais de 1.000%;

B. Setores mais violentos da Polícia Militar – a banda podre que não quer saber de
papo de UPP – ganham carta branca, por conta do clima de medo, para fazer suas velhas
e conhecidas “incursões” nas favelas, a política burra do confronto com o “crime
organizado”, vitimando cidadãos inocentes e realizando execuções sumárias de
suspeitos. O Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, chama isso de
“efeito colateral”, enquanto jornalistas passam uma coletiva de imprensa inteira
perguntando apenas por “números” e trajetos da PM e do BOPE;

C. Os principais chefes da Polícia Militar do Rio de Janeiro e a Secretaria de


Segurança Pública vendem a tese deplorável de que os atentados são uma “reação às
políticas das UPPs”, e a velha mídia simplesmente engole. O curioso é que as UPPs
estão presentes em 13 favelas, de um universo de 1.000 existentes no Rio e região
metropolitana. Imagina quando chegarem a 20, 30! Melhor mudar para Miami de uma
vez;

D. A mídia cria uma dinâmica do medo a partir de absurdos sociológicos, como


afirmar que o “crime organizado” atual surgiu do encontro entre presos comuns e presos
políticos nos anos 70 (tentando vincular militantes de esquerda a traficantes de drogas);
separar a cidade em esquemas tipos “eles-nós”, como fez Arnaldo Jabor, ao afirmar que
“é preciso apoio da população, principalmente da Zona Sul, pois a periferia já mora
dentro da violência” (JG, 24/11/2010) e até mesmo mentir descaradamente, afirmando
por exemplo que os “índices de criminalidade estão estagnados no Rio” (editorial de
William Waack), o que é mentira, conforme atesta até mesmo um dos maiores críticos
do Governo do Estado, o sociólogo Ignácio Cano. Pouco importa para o jornalismo
desonesto: o que está em questão é reafirmar o discurso vazio do “A que ponto
chegamos!” e o elogio ao “endurecimento” das leis e das ações vingativas, como forma
de alívio do medo criado. Não adianta nada, conforme apontou este seminário (em
especial a fala do Coordenador do Núcleo de Presos da Polinter no Estado do Rio de
Janeiro, o delegado da Polícia Civil, Orlando Zaccone).

A "polícia comunitária" do Rio de Janeiro, conhecida como UPP, tem coincidentemente


um caminho parecido com o das rotas dos grandes eventos internacionais que se
aproximam.

Os interesses, portanto, são complexos tal como os nossos problemas. A Zona Sul (parte
dela, aquela à qual o Jabor se refere e da qual faz parte) está tão assustada que não
consegue raciocinar. Milhares de pessoas são executadas todo ano no Rio de Janeiro,
dados absolutamente grotescos. A cobertura é a mesma? Não. “As pessoas lidam com
insegurança no Rio de forma cíclica e dramática. Para conviver com o alto nível de
violência na cidade, tratam como se ela não existisse. Mas, então, surge um evento de
grande repercussão e vira uma pauta central na cidade, todos discutem, é uma grande
catarse”, aponta Ignácio Cano. “Sensação de segurança pública é muito diferente da
efetiva segurança”, completa o deputado Marcelo Freixo.

Se fosse de fato uma preocupação, pararia para ler o relatório da CPI das Milícias,
concluído no dia 10 de dezembro de 2008. Contém o mapa das milícias, seu
funcionamento, seus braços econômicos, a relação do braço político com o braço
econômico e o domínio de território. Enquanto as Nações Unidas calculam que o
narcotráfico rende 200 mil dólares por minuto, só no domínio das vans no Rio de
Janeiro, uma das milícias faturava 170 mil reais por dia. Este é apenas um exemplo.

Crime organizado, portanto, é isso: um negócio bem organizado. O que torna o crime
“organizado” é sua capacidade de se organizar, e não de reagir violentamente. “Em
qualquer lugar do mundo, o crime organizado está sempre dentro do Estado, e não
fora”, aponta o deputado Marcelo Freixo, que relata sua dificuldade quando tentou
instituir a referida CPI neste depoimento.

O pior é que o número de milícias é, hoje, maior do que em 2008. “O número de


territórios dominados por milícias hoje é maior do que o número de territórios
dominados pelo varejo da droga”, comenta Freixo. “Eu estranho o silêncio desse
governo em relação às milícias, dizendo que o Rio está pacificado, diante do
crescimento das milícias”.

E o poder público tampouco ajuda. O relatório foi entregue pelos membros da CPI nas
mãos do prefeito Eduardo Paes. Solicitaram, por exemplo, que a licitação das vans fosse
feita individualmente e não por cooperativas. “O prefeito acaba de fazer licitação por
cooperativas e não individualmente”, denunciou Freixo.

Outro fator que aponta o descaso do poder público é o descaso com os serviços sociais
que deveriam acompanhar o processo de “pacificação”. “Eu estive no Chapéu
Mangueira e na Babilônia. Além da polícia, não há lá qualquer braço do Estado. A
creche mal funciona, com o salário atrasado das professoras, o que a Prefeitura não
assume. O posto de saúde não tem nenhum médico, nenhum dentista da rede pública do
Estado. É mais uma vez a lógica exclusiva da polícia nas favelas – e somente a polícia”,
afirmou. O projeto das UPPs está traçando um caminho bem delimitado: setor hoteleiro
da Zona Sul, entorno do Maracanã, Zona Portuária e a Cidade de Deus, “única área
dominada pelo tráfico em toda Jacarepaguá, que tem o domínio hegemônico das
milícias”.

Danem-se as demais regiões que, como ressaltou Jabor, “já moram dentro da violência”.

Uma questão social, de classe

Para quem ainda acha que as questões de classe acabaram, basta comparar a forma
como os diversos crimes em nossa sociedade são enfrentados. Para combater crimes
financeiros (quando se combate), ninguém entra em agências bancárias rendendo as
pessoas e atirando. Nas favelas, áreas com assentamentos humanos extremamente
degradados, é diferente.

Um dos “efeitos colaterais”, na expressão de Beltrame, é a estudante Rosângela Alves,


de 14 anos. Seu pai Roberto Alves, ironizou a presença dos policiais militares na
unidade de saúde com aplausos: “Parabéns a vocês. Parabéns, Beltrame, parabéns,
Cabral. Olha o que vocês conseguiram com isso! Matar uma menina que estava em
casa! Sabe o que vocês conseguem com essas operações: matar pobres”. Sem conseguir
sair de casa por causa do intenso tiroteio, a mãe da menina, Thereza Cristina Barbosa,
acusou em relato ao jornal O Dia a polícia de ter disparado o tiro que matou sua filha.
“O tiro que atingiu minha casa partiu de baixo para cima. Minha filha está morta, e eu
sequer consigo velar o corpo dela”, lamentou ela, por telefone. (Leia aqui e aqui)
Como já apontei, o narcotráfico é um negócio como qualquer outro. E rende bastante:
dados conservadores das Nações Unidas estimam que o rendimento líquido é de US$
400 bilhões ano. Um “freela” para se queimar um carro custa entre R$ 200 e R$ 400.
“Falo em ‘varejo de drogas’ na favela, e não de traficantes”, reafirma Freixo, apontando
que a ponta do sistema – o 1% que está na favela – não tem projeto de poder e qualquer
noção de organização criminal, como apontei. “Nunca participaram de juventude
católica, de grêmio estudantil, nunca tiveram qualquer noção de coletividade. Sabe
quantas escolas públicas existem no Complexo do Alemão? Duas”.

Conforme afirmou até mesmo um capitão e um dos fundadores do Batalhão de


Operações Especiais (BOPE) – um grupo de policiais fascistas que acreditam que
executar sumariamente é uma prática normal, conforme não escondem mesmo em
declarações públicas – em uma entrevista hoje (25/11) pela manhã na TV Record: “Os
Batalhões da PM não possuem estrutura mínima de inteligência para operar”.

Marcelo Freixo, deputado que trata da segurança há muito tempo, amplia a crítica e
denuncia: "Sabe quantas escolas públicas existem no Complexo do Alemão? Duas"

O deputado Marcelo Freixo deu uma entrevista nesta quinta-feira (25/11) na


GloboNews afirmando o óbvio: o número de pessoas portando fuzis não chega a 1%
dos moradores. Ele costuma ironizar: “Eu gostaria que no parlamento fosse a mesma
coisa: menos de 1% envolvido com o crime. Infelizmente não é assim, mas na favela é”.
A polícia tem que agir com responsabilidade diante destes cidadãos. Enquanto isso
telespectadores igualmente fascistas comentam pela internet: “Tem que entrar mesmo e
enfrentá-los”. De quem estamos falando?

Freixo, focado na solução do problema, lembra: “Armas não são produzidas nas favelas.
Eles vieram de algum lugar. Quantas ações policiais foram feitas na Baía de Guanabara?
Quantas foram realizadas no Porto? Eu não me lembro de nenhuma”. É uma
constatação que deixa todos os “notáveis” comentadores políticos envergonhados, pois
só sabem falar abobrinhas sobre a “coragem” dos policiais em “enfrentar” o crime
organizado. Estão focados na política burra do confronto.

Freixo lembrou ainda, na entrevista de hoje, que essas áreas pertencem ao tráfico de
drogas. A área das milícias, conforme descrito anteriormente neste artigo, não foram
tocadas – e tão somente por isso não estão reagindo. “Vamos lembrar que esses eventos
já aconteceram próximo ao réveillon de 2006. O problema não é esse. A questão é que o
setor de inteligência no Rio de Janeiro é muito falho. Para constatar isso basta visitar a
DRACO [Delegacia de Repressão ao Crime Organizado da Polícia Civil do Rio de
Janeiro]”, concluiu Freixo.

Agora, muito pertinentemente alguém poderia se perguntar: e os movimentos sociais


nisso tudo? Eles não possuem meios para se comunicar, portanto não fazem parte do
cenário político. É tão simples quanto é trágico.

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