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CALVINO

O TEÓLOGO DO ESPÍRITO SANTO


Augustus Nicodemos Lopes

Digitalizado e doado por: Alcimar Da Silva Rodrigues

Revisado por : Levita Digital

Lançamento:
www.ebooksgospel.com.br
CALVINO
O Teólogo do Espírito Santo
"A doutrina sobre a obra do Espírito Santo é uma
dádiva de João Calvino à Igreja de Cristo... Nos amplos
departamentos doutrinários sobre "A Graça Comum",
"Regeneração", e "O Testemunho do Espírito" do livro
terceiro das Instituías, Calvino foi o primeiro a
desenvolver a doutrina da obra do Espírito Santo, e a
dar a toda a doutrina do Espírito Santo uma formulação
sistemática, fazendo dela uma possessão inalienável da
Igreja de Deus."
-B. B. Warfield

AUGUSTUS NICODEMOS LOPES, Ph.D., é


brasileiro, casado com Minka Schalkwijk. É pastor
presbiteriano. Fez mestrado na África do Sul, e
doutorado no Westminster Theological Seminary, em
Filadélfia, nos Estados Unidos, com cursos especiais em
Kampen, na Holanda.
Atualmente é professor de Exegese Bíblica e
Coordenador de Novo Testamento do Centro de Pós--
graduação do Seminário Presbiteriano José Manoel da
Conceição, em São Paulo.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Rua 24 de Maio, 116 - 3o andar - salas 14-17
01041-000 - São Paulo - SP
CALVINO
O Teólogo do Espírito Santo

Seu Ensino sobre


o Espírito Santo e a Palavra de Deus

AUGUSTUS NICODEMUS LOPES


INTRODUÇÃO
O tema deste artigo é "Calvino, o Teólogo do
Espírito Santo." Devo começar dizendo que esse título
não foi atribuído a Calvino pelos seus contemporâneos,
mas sim, pelos estudiosos modernos, reconhecendo a
sua importância como teólogo e exegeta para esta área
da teologia que está em tanta relevância hoje.
O título pode confundir algumas pessoas. Podem
pensarque o assunto sobre o qual Calvino mais
escreveu, e ao qual mais se dedicou, foi o Espirito Santo.
Na realidade, embora Calvino tenha escrito muita coisa
sobre o Espírito Santo, nunca escreveu uma obra
específica sobre o assunto, como, por exemplo, John
Owen e Abraham Kuyper, cujos livros sobre o tema são
fundamentais para a Igreja contemporânea.1 Embora em
suas Instituías de Religião Cristã João Calvino trate
freqüentemente da Pessoa e obra do Espírito Santo, não
dedicou ao assunto um capítulo exclusivo.2
1
John Owen, The Holy Spirit: His Gifts and Power (Grand Rapids: Kregel, 1960); Abraham Kuyper,
The Work of the Holy Spirit (Grand Rapids: Eerdmans, 1946). Outros autores poderiam ser
acrescentados, como o puritano inglês Thomas Goodwin, e mais recentemente, Benjamim B. Warfield
e George Smeaton.
2
Cf. João Calvino, As Instituías, ou Tratado da Religião Cristã, 4 vols., trad. WaldyrC. Luz (São Paulo:
CEP e Luz para o Caminho, 1989). Calvino trata da deidade do Espírito em livro 1,13:14ss., e da Sua
obra redentora (aplicando a salvação) no livro III, especialmente nos capítulos 1-2.
Alguns têm criticado Calvino por não haver dado
atenção mais direta ao Espírito Santo em seus escritos,
especialmente nas Instituías. A crítica é injusta. Existem
razões suficientes para essa aparente falta de atenção.
Em primeiro lugar, a doutrina do Espírito Santo
não era o foco do debate de Calvino com a igreja católica
romana da sua época, e nem da sua polêmica com os
reformadores radicais, os Anabatistas e os
"Entusiastas", conhecidos como a ala esquerda da
Reforma.3 Calvino só tratou da obra do Espírito Santo
na medida em que esse assunto se relacionava com os
pontos críticos em debate, como a doutrina da salvação,
da santificação, das Escrituras, e dos sacramentos.
Em segundo lugar, Calvino tinha a visão bíblica-
neotestamentária de que o Espírito Santo geralmente
agia nos bastidores, como o agente da Trindade. Embora
Sua ação fosse claramente perceptível, quem deveria
sempre recebera proeminência eram o Pai e o Filho.
Essa convicção reflete-se nas suas obras e em sua
abordagem dos mais variados temas teológicos. Não
existe praticamente nenhum assunto teológico em que
Calvino não se refira, em seu tratamento, à obra do
Espírito. Sua Pneumatologia é desenvolvida dentro das
demais áreas da Teologia Sistemática, como
Teontologia,* Soteriologia e Eclesiologia.
Essa mesma abordagem se encontra refletida na
Confissão de Fé de Westminster. É verdade que seus
autores, os Puritanos, não escreveram um capítulo
exclusivo sobre a pessoa e obra do Espírito. Mas, como
sugeriu Dr. Benjamim B. Warfield, conhecido teólogo
presbiteriano reformado, do início deste século, a razão é

3
O termo "esquerda" tem sido empregado recentemente por alguns historiadores para se referir a
esse grupo, sem qualquer conotação politica. Veja abaixo p. 9.
* Teontologia - estudo da Pessoa de Deus.
que preferiram escrever nove capítulos em vez de apenas
um. A tentativa que foi feita em nossa época, pela Igreja
Presbiteriana dos Estados Unidos, para suprir esta
alegada deficiência, produziu um capítulo a mais na
Confissão de Fé que, segundo Warfield, nada mais é que
um curto sumário destes nove capítulos originais. 4
E por fim, não se pode exigir de Calvino (e nem dos
autores da Confissão de Fé) uma abordagem do assunto
que seja aguçada pelas questões relacionadas com o
surgimento do movimento pentecostal, séculos após a
sua morte. Mesmo assim, Calvino é surpreendentemente
atual no que ele diz sobre o Espírito.
Por que, então, o título "teólogo do Espírito Santo"?
Em primeiro lugar, Calvino foi o primeiro a sistematizar
de forma clara o ensino bíblico sobre o Espírito Santo.
Não é que ninguém, antes dele, não houvesse escrito
sobre o assunto. Entretanto, é que poucos, antes e
depois de Calvino, conseguiram ser tão claros, simples, e
bíblicos.5 Ouçamos o testemunho de Dr. Warfield:
A doutrina sobre a obra do Espírito Santo é uma
dádiva de João Calvino à Igreja de Cristo. . . Nos amplos
departamentos doutrinários sobre "A Graça Comum,"
"Regeneração," e "O Testemunho do Espirito" do livro
terceiro das Instituías, Calvino foi o primeiro a
desenvolver a doutrina da obra do Espírito Santo, e a
dar a toda a doutrina do Espírito Santo uma formulação
sistemática, fazendo dela uma possessão inalienável da
Igreja de Deus.6
Em segundo lugar, Calvino integrou
indissoluvelmente a doutrina do Espírito Santo aos
demais temas e áreas da teologia, como regeneração,

4
Cf. a nota introdutória de B. Warfield em Kuyper, The Work of the Holy Spirit, xxvii.
5
Para uma lista das obras mais importantes sobre o Espírito Santo escritas após Calvino nos séculos
XVII e XVIII, ver Kuyper, The Work of the Holy Spirit, ix-x.
6
Kuyper, The Work of the Holy Spirit, xxxiii-xxxiv.
santificação, os meios de graça, e o conhecimento de
Deus, entre outros. A pneumatologia de Calvino,
igualmente, abrangia e permeava todos os demais
departamentos da Enciclopédia Teológica. Sua teologia é
uma unidade orgânica, onde o Espirito aparece
apropriadamente como o soberano Dinamizador.
Em terceiro lugar, Calvino resgatou alguns
aspectos da doutrina do Espírito Santo que estavam
soterrados debaixo da teologia medieval da igreja
católica romana, como por exemplo, a relação entre a
Palavra e o Espírito. Nosso alvo neste ensaio é analisar
mais exatamente esta contribuição de Calvino para
nosso conhecimento da obra do Espírito Santo, ou seja,
a relação vital e orgânica entre o Espírito e a Palavra de
Deus, as Escrituras.
O ensino de Calvino influenciou profundamente os
estudos subseqüentes dentro dos círculos reformados.
Sua ênfase na ação soberana do Espírito continua na
tradição reformada entre os puritanos ingleses,
particularmente John Owen e Richard Sibbes, que nos
deram os estudos bíblicos teológicos mais extensos e
profundos que existem em qualquer língua sobre o
ministério do Espírito Santo.

O CONTEXTO TEOLÓGICO DE CALVINO


Comecemos por lembrar-nos que a teologia de
Calvino nasceu e desenvolveu-se em meio ao intenso
conflito doutrinário que marcou a Reforma do século
XVI. Sua doutrina do Espírito Santo foi moldada em
meio à sua batalha em duas frentes. Em uma, ele
enfrentava o cativeiro das Escrituras pela igreja católica
romana, e na outra, o abandono das Escrituras pelos da
Reforma radical.
A igreja católica romana e o cativeiro das Escrituras
Calvino e a igreja católica romana tinham algumas
convicções em comum quanto à doutrina das
Escrituras. Para eles, as Escrituras eram a Palavra de
Deus, inspiradas pelo Espírito Santo, infalíveis, e
autoritativas. Este ponto não estava sendo disputado
por Calvino, nem pelos demais reformadores. O ponto de
discórdia entre Calvino e os católicos era quanto ao
ensino papista de que a autoridade das Escrituras
dependia do testemunho da Igreja. A igreja católica
romana afirmava que o cânon das Escrituras, a sua
preservação, a sua origem divina e sua autoridade,
deviam ser aceitos pelos fiéis como verdadeiros porque a
igreja assim o afirmava. A autoridade das Escrituras,
enfim, dependia do testemunho da igreja. A igreja, além
disso, tinha a correta interpretação das Escrituras; a
coleção dessas interpretações formava a tradição
eclesiástica, que possui tanta autoridade quanto as
próprias Escrituras. Assim, era vedado aos católicos
leigos lerem e interpretarem as Escrituras. Eles
dependiam da interpretação dada pela igreja. Dessa
forma, a Palavra e a sua interpretação estavam cativas
debaixo da autoridade eclesiástica.
Calvino levantou-se contra esse estado de coisas,
que havia prevalecido durante a Idade Média. Ele
considerava esse ensino como sendo uma afronta ao
Espírito Santo, e um abuso de autoridade por parte da
igreja católica. Para ele a verdadeira Igreja foi fundada
sobre as Escrituras, e não o contrário. A autoridade das
Escrituras não dependia do testemunho da Igreja, e sim
o contrário: a Igreja só possuía autoridade enquanto
estivesse dentro da doutrina bíblica. Calvino apelava
aqui para Ef. 2:20, onde Paulo ensina que a Igreja está
edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas,
que é o ensino das Escrituras.7 A Igreja simplesmente
reconhecia - não estabelecia e nem determinava - a
inspiração e a autoridade dos livros que compunham o
cânon sagrado.8
Para Calvino, a maior de todas as provas da
autoridade e inspiração das Escrituras era que o próprio
Deus nos falava através delas. Calvino chamava a isto o
testemunho interno do Espirito.7 Para ele, o homem
natural não poderia ser convencido da divindade das
Escrituras por argumentos apresentados pela igreja, por
mais lógicos e racionais que eles parecessem (1 Cor.
2:14).8 Era o Espírito quem persuadia o crente de que
Deus estava falando nas Escrituras, inclinando-lhe o
coração a aceitá-las, e dando-lhe plena certeza disso,
gerando-lhe fé em seu coração. Nas suas Instituías e
comentários Calvino aponta para alguns textos com este
efeito, como por exemplo, 1 João 5:6-7, 2Tim. 1:14-15,1
Cor. 2:10-16.9
Para Calvino, o que o Espírito havia revelado nas
Escrituras era suficiente e final. Maomé, o papa, e os
"Entusiastas" estavam errados, ao reivindicarqueo
Espírito estariaensinando novas verdades no presente.
Para Calvino, as palavras do Senhor Jesus em João
14:25 deixavam claro que o ministério do Consolador
consistiria, não em revelar novas verdades, que fossem
além das que haviam sido ensinadas pelo Senhor Jesus
e Seus apóstolos, mas em iluminar as mentes e os
corações dos crentes, para que compreendessem e
cressem nas verdades, agora registradas nas Escrituras.
Ele afirma: "O espírito que introduz qualquer doutrina

7
Institutas, III. 1.1; I.7.5.
8
Institutas, 1.8.13; I.7.4. Cf. Ronald S. Wallace, Calvin's Doctrine of the Word and Sacrament (Grand
Rapids: Eerdmans, 1957) 101-2.
9
Instituías, III.1.1; III.2.33-34; II.2.20; 1.7.5. Veja ainda Calvin's Commentaries, vol. 20,116-17, e vol.
22, 257.
ou novidade que vá além do evangelho, é um espírito de
mentira, e não o Espírito de Cristo."10
O efeito do ensino de Calvino foi libertador.11
Através da ênfase no testemunho interno do Espírito
Santo como a evidência máxima da divindade e da
autoridade das Escrituras, ele libertou as Escrituras e a
sua interpretação do cativeiro imposto pela Igreja
Medieval, e as colocou de volta onde elas pertenciam de
direito, nas mãos do Espírito Santo. Nesse sentido,
estava certa a avaliação de alguns católicos
encarregados da contra-reforma no século XVII, de que
uma das maiores diferenças que existiam entre Roma e
Genebra se encontrava em suas doutrinas sobre a
Pessoa e a obra do Espírito Santo.

Os reformadores radicais e seu desprezo pela Palavra


A outra frente de batalha de Calvino era contra o
ensino da Reforma radical, conhecida como a "ala
esquerdista" da Reforma.12 Havia diversos grupos dentro
dessa ala do movimento reformista. Havia, em primeiro
lugar, como os Anabatistas, os "Fanáticos", os
"Espiritualistas" e os Anti-trinitarianos, que "embora
diferentes em seus propósitos e em suas doutrinas,
tinham em comum o desejo de ver uma Reforma muito
mais radical do que a propagada por Lutero e
Zwínglio."13 A polêmica de Calvino contra os Anabatistas
concentrou-se em questões como batismo infantil,
predestinação, governo de Igreja, relação entre Igreja e
Estado, e interpretação das Escrituras.14

10
Calvin's Commentaries, vol. 18, 101.
11
Devemos, com justiça, notar que Calvino deve muito dessa perspectiva ao ensino desbravador de
Martinho Lutero, que já havia, antes dele, denunciado esse estado de coisas.
12
Veja nota 3.
13
William Balke, Calvin and the Anabaptist Radicais, trad. W. Heynem (Grand Rapids: Eerdmans,
1981) 2.
14
Para uma análise mais profunda do debate de Calvino com os Anabatistas consulte Balke, Calvin
and the Anabaptist Radicais. Resumos sobre o movimento Anabatista durante a Reforma poderão ser
Foi contra os excessos dos "Entusiastas" ou
"Fanáticos" (como eram conhecidos) na área de novas
revelações contemporâneas do Espírito, que Calvino se
concentrou em alguns de seus escritos. Ele escreveu um
tratado em 1545 intitulado Contre la secte phantastique
et furieuse des Libertines qui se nomment spirituelz
(Contra a seita fantástica e furiosa dos Libertinos, que se
chamam de Espirituais), que ainda não foi traduzido
para o português.1 Freqüentemente em suas Institutas
e comentários Calvino faz menções diretas ou sugestões
implícitas sobre este movimento.
Os "Entusiastas" enfatizavam o ministério didático
do Espírito, um ponto que havia sido resgatado pelos
Reformadores; porém, estavam indo além deles,
reivindicando serem ensinados diretamente pelo Espírito
através de novas revelações, por meio de uma luz
interior. Afirmavam que o Espírito não podia ficar restrito
a palavras escritas, pois isso diminuiria Sua soberania.
Testar as manifestações espirituais seria desonrar o
Espírito. Chegavam a ridicularizar os que se apegavam
às Escrituras, pois a consideravam como uma forma
inferior e temporária de revelação, e criticavam Calvino e
os demais reformadores por se apegarem à letra que
mata.
Os "Entusiastas," portanto, eram uma reação à
escravidão das Escrituras por parte da Igreja que havia
vigorado até a Reforma, mas uma reação que estava
indo longe demais. Calvino, naturalmente, simpatizava-
se com os "Entusiastas" em vários pontos. Para ambos,
as Escrituras, como a Palavra de Deus, não estavam
cativas à interpretação da igreja católica romana, mas

16
Para uma análise mais profunda do debate de Calvino com os Anabatistas Consulte Balke, Calvin
and the Anabaptist Radicals. Resumos sobre o movimento Anabatista durante a Reforma poderão ser
encontrados nos livros clássicos em português de História da Igreja, como Robert Nichols, W. Walker
e Justo Gonzalez (vol. 6)
deveriam ser livremente examinadas por todos. Calvino,
porém, questionava seriamente a separação entre o
Espírito e a Palavra, e considerava qualquer tendência
nesse sentido como "demência".15 Ele também duvidava
que "novas revelações' fossem uma obra do Espírito
Santo, e chegava mesmo a suspeitar que os que
reinvidicavam receber novas revelações, que excediam as
Escrituras, estavam sendo guiados por outro espírito,
que não o de Deus. Calvino cria na realidade e na
atuação de espíritos mentirosos, e que satanás estava
continuamente iludindo as pessoas, procurando afastá-
las da verdade, trans-figurando-se em "anjo de luz" (2
Cor. 11:3,14). Para ele, "novas revelações", na verdade,
eram invenções de espíritos mentirosos, não provinham
do Espírito Santo, sendo o cumprimento de passagens
como 1 Tim. 4:1-2.16

O ENSINO DE CALVINO SOBRE O ESPÍRITO SANTO E


A PALAVRA DE DEUS
Calvino não se limitou a criticar os exageros dos
"Entusiastas." Ele apresentou, de forma positiva e
construtiva, o ensino bíblico sobre a direção divina para
a Igreja vivendo após os tempos apostólicos. No livro I
das suas Instituías, onde trata de "O Conhecimento de
Deus como Criador", Calvino dá o seguinte título ao
capítulo 9: Os fanáticos, abandonando as Escrituras e
bandeando-se para revelação, derrubam todos os
princípios da piedade. Nesse capítulo, o reformador
aborda o ensino dos "Fanáticos", como eram conhecidos
na época, a partirda inseparável relação entre o Espírito
e a Palavra.

18
Institutas, I, 9, 1.
19
Instituías, I, 9, 2
O Espírito fala pelas Escrituras
O ponto central de Calvino era que o Espírito fala
pelas Escrituras. Não que o Espírito estivesse restrito à
pregação da Palavra e aos sacramentos, mas sim, que
Ele não pode ser dissociado de ambos. O Espírito havia
sido dado à Igreja, não para trazer novas revelações, e
sim para nos instruir nas palavras de Cristo e dos
profetas. De acordo com Calvino, o Espírito sela nossas
mentes quando ouvimos e recebemos com fé a palavra
da verdade, o evangelho da salvação (Ef. 1:13). Ele
limita-Se a guiar os crentes e a iluminar seus
entendimentos naquilo que ouviu e recebeu do Pai e do
Filho, e não de Si mesmo (João 16:13). Como o ensino
divino se encontra nas Escrituras, a obra do Espírito
consiste em iluminá-las, fazendo com que esse ensino
seja entendido pelos fiéis.
Contra o desprezo pelas Escrituras da parte de
muitos "Entusiastas," Calvino citava o exemplo do
apóstolo Paulo, que mesmo tendo sido arrebatado ao
terceiro céu, onde recebeu revelações extraordinárias (2
Cor. 12:2), ainda assim jamais desprezou as Escrituras,
como se fossem uma forma inferior de revelação, mas as
reconheceu como suficientes e eficazes, pela graça do
Espírito, para edificar a Igreja em todas as coisas
concernentes ao reino de Deus (2 Tm. 3:15-17; cf. 1 Tm.
4:13).17

O Espírito é reconhecido pela


Sua harmonia com as Escrituras

21
Institutas, I, 9, 1; cf. Wallace, Calvin's Doctrine of the Word and Sacrament, 130.
Outro ponto importante destacado por Calvino nas
Institutas era que a atuação do Espírito Santo poderia
ser reconhecida pela Sua harmonia com as Escrituras,
as quais haviam sido inspiradas pelo próprio Espírito. 18
Calvino desejava apresentar um critério pelo qual a
Igreja pudesse discernir de forma segura, no âmbito da
experiência religiosa, o que realmente procedia da parte
do Espírito de Deus, ou de espíritos enganadores. Para
ele, havia somente um critério seguro e infalível: o
Espírito falando nas Escrituras. Assim, não haveria
qualquer diminuição do poder e da glória do Espírito
Santo ao concordar com elas, já que Ele as havia
inspirado. Seria concordar consigo mesmo, e qual a
desonra que poderia haver nisso? Testar as
manifestações supostamente provenientes do Espírito,
usando-se o crivo das Escrituras, era, na realidade,
agradável a Ele, pois Ele mesmo havia determinado que
a Igreja assim procedesse com as manifestações
espirituais. Para Calvino, não poderia haver qualquer
contradição entre o ensino bíblico e a atuação do
Espírito nos tempos pós-apostólicos; e é por essa razão
que ele freqüentemente se refere às Escrituras como "a
imagem do Espírito."19

A soberania do Espírito
Um último ponto ao qual desejo me referir é a
insistência de Calvino sobre a soberania do Espírito
Santo nesta relação íntima com a Palavra de Deus. Para
ele, a Palavra é o instrumento pelo qual Deus dispensa a
iluminação do Espírito aos crentes.20 Assim, Cristo fala

22
institutas, I, 9, 2.
20
Para um estudo mais aprofundado, veja W. Kreck, "Wort und Geist bei Calvin", em Festchrift für
Günther Dehn (Neukirchen, 1957) 168-173.
24
Institutas, I, 9, 2-3.
20
Ibid.
hoje através do ministro do evangelho, quando o mesmo
expõe fielmente a Palavra. O Espírito torna eficaz a
Palavra exposta nos corações dos que a ouvem. Ao
mesmo tempo, a relação Espírito-Palavra não é mágica,
ou automática. A Palavra não é como um talismã, que
sempre que invocado, libera seu poder mágico, ao bel-
prazer do seu possuidor. A eficácia da Palavra, ao
contrário, está totalmente na dependência da soberania
do Espírito.21 Para Calvino, a afirmação de Paulo de que
somos ministros de uma nova aliança, do Espírito que
vivifica (2 Cor. 3:6), não é uma garantia de que nossa
pregação sempre será acompanhada pelo poder
vivificador do Espírito. Pastores não retém o poder de
dispensar a graça do Espírito a qualquer um que eles
desejem, nem quando o desejem. É por um ato soberano
que o Espírito torna a Palavra pregada em Palavra eficaz.
7

Assim, a eloqüência, a habilidade, a erudição e o


fervor do pregador de nada adiantam, se a graça e o
poder do Espírito não estiverem presentes. E assim
ocorre, porque o mérito sempre deve ser de Cristo, e não
dos pregadores.

A INFLUÊNCIA DE CALVINO NA
CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER
A Confissão de Fé de Westminster foi elaborada no
século XVII, quase um século após a morte de Calvino,
por pastores e teólogos puritanos, reunidos com esse
finalidade pelo Parlamento Inglês, na Assembléia de
Westminster. O alvo dos eruditos ali reunidos durante
vários anos era um só: formular de forma sistemática a

27 Calvin's Commentaries, vol. 20,174; veja ainda Wallace, Calvin's Doctrine of the Word and Sacrament, 89-90.
23
Institutas, I, 9, 2. Passagens como 1 Cor. 12:1-3, 14:29 e 1 João 4:1, entre outras, estabelecem
critérios doutrinários pelos quais pode-se julgar as profecias e os profetas.
26
Calvin's Commentaries, vol. 22, 102-3.
doutrina bíblica, partindo dos princípios de
interpretação herdados da Reforma. A Igreja
Presbiteriana tem adotado essa Confissão como a
expressão correta do ensino das Escrituras.22 Os seus
autores foram profundamente influenciados por João
Calvino. Essa influência se percebe claramente no
ensino da Confissão sobre o Espírito Santo, e em
especial, na relação do Espírito com a Palavra.
Assim, no seu capítulo sobre as Escrituras, a
Confissão declara, nos melhores termos calvinistas, que
a autoridade das Escrituras não depende do testemunho
do homem ou da Igreja, mas de Deus (I, 4), que a nossa
certeza da sua infalível verdade e autoridade divina
provém do testemunho do Espírito Santo em nossos
corações (1,5), que às Escrituras nada se acrescentará
em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito,
nem por tradições de homens (I, 6). A Confissão
reafirma, com Calvino, que é necessária a íntima
revelação do Espírito de Deus para a compreensão
salvadora das coisas reveladas na Palavra (I, 6), e que,
finalmente, o Juiz supremo pelo qual todas as
controvérsias religiosas têm de ser examinadas é o
Espírito Santo falando nas Escrituras (I, 8).

RELEVÂNCIA DO ENSINO DE
CALVINO PARA NÓS HOJE

A época em que vivemos


• A influência do movimento neopentecostal,
surgido na década de sessenta, tem-se feito sentir de
forma profunda nas denominações evangélicas

*
Inclusive a Igreja Presbiteriana do Brasil
históricas, e também dentro da Igreja Presbiteriana do
Brasil. Não podemos tratar o movimento como um bloco
monolítico existem, dentro dele, diversas correntes e
ramificações, o que faz com que generalizações tornem-
se injustas. Mas, onde aparece com toda a liberdade, o
neopentecostalismo manifesta a crença em novas
revelações através de profecias e línguas, visões e
sonhos, todos atribuídos ao Espírito Santo, e em alguns
casos, práticas estranhas ao cristianismo histórico, que
são atribuídas ao poder do Espírito Santo, como "cair"
no Espírito, o "sopro" do Espírito, o "riso santo",
característica principal do movimento conhecido como "a
bênção de Toronto". Há pastores que pretendem ter
controle sobre o Espírito Santo, que presumem concedê-
lO pela imposição de mãos, lançá-IO sobre o povo,
girando o paletó, soprando sobre eles, etc, como o
conhecido carismático Benny Hinn. Estes super-
pastores determinam até mesmo quando o Espírito vai
curar ou agir, pois marcam com antecedência reuniões
de cura e libertação, coisa que nem mesmo o Senhor
Jesus e os apóstolos fizeram.
As denominações evangélicas (a presbiteriana
incluída!) estão aturdidas, tomadas de surpresa por
esses ensinos. Muitas de suas igrejas locais têm
adotado, em maior ou menor medida, as doutrinas e
práticas do neopentecostalismo. Poderíamos receber
ajuda do ensino de Calvino, nesta hora?

Em que o ensino de Calvino nos ajuda hoje?


Em primeiro lugar, o ensino de Calvino sobre o
testemunho interno do Espírito vem lembrar à Igreja
que, nestes tempos difíceis, ela deve buscar de Deus a
íntima iluminação do Espírito para compreender e
aplicar as Escrituras à sua vida e missão. Corremos o
risco de pensar que Calvino, em sua luta contra os
excessos dos "Entusiastas", caiu no extremo do
academicismo frio. Balke nos relata o que de fato
ocorreu: "Calvino, o teólogo do Espírito Santo, queria
guardar-se contra o fanatismo, sem porém impedir a
liberdade do Espírito."23 Como Calvino, devemos nos
guardar dos excessos de hoje, ao mesmo tempo em que,
submetendo-nos à liberdade do Espírito, procuramos a
Sua iluminação. Todavia, para isso, é necessário
arrependimento e saneamento da vida das igrejas focais,
dos conselhos, concílios, organizações e instituições
eclesiásticas que compõem a IPB. É preciso nos
voltarmos a Deus em oração, suplicando a iluminaçãodo
Espírito, como bem orienta a Carta Pastoral da Igreja
Presbiteriana do Brasil sobre o Espírito Santo:
Ao mesmo tempo em que orienta a Igreja a
guardar-se de uma interpretação das Escrituras que
parte dos princípios hermenêuticos equivocados da
experiência neopentecostal, a Igreja também adverte
contra uma interpretação intelectualizada e árida das
Escrituras, que se esqueceda necessidadeda iluminação
do Espírito para sua compreensão e de que Deus
promete ensinar àqueles que procuram andar em
santidade e retidão (Sal. 119:18, 33-34; Luc. 24:44-
45).24
Em segundo lugar, Calvino nos desafia a examinar
todas as manifestações espirituais pelo crivo da Palavra
de Deus, quanto à natureza, ao propósito, e ao modo
dessas manifestações. Essa prática está pressupondo
corretamente o ensino bíblico de que o Espírito Santo
não Se contradiz. As Escrituras foram inspiradas por
Ele. Embora o Espírito aja de formas distintas em

28
Balke, Calvin and the Anabaptist Radicals, 326.
29
"O Espírito Santo Hoje - Os Dons de Línguas e Profecia", em Carias Pastorais (São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1995). O documento foi elaborado pela Comissão Permanente de Doutrina da
IPB.
épocas distintas, jamais o faz em contradição ao que nos
revelou na Palavra. Deveríamos estar abertos para o fato
de que o Espírito tem enfatizado aspectos diferentes da
Palavra em épocas diferentes - porém, jamais indo além
dela ou contra ela.
Em terceiro lugar, o ensino de Calvino nos alerta
contra os que pretendem ter total controle sobre o
Espírito, que pretendem dispensar o batismo do Espírito
pela imposição de mãos, que "ensinam" aos crentes
imaturos e incautos a falar em línguas. Alerta-nos a
rejeitar todo ensino, movimento, culto, liturgia, onde a
Palavra de Deus não receba a devida proeminência. Se o
Espírito fala pela Palavra, a Palavra deve ser o centro.
Muitos presbiterianos consideram-se calvinistas e
reformados, mas quantos realmente percebem as
implicações do ensino calvinista reformado sobre a obra
do Espírito para as práticas neopentecostais que são
aceitas em muitas das nossas igrejas? Calvino foi, de
fato, um homem do Espírito Santo, que guiado por Ele,
tornou-se o principal instrumento de Deus para a
Reforma do século XVI, movimento que, na realidade, foi
um dos maiores avivamentos espirituais ocorridos na
Igreja Cristã, após o período apostólico. Todos nós
queremos um avivamento espiritual, da mesma
magnitude. Calvino, que viveu e ministrou em meio
àquela tremenda manifestação de poder divino, não teve
receio de ofender o Espírito por inquirir, de forma
profunda e meticulosa, sobre a genuinidade dos fenôme-
nos que sempre acompanham os grandes movimentos
espirituais da história. Se por um lado não devemos ter
medo do que o Espírito possa fazer, por outro, devemos
temer a obra espúria dos espíritos enganadores, corno
também o nosso próprio coração enganoso.
E por fim, vale a pena mencionarmos que "a era do
Espírito Santo", como é conhecida em muitos meios
neopentecostais, iniciou-se, não em 1906, com a reunião
na rua Azuza, nos Estados Unidos, mas desde o dia de
Pentecoste. As evidências bíblicas são numerosas. Em
seu sermão no dia de Pentecoste, o apóstolo Pedro
declarou que a descida do Espírito estava inaugurando
os últimos dias (Atos 2:16-21). Os demais apóstolos
ensinaram, semelhantemente, que os últimos dias, a
dispensação anterior ao dia do julgamento final, já havia
chegado (1 Cor. 7:29; 1 João 2:18). Enfatizo esse ponto
pois alguns poderiam argumentar que estamos vivendo
hoje na "era do Espírito", e que Calvino viveu antes
dessa época. Os que assim acreditam, afirmam que hoje
o Espírito está agindo de uma forma muito mais intensa,
e mesmo, diferente, da época da Reforma, e que,
portanto, o que Calvino experimentou e ensinou está,
num certo sentido, ultrapassado. Entretanto, as
Escrituras nos ensinam que a Igreja já está vivendo os
últimos dias, a dispensação do Espírito, desde o período
apostólico. Calvino viveu e ensinou em plena época do
Espírito, tanto quanto nós hoje vivemos e labutamos. O
ensino de Calvino, por ser bíblico, pode nos servir de
balizamento, indicando-nos o estreito caminho do
equilíbrio, entre uma vida de piedade e uma mente
firmada nas antigas doutrinas da graça.

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