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MARIA E A ARCA DA ALIANÇA: ANÁLISE TIPOLÓGICA

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 3
2 ANÁLISE DAS COMPARAÇÕES DO TIPO PROPOSTO ........................................ 5
2.1 ANÁLISE DOS TEXTOS SOBRE DAVI ................................................................ 5
2.2 ANÁLISE DOS TEXTOS SOBRE OBEDE EDOM ................................................ 7
2.3 A APRESENTAÇÃO DE CRISTO ......................................................................... 9
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 10
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1 INTRODUÇÃO

O presente artigo busca analisar a interpretação tipológica entre Maria e a Arca


da Aliança, segundo o quadro comparativo proposto por Steve Ray em 20 de maio de
2019. Tal interpretação é muito utilizada para afirmar a impecabilidade de Maria na
Bíblia, visto que a Arca foi feita revestida de ouro e era considerada magnífica pelos
Israelitas. Considerando a seriedade do assunto, visto o fato de que a Bíblia nunca
afirma explicitamente a impecabilidade mariana nem a Imaculada Conceição mariana,
tal tipo seria de grande peso na defesa de que estas doutrinas sejam, de fato, bíblicas,
porém desconsideradas com facilidade. Seguirá uma reprodução dos quadros
apresentados por Ray em uma tradução que busca ser o mais fiel possível com a
versão original dos mesmos em inglês.
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Semelhanças pelo conteúdo da Arca

Dentro da Arca da Aliança Dentro de Maria, a Arca da Nova Aliança


As tábuas da Lei, a palavra de Deus O corpo de Cristo, a Palavra de Deus
escrita em pedra encarnada (João 1:14)
A urna cheia com maná do deserto, o O ventre contendo Jesus, o pão da vida
pão miraculoso que desceu dos céus que veio do céu (João 6:41)
A vara de Arão, que floresceu para
O verdadeiro e eterno sumo sacerdote
defender e provar o verdadeiro sumo
(Hebreus 5:9-10)
sacerdote

Semelhanças por paralelos bíblicos

A Arca da Antiga Aliança Maria, a Arca da Nova Aliança


A Arca viajou até chegar na casa de Maria viaja até a casa de Zacarias e
Obede Edom, nas montanhas de Judá Isabel, nas montanhas de Judá
(II Samuel 6:1-11) (Lucas 1:39)
João Batista, de linhagem sacerdotal,
Vestido como sacerdote, Davi dançou e
pulou no ventre de Isabel, diante da
saltou diante da Arca (II Samuel 6:14)
presença de Maria (Lucas 1:41)
Isabel pergunta “E de onde me provém
Davi pergunta “Como virá a mim a Arca
isso a mim, que venha visitar-me a mãe
do SENHOR? ” (II Samuel 6:9)
do meu senhor? ” (Lucas 1:43)
Davi jubila com gritos de alegria diante Isabel “exclamou em alta voz” diante de
da Arca (II Samuel 6:15) Maria (Lucas 1:42)
A Arca fica na casa de Obede Edom por Maria fica na casa de Isabel e Zacarias
três meses (II Samuel 6:11) por três meses (Lucas 1:56)
Há a repetição da palavra “bendita” três
A casa de Obede Edom foi abençoada
vezes; sem dúvida, a casa foi abençoada
pela presença da Arca (II Samuel 6:11)
(Lucas 1:39-45)
A Arca retorna à sua casa e acaba em Maria retorna à sua casa e
Jerusalém, onde a presença e glória de eventualmente acaba em Jerusalém,
Deus são reveladas no Templo onde ela apresenta o Deus encarnado
(II Samuel 6:12; I Reis 8:9-11) no Templo (Lucas 1:56; 2:21-22)
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2 ANÁLISE DAS COMPARAÇÕES DO TIPO PROPOSTO

Serão analisadas cada uma das passagens anteriormente citadas, visando


avaliar se a tipologia proposta realmente é adequada. Primeiro, porém, é importante
ressaltar os problemas nesse método de interpretar tipos. É bem conhecido que os
primeiros grandes grupos heréticos utilizavam de métodos similares, se não
perfeitamente iguais, onde toda doutrina é tirada de um suposto tipo e não de algo
explícito em momento algum no texto bíblico. É como um método reverso de fazer
teologia, onde existe uma ideia pré-concebida e só então se analisa o texto para
encontrar onde o mesmo a expressa, mas, diante da ausência de referência explícita,
são criadas formas para supostamente indicar a veracidade do ensino. Levados em
conta os problemas sobre esse método, serão expostos os textos utilizados no
suposto tipo e avaliados. As comparações finais, presentes no segundo quadro
anteriormente apresentado, não serão destacadas, visto que elas mais apontam para
as características do Cristo do que as implicações disso à Maria.

2.1 ANÁLISE DOS TEXTOS SOBRE DAVI

Os primeiros textos analisados serão os que se referem à figura de Davi em


relação aos outros personagens bíblicos, visto que tais textos serão de suma
importância para avaliar o tipo e sua visão geral. Primeiramente, a associação de Davi
a outro personagem bíblico que não o próprio Cristo já é problemática, visto a
evidência bíblica sobre o primeiro ser tipo do outro frequência. Será levado em conta
que Davi é constantemente tipo de Cristo, para a presente análise. Surge, então, um
problema estrutural com o tipo: em geral, Davi é tipo de Cristo e associado ao mesmo,
porém, por um momento, não o é e, ao invés disso, é simultaneamente João Batista
e Isabel. Em um curto momento, Davi se torna tipo não mais do Cristo, mas de João
Batista e, em uma fração de segundo, torna-se Isabel. Não encontramos problema
similar nos outros tipos bíblicos.

A primeira análise que deverá ser feita, visto ser a mais simples, é da
comparação entre Davi e Isabel por conta da exclamação em alta voz que os dois
emitiram diante de duas figuras bíblicas. De fato, afirmar que o relato do grito de um
personagem passado é necessariamente o tipo de outro personagem que grita algo
no futuro é um tanto forçoso.
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Seguindo para a segunda comparação que deverá ser analisada, é novamente


uma entre Davi e Isabel, porém, desta vez, em relação ao questionamento de cada
um. Nesta, a afirmativa é de que a similaridade entre o questionamento 1 de Davi e
Isabel indica a semelhança entre aquilo a quem cada um estava diante. A narrativa
de Lucas afirma que Isabel exclama em alta voz devido à sua alegria em receber Maria
em sua casa, dizendo “E de onde me provém isso a mim, que venha visitar-me a mãe
do meu senhor? ” (Lucas 1:43); a narrativa de II Samuel traz o questionamento similar
de Davi, que diz “como virá a mim a Arca do SENHOR? ”. Repousa grande problema
nessa comparação, visto que a motivação e tonalidade do questionamento de cada
personagem são opostas. Davi, como indicado pelo início do verso 9, estava com
medo da Arca devido a Deus ter ferido mortalmente Uzá naquele mesmo dia, por tê-
la segurado com suas mãos para evitar que a mesma caísse (II Samuel 6:6-7). Diante
disso, Davi se entristeceu2 e então não mais se alegrou em ver a Arca, mas a rejeitou
(II Samuel 6:10). Enquanto a figura de Davi questiona o motivo da Arca vir até si, em
tristeza e rejeitando-a, Isabel demonstra postura e motivação completamente oposta.
Enquanto Davi não deseja olhar para a Arca, Isabel se alegra em ver Maria. É
evidente, portanto, a dissimilaridade entre o suposto tipo e a coisa que supostamente
fora figurada.

Na narrativa de Lucas, João Batista salta no ventre de Isabel antes da mesma


exclamar de alegria e questionar o motivo da visita de Maria. Aqui, a comparação é
entre a dança de Davi diante da Arca (II Samuel 6:14) e o salto de João Batista que
Lucas relata (Lucas 1:41). É notável, porém, que esta comparação apresenta outro
problema na estrutura do suposto tipo. Seria necessário que Davi tivesse saltado de
alegria diante da Arca antes do ocorrido com Uzá e antes de seu questionamento,
para que o tipo alegado seja mais evidente. Porém, a narrativa de II Samuel mostra
que a dança e os saltos de Davi ocorreram depois do mesmo rejeitar a Arca e a mesma
passar três meses na casa de um de seus servos por conta disso. Fica evidente um
problema cronológico do tipo, visto que o salto de João Batista, que precede as falas
de Izabel e recebimento de Maria na casa visando a estadia, não se encaixa com a

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Em algumas traduções, a fala de Isabel não é um questionamento, mas uma afirmação. O
texto grego parece indicar que seja um questionamento, apesar da ausência de ferramentas
facilitadoras como a pontuação. Independentemente, a similaridade repousa nas palavras utilizadas e
não apenas se tratava-se de um questionamento ou afirmação.
2 Algumas traduções afirmam que Davi se irou.
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dança de Davi, que é posterior ao seu questionamento e rejeição da Arca em sua


casa.

2.2 ANÁLISE DOS TEXTOS SOBRE OBEDE EDOM

Daqui em diante serão avaliadas as comparações entre Maria na casa de Isabel


e Zacarias e a Arca na casa de Obede Edom. A primeira será a que se refere à estadia
em si e a localização das casas.

Como afirmado pelo autor do quadro apresentado anteriormente, ambas Arca


e Maria ficaram na casa de alguém próximo durante o período de três meses, sendo
ambas as casas em lugares similares ou próximos. Existem alguns acadêmicos que
apontam dois lugares de origem para Obede Edom, visto que o mesmo é identificado
como geteu nas Escrituras: Uns indicam que o mesmo seja um geteu filisteu de Gate,
enquanto outros indicam que o mesmo seja um geteu de Gate-Rimom, cidade da
antiga tribo de Dã que fica próxima à moderna Tel Aviv-Yafo e próxima à costa, na
extremidade Oeste do país, que se encontra com o Mar Mediterrâneo. Existe
probabilidade maior de que a segunda afirmação seja correta por conta do mesmo
receber a Arca em sua casa, que implica que o mesmo seria levita.

Existe probabilidade grande de que Obede Edom tenha se mudado para uma
estrada que levaria até Jerusalém, apesar da Bíblia nunca ser clara sobre a
localização da morada desse homem. Porém, mesmo diante disso, não se sabe quão
próximo ou distante sua casa ficava da cidade.

Sobre a casa de Zacarias, existem duas hipóteses: Que o mesmo morava em


Ein Kerem, ao sudoeste próximo da cidade de Jerusalém; ou que o mesmo morava
em Hebrom.3 Hebrom, que é hipótese muito aceita entre acadêmicos, fica mais
distante de Jerusalém, ao sul, nas montanhas ao lado leste do país.

Fica, portanto, evidente que a alegação de que as casas de Zacarias e de


Obede Edom tenham sido em regiões próximas é fruto de uma suposição com não

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No texto bíblico de Josué 21:11, a região de Hebrom é descrita da mesma forma que a
localização da casa de Zacarias em Lucas 1:39.
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muita probabilidade. No caso, a probabilidade maior é que haja uma distância


considerável entre as regiões onde Zacarias e Obede Edom teriam vivido.

Outra semelhança atribuída por muitos ao relato sobre a estadia de Maria na


casa de Zacarias e a Arca na casa de Obede Edom, é que Isabel, esposa de Zacarias,
era estéril assim como a esposa de Obede Edom. Essa afirmação, porém, carece de
qualquer evidência, visto que não há registro sobre a mulher de Obede Edom ser
estéril e o texto bíblico, na verdade, relatar que o mesmo tinha oito filhos (II Crônicas
26:1-4, 6).

A última semelhança que atribuem ao relato sobre a Arca e sobre Maria é


referente às bendições. O autor do quadro alega que a casa de Zacarias foi
abençoada por Maria da mesma forma que Obede Edom teve sua casa abençoada
pela presença da Arca, devido a repetição do termo “abençoada” ou “bendita” três
vezes no relato de Lucas. Porém, o que está desalinhado aqui é que o texto de II
Samuel afirma que a casa de Obede Edom foi abençoada, enquanto o relato de Lucas
atribui o termo “abençoada” ou “bendita” três vezes à Maria e nunca à casa. Aqui é
notável como o autor do quadro está justamente deduzindo ao dizer “sem dúvida, a
casa foi abençoada”, visto que os textos não dizem a mesma coisa, e isto é fruto do
método criticado no início dessa análise.

Diante do que foi aqui apresentado, a única semelhança que se sustenta sobre
o relato da Arca na casa de Obede Edom e o relato de Maria na casa de Zacarias são
as palavras “três meses”, ou seja, o tempo de estadia. Porém, se assim fosse
suficiente para traçar um tipo entre Maria e a Arca, poder-se-ia traçar um tipo entre
Maria e Moisés, visto que o mesmo foi escondido na casa de seu pai por três meses
de sua infância (Êxodo 2:2; Atos 7:20). Tal tipo seria visto como absurdo pela maioria
daqueles que tem consciência de quem foi Moisés. Um critério tão baixo não pode ser
suficiente para criar um tipo tão relevante.

Outra dissimilaridade considerável é a motivação de Maria ir à casa de Isabel


e Zacarias e o motivo da Arca parar da casa de Obede Edom. Enquanto Maria foi à
casa de Isabel por conta da notícia dada pelo anjo de que sua parente estéril estava
grávida (Lucas 1:36-37), a Arca vai à casa de Obede Edom porque Davi (que, ainda
por cima, supostamente representaria Isabel e João Batista) a rejeitou, não desejando
recebê-la.
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2.3 A APRESENTAÇÃO DE CRISTO

A comparação final que será analisada é das afirmativas sobre o paradeiro da


Arca em Jerusalém, no Templo, e de Maria com Jesus apresentando-o no Templo.
Primeiramente, há outro problema cronológico aqui, visto que a Arca supostamente
seria um tipo de Maria carregando o Cristo dentro de si, devido aos conteúdos que
estão dentro da Arca se associarem ao caráter de Cristo, mas Maria já havia dado a
luz ao Emanuel haviam oito dias, na apresentação no Templo. Além deste problema,
impera o problema da desonestidade do autor ao escolher as palavras para relatar o
paradeiro da Arca. O autor afirma que a Arca “retorna à sua casa e acaba em
Jerusalém, onde a presença e glória de Deus são reveladas no Templo”, porém, as
palavras corretas seriam que a Arca “vai à sua casa, Jerusalém, onde a presença e
glórias de Deus são reveladas no Templo”. Feita essa correção, fica em maior
desigualdade a comparação, visto que Maria retornou à sua casa, mas a mesma
nunca foi Jerusalém, mas Nazaré, e Maria fez apenas uma viagem momentânea à
cidade santa.

Outro problema é a desconsideração que essa comparação faz com a tradição


judaica, tratando o fato de Jesus ser apresentado no Templo como se fosse algo único
e distinto, visando fortalecer os argumentos em favor do tipo, ao invés de uma
obrigação da Lei para todos os primogênitos (Êxodo 13:2, 12; Levíticos 12:6-8).
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi apresentado como proposta e da análise feita sobre a mesma,
fica evidente que esse tipo não se encaixa bem com outros dentro do texto bíblico.
Existem problemas estruturais na proposta, onde Davi é suposto tipo de dois
personagens (a saber, João Batista e Isabel) simultaneamente. Existem, também, um
grande problema cronológico nesse tipo, visto que a sequência de acontecimentos
entre o relato de II Samuel e Lucas 1 não se encaixam, sendo realizados diversos
saltos e retornos constantes dentro da narrativa de Samuel. Além destes problemas,
existem as desigualdades dos cenários entre as duas narrativas, onde a motivação
da viagem da Arca para a estadia na casa de Obede Edom não está similar à viagem
de Maria à casa de Zacarias, onde o questionamento de Isabel e de Davi tem tons
completamente opostos e estão em cenários opostos e onde a comparação das
localizações das casas não é precisa e pode estar extremamente incorreta.

É verdade que alguns Pais da Igreja utilizaram essa comparação para sustentar
a impecabilidade de Maria. Porém, apesar da doutrina da impecabilidade ser, de fato,
extremamente antiga, essa interpretação tipológica sobre a Arca só se apresenta e
populariza entre os bispos e autores cristãos próximo ao Século IV, um período mais
tardio da patrística, evidenciando que a mesma não deve ter procedência apostólica.

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