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Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 1

2 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Coleção Cadernos Temáticos

Educação do Campo:
Semiárido, Agroecologia, Trabalho e Projeto Político Pedagógico

Santa Maria da Boa Vista/PE


Setembro, 2010

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 3


PREFEITURA MUNICIPAL
DE SANTA MARIA DA BOA VISTA - PE

PREFEITO
Leandro Rodrigues Duarte

SECRETÁRIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO


Neuma Maria de Vasconcelos Freitas

SECRETÁRIA ADJUNTA DE EDUCAÇÃO


Vera Lúcia

DIRETORA PEDAGÓGICA
Iara Reis

COORDENADOR MUNICIPAL DA EDUCAÇÃO DO CAMPO


Rivanildo Adones dos Santos

EXPEDIENTE

PRODUÇÃO
Prefeitura Municipal de Santa Maria da Boa Vista - PE
Secretaria Municipal de Educação
Coordenação da Educação do Campo

ORGANIZAÇÃO
Erivan Hilário

COLABORAÇÃO
Maria Neuma de Vasconcelos Freitas
Rivanildo Adones dos Santos

DIAGRAMAÇÃO
Fábio Carvalho

IMPRESSÃO
Gráfica Progresso

TIRAGEM
1.000 exemplares

FOTOS
Gilmar Araújo
Arquivo Coord. Educação do Campo
Wllyssys Wolfgang

4 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


SUMÁRIO

PREFÁCIO
Clarice Aparecida dos Santos 7

APRESENTAÇÃO 11

Educação do Campo: notas para análise de percurso


Roseli Salete Caldart 15

O Semiárido Brasileiro
Silvana Lucia da Silva Lima 41

O Trabalho como processo educativo/formativo


Erivan Hilário 51

Agroecologia e Educação do Campo


Aloisio Souza da Silva e Leandro Feijó Fagundes 59

Projeto Político Pedagógico: concepção e elementos para construção


Joelma de Oliveira Albuquerque e Nair Casagrande 73

POEMAS PARA CAMINHADA 85

ANEXOS
(documentos sobre Educação do Campo)

Resolução do CNE/CB1, de 3 de Abril de 2002 100

Declaração final da II Conferencia Nacional de Educação do Campo 2004 104

Carta do II Seminário Nacional de Educação do Campo 112

Resolução CNE, CEB nº 02, de 28 de Abril de 2008 114

Resolução CEE/PE n° 02, de 31 de Março de 2009 118

Documento final do I Seminário Munucipal de Educação do Campo 122

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 5


6 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
PREFÁCIO

Nunca diga, nordestino,


Que Deus lhe deu um destino...
Patativa do Assaré

Os educadores de Santa Maria da Boa Vista e da Região tem


em mãos um livro importante. Trata-se do Caderno Temático sobre
Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia, Trabalho e Projeto Político-
Pedagógico, de iniciativa da Prefeitura Municipal de Santa Maria da
Boa Vista - PE.

A publicação de um subsídio teórico-pedagógico acerca de


temas tão caros para a educação, e especialmente para a educação na
região do semiárido nordestino, é, por si só, um feito louvável. Num
mundo que tem dizimado as regionalidades e suas humanidades,
eliminando-as, a serviço do desenvolvimento e da expansão do modelo
vigente, utilizando-se de projetos educacionais, uma iniciativa como
esta é como uma flor de mandacaru no meio da caatinga. Bela,
exuberante e mostra da esperança de que a vida pode sempre florescer,
mesmo na adversidade.

Temos vivido tempos difíceis e ao mesmo tempo tempos de


muita produção, neste campo da Educação do Campo, o que indica
vivermos um período de contradições, e esta é a riqueza destes tempos.

Quando penso num Caderno que tem a pretensão de servir


como subsídio teórico aos educadores que trabalham nas escolas das
comunidades rurais, assentamentos, quilombos, devo necessariamente
pensar quem são.

São os educadores que trabalham e dedicam seu tempo à


educação das crianças e adolescentes, filhos e filhas de camponeses
que, pelo fato de terem nascido no campo, foram condenados, pela
história e pelos homens que a fazem, a viver nas condições mais adversas
que qualquer população poderia viver. Poderiam ter-se rendido a esta
situação que muitos (desavisada ou preconceituosamente) denominam
nordestinados. Mas estes camponeses que aqui vivem não se renderam
ao destino para o qual se encaminhavam. E ao fazerem, mudaram a
sua própria história e a do seu município, da sua região. E ao fazê-lo,
estão a provar que tudo na vida e no mundo pode ser mudado pela
força coletiva da solidariedade e da organização social.

Importante para nós, que nos denominamos educadores, é


que compreendamos esta primeira lição fundamental que a história

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 7


deve ser a base sobre a qual pensamos o nosso Projeto Político
Pedagógico, bem tratado num capítulo deste livro, como o eixo
organizador da escola, como o articulador dos processos educativos que
ali irão se desenvolver e sem o qual a escola e nós, educadores, nos
tornamos reféns das receitas fáceis vendidas a peso de ouro aos
administradores públicos, como a redenção das mazelas sociais. São
aqueles projetos de empresas privadas, de organizações não
governamentais que, aparentemente cheias de boas intenções, não fazem
mais do que pensar o Brasil e suas necessidades a partir do eixo Brasília-
Rio-São Paulo, do “centro” para a “periferia” do Brasil.

Sendo assim, queremos um Projeto Político Pedagógico que


tenha como horizonte uma escola capaz de projetar-se como uma nova
possibilidade de sociabilidade humana, como nova possibilidade para
as crianças e para a juventude. Uma escola alternativa a esta que
conhecemos e que está a nos destruir. E está a nos destruir precisamente
porque o modelo de convivência social que a escola tradicional elaborou
e implementou está falido. Os fatos confirmam esta falência. Está falido
o modelo educacional e está falido o modelo social. E está falido o modelo
educacional porque está falido o modelo social que o moldou.

Não fosse isso, não teríamos tantos problemas em manter os


adolescentes e jovens na escola, prazerosamente. Vão por obrigação, por
pressão da família e da sociedade. Vão para uma escola pensada da
mesma forma, para todos, independente do lugar onde vivam, da sua
história, da história social onde está inserida. Uma escola-padrão para
todos, mas que no seu interior se incumbe de selecionar aqueles que
terão um ou outro destino.

Vejam bem, isso não é feito intencionalmente pelos


educadores. Mas os educadores, ao não perceberem este processo, são
utilizados pelo sistema educacional para reproduzi-lo. E, mesmo
movidos pelas melhores intenções, perversamente, o modelo os torna
inocentes úteis.

Nesta perspectiva, as melhores escolas (tradicionais) não têm


feito mais do que reproduzir uma educação necessária às novas
necessidades do capital, em cada região do país, inclusive no semiárido.
Um exemplo disso, é que nas escolas técnicas, no caso do semiárido, as
melhores intenções no campo da formação profissional não têm feito
mais que reproduzir a formação de um técnico funcional à expansão e
consolidação da fruticultura de exportação, baseada num modelo de
produção agressivo ao solo e à água da região, comprometendo a
disponibilidade destes recursos para as gerações futuras e reproduzindo
um padrão de exploração do trabalho com um grau de alienação tão

8 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


perverso quanto ao não ter trabalho, pois não permite aos trabalhadores
pensarem a possibilidade de fazerem de forma diferente. Fazer de forma
diferente significaria organizarem-se para produzir de acordo com as
necessidades alimentares do povo, pelo seu trabalho, cujo resultado
fosse distribuído para si mesmos, de forma organizada, e com recursos
públicos para seu financiamento. Assim como há financiamento, a rodo,
para as grandes empresas.

Como pensar, então, um projeto pedagógico e uma escola


noutra perspectiva, qual seja a da emancipação humana pela
emancipação do trabalho? Qual educação e qual processo educativo
escolar oferecerão as necessárias condições às crianças e à juventude do
semiárido nordestino, para que estas possam projetar o seu destino em
vez de render-se às velhas e novas armadilhas armadas pelo modelo
vigente, como se destino fosse? Nosso amor e nossa dedicação às crianças,
adolescentes e jovens de nossas comunidades nordestinas nos exigem
que reflitamos sobre isso e passemos à ação.

Os trabalhadores rurais desta região já comprovaram ser


possível reorganizar seus destinos, na luta pela Reforma Agrária, na
luta por reconhecimento dos territórios quilombolas, na luta pelo
reassentamento das famílias atingidas pelas grandes hidrelétricas da
região. E se colocaram noutro padrão de exigência em relação às
autoridades públicas municipais, estaduais e nacionais. Agora, querem
também estabelecer outro padrão educacional para seus filhos e filhas.
Para isso, querem contar com a nossa participação, como educadores
da escola.

Aproveitemos este espaço importante que conquistamos no


poder público municipal em Santa Maria da Boa Vista, o reconhecimento
público das lutas dos trabalhadores rurais junto com educadores das
comunidades rurais, para nos colocarmos junto com estes na construção
de outro padrão educacional, comprometido com as causas de nosso
povo da região.

Clarice Aparecida dos Santos


Mestre em Educação do Campo pela UnB e
Coordenadora Nacional do Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 9


10 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
APRESENTAÇÃO

Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite
a manhã já vai chegar.
Thiago de Mello

É com muita alegria e, principalmente, compromisso com


uma Educação de qualidade, que nós da Prefeitura Municipal
de Santa Maria da Boa Vista-PE, por meio da Secretaria de
Educação e da Coordenação de Educação do Campo,
apresentamos a “Coleção Cadernos Temáticos". Esta Coleção
que aqui inauguramos tem por objetivo contribuir na formação
dos educadores e educadoras com temáticas importantes que
permitem diálogos pedagógicos na perspectiva de socializar e
refletir sobre as práticas educativas nas escolas da rede municipal
de ensino.

Esse primeiro número intitulado de “Educação do


Campo: Semiárido, Agroecologia, Trabalho e Projeto Político
Pedagógico” reúne uma coletânea de textos e artigos sobre
temáticas que são relevantes para o aprofundamento e debate
por parte dos educadores, gestores que atuam na Educação do
Campo nas diversas comunidades de Santa Maria da Boa Vista.

O presente caderno nasce fruto de um trabalho que estamos


desenvolvendo em nosso município em torno da Educação do
Campo e tem por objetivos: a) subsidiar os debates sobre
Educação do campo nas escolas públicas vinculadas ao sistema
municipal de ensino; b) contribuir com o processo permanente
de formação dos educadores/as do campo e c) oportunizar
momentos de reflexão e compreensão do significado da escola
no campo, bem como das relações econômicas, sociais e políticas
que se desenvolvem neste território.

O primeiro texto, Educação do Campo: notas para uma análise


de percurso, da Profa. Dra. Roseli Carldart, traz presente um
balanço político pedagógico da Educação do Campo, debate que
já passa de uma década. A mesma situa para o leitor como se
deu a constituição originária da Educação do Campo, aprofunda

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 11


a concepção e aponta desafios.

O segundo, O Semiárido brasileiro, da Profa. Dra. Silvana Lima,


aborda a questão do semiárido sobre a perspectiva de entender o
conteúdo da questão regional hoje e a formação sócio-econômica do
semiárido nordestino. Para isso, contextualiza esse debate na história
e no modelo de desenvolvimento excludente que foi implantado na
região Nordeste.

O terceiro, O Trabalho como processo educativo/formativo, do Prof.


Erivan Hilário, nos dá uma visão geral da concepção de trabalho
enquanto dimensão que possibilita processos de aprendizados
fundamentais para a formação do ser humano. Para isso, situa
historicamente o trabalho e traz presente de maneira breve a
problemática em torno do trabalho infantil.

O quarto, Agroecologia e Educação do Campo, dos Professores


Aloísio Souza da Silva e Leandro Feijó Fagundes, traz presente as
principais transformações ocorridas na agricultura, destacando os
processos de industrialização, bem como desenvolvendo reflexão em
torno da concepção da Agroecologia a partir de um debate teórico-
prático. Por fim, fazem um análise sobre Educação do Campo,
Agroecologia e território camponês.

O quinto, Projeto Político Pedagógico: possibilidades das escolas do/


no campo, da Doutoranda Joelma de Oliveira Albuquerque e da Profa.
Dra. Nair Casagrade aborda o PPP como Plano de Vida, como uma
construção coletiva que deve necessariamente ter a participação de
todos e todas que estão envolvidos no processo político pedagógico
das Escolas do Campo.

Poemas para caminhada é uma parte deste Caderno que criamos


para oportunizar o acesso a poemas, poetas e poetizas que eternizaram
suas obras ao longo da nossa história. Vai desde poetas nordestinos,
como o camponês Patativa do Assaré, a nomes como o de Cora
Coralina e do Dramaturgo Alemão Bertold Brecht.

Por fim, disponibilizamos documentos e resoluções sobre a


Educação do Campo, desde as Diretrizes para Educação Básicas nas
Escolas do Campo ao documento final do nosso I Seminário Municipal
de Educação do Campo.

Esperamos, assim, que este caderno possa contribuir na


formação de todos e todas. Ele não é um material para estudo

12 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


individual e, sim, para que nossas Escolas, ao reunir os seus Coletivos de
Educadores e Educadoras, possam planejar com carinho o Estudo e debate
de cada texto que aí está. Que possamos seguir avançando na construção
cotidiana de uma Educação de qualidade para toda população do nosso
município.

Um bom estudo, debate e reflexão.

Abraços fraternos,

Leandro Rodrigues Duarte


Prefeito

Neuma Maria de Vasconcelos Freitas


Secretaria Municipal de Educação

Santa Maria da Boa Vista - PE


Setembro de 2010

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 13


14 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
Educação do Campo:
notas para uma análise de percurso*

Roseli Salete Caldart

Coordenadora da Unidade de Educação Superior do Instituto


Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra) e
integrante da equipe de coordenação pedagógica do curso de
Licenciatura em Educação do Campo, parceria entre Iterra e
Universidade de Brasília. Doutora em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 15


O sentido do nosso movimento não é anterior à nossa intervenção:
é instaurado por nós, dentro dos limites que nos são impostos
pelo quadro em que nos inserimos.
Leandro Konder, 2003

Discutir sobre a Educação do Campo politicamente diferentes ou mesmo


hoje, e buscando ser fiel aos seus objetivos contrapostos? Qual o movimento do real
de origem, nos exige um olhar de provocado ou expresso pela Educação do
totalidade, em perspectiva, com uma Campo que incomoda e já instiga debates
preocupação metodológica sobre como sobre sua significação: que tipo de
interpretá-la, combinada a uma práticas e de políticas podem mesmo ser
preocupação política, de balanço do designadas como tal? Por que Educação
percurso e de compreensão das tendências do Campo e não Educação Rural? E, afinal,
de futuro para poder atuar sobre elas. qual o balanço deste movimento da
realidade? E qual o significado histórico
É momento de perguntar, passados que já é possível apreender da emergência
10 anos deste “batismo”: que objeto de da Educação do Campo no contexto da
estudo, de práticas, de política é este que educação brasileira contemporânea e das
atende pelo nome de “Educação do lutas dos trabalhadores, do campo e da
Campo”? Tratamos de qual realidade e em cidade, por uma educação emancipatória
qual contexto ou sobre “que movimento e e, mais amplamente, pela superação das
em que quadro”? Por que a Educação do relações sociais capitalistas?
Campo já se configura como um fenômeno
da realidade brasileira que exige tomada Sem dúvida nossa retrovisão
de posição, prática e teórica? Por que tem histórica é ainda muito pequena para dar
causado desconforto em segmentos conta de uma análise mais profunda do

* Notas iniciadas a propósito do II Encontro Nacional de Pesquisa sobre Educação do Campo, Brasília/DF, 6 a 8 de agosto 2008 e
concluídas a partir da exposição feita no minicurso sobre Educação do Campo na 31ª Reunião Anual da ANPED, programação do
Grupo de Trabalho Movimentos Sociais e Educação, Caxambu 20 e 21 de outubro de 2008 e para debate no Coletivo Nacional de
Educação do MST em reunião realizada de 11 a 14 de novembro 2008, Guararema, SP. Elaboração concluída em novembro 2008.

16 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


processo de construção prático-teórica da Busco desenvolver este texto na
Educação do Campo. Mas a necessidade perspectiva de construção de uma chave
de tomada de posição imediata e de um metodológica para interpretação do
pensamento que ajude a orientar uma percurso e da situação atual da Educação
intervenção política na realidade de que do Campo, orientando-me por dois
trata nos exige pelo menos uma pressupostos teóricos bem antigos, do
aproximação analítica nesta perspectiva. nosso velho camarada Marx: o primeiro é
Vivemos em um tempo de urgências: o de buscar compreender o “movimento”
densas e radicais como são as questões da e os “aspectos contraditórios” do real,
vida concreta, de pessoas concretas, muito mais do que afirmar e repetir
especialmente as questões de “vida por um obstinadamente princípios abstratos
fio”, nos seus vários sentidos. E não (Lefebvre,1981), o que me parece ainda
estamos fazendo esta discussão sobre o mais importante se o que pretendemos é
percurso da Educação do Campo em um justamente tomar posição diante de
momento qualquer, mas exatamente no questões relacionadas à transformação da
momento onde estas urgências eclodem realidade. E o segundo é o da crítica como
em um cenário de crise estrutural da perspectiva metodológica ou como guia
sociedade capitalista, o que se de um lado da interpretação teórica. Crítica aqui não
dificulta ainda mais uma análise objetiva, no sentido simplificado de denúncia de
de outro nos instiga a balanços projetivos uma determinada situação, mas sim de
que possam ajudar a reorganizar nossa
leitura rigorosa do atual estado de coisas, ou
atuação política diante de velhos e novos
do movimento real de sua transformação 2.
cenários1.
O momento me parece propício
Podemos dizer sobre a Educação do
para retomada destes pressupostos, tanto
Campo, parafraseando Emir Sader
pelo embate geral de idéias ou de
(prefácio a Mészáros, 2005, pág. 15) que
referenciais de interpretação da realidade
sua natureza e seu destino estão
que tende a ficar mais forte neste período
profundamente ligados ao destino do
trabalho no campo e, conseqüentemente, de crise, como pela particularidade da
ao destino das lutas sociais dos situação atual da Educação do Campo. Há
trabalhadores e da solução dos embates de hoje uma diversidade de sujeitos sociais
projetos que constituem a dinâmica atual que se colocam como protagonistas da
do campo brasileiro, da sociedade Educação do Campo, nem sempre
brasileira, do mundo sob a égide do orientados pelos mesmos objetivos e por
capitalismo em que vivemos. E ainda que concepções consonantes de educação e de
“muitos não queiram”, esta realidade campo, o que exige uma análise mais
exige posição (teórica sim, mas sobretudo rigorosa dos rumos que estas ações
prática, política) de todos os que hoje sinalizam.
afirmam trabalhar em nome da Educação
do Campo. De outro lado, começam a surgir,
especialmente no mundo acadêmico,

1
Este texto está sendo finalizado no momento em que a Via Campesina, movimento mundial de organizações camponesas, ao
divulgar os documentos finais de sua V Conferência Internacional, realizada em Maputo, Moçambique, de 19 a 22 de outubro de
2008, reafirma diante da crise global do sistema capitalista seu compromisso de resistência e de luta pela vida e pela agricultura
camponesa, definindo a soberania alimentar e a Reforma Agrária genuína e integral como bandeiras de luta fundamentais para o
enfrentamento da crise desde a perspectiva da classe trabalhadora. “Aqui estamos nós, camponeses e camponesas do mundo, e nos
negamos a desaparecer“. Soberania Alimentar já! Com a luta e a unidade dos povos! (Carta de Maputo, outubro 2008). Como a Educação
do Campo se moverá em relação a esta agenda política?
2
Sobre a crítica como princípio metodológico em Marx, tomo por base especialmente a interpretação de Enguita, 1993.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 17


algumas interpretações sobre o fenômeno se desenvolve hoje no campo brasileiro,
da Educação do Campo, que têm ficado em todas as dimensões de sua realidade.
excessivamente centradas nos discursos de
determinados sujeitos, priorizando a Este “fio de navalha” precisa ser
discussão lógica do uso ou da ausência de analisado, pois, no terreno das tensões e
conceitos ou de categorias teóricas, contradições e não das antinomias, estas
buscando identificar as contradições no últimas muito mais próprias ao mundo
plano das idéias ou, ainda mais das idéias do que ao plano da realidade
restritamente, no plano dos textos concreta, das lutas pela vida real em uma
produzidos com esta identificação de sociedade como a nossa: sim! a Educação
Educação do Campo. Estes exercícios
do Campo toma posição, age, desde uma
analíticos são importantes, desde que não
particularidade e não abandona a
se descolem da materialidade objetiva dos
perspectiva da universalidade, mas
sujeitos, humanos e coletivos, que
disputa sua inclusão nela (seja na
constituíram e fazem no dia a dia a luta
pela educação da classe trabalhadora do discussão da educação ou de projeto de
campo. Existem sim tensões de concepções sociedade). Sim! ela nasce da “experiência
teóricas entre os sujeitos hoje envolvidos de classe” de camponeses organizados em
com a Educação do Campo e é importante Movimentos Sociais e envolve diferentes
apreendê-las, discuti-las, mas não podemos sujeitos, às vezes com diferentes posições
perder de vista que os parâmetros do de classe. Sim! a Educação do Campo
debate das idéias devem ser dados pela inicia sua atuação desde a radicalidade
análise do movimento da realidade pedagógica destes Movimentos Sociais e
concreta, sob pena de não participarem dele entra no terreno movediço das políticas
ou, pior, ajudarem a fortalecer posições públicas, da relação com um Estado
políticas conservadoras, sobre o campo e comprometido com um projeto de
sobre a educação dos trabalhadores. sociedade que ela combate, se coerente for
com sua materialidade e vínculo de classe
Em síntese o que gostaria de de origem. Sim! a Educação do Campo tem
defender/reafirmar é a necessidade e a se centrado na escola e luta para que a
importância, política, teórica, de concepção de educação que oriente suas
compreender este fenômeno chamado de práticas se descentre da escola, não fique
Educação do Campo em sua historicidade, refém de sua lógica constitutiva,
o que implica em buscar apreender as exatamente para poder ir bem além dela
contradições e tensões que estão na enquanto projeto educativo. E uma vez
realidade que a produziu e que a move, e
mais, sim! a Educação do Campo se coloca
que ela ajuda a produzir e mover; que
em luta pelo acesso dos trabalhadores ao
estão no “estado da coisa”, afinal, e não
conhecimento produzido na sociedade e
apenas nas idéias ou entre idéias sobre o
ao mesmo tempo problematiza, faz a
que dela se diz.
crítica ao modo de conhecimento
Entendo que uma das características dominante e à hierarquização
constitutivas da Educação do Campo é a epistemológica própria desta sociedade
de se mover desde o início sobre um “fio que deslegitima os protagonistas
de navalha”, que somente se consegue originários da Educação do Campo como
compreender pela análise das contradições produtores de conhecimento e que resiste
reais em que está envolvida e que, nunca a construir referências próprias para a
é demais repetir, não são as contradições solução de problemas de uma outra lógica
do território estrito da pedagogia, mas da de produção e de trabalho que não seja a
luta de classes, particularmente de como do trabalho produtivo para o capital.

18 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Neste texto busco exercitar essa interpretação da constituição de origem da
perspectiva metodológica de compreen- Educação do Campo3:
der o movimento real da Educação do
Campo, discutindo-o através de três
questões que me parecem importantes na A Educação do Campo como
constituição dessa análise, ainda que aqui Crítica
as aborde sem a pretensão de esgotá-las
nem de já estar dando-lhes o tratamento A Educação do Campo nasceu
teórico necessário. A primeira questão diz como crítica à realidade da educação
respeito à constituição originária, material, brasileira, particularmente à situação
prática da Educação do Campo. A educacional do povo brasileiro que
segunda trata de apreender algumas trabalha e vive no/do campo.
tensões e contradições principais do seu
percurso e a terceira, pensando que é Esta crítica nunca foi à educação em
preciso incidir nos rumos da ação política si mesma porque seu objeto é a realidade
com a urgência que nosso tempo nos dos trabalhadores do campo, o que
coloca, se relaciona ao esforço de necessariamente a remete ao trabalho e ao
identificar alguns impasses e desafios do embate entre projetos de campo que têm
momento atual da Educação do Campo. conseqüências sobre a realidade
educacional e o projeto de país. Ou seja,
precisamos considerar na análise que há
Na seqüência algumas notas sobre
uma perspectiva de totalidade na
cada uma das três questões, no intuito
constituição originária da Educação do
principal de provocar um debate que nos
Campo.
dê indicações para uma construção mais
coletiva desta chave de leitura.
E tratou-se primeiro de uma crítica
prática: lutas sociais pelo direito à
educação, configuradas desde a realidade
Sobre a constituição originária da
da luta pela terra, pelo trabalho, pela
Educação do Campo igualdade social, por condições de uma
vida digna de seres humanos no lugar em
Ainda não fizemos uma narrativa que ela aconteça. É fundamental
escrita e refletida dessa história com mais considerar para compreensão da
rigor de detalhes (desafio de pesquisa). Há constituição histórica da Educação do
registros esparsos, fragmentados. E já há Campo o seu vínculo de origem com as
versões que alteram seus sujeitos lutas por educação nas áreas de Reforma
principais, deslocando o protagonismo Agrária 4 e como, especialmente neste
dos Movimentos Sociais, dos camponeses, vínculo, a Educação do Campo não nasceu
colocando a Educação do Campo como um como uma crítica apenas de denúncia: já
continuum do que na história da educação surgiu como contraponto de práticas,
brasileira se entende por educação rural construção de alternativas, de políticas, ou
ou para o meio rural. Nestas notas destaco seja, como crítica projetiva de
algumas idéias-força para nosso debate de transformações.

3
No texto “Sobre Educação do Campo” de outubro de 2007 desenvolvo um pouco mais o que chamo de “materialidade de
origem” da Educação do Campo.
4
Precisamos ter presente que a educação na Reforma Agrária, especialmente nas práticas e reflexões do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), não pode ser vista hoje como outra coisa, mas é sim uma particularidade dentro do próprio movimento
da Educação do Campo; só que não é qualquer particularidade porque é justamente a sua materialidade de origem e hoje o que
representa a explicitação mais forte da perspectiva de luta e de identidade de classe para a Educação do Campo.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 19


Uma crítica prática que se fez teórica uma crítica de perspectiva materialista6, o
ou se constituiu também como confronto que inclui uma exigência de análise
de idéias, de concepções, quando pelo objetiva: qual o balanço crítico que
“batismo” (nome) assumiu o contraponto: fazemos da realidade educacional das
Educação do Campo não é Educação famílias trabalhadoras do campo,
Rural, com todas as implicações e passados dez anos deste movimento de
desdobramentos disso em relação a lutas e de práticas de Educação do
paradigmas que não dizem respeito e nem Campo? Esta análise pode também ser
se definem somente no âmbito da desdobrada nas questões específicas sobre
educação5. as quais a crítica da Educação do Campo
tem se voltado: que crítica tem sido
A Educação do Campo surgiu em afirmada no debate da Educação do Campo
um determinado momento e contexto sobre a formação de educadores, sobre a
histórico e não pode ser compreendida em educação profissional, sobre o desenho
si mesma, ou apenas desde o mundo da pedagógico das escolas do campo, sobre
educação ou desde os parâmetros teóricos os objetivos e conteúdos da educação dos
da pedagogia. Ela é um movimento real camponeses,...? Até que ponto as questões
de combate ao atual estado de coisas: da realidade da educação dos camponeses,
movimento prático, de objetivos ou fins dos trabalhadores do campo, têm
práticos, de ferramentas práticas, que efetivamente pautado o debate da
Educação do Campo entre seus principais
expressa e produz concepções teóricas,
sujeitos: Movimentos Sociais, Governos e
críticas a determinadas visões de educação,
Instituições Educacionais (especialmente
de política de educação, de projetos de
as Universidades)?
campo e de país, mas que são
interpretações da realidade construídas
em vista de orientar ações/lutas concretas.
Os Movimentos Sociais como
protagonistas da Educação do Campo
É então desde esse parâmetro que a
Educação do Campo deve ser analisada e Os protagonistas do processo de
não como se fosse um ideal ou um ideário criação da Educação do Campo são os
político-pedagógico a ser implantado ou ao movimentos sociais camponeses em
qual a realidade da educação deve se “estado de luta”, com destaque aos
sujeitar. Talvez isso incomode a alguns: a movimentos sociais de luta pela Reforma
Educação do Campo não é uma proposta Agrária e particularmente ao MST.
de educação. Mas enquanto crítica da
educação em uma realidade historicamente O vínculo de origem da Educação
determinada ela afirma e luta por uma do Campo é com os trabalhadores “pobres
concepção de educação (e de campo). do campo”, trabalhadores sem-terra, sem
trabalho, mas primeiro com aqueles já
Para analisar um fenômeno que se dispostos a reagir, a lutar, a se organizar
constitui como uma crítica material a um contra “o estado da coisa”, para aos poucos
determinado estado de coisas, nada mais buscar ampliar o olhar para o conjunto dos
próprio, pois, do que buscarmos construir trabalhadores do campo.

5
Para uma análise histórica da educação rural e o que representa é importante uma retomada dos documentos principais da
articulação nacional por uma Educação do Campo e suas referências bibliográficas principais, a começar pelo texto de Calazans,
Maria Julieta Costa. Para compreender a educação do Estado no meio rural – traços de uma trajetória, (Therrien e Damasceno, 1993).
6
“... a crítica há de se construir sobre a base de que não existem nem o homem abstrato, nem o homem em geral, mas o homem que
vive dentro de uma dada sociedade e num dado momento histórico, que está determinado pela configuração social e pelo
desenvolvimento histórico concretos, independentemente de que, por sua vez, possa e deva atuar sobre eles” (Enguita, 1993, p. 79).

20 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Talvez esta seja a marca mais campo, dos camponeses, pedagogia do
incômoda da Educação do Campo oprimido... Um do que não é dado, mas que
(inclusive para certas ortodoxias de precisa ser construído pelo processo de
esquerda) e sua grande novidade histórica: formação dos sujeitos coletivos, sujeitos
os sujeitos que põe em cena como que lutam para tomar parte da dinâmica
construtores de uma política de educação social, para se constituir como sujeitos
e de uma reflexão pedagógica. É como se políticos, capazes de influir na agenda
ouvíssemos de diferentes lugares políticos política da sociedade. Mas que representa,
interpelações como as seguintes (ainda que nos limites “impostos pelo quadro em que
nem sempre ditas nestes termos): se insere”, a emergência efetiva de novos
educadores, interrogadores da educação,
“Como assim desgarrados da terra”, da sociedade, construtores (pela luta/
“como assim levantados do chão”7 exigindo pressão) de políticas, pensadores da
direitos, cobrando políticas específicas, discutindo pedagogia, sujeitos de práticas.
educação, produzindo conhecimento? Puxando
a frente das lutas, buscando transformação Do ponto de vista metodológico e
social? Então os camponeses também querem de balanço político é importante não
estudar? E pretendem conceber sua escola, seus perder a questão que nos pode ajudar
cursos? Discutir com professores de numa análise em perspectiva: o que já
Universidade? houve de semelhante na história da
educação brasileira e o que isso projeta em
“Só podem ser baderneiros, bandidos,
relação às tendências da educação do
terroristas...”
futuro? E para a análise do momento atual
é preciso perguntar sobre as tendências de
“Mas alguém já não disse que camponeses
avanço ou de recuo do protagonismo dos
são sempre reacionários e não são capazes de se
Movimentos Sociais no mover-se da
organizar e agir como classe?”
Educação do Campo hoje.
E o proletariado, a classe operária, os
partidos políticos que deveriam lhes dar direção?
Como ousam agir politicamente em nome da A Educação do Campo continua
classe trabalhadora?” uma tradição pedagógica emancipatória

Talvez seja este protagonismo que A Educação do Campo,


o percurso da Educação do Campo, feito fundamentalmente pela práxis pedagógica
desde as condições objetivas do dos Movimentos Sociais, continua e pode
desenvolvimento histórico concreto, ajudar a revigorar a tradição de uma
questiona/tensiona e que tantos buscam educação emancipatória, retomando
deslocar, ainda que com objetivos em tese questões antigas e formulando novas
politicamente contrários: deslocar dos interrogações à política educacional e à
movimentos sociais, dos trabalhadores, dos teoria pedagógica. E faz isso, diga-se
camponeses, dos oprimidos... novamente, menos pelos ideais
pedagógicos difundidos pelos seus
Na sua origem, o “do” da Educação diferentes sujeitos e mais pelas tensões/
do Campo tem a ver com esse contradições que explicita/enfrenta no seu
protagonismo: não é “para” e nem mesmo movimento de crítica material ao atual
“com”: é dos trabalhadores, educação do estado de coisas.

7
As expressões “como assim”, “desgarrados da terra” e “levantados do chão” se referem à indagação irônica da poesia militante
de Chico Buarque de Holanda na canção “Levantados do Chão” feita para o MST, também homenageando a obra de José
Saramago e a exposição “Terra” do fotógrafo Sebastião Salgado.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 21


A Educação do Campo retoma a pedagogia moderna liberal, para que o
discussão e a prática de dimensões ou capital pudesse “educar” mais livremente
matrizes de formação humana que as pessoas em outras esferas (uma
historicamente constituíram as bases, os armadilha em que muitos pedagogos de
pilares da pedagogia moderna mais esquerda também caíram). É preciso
radicalmente emancipatória, de base pensar a escola sim, e com prioridade, mas
socialista e popular e de referencial sempre em perspectiva, para que se possa
teórico marxista, trazendo de volta o transformá-la profundamente, na direção
sentido de uma “modernidade da de um projeto educativo vinculado a
libertação” (Wallerstein, 2002, pág. 133-
práticas sociais emancipatórias mais
50). Refiro-me como pilares ao vínculo
radicais8.
entre educação e trabalho, (não como
“preparação para” da pedagogia liberal,
mas como “formação desde” da pedagogia Parece, aliás, que essa relação da
socialista), à centralidade dada à relação Educação do Campo com a escola
entre educação e produção (“nos mesmos incomoda a alguns: nasceu lutando por
processos que produzimos nos escolas e escolas públicas (através do MST
produzimos como ser humano”), ao fazendo a luta por escolas nos
vínculo entre educação e cultura, educação acampamentos e assentamentos), continua
e valores éticos; entre conhecimento e centrada nisso, e ao mesmo tempo nasceu,
emancipação intelectual, social, política desde a radicalidade da Pedagogia dos
(conscientização). Trata-se, afinal, de Movimentos Sociais, afirmando que
recolocar para discussão da pedagogia a educação é mais do que escola...,
concepção da práxis como princípio vinculando-se a lutas sociais por uma
educativo, no sentido de constituidora humanização mais plena: luta pela terra,
fundamental do ser humano (Marx). pelo trabalho, pela desalienação do
trabalho, a favor da democratização do
E esta retomada vem exatamente da acesso à cultura e a sua produção, pela
exigência do pensar a especificidade: participação política, pela defesa do meio
considerar a realidade do campo na
ambiente...
construção de políticas públicas e de
pedagogia significa considerar os sujeitos
Desde os Movimentos Sociais a
da educação e considerar a prática social
que forma estes sujeitos como seres Educação do Campo nasceu trazendo
humanos e como sujeitos coletivos. E não novas (e velhas) interrogações à política
pretender que a educação/a pedagogia educacional e à teoria pedagógica próprias
valha e se explique por e em si mesma. dos tempos “modernos” (isso também
incomoda a uns quantos).
Uma retomada que é também a
recuperação de uma visão mais alargada Do ponto de vista da política de
de educação, algo que já aparece como acesso à educação talvez o que mais
tendência de muitas práticas e reflexões incomode é a idéia do direito coletivo
neste novo século: não confundir versus a idéia liberal do direito individual.
educação com escola nem absolutizar a É só pensar na reação que hoje se manifesta
educação escolar, como fez no discurso a em relação às turmas do PRONERA9 em

8
Aqueles que defendem a educação na perspectiva da classe trabalhadora, mas que sem vacilação acreditam ainda hoje que dizer
educação é igual a dizer escola (ou que a escola é a referência necessária para pensar qualquer processo educativo mais avançado)
sentem-se desconfortáveis em relação à Educação do Campo. E que bom que seja assim. Porque se o do campo for entendido como
um tipo específico de escola poderá justificar estragos consideráveis na educação dos trabalhadores (sentido que certamente não
corresponde à visão dos próprios trabalhadores em questão).
9
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, criado em 1998, no mesmo contexto de luta dos Movimentos Sociais que
constituíram a Educação do Campo.

22 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


diversos setores da sociedade. O coletivo Paulo Freire, na sua Pedagogia do
pressiona mais o sistema e sendo este Oprimido11.
coletivo originário dos pobres do campo
volta a reação: “como assim?” E o direito Que implicações esta experiência
coletivo interroga com mais força o formativa de quem participa de
conteúdo das políticas e da própria Movimentos Sociais traz no pensar uma
educação. Não é qualquer acesso. Não é pedagogia emancipatória e com objetivos
qualquer formação. Ou seja, a Educação do de formar os sujeitos da transformação
Campo ao tratar de uma especificidade, e social? Que lições de pedagogia é possível
pelo jeito de fazê-lo, configura-se como apreender da vivência em processos de
uma crítica à forma e ao conteúdo do que luta social e organização coletiva para
se entende ser uma política pública e ao diferentes práticas pedagógicas, inclusive
modo de construí-la em uma sociedade aquelas desenvolvidas na escola?
cindida socialmente como a nossa.
2ª) O vínculo entre educação e
Do ponto de vista da teoria trabalho, central na concepção de uma
pedagógica há interrogações importantes educação emancipatória, e na própria
que merecem ser aqui ao menos concepção da práxis como princípio
brevemente indicadas: educativo, quando se desdobrou na
reflexão específica sobre uma pedagogia
1ª) Os Movimentos Sociais do trabalho, teve como objeto central de
trouxeram a discussão sobre a sua reflexão teórica o trabalho na sua forma
dimensão educativa. Os Movimentos urbano-industrial (Gramsci, Makarenko,
Sociais Camponeses vêm formulando a Pistrak,...). Da mesma forma hoje, quando
reflexão sobre uma “Pedagogia do se reflete sobre integração entre educação
Movimento”10, afirmando a luta social e a básica e formação específica para o
organização coletiva (constituidoras do trabalho, o olhar se coloca para a lógica
Movimento Social) como matrizes do trabalho que predomina nas cidades.
formadoras. Essa formulação em boa
medida já está em Marx na sua concepção A Educação do Campo ao retomar
de práxis ao mesmo tempo como produção esta reflexão sobre a relação entre
e transformação do mundo (que tem no educação e trabalho se pergunta e
trabalho sua centralidade, mas que vai interroga a teoria pedagógica: o que
além dele), porém não tinha sido significa pensar a relação educação e
desdobrada/elaborada pela área da trabalho, e fundamentalmente os
pedagogia (que se centrou mais na reflexão processos de formação humana ou de
sobre o trabalho e a cultura), a não ser produção do ser humano, tendo por base
indiretamente, com outra nuance, em os processos produtivos e as formas de

10
Considerar que a Pedagogia do Movimento foi na origem da Educação do Campo sua mediação fundamental, enquanto
concepção pedagógica, de educação.
11
Desenvolvo uma reflexão sobre a Pedagogia do Movimento e sua relação com a concepção de práxis como princípio educativo
no texto “Teses sobre a Pedagogia do Movimento” (2005): na concepção da “práxis como princípio educativo” em Marx cabem
diferentes matrizes pedagógicas: o trabalho, a cultura, a luta social, a organização coletiva. E seu raciocínio nos ajuda a compreender
que nenhuma matriz pedagógica deve ser vista isoladamente ou deve ser absolutizada como matriz central ou única (de uma vez
para sempre, a qualquer tempo e lugar); nenhuma das matrizes tem força material suficiente para dar conta sozinha da complexidade
(que se revela cada vez maior) da formação humana. O ser humano se forma pela ação combinada, que às vezes é também
contraditória, de diferentes matrizes pedagógicas; dependendo das circunstâncias a influência principal pode vir de uma ou de
outra matriz, mas nunca a educação de uma pessoa, ou de um coletivo, será obra de um único sujeito pedagógico. É verdade que
existem diferenças de natureza entre as matrizes formadoras. O trabalho é a prática social básica de constituição do ser humano
(embora não a esgote) e para Marx tem centralidade na própria conformação da práxis.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 23


trabalho próprias do campo? Qual a produção do conhecimento, implicando em
potencialidade formadora e deformadora outras lógicas de produção e superando a
das diferentes formas de trabalho visão hierarquizada do conhecimento
desenvolvidas atualmente pelos própria da modernidade capitalista. As
trabalhadores do campo? E que questões hoje da construção de um novo
conhecimentos são produzidos por estes projeto/modelo de agricultura, por
trabalhadores (e são deles exigidos no exemplo, não implicam somente no acesso
trabalho) que se subordinam à lógica da dos trabalhadores do campo a uma ciência
agricultura industrial e de negócio e, no e a tecnologias já existentes. Exatamente
contraponto, por aqueles que hoje porque elas não são neutras. Foram
assumem o desafio de reconstrução produzidas desde uma determinada lógica,
prática de uma outra lógica de agricultura, que é a da reprodução do capital e não a do
a agricultura camponesa do século XXI, trabalho. Esta ciência e estas tecnologias não
que tenha como princípios organizadores devem ser ignoradas, mas precisam ser
a soberania alimentar, o direito dos povos superadas, o que requer uma outra lógica
às sementes e à água, a agroecologia, a de pensamento, de produção do
cooperação agrícola? No âmbito específico conhecimento. No caso do desafio atual em
da discussão sobre formação profissional, relação à agricultura camponesa,
por exemplo, pensar na lógica da efetivamente não se trata de “extensão”, mas
agricultura camponesa não é pensar em de “comunicação” (Freire, 2001) com e entre
um trabalho assalariado, que é a forma os camponeses para produzir o
desde a qual se pensa hoje, inclusive do conhecimento necessário.
ponto de vista crítico, (nos debates do
médio integrado desde a concepção da Esta compreensão sobre a
politecnia), a questão da formação dos necessidade de um “diálogo de saberes”
trabalhadores para sua inserção nos está em um plano bem mais complexo do
processos produtivos. que afirmar a valorização do saber
popular, pelo menos na discussão
3ª) Na reafirmação da importância da simplificada que predomina em meios
democratização do conhecimento, do acesso educacionais e que na escola se reduz por
da classe trabalhadora ao conhecimento vezes a um artifício didático vazio. O que
“historicamente acumulado”, ou produzido precisa ser aprofundado é a compreensão
na luta de classes, a Educação do Campo da teia de tensões envolvida na produção
traz junto uma problematização mais radical de diferentes saberes, nos paradigmas de
sobre o próprio modo de produção do produção do conhecimento. E do ponto
conhecimento, como crítica ao mito da de vista metodológico isso tem a ver com
ciência moderna, ao cognitivismo, à uma reflexão necessária sobre o trabalho
racionalidade burguesa insensata; como pedagógico que valorize a experiência dos
exigência de um vínculo mais orgânico entre sujeitos (Thompson) 12 e que ajude na
conhecimento e valores, conhecimento e reapropriação (teórica) do conhecimento
totalidade do processo formativo. (coletivo) que produzem através dela,
A democratização exigida, pois, não colocando-se na perspectiva de
é somente do acesso, mas também da superação da contradição entre trabalho

12
Experiência aqui utilizada no sentido trabalhado por Thompson em suas obras, e particularmente no texto “Educação e
experiência” (2002).

24 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


manual e trabalho intelectual, que é respeito à concepção de escola e à
própria do modo de organização da discussão sobre uma “escola do campo”.
produção capitalista.
Novamente escutemos uma
Alguns intelectuais têm alertado interpelação freqüente: como assim uma
para o risco desta reflexão cair em uma “escola do campo”? Então a escola não é
espécie de relativização do conhecimento escola em qualquer lugar, em qualquer
ou da luta histórica da classe trabalhadora tempo, seja para quem for? E por que nunca
pelo acesso à ciência, ao conhecimento que se fala de uma “escola da cidade”? Por
ajuda a produzir pelo seu trabalho, mas acaso a Educação do Campo defende um
do qual é alienado. Há sim este risco de se tipo de escola diferente para as famílias
cair numa postura relativista, embora hoje dos trabalhadores do campo? E nosso
bem mais presente em determinados debate histórico sobre a escola unitária
posicionamentos intelectuais do que nas onde fica?
práticas e lutas concretas dos
trabalhadores. Porém é preciso perguntar Não. A crítica originária da
se negar a contradição produzida pelo Educação do Campo à escola (ou à
capitalismo no modo de produção do ausência dela) nunca defendeu um tipo
conhecimento, que absolutizou a ciência específico de escola para os trabalhadores
ou a racionalidade científica, ou uma forma do campo. Sua crítica veio em dois
dela, ao mesmo tempo em que a fez refém sentidos: - sim, a escola deve estar em todos
de uma lógica instrumental a serviço da os lugares, em todos os tempos da vida,
reprodução do capital e definiu para todas as pessoas. O campo é um lugar,
mecanismos de alienação do trabalhador seus trabalhadores também têm direito de
em relação ao próprio conhecimento que ter a escola em seu próprio lugar e a ser
produz pelo seu trabalho, não é um risco respeitados quando nela entram e não
ainda maior para nossos objetivos de expulsos dela pelo que são... Como lugar
superação do capitalismo. de educação a escola não pode trabalhar
“em tese”: como instituição cuja forma e
Do ponto de vista de um balanço conteúdo valem em si mesmos, em
projetivo da Educação do Campo nesta qualquer tempo e lugar, com qualquer
questão específica da tradição pedagógica pessoa, desenvolvendo uma “educação” a-
que assumiu continuar, é preciso histórica, despolitizada (ou falsamente
perguntar até que ponto esta mensagem despolitizada), asséptica...
está chegando aos educadores e às O “do campo”, neste caso, retoma a
educadoras do campo e se estas novas velha discussão sobre como fazer uma
interrogações estão entrando em alguma escola vinculada à “vida real”, não no
medida na agenda da elaboração teórica e sentido de apenas colada a necessidades e
do debate pedagógico da educação dos interesses de um cotidiano linear e de
trabalhadores de nosso tempo. superfície, mas como síntese de múltiplas
relações, determinações, como questões da
realidade concreta. Retoma a interrogação
Afirmação das Escolas do Campo sobre a necessidade/possibilidade de
vínculo da escola, de seu projeto
Uma questão específica colocada pedagógico, com sujeitos concretos na
pela Educação do Campo tanto à política diversidade de questões que a “vida real”
educacional como à teoria pedagógica diz lhes impõe. Uma escola cujos profissionais

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 25


sejam capazes de coordenar a construção que acontecem no campo, compreender
de um currículo que contemple diferentes como historicamente essa relação foi
dimensões formativas e que articule o formatada como sendo de oposição,
trabalho pedagógico na dimensão do exatamente para que se explicitem os
conhecimento com práticas de trabalho, termos sociais necessários à superação
cultura, luta social. 13 desta contradição.

Trata-se de uma reflexão que pode


nos ajudar a relembrar que continuamos sim Sobre as tensões/contradições do
defendendo e lutando pela escola unitária, percurso da Educação do Campo
mas que o unitário não pode ser um falso
É preciso considerar, como afirmei
universalismo (porque abstrato ou porque
no início destas notas, que o percurso é
de alguma forma “imperial”, ou seja, tratar
curto e nossa capacidade de retrovisão
de uma particularidade como se ela fosse
histórica por isso é ainda pequena. Mas
universal). O unitário é a “síntese do
talvez já seja possível identificar algumas
diverso” e o campo historicamente não tem
expressões importantes do movimento da
sido considerado nessa diversidade. Por
realidade, particularmente nestes 10 anos
isso já há quem afirme que hoje no Brasil a do “batismo”, ou seja, identificar as
construção da escola unitária passa pela principais tensões e contradições
Educação do Campo. constituidoras deste percurso, para tentar
perceber os principais desafios do
Como afirmou Walter Benjamin, e momento atual.
penso que vale para toda esta primeira
questão de compreensão da constituição Destaco dois grandes focos de
originária da Educação do Campo, a tensões ou de concentração das
verdade está na tensão entre o particular contradições: o primeiro e principal está
e o universal. Vale então frisar/reafirmar: na própria dinâmica do campo dentro da
a Educação do Campo não nasceu como dinâmica do capitalismo e do acirramento
defesa a algum tipo de particularismo, das contradições sociais que vem do
mas como provocação/afirmação desta movimento de expansão do capital,
tensão entre o particular e o universal: no brutalmente acelerado no campo nestes
pensar a transformação da sociedade, o últimos anos. O segundo diz respeito à
projeto de país, a educação, a escola... 14 relação tensa (que na sociedade capitalista
No mesmo raciocínio talvez seja não tem como não ser contraditória) entre
importante reafirmar também que as lutas Pedagogia do Movimento e políticas
e as práticas originárias da Educação do públicas, relação entre Movimentos Sociais
Campo nunca defenderam ou se com projeto de transformação da sociedade
colocaram na perspectiva de fortalecer a e Estado.
contradição inventada pelo capitalismo
entre campo e cidade. A questão é de Note-se que não se trata de
reconhecer a especificidade dos processos contradições da Educação do Campo em
produtivos e formadores do ser humano si mesma, ou criadas pelo seu movimento

13
Do ponto de vista do nosso balanço projetivo da Educação do Campo cabe perguntar se é essa a reflexão predominante hoje nas
assim chamadas “escolas do campo” ou como se move o debate pedagógico feito em torno delas, pelos seus diferentes sujeitos.
14
Não se confunda esta posição com a visão de um pós-modernismo que defende a eliminação do universal em favor do
particular, o que é a própria expressão da armadilha ideológica do neoliberalismo: cultuo o particular matando-o como possibilidade
de ser incluído no universal, já que supostamente a universalidade não mais importa...

26 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


específico, mas sim as contradições que sociais, mas também ambientais e
estando presentes no contexto de sua relacionadas ao futuro do planeta, da
origem foram delineando seu percurso, ao humanidade. O debate mundial que está
mesmo tempo que tem sido explicitadas e sendo feito hoje sobre a crise alimentar é
mexidas por ele. Por isso não podem emblemático, inclusive para mostrar a
deixar de ser consideradas na interpretação relação campo e cidade. 16
e no debate de balanço e projeção da
Educação do Campo. O agronegócio, representação
econômica e política do capital no campo,
tem feito também uma ofensiva de disputa
Educação do Campo e luta de ideológica na sociedade: “sim, dizem os
classes ‘empresários’ do campo, é preciso acabar com
o latifúndio improdutivo, mas através do
O desenvolvimento da Educação do agronegócio, da modernização da agricultura,
Campo acontece em um momento de do campo e não da Reforma Agrária e dos
potencial acirramento da luta de classes no Movimentos Sociais atrasados que ainda lutam
campo, motivado por uma ofensiva por ela: é o agronegócio que vai resolver os
gigantesca do capital internacional sobre problemas da produção de alimentos, de trazer
a agricultura, marcada especialmente pelo mais divisas ao país...” Mas por via das
controle das empresas transnacionais sobre dúvidas, os grandes proprietários não têm
ficado somente neste plano de luta:
a produção agrícola, que exacerba a
alegando que precisam de mais
violência do capital e de sua lógica de
“tranqüilidade para trabalhar” (explorar o
expansão sobre os trabalhadores, e
trabalho), têm promovido cada vez mais
notadamente sobre os camponeses15. No
investidas de criminalização dos
caso brasileiro, podemos observar como
Movimentos Sociais, ainda que nesse
esta lógica se realiza através de diferentes
contexto de enfraquecimento do pólo do
e combinados movimentos, apenas
trabalho, dos trabalhadores, suas lutas
aparentemente contraditórios entre si,
sejam hoje muito mais de resistência do
porque integram uma mesma lógica:
que de enfrentamento direto ao capital.
expulsa trabalhadores do campo ao Perigoso será se alguns setores da
mesmo tempo em que promete incluí-los sociedade passarem a escutar os
na modernidade tecnológica do Movimentos Sociais dando-se conta que a
agronegócio; subordina a todos, de defesa do meio ambiente, por exemplo,
alguma forma, ao modelo tecnológico que exige o combate à lógica de produção de
vem sendo chamado de “agricultura alimentos própria do agronegócio. Maior
industrial” e mantém seus territórios de perigo ainda se as organizações ou os
trabalho escravo. Movimentos Sociais aprofundarem sua
atuação sobre as contradições do modelo
A ofensiva do capital no campo atual, agora mais visíveis pela crise
(talvez mais violenta na proporção da mundial do capitalismo.
própria crise estrutural do capital) está
tornando mais explícitas as contradições do A lógica de expansão do capitalismo
sistema capitalista, contradições que são no campo, ou a lógica de pensar o campo

15
Uma análise da ofensiva das empresas transnacionais sobre a agricultura, já dentro dos marcos da crise recente do capital
financeiro pode ser encontrada no texto produzido por João Pedro Stedile, do MST, para a V Conferência Internacional da Via
Campesina, outubro 2008.
16
Algumas referências para este debate específico: Stedile, maio 2008, Carvalho, julho 2007 e Christoffoli, 2008.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 27


como lugar de negócio, não inclui, não através da nova geração “modernizar” as
precisa das “escolas do campo”, mas mentes para a nova “revolução verde”, a
parece já estar exigindo que a questão da dos transgênicos, da tecnologia
educação, e particularmente da educação “terminator”, da monocultura para
escolar dos trabalhadores do campo entre negócio, dos insumos químicos
(ou volte) à agenda política do país: industriais, da maquinaria agrícola
primeiro porque a chamada pesada, completamente submetida à lógica
“reestruturação produtiva” chegando da reprodução do capital. Em muitos
agora ao campo requer uma mão-de-obra estados este tipo de investida já tem se
mais qualificada, pequena é verdade (e materializado em materiais didáticos ou
não estritamente formada para o trabalho para-didáticos produzidos pelas próprias
agrícola em si), mas numa demanda que empresas, muitas vezes com recursos
já justifica o interesse dos “empresários públicos.
rurais” em discutir formação ou educação
profissional, reajustes na “vocação” das E se tudo isso puder acontecer com
escolas agrotécnicas, novos currículos mais facilidade e agilidade porque hoje
para os cursos de agronomia, cursos existe nos governos a “pasta” da Educação
superiores voltados diretamente à gestão do Campo, “viva a Educação do Campo”!
do agronegócio. Apenas é preciso tratar de afastá-la desses
agitadores pré-modernos, ou de Movimentos
Segundo, porque nesse contexto de Sociais como o MST, que ainda continuam
“modernização da agricultura”, onde a empunhando a bandeira da Reforma
chamada “agricultura familiar” deve se Agrária, da soberania alimentar e
inserir para sobreviver (“sobreviverão os energética, da biodiversidade, do respeito
melhores, os mais modernos”, é a ao meio ambiente...
afirmação) já não parece tão ruim que estes
agricultores tenham acesso à escolarização Nesse mesmo movimento da
básica: espécie de “exército de reserva” realidade há pelo menos outros dois
para as demandas das empresas que elementos importantes: aumentou a
comandam os negócios agrícolas: mas isso pressão dos Movimentos Sociais sobre o
sem excessos, é claro, porque afinal é setor público, cobrando especialmente o
sempre bom poder contar com a direito de acesso à escolarização pública,
alternativa do trabalho escravo em alguns básica e superior. Aumentou porque foram
lugares (!) e o Estado precisa dar entrando novos movimentos ou grupos
prioridade às demandas específicas do nessa pressão: outras organizações da Via
capital e não gastar recursos na construção Campesina Brasil (o Movimento dos
de um sistema público de educação no Atingidos por Barragens – MAB, o
próprio campo, que necessariamente Movimento das Mulheres Camponesas –
atenderia as demandas do pólo do MMC, O Movimento dos Pequenos
trabalho. Agricultores – MPA, a Pastoral da
Juventude Rural – PJR, A Comissão
Terceiro, onde afinal existirem Pastoral da Terra – CPT e a Federação dos
escolas para as famílias trabalhadoras do Estudantes de Agronomia – FEAB), o
campo seja pela pressão dos Movimentos movimento sindical do campo
Sociais ou por concessão de empresas (especialmente o vinculado à
“humanitárias”, elas podem ser (já foram Confederação Nacional dos Trabalhadores
em outros tempos) um bom veículo de da Agricultura – CONTAG e à Federação
difusão da ideologia do agronegócio: dos Trabalhadores da Agricultura Familiar

28 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


– FETRAF). E aumentou porque o trabalho específicos desta situação e que permitam
dos Movimentos Sociais e as suas pelo menos anunciar sua disposição de ter
conquistas destes anos, ainda que apenas algumas políticas nessa área17.
de políticas focais, como o PRONERA, por
exemplo, ajudaram a ampliar a consciência Este processo, nesses e noutros
do direito, mexer com o imaginário dos aspectos que precisam ser complementa-
camponeses: “pensando bem, não é verdade dos em um esforço de análise mais
que nós camponeses não precisamos de estudo e completa e rigorosa, talvez explique
que não podemos continuar estudando...” Além porque afinal a Educação do Campo
disso, há todo um trabalho específico com “vingou”, existe, entrou na agenda de
a militância, feito por alguns Movimentos Governos, Universidades, Movimentos
Sociais, sobre o dever de estudar para Sociais; virou questão, embora não tenha
poder compreender melhor a se tornado política pública, e menos ainda
complexidade do momento atual da luta política de Estado. Na prática, os governos
de classes. Por isso aumenta o número de têm combinado políticas focais
cursos de formação, em que pese o refluxo
(importantes) de ampliação do acesso à
organizativo e das lutas sociais de massa.
educação básica e de formação de
educadores do campo com a manutenção
O outro elemento diz respeito a
de políticas de fechamento de escolas ou
uma característica da sociedade brasileira
a retomada de programas alienígenas
que prima por discursos e documentos
como o da Escola Ativa, por exemplo.
avançados, no plano de um ideário
republicano e de uma democracia liberal,
ainda que na prática os desminta a todo Algo que precisamos aprofundar
momento: é assim que temos, por exemplo, em nosso debate é que a tendência de
o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) futuro, considerada a correlação de forças
políticas do movimento atual, parece ser
há 18 anos, elogiado no mundo inteiro, e
a de retrocesso ao outro pólo da
descumprido desavergonhadamente em
contradição, pelo menos do ponto de vista
cada esquina. É nesta mesma lógica que da política de governos: um retorno à
fica difícil afirmar publicamente que educação rural, ou seja, de uma política
determinada parcela da população tem sim para a educação dos trabalhadores do
menos direito à educação pública do que campo, frise-se, para eles, a serviço da nova
outros. Direito universal, individual fase do capitalismo no campo, o que
(virtual, é claro). E no caso da crítica de que significa dizer, voltada para os interesses
veio tratando a Educação do Campo nestes do “avanço do capitalismo financeiro e das
dez anos, há um ingrediente a mais: afinal empresas transnacionais sobre todos os
não fica bem para um país “emergente” aspectos da agricultura e do sistema
como o Brasil ter índices de analfabetismo alimentar dos países e do mundo” (Via
Campesina, 2008, pág. 1).
e de acesso à educação básica que são
“puxados para baixo” por “culpa” da
Será este então o principal balanço
população rural e, ainda pior, o governo dos dez anos de Educação do Campo: o
federal nem dispor de dados estatísticos que afinal conseguimos foi trazer de volta

17
Especialmente a partir de 2003 começaram iniciativas do governo federal para garantir levantamento de dados específicos sobre
a situação educacional da população do campo. A partir de 2005 as pesquisas do INEP (Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), vinculado ao Ministério da Educação, incluem também o recorte de dados sobre escolas
de assentamentos de Reforma Agrária.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 29


à agenda da política educacional do país do Campo diz respeito à relação entre
a educação rural, que na época da primeira Pedagogia do Movimento e política
Conferência Nacional de Educação do pública ou na relação entre Movimentos
Campo em 1998, já tinha sido descartada Sociais e Estado. Não é outro foco no
como “residual”, atrasada, pelos governos sentido que aconteça separado do
neoliberais mais autênticos? primeiro, bem ao contrário. A distinção
aqui é para olhar o mesmo movimento da
O que naquele período não era
realidade desde um outro ângulo,
possível enxergar como hoje, é que o quadro
relacionado aos sujeitos originários da
em que o debate da Educação do Campo
Educação do Campo.
estava se inserindo era o de transição de
modelos econômicos, que implicaria em um
rearranjo do papel da agricultura na A Educação do Campo se construiu
economia brasileira (capitalista), passando pela passagem da política produzida nos
a ter um lugar de maior destaque, só que Movimentos Sociais para o pensar/
pelo pólo do agronegócio e projetando uma pressionar pelo direito do conjunto dos
marginalização ainda maior da agricultura camponeses ou dos trabalhadores do
camponesa, da Reforma Agrária, ou seja, das campo. Isso implicou em um envolvimento
questões e dos respectivos sujeitos mais direto com o Estado na disputa pela
originários deste movimento18. Por isso formulação de políticas públicas
alguns aliados que conseguimos em 1998 específicas para o campo, necessárias para
para recolocar o rural na agenda do país não compensar a histórica discriminação e
são necessariamente aliados hoje na tomada exclusão desta população do acesso a
de posição sobre que rural deve estar na políticas de educação, como a tantas
agenda, inclusive da educação, entre o outras. No tipo de sociedade em que
projeto do agronegócio e o projeto da vivemos bem se sabe em que jogo político
agricultura camponesa, de convivência cada isso se insere, ou seja, em que correlação
vez menos possível no cenário de
de forças e opção de classe se move este
reprodução (desenfreada ou desesperada?)
Estado.
do capital.

Menos ainda podíamos saber A dimensão da política pública está


naquele momento que dez anos depois esta na própria constituição originária da
própria hegemonia estaria em crise e que Educação do Campo, mas sua
sua primeira expressão mais explosiva configuração e mesmo sua centralidade
diria respeito à questão dos alimentos, foi definida no processo, com a ampliação
explicitando que a ofensiva do capital sobre dos sujeitos envolvidos e das articulações
a agricultura está pondo em risco a políticas, e pelas novas possibilidades
possibilidade de alimentar o grande abertas por um governo federal como o
contingente de pessoas do nosso planeta. de Lula da Silva. Não por acaso é a II
Conferência Nacional de Educação do
Campo de 2004 que confirma a força
Pedagogia do Movimento e assumida pela luta por uma política
Política Pública pública de Educação do Campo, através
do lema aprovado pelos seus
O segundo grande foco de tensões participantes: “Educação do Campo:
e contradições no percurso da Educação direito nosso, dever do Estado”.

18
É importante ter presente que a Educação do Campo se desenvolve exatamente no período do capitalismo em que se consolida
o predomínio do capital monetário (ou “financeiro”) que, como nos ajuda a analisar Virgínia Fontes (2008), é uma forma bastante
peculiar de fusão dos diferentes tipos de capital (industrial, comercial, bancário) que traz implicações fundamentais sobre a
forma das relações sociais necessárias para a reprodução do capital e que atingem, particularmente hoje, a agricultura.

30 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


É importante ter presente uma Movimento, mas difícil de concretizar, que
sutileza que marca a Educação do Campo: é a de romper com corporativismos,
o MST desde o seu início lutou por escolas particularismos, interesses imediatos. Isso
públicas, mas até o momento de entrada implica em outro avanço, que é o de
na Educação do Campo não tinha colocado pensar o público recuperando o seu
em sua agenda de debates e de lutas a sentido originário de um espaço próprio
questão da política pública, de pensar a aos interesses do povo, da maioria da
educação para além de si mesmo, ou para população (e não como um lugar ou uma
além da esfera dos Movimentos Sociais, de política subordinada a um Estado de
pressionar o Estado a garantir direitos para classe); espaço, nesse sentido, de
o conjunto da população do campo, de democratização da participação política
buscar interferir, afinal, no desenho da (governo do povo). Para os Movimentos
política educacional brasileira. Sociais, lutar pela Educação do Campo é
passar a pensar na educação do conjunto
O percurso da Educação do Campo da classe trabalhadora e é buscar pautar
foi desenhando a dimensão da política dessa forma, em uma perspectiva de
pública como um dos seus pilares classe, a questão da política educacional.
principais, na tensão permanente de que E no específico de organizações como o
esta dimensão não “engolisse” a memória MST, significa passar a compreender que
e a identidade dos seus sujeitos originários, a ocupação da escola pelo Movimento
precisa ser feita/pensada como
tensão tanto mais acirrada pela lógica da
apropriação da escola pelos trabalhadores,
“política pequena” que domina o
pelo seu projeto histórico e não apenas
“gerenciamento” do Estado brasileiro, algo
pelos interesses imediatos da organização,
não de todo compreendido pelos
por mais justos, politizados e amplos que
Movimentos Sociais (agora talvez um
eles possam ser.
pouco mais do que antes...).
Entrar na disputa de forma e
Esta focalização de lutas, de conteúdo de políticas públicas, como
articulações, de práticas, em torno da buscam fazer os sujeitos da Educação do
política pública vem representando ao Campo, é de fato entrar em uma disputa
mesmo tempo um avanço e um recuo, um direta e concreta dos interesses de uma
alargamento e um estreitamento, classe social no espaço dominado pela
radicalização e perda de radicalidade na outra classe, com todos os riscos (inclusive
política dos Movimentos Sociais do Campo de cooptação) que isso implica, mas
em relação à educação. É um “salto de também com essas possibilidades de
qualidade” no sentido de superação alargamento de compreensão da luta de
dialética do momento anterior, sobre o que classes e do que ela exige de quem
de fato ainda não se tem condições continua acreditando na transformação
objetivas (tempo histórico) de analisar com mais radical da sociedade, na superação
mais profundidade, mas em torno das do capitalismo.
quais já é possível arriscar algumas
percepções. Esta é a radicalização, e nesta
radicalização talvez a grande novidade
Em termos ainda elementares de histórica da Educação do Campo, mas que
análise, podemos afirmar que o avanço, ou pode implicar, já tem implicado neste
o salto de qualidade, tem a ver com a percurso tão breve, em perda de
necessária articulação entre os próprios radicalidade. A radicalização tem a ver,
Movimentos Sociais, dos Movimentos pois, com o alargamento de perspectiva:
Sociais com outras forças, outros sujeitos, não há como construir um projeto
materializando uma perspectiva muitas alternativo de campo em nosso país sem
vezes defendida no ideário de cada ampliar as lutas, sem ampliar o leque de

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 31


alianças, inclusive para além do campo; e dos seus protagonistas originários: afinal,
não tem como avançar em transformações parecem pensar muitos gestores públicos,
importantes sem incluir na agenda de lutas para que continuar ouvindo os
a questão da democratização do Estado, Movimentos Sociais se sua bandeira já está
com todas ou por todas as contradições que incorporada nos discursos e documentos
isso encerra. E para cada Movimento Social dos governos? É melhor que o “sistema”
em particular, não há justificativa para cuide da Educação do Campo porque já
ocupar-se da educação, e da educação do sabe como fazer isso. Ademais, os
conjunto dos trabalhadores, se não for por Movimentos tem o “mau costume” de
objetivos relacionados a lutas mais amplas. politizar a educação e isso não é bom para
o “sistema”! E deslocar a centralidade dos
A perda de radicalidade, por sua vez, Movimentos Sociais no debate da
tem a ver com concessões e estreitamentos, Educação do Campo acaba sendo também
que também podem ser entendidos como uma forma de alterar seu conteúdo
recuos, retrocessos. Na sociedade em que político-pedagógico de origem, buscando
estamos e numa correlação de forças tão enfraquecer ou relativizar ao máximo uma
desfavorável aos trabalhadores e à própria possível influência de concepções de
idéia de transformações sociais mais educação sobre outros sujeitos,
radicais, não se espere que o Estado notadamente sobre os educadores das
brasileiro, e nem mesmo que os “governos escolas do campo19.
de plantão”, aceitem (1º) uma política de
educação que tome posição (prática) por um Há um outro detalhe significativo
projeto popular de agricultura, de neste estreitamento: na lógica dominante
desenvolvimento do campo, do país, que de formulação de políticas públicas e
ajude a formar os trabalhadores para lutar mesmo do sistema educacional, política de
contra o capital e para construir outro sistema educação só pode ser política de educação
de produção, outra lógica de organização escolar. Daí a tensão permanente: para o
da vida social (que é exatamente o objetivo sistema Educação do Campo trata de
originário da Educação do Campo). E (2º) escolas, o que representa um recuo radical
que aceitem os Movimentos Sociais como na concepção alargada de educação
protagonistas da Educação do Campo, que defendida pelos Movimentos Sociais, pela
aceitem os trabalhadores pobres do campo Pedagogia do Movimento. No âmbito das
como sujeitos da construção (forma e políticas isso se tenta resolver lutando por
conteúdo) de políticas públicas, ainda que diferentes políticas, relacionadas à
específicas para sua própria educação. Se produção, à cultura, à saúde. Precisa ter
fosse assim, a hegemonia do Estado já uma “pasta” de Educação do Campo quase
seria outra. em cada ministério (ou secretaria de
estado) para garantir fragmentos que
O estreitamento que vem sendo relembrem a visão de totalidade originária
percebido no percurso da Educação do na esfera dos direitos.
Campo é, pois, de tentativa, especialmente
dos governos, de fazer uma “assepsia” Além disso, estreita-se pelo
política, especialmente pelo deslocamento “enquadramento”: a pressão social trouxe

19
É preciso levar em conta que a tradição pedagógica vinculada a processos sociais emancipatórios historicamente teve pouca
influência sobre os educadores brasileiros, especialmente sobre os professores de escola e sobre as instituições responsáveis pela
sua formação inicial. Neste sentido, não é algo pouco importante que através da Educação do Campo certas reflexões e certos
textos da tradição pedagógica socialista e popular sejam não apenas retomados, mas passem a ser conhecidos por educadores
que de outra forma não teriam acesso a eles.

32 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


ao debate a idéia da especificidade, mas setores de esquerda, notadamente
no momento da formulação de uma acadêmicos. Algo que precisa ser analisado
política a tendência nunca é o específico com mais rigor, mas que me atrevo a dizer
(pela novidade do conteúdo) alterar a que em alguns casos acaba se somando às
forma, mas sim o específico ter que se forças que buscam reviver a lógica perversa
enquadrar na forma já instituída, ainda que da educação rural, sem precisar brigar por
seja a forma que contribuiu para a exclusão esse nome (como ainda fazem alguns
e a discriminação que justificaram a governos mais retrógrados como o do Rio
discussão da especificidade (!). Algo um Grande do Sul, por exemplo). Estou me
pouco diferente se admite hoje em algumas referindo a dois tipos de críticas que têm
políticas focais, recortadas no tempo, no aparecido em alguns textos ou exposições
espaço, nos sujeitos, mas que então não se mais recentes, pontuais: uma a de que a
configuram como políticas efetivamente Educação do Campo seria politicamente
públicas, de perspectiva universalizante. conservadora por se ‘misturar’ com o
Estado (burguês) e então não ter como
Diga-se de passagem, estas políticas portar objetivos de transformação social. E
focais têm sido marca do governo atual,
20 a outra de que a especificidade a condena a
notadamente o federal e é preciso dizer que ser divisionista da classe trabalhadora e,
são importantes no jogo político, porque pior, trabalhando com a parcela dos
fazem emergir as contradições estruturais, camponeses, só pode ser reacionária.
e por isso mesmo são tão, e cada vez mais,
Estas posições, além de fortemente
combatidas pelas forças políticas
idealistas parecem retomar, sem explicitar,
dominantes.
aquela visão de “como assim, camponeses”?
Porque talvez isso de fato estranhe a
Nos Movimentos Sociais do Campo,
muitos: como entender que um
ou pelo menos em alguns deles, esta
Movimento Social, como o MST, de base
questão das políticas públicas, ou de dar
social camponesa, radicalize as lutas de
prioridade à luta pela democratização do
enfrentamento direto ao capital e ao mesmo
Estado a favor dos interesses sociais dos
tempo aceite participar de debates de
trabalhadores tem sido foco de tensões e formulação de políticas de governo, ainda
motivado debates intensos. Às vezes chega que depois não seja considerado nelas?
a parecer para alguns que se trata de uma Uma análise mais histórica das próprias
escolha: ou ficamos com a Educação do transformações na luta pela Reforma
Campo (entendida então como política Agrária, provocadas pela própria
pública) ou com a Pedagogia do dinâmica contraditória do capitalismo,
Movimento como se as contradições certamente colocaria a questão muito mais
pudessem se resolver no plano do ideário no plano dos impasses do que no da
e não da realidade; como se não houvesse “estranheza” ou mesmo da incoerência.
circunstâncias objetivas condicionando o
caminho seguido até aqui. É fundamental não perdermos na
trajetória da Educação do Campo a
Nesta mesma perspectiva, já integra centralidade da dimensão da crítica prática
o percurso da Educação do Campo um que somente é assegurada pelos seus
movimento de crítica teórica vindo de sujeitos mais diretos: os trabalhadores do

20
Políticas focais no sentido de programas específicos que se colocam na perspectiva de políticas, a exemplo hoje do PROCAMPO
(cuja ação principal é a Licenciatura em Educação do Campo) e do Programa Saberes da Terra.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 33


campo, no movimento real (contraditório) que este recuo seria um retrocesso histórico
de formação de sua consciência, de para a classe trabalhadora e para a história
construção de seu projeto, inclusive da educação brasileira.
educativo. Se deslocarmos esta Um recuo quantitativo e qualitativo.
centralidade em nome da “afirmação No meio de todas as contradições
obstinada de princípios abstratos”, mencionadas e dos limites práticos que a
poderemos, sem querer, estar ajudando a correlação de forças impõe ao projeto dos
eliminar as contradições no plano das trabalhadores, talvez se possa afirmar que
idéias, o que na prática significa hoje, nunca estivemos no país numa situação
repetindo e não repetindo a história, como a atual em relação à ampliação da
reforçar politicamente o pólo da noção/consciência do direito à educação
“educação rural”. entre os camponeses (pelo menos entre
aqueles com alguma aproximação a
organizações coletivas) e ao
Sobre impasses e desafios do mo- reconhecimento deste direito pela
mento atual sociedade.

Nestas notas penso, sobretudo, nos Nesse sentido o desafio para os


impasses relacionados à atuação dos Movimentos Sociais é aumentar a pressão
Movimentos Sociais em relação à Educação pela massificação das lutas para além dos
trabalhadores que os integram, mostrando
do Campo, pela importância atual da
na prática a falácia do discurso liberal da
retomada deste protagonismo e,
universalização do acesso à educação. E
especialmente na relação com o Estado, do
vincular esta luta a outras lutas sociais que
desafio de manter vivo o contraponto da
assumem o caráter de luta de classes,
Pedagogia do Movimento. Desafio que
mantendo a contradição instalada.
não é apenas dos próprios Movimentos
É importante ter presente que o
Sociais, mas de todos os sujeitos
recuo dos Movimentos Sociais na luta pela
comprometidos com o projeto político-
educação significa uma diminuição
pedagógico originário da Educação do
drástica da pressão pela conquista de
Campo, através de uma ação política direitos já reconhecidos pela sociedade,
articulada e não por fragmentos, como se pelo retorno à dimensão do direito
está tendendo a fazer hoje. individual, abstratamente universal,
diminuindo a tensão entre o particular e o
Uma questão que me parece crucial universal, entre direitos individuais e
para o debate dos impasses do momento sujeitos coletivos de direitos.
atual é que estamos diante de um risco
efetivo de recuo da pressão dos O impasse tem a ver com a
Movimentos Sociais por políticas públicas tendência crescente (e compreensível pela
de Educação do Campo seja pelo refluxo lógica da sociedade em que ainda
geral das lutas de massas, e vivemos) de fortalecer na discussão e
conseqüentemente o enfraquecimento dos implementação (precária) da política
Movimentos Sociais, acuados pela pública de Educação do Campo a lógica
necessidade de garantir sua sobrevivência do sistema em geral, pressionando pelo
básica, seja pelo receio de “contaminação esvaziamento do seu conteúdo
ideológica” ou de cooptação pelo Estado, emancipatório originário e pela ampliação
ou até pela falta de consenso sobre o papel da dimensão regulatória, buscando de
da educação na luta de classes e neste todo modo enquadrar na ordem dada
momento histórico em particular. Entendo demandas que são da “contra-ordem”.

34 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Esse impasse está nos Movimentos parcial). E parece cada vez mais difícil
Sociais e no governo atual, especialmente avançar na formação política dos
o federal, ainda que por motivos trabalhadores para compreender a
diferentes e com um conteúdo diferente. realidade do capitalismo brasileiro sem
Se a pressão dos Movimentos Sociais uma base geral de educação anterior
diminuir o governo não conseguirá fornecida pela educação escolar, ainda que
avançar sequer nas políticas focais e de conteúdo pouco emancipatório.
arranhar políticas públicas que lhe Por outro lado, conformar-se com a
permitam alterar estatísticas, ‘ficar bem na regulação do Estado parece incoerente
foto’ da universalização dos direitos com os objetivos políticos desses
liberais. Porque o agronegócio pode Movimentos e mais, pode ter mesmo um
atender suas demandas de outra forma, o efeito despolitizador de sua base ou de sua
que historicamente também tem incluído militância se não houver um trabalho
o uso do sistema público para formação pedagógico adequado, uma política de
de seus quadros (através das escolas formação que permita entender o que
técnicas e agrotécnicas federais, por mesmo está em questão quando se faz esta
exemplo). Tenta usar a Educação do relação com o Estado. E na prática, já se
Campo a seu favor, mas não precisa de um disse antes, não é tão simples manter-se
sistema público de educação no campo fiel à Pedagogia do Movimento quando se
para isso (até porque ele pode ser perigoso tenta ser sujeito de políticas públicas numa
aos seus interesses, em médio prazo). Por sociedade como a nossa, ainda que se saiba
outro lado se os governos não tiram do que é exatamente o conteúdo da primeira
foco da Educação do Campo os que pode pressionar pela alteração da
Movimentos Sociais, seu protagonismo, há forma da segunda.
uma traição à lógica estrutural da política
instituída e ao projeto de classe do Estado Um grande desafio para os
que representam. Algo que não ousam (ou Movimentos Sociais na superação desses
nem pensam) fazer em outras áreas, impasses é não confundir a Educação do
tampouco ousariam nessa. Campo com a Pedagogia do Movimento e
ao mesmo tempo não trabalhá-las em uma
Para os Movimentos Sociais de visão antinômica, como coisas separadas.
projeto político mais radical o impasse Se os Movimentos Sociais entenderem a
parece estar no seguinte: seu potencial de Educação do Campo somente na sua
avanço “corporativo” está em vias de dimensão de política pública e de
esgotamento, nessa área da política educação escolar e continuarem a pressão,
educacional como em outras. E enquanto mas apenas pelo direito, recuando na
não se vislumbram mudanças mais disputa pelo conteúdo da política e pela
estruturais na sociedade, seu avanço (ou concepção de campo e de educação,
sobrevivência) não pode prescindir das estarão abrindo mão da identidade que
lutas (que podem ser mais ou menos ajudaram a construir e estarão eliminando
radicais) pela democratização do Estado a contradição pelo pólo da educação rural
em favor dos trabalhadores. Não há como modernizada.
massificar o acesso da base social dos
Movimentos, e muito menos do conjunto Por outro lado, é preciso entender
dos camponeses, à educação básica sem a que a luta pela Educação do Campo não
mediação hoje da Educação do Campo substitui a construção histórica da
(com este nome ou outro), na sua Pedagogia do Movimento, e da construção
dimensão de política pública (plena ou do projeto de educação de cada Movimento

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 35


Social, naquele sentido alargado de uma entrada à discussão da realidade ou do
educação vinculada a processos de luta “quadro” em que nossas ações educativas
social organizada, capaz de mexer na se inserem. Este debate precisa ser feito
estrutura de valores, na visão de mundo com os diferentes sujeitos da Educação do
dos camponeses, de modo que assumam a Campo, mas especialmente com os
perspectiva de construção de um projeto próprios trabalhadores e suas famílias, e
de campo que se situe “para além do com os educadores das escolas do campo.
capital” (Mészáros, 2005), e que essa
educação deve ser feita de forma menos O mesmo desafio passa pela
tutelada e escolarizada e desde as retomada ou pelo fortalecimento do
demandas próprias da formação dos vínculo orgânico da Educação do Campo
militantes da organização, mas na (enquanto crítica, enquanto práticas e
necessária perspectiva de classe enquanto disputa política) com as lutas de
trabalhadora unificada na luta contra o resistência dos trabalhadores do campo e
capitalismo. Se não for assim faltará o a construção de um projeto de agricultura
acúmulo de radicalidade para a própria
que tenha outra lógica que não esta que
disputa do conteúdo e do destino histórico
passou a dominar o mundo, que é a da
da Educação do Campo.
agricultura com o objetivo do negócio,
fazendo dos alimentos e da terra um
Juntando os dois movimentos, o que
objeto a mais da especulação do capital
se busca afinal é uma ampliação de
financeiro, em detrimento das pessoas
perspectiva, necessária para alimentar
(Via Campesina, 2008). Esta outra lógica
lutas sociais conseqüentes pela
é hoje identificada pelo contraponto da
transformação das condições de vida dos
trabalhadores e pela projeção de relações agricultura camponesa21, comprometida
sociais menos degradantes do ser humano. com uma forma de produção que garanta
a alimentação dos povos do mundo, de
A retomada do protagonismo dos cada povo, de todas as pessoas,
Movimentos Sociais na Educação do desafiando-se também a repensar a
Campo é hoje um grande desafio e que concepção tradicional de agricultura dos
passa por uma interpretação mais rigorosa próprios camponeses, agricultores
e pela difusão ampliada da compreensão familiares, trabalhadores rurais.
desse momento da luta de classes, que
inclui o debate das contradições da fase O vínculo da Educação do Campo
atual do capitalismo e as conseqüências com o projeto da agricultura camponesa
que traz para a agricultura e para a vida é seu “destino de origem”, mas não está
(ou morte) dos camponeses, bem como dado e ao contrário, somente será
para o conjunto da sociedade. Estamos construído no enfrentamento concreto das
entrando em um período muito propício tendências projetadas pelas contradições
para esse debate, e a questão da produção em que seu percurso foi constituído,
de alimentos pode ser uma boa porta de potencializando as contradições da

21
É preciso ter presente nesta discussão um aspecto que não será aprofundado neste texto, mas que integra a agenda de estudos
e debates da Educação do Campo: a identificação “camponesa” indica aqui um contraponto político e econômico de lógicas de
produção e de inserção social, que não se compreende sem a ressignificação ou mesmo a rediscussão do conceito de camponês que
integra o debate atual sobre projetos de campo. Ou seja, a agricultura camponesa entendida como uma categoria teórica e política
no contexto do confronto de projetos (agronegócio X agricultura camponesa) e não em si mesma.

36 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


realidade social mais ampla explicitadas Do ponto de vista da construção de
pelo momento de crise estrutural do uma chave metodológica de interpretação,
capitalismo, um enfrentamento que que foi o objetivo primeiro da produção
dificilmente será protagonizado por outros deste texto, insisto na importância de
sujeitos que não os Movimentos Sociais apreendermos o movimento real da crítica
que hoje assumem o embate de projetos da educação em que se constituiu a
como sua ação política principal. Educação do Campo, e com o cuidado de
não eliminar o movimento dialético
necessário: somente chegamos à realidade
A inserção neste embate implica em
através de categorias, mas essas precisam
colocar na agenda política e pedagógica
ser capazes de explicá-la em sua
das lutas e das práticas de Educação do
complexidade, o que exige muitas vezes
Campo questões como crise alimentar, criar novas categorias. Não podemos fazer
crise energética e crise financeira, soberania um movimento de “encaixe” da realidade
alimentar, reforma agrária (incluindo nela às categorias ou às teorias a qualquer custo,
o debate da propriedade social), porque isso falseia a realidade e empobrece
agroecologia de perspectiva popular, a teoria.
biodiversidade, direito às sementes e à
água como patrimônio dos povos, Talvez não seja pouco buscar
cooperação agrícola, descriminalização dos apreender a “novidade” (nos dias de hoje)
Movimentos Sociais, direitos sociais dos de uma práxis que tenta negar as
camponeses e das camponesas, crianças, antinomias e constituir a radicalidade (de
jovens, adultos, idosos. Trata-se de uma atuação política e pedagógica) entrando na
agenda e uma disputa que vão muito além jaula do tigre para apanhar suas crias (como
do campo das políticas públicas, mas que costuma nos dizer Gaudêncio Frigotto,
não o exclui, significando nele pressão de referindo-se a uma metáfora de Mao Tse-
conteúdo, concepção, especialmente no Tung), correndo sim o risco, e grande, de
ser “comido” pelo “tigre”, mas pelo menos
que se refere ao direito à educação, mas
não deixando de enfrentar o risco de fazer
também de tomar parte na definição sobre
a história...
que educação, destacando-se a disputa/
nova elaboração sobre que formação para Do ponto de vista de projetar a
o trabalho no campo. atuação neste movimento da realidade,
destaco os dois grandes desafios postos
para os diferentes sujeitos que se
Finalizando sem concluir identificam com a constituição originária
da Educação do Campo. O primeiro é o de
Este é um debate que está em curso, intensificar a pressão por políticas públicas
buscando acompanhar o movimento da que garantam o acesso cada vez mais
reali- dade que expressa. Finalizo estas ampliado dos camponeses, do conjunto
notas cha- mando nossa atenção para o dos trabalhadores do campo, à educação22.
desafio político, ao mesmo tempo prático É preciso disputar a agenda do Estado, é
e teórico, que temos hoje em relação à preciso “sobrecarregar o sistema”
Educação do Campo. (Wallerstein, 2002, pág. 220) com as

22
Acesso ampliado no duplo sentido: de massificação, ampliação quantitativa e de dimensões da educação: escolarização, mas
também acesso às produções culturais e a atividades diversas de formação ao longo da vida e relacionadas às diferentes matrizes
de educação do ser humano.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 37


demandas do pólo do trabalho (demandas CALDART, Roseli Salete. Sobre Educação
de acesso que são de forma e conteúdo) do Campo. In.: SANTOS, Clarice
para que, no mínimo, as contradições Aparecida dos (org.) Campo – Políticas
apareçam com mais força. Públicas – Educação. Coleção Por uma
Educação do Campo, n. 07. Brasília: INCRA/
O segundo desafio é o de radicalizar MDA, 2008, pág. 67-86.
a Pedagogia do Movimento, entendendo-a
fundamentalmente como um processo ________. Teses sobre a Pedagogia do
formativo de base dos trabalhadores que Movimento. Texto inédito, junho de 2005.
recupere sua “humanidade roubada”
CARVALHO, Horacio Martins de.
(Paulo Freire) e seja capaz de romper com
Desafios para a agroecologia como portadora
a estrutura de valores, com a visão de
de uma nova matriz tecnológica para o
mundo, que os faz reféns da lógica do
campesinato. Texto inédito, julho 2007.
capital, politizando assim a própria luta
pelo direito às formas de educação CHRISTOFFOLI, Pedro Ivan. O contexto
consagradas pela sociedade atual e recente da luta pela terra e pela reforma agrária
fortalecendo seu engajamento massivo nas no Brasil e as conseqüências para o alcance da
lutas pela superação do capitalismo. Isso soberania alimentar – uma leitura a partir
inclui uma dimensão grandiosa, que é a de da Via Campesina. Texto inédito, 2008.
perceber-se como sujeito da história, que é
também ser sujeito de seu próprio processo ENGUITA, Mariano. Trabalho, escola e
de formação para se construir como tal. ideologia: Marx e a crítica da educação. Porto
Nessa perspectiva, a Pedagogia do Alegre: Artes Médicas, 1993.
Movimento assume também uma
intencionalidade educativa na direção de FONTES, Virgínia. Debate sobre a crise.
preparar os trabalhadores para a construção Notas de exposição. São Paulo, novembro
prática deste novo modelo de produção, de de 2008.
tecnologia, e para as novas relações sociais
que poderão começar a ser produzidas FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação?
nesse movimento, o que implica na 11ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
reapropriação crítica de iniciativas já
existentes e bem antigas, especialmente no KONDER, Leandro. A dialética e o
âmbito de uma produção diversificada e marxismo. Revista Eletrônica Trabalho
comprometida com o equilíbrio ambiental Necessário, ano 1, n.1, 2003.
e humano.
LEFEBVRE, Henri. Para compreender o
pensamento de Marx. Lisboa: Edições 79,
1981.
MÉSZÁROS, István. A educação para além
Referências Bibliográficas do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

STEDILE, João Pedro. Subsídios para


CALAZANS, Maria Julieta Costa. Para compreender o significado da crise alimentar
compreender a educação do Estado no meio mundial e brasileira. Texto inédito, maio
rural – traços de uma trajetória. In.: 2008.
THERRIEN, Jacques e DAMASCENO,
Maria Nobre (coords). Educação e Escola no STEDILE, João Pedro. A ofensiva das
Campo. Campinas: Papirus, 1993, pág. 15-40. empresas transnacionais sobre a

38 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


agricultura. V Conferência Internacional da
Via Campesina, Maputo, Moçambique,19 a
22 de outubro 2008.

THOMPSON, Edward. Os românticos. A


Inglaterra na era revolucionária. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002 (cap. 1:
Educação e experiência).

VIA CAMPESINA. Carta de Maputo: V


Conferência Internacional da Via Campesina.
Maputo, Moçambique, 19 a 22 de outubro
de 2008.

WALLERSTEIN, Immanuel. Após o


liberalismo. Petrópolis: Vozes, 2002.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 39


40 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
O Semiárido Brasileiro

Silvana Lucia da Silva Lima

Dra. em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe e Professora de Ensino


de Geografia e Educação do Campo do Centro de Formação de Professores
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 41


Falar do Semiárido brasileiro exige, geral não foram selecionados para os
necessáriamente, falar do Nordeste, de sua investimentos do grande capital, e que, por
formação territorial e de como em suas isso, permanecem excluídos, total ou
histórias o modelo econômico capitalista, parcialmente, da lógica de produção
que é seletivo e excludente, foi sendo capitalista.
implantado.
Todavia, o Brasil foi sendo
Nesta perspectiva, este texto traz modelado e remodelado pelos ditames do
duas reflexões: 1. O conteúdo regional hoje capital (investimentos econômico),
e, 2. A formação socioeconômica do sertão mediados pelo poder público que viu na
nordestino. diversidade dos biomas (Mata Atlântica,
Caatinga, Cerrado, Amazônia, Pantanal e
Pampa) um patrimônio natural explorado
O Conteúdo regional hoje ou a se explorar.

Segundo Tânia Bacelar (2008), Tal diversidade, ao longo da


compreender o Nordeste hoje nos remete história, passou a orientar a mobilidade
considerar quatro heranças: a) Ocupação do capital e da força de trabalho
do território brasileiro a partir do litoral; estabelecendo: a concentração dos negros
b) A diversidade regional brasileira; c) A no litoral (força de trabalho no cultivo da
excessiva concentração econômica no cana-de-açúcar); do índio-vaqueiro no
Sudeste; e d) A concentração geográfica sertão (expansão da pecuária extensiva); a
interna. ocupação recente dos produtores de soja
no oeste e de migrantes regionais na
A ocupação do território brasileiro Amazônia (seringueiros, garimpeiros e
iniciada pelo litoral impôs a este espaço, carvoeiros); e uma área social e
especialmente às cidades que se tornaram ambientalmente degradada pela
capitais, uma execissiva concentração concentração de terras (que continua
econômica, política e demográfica, implantando a pecuária ultra-extensiva
definindo os demais espaços como não mediante o desmatamento e a instação de
dotados de equipamentos urbanos de carvoarias, ambas sustentadas pela
serviços, ou seja, espaços que de forma exploração do trabalhador em condições

42 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


análogas ao trabalho escravo, geralmente como Canudos, Ligas camponesas e MST,
oriundo do semi-árido nordestino). os quais o Estado sempre tentou neutralizar.

Ao mesmo tempo, a excessiva Os movimentos sociais resistiram e


concentração econômica no Sudeste de se reafirmaram sem ainda alterar a
indústrias, infra-estrutura econômica, hegemonia do modelo econômico
universidades, institutos de pesquisa e do capitalista, dado a dinâmica da
comando político nos permite constatar, mobilidade do capital que tem impactos
ainda segundo Bacelar (2008), que tudo que distintos sob a sociedade. Mas, já tem
é média no Brasil é falso, porque é conseguido alterar a dinâmica social e
influenciado pelo Sudeste, em especial, econômica no sertão nordestino, a exemplo
porque São Paulo alimenta uma do sertão de Sergipe.
concentração econômica injusta por deter
o comando das definições das políticas Assim, a dinâmica aparentemente
públicas e pelo fato de São Paulo não contraditória do capital ora exige o
pensar o Brasil mas, de se pensar como o desenvolvimento de forças produtivas,
Brasil1. cobrando tanto uma agropecuária
capitalista e moderna, quanto a
Ao debater a questão, Silva (1999) interiorização das indústrias e dos serviços
adverte que o Nordeste mudou, se (o que provoca a flexibilidade na produ-
modernizou, se urbanizou, mas ção, na localização das empresas e dos
permanecem as concentrações. Este autor trabalhadores, estabelecendo novas relações
destaca que para entendê-las é preciso de produção), ora faz com que, numa reação
investigar a natureza dos investimentos e política em defesa da própria existência, os
das regionalizações propostas e efetivadas, trabalhadores rurais pobres fortaleçam suas
compreendendo a regionalização como um organizações e ampliem o processo de
mecanismo do poder público que permite territorialização dos movimentos sociais do
a constituição de uma unidade regional campo, mobilizando trabalhadores rurais
ainda pautada nas diferenças em relação na luta por terra, por crédito, educação e
ao resto do país. saúde, por reforma agrária, enfim, por vida
digna no campo.
No Nordeste, a pobreza foi durante
muito tempo o elemento que garantiu a Neste contexto, a mobilidade do
sua unidade regional, que possibilitou capital e a territorialização dos
compreender esta parte do Brasil como movimentos sociais no campo são
região, uma região problema. Ao mesmo processos definidores na transformação da
tempo, foi se construindo sob a égide do realidade regional atual e, portanto,
progresso técnico (modernização fundamentais para se compreender a
produtiva) reproduzindo múltiplas condução do debate acerca da
relações, ora no formato tradicional com configuraação territorial no Semiárido
intensa exploração da mão-de-obra nordestino.
assalariada e não-assalariada, ora criando
as condições que exigiram o surgimento Neste processo histórico de
dos movimentos socias de resistência,tais consolidação do modelo de exploração

1
Fala de Chico de Oliveira citada por Barcelar.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 43


capitalista não podemos esquecer a ação e na criação de uma massa de
do Estado que, historicamente, teve um trabalhadores aptos a vender sua força de
papel fundamental no surgimento e na trabalho, introduzindo uma produção
condução dos processos anteriormente mercantil.
citados, mediando relações entre as classes
sociais, ou seja, entre dominantes e Assim, na gênese histórica do modo
dominados. capitalista de produção foram construídas
as condições econômicas fundamentais
Na mediação entre classes sociais para selar o domínio do capital sob o
oponentes, o Estado entreviu sancionando trabalho, da classe dominante sobre a
relações de forças. Neste aspecto, as classe dominada, dos donos do meios de
leituras apontam para um Estado produção sobre os donos da força de
articulado com os grupos hegemônicos e trabalho.
subordinado aos ditames dos donos do
capital internacional, onde, ao longo da No Semiárido brasileiro, a formação
história, a classe hegemônica e o Estado têm da sua estrutura socioeconômica (os meios
criado estratégias para que a sociedade, de produção) e da base fundiária (grande e
cada vez mais, adapte-se às novas pequena propriedade/latifúndio e
exigências, obrigações e estratégias minifúndio) esteve associada à doação de
impostas pelas multinacionais, pelas sesmarias, associadas à abertura de
transnacionais e pelo mercado financeiro. fazendas de criação. Esta atividade
agropecuária subjugada à sociedade
Todavia, todo este movimento que escravocrata teve, inicialmente, um papel
reestruturou a economia foi realizado num determinante na organização social e
âmbito de intenso processo de exploração espacial, mais do que o sistema de
e segregação social que apenas alimentou apropriação de terras.
as disparidades socioeconômicas
historiacamente construidas. Foram as relações sociais de
produção (escravidão, arrendamentos) o
pilar da sociedade colonial e não a
A formação socioeconômica do propriedade fundiária. São as relações de
sertão nordestino produção estabelecidas pelas atividades
econômicas e de subsistência, mais que a
Em seu texto A assim chamada apropriação legal da terra, que garantiram
acumulação primitiva do capital, karl Marx a ocupação e povoamento do sertão.
explica como os primórdios da
acumulação é sempre conduzido por um No interior do Nordeste, a
“processo histórico de separação entre expansão da pecuária fez parte de um
produtor e o meio de produção”, como uso projeto político de longo prazo para
de métodos não idílicos (MARX, p. 261-26). controlar o território. Com isso,
estabeleceu, em relação ao litoral
No mesmo texto, Marx esclarece açucareiro, um tipo diferenciado de
ainda que, no processo de formação da imóvel fundiário (a fazenda e as pequenas
classe capitalista, as formas materiais de posses) e de relação social de produção.
produção da existência são transformadas
mediante a conquista do campo para a A força de trabalho nesta economia
agricultura capitalista, implicando na extensiva passou a ser constituída de
incorporação da base fundiária ao capital homens pobres, brancos, índios, mestiços

44 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


e alguns escravos que produziam para a ausência dos proprietários na região,
própria subsistência, usando a força de ficando as fazendas e os currais entregues
trabalho familiar. Ao possibilitar a criação a vaqueiros que, mediante o sistema da
da figura do vaqueiro, do arrendatário e quarta, contribuiu para a abertura de novas
dos posseiros, instalou-se um novo regime fazendas fora do controle da Lei de
de trabalho no Brasil, diferente da Sesmarias pela Coroa portuguesa.
escravidão, pautado na “inserção de
homens livres na ordem escravocrata e a Esse processo acentuou a associação
constituição de uma economia semi- entre o latifúndio-pecuária e a força de
camponesa” (OLIVEIRA, 1993, p.46). trabalho do vaqueiro, tendo ambos um
papel central no processo de ocupação e
Os vaqueiros, homens livres na configuração socioterritorial do sertão
ordem escravocrata, tiveram um papel nordestino onde, segundo Andrade (1986,
importante na formação da estrutura p. 148), foram construidos os maiores
fundiária, econômica e social regional. Isspo latifúndios do Brasil.
porque, na medida em que iam adquirindo
o seu próprio gado, frutos do sistema de A vasta literatura confirma a
quarta, abriam novos currais, assim presença relativamente expressiva de
chamados, dando origem a sítios e fazendas. posseiros e de rendeiros no sertão
Estes se tornaram os locais privilegiados da nordestino. Nessas terras eles
criação do gado e do cultivo de subsistência desenvolvem atividades agropecuárias,
para o vaqueiro e sua família. dedicando-se a criação de pequenos
animais (caprinos, ovinos e suínos).
A fazenda era, na perspectiva de
Martins (1981, p. 23), “o conjunto dos bens, Mas, foi o cultivo de mandioca, fava,
a riqueza acumulada; significava, feijão, milho, nas áreas secas e, do arroz,
sobretudo, os bens produzidos pelo abóbora e banana, nas terras úmidas, ou
trabalho (e, dentro de sua análise), o melhor, nas várzeas dos rios, o que
trabalho personificado do escravo”. possibilitou a permanência do homem no
Diferente do sentido que tem hoje, “estava sertão, especialmente no semiárido, por
muito próxima da noção de capital (relação garantir sua alimentação e sua reprodução
social de produção) e muito longe da noção enquanto ser social.
de propriedade fundiária”.
Conforme Lima (2007), um olhar
Os trabalhadores que se atento para história revela que só aos
aglomeravam nas fazendas para participar poucos a região Nordeste foi aprofundando
do processo produtivo construíram suas a diversificação na produção e conhecendo
residências em aglomerações que deram a separação entre área de produção
origem às primeiras povoações. (fazenda) e a área de consumo (o povoado
e/ou a cidade), possibilitando um
Em todo o interior nordestino elas movimento populacional de pequenos
eram rarefeitas e dispersas. E só vieram a comerciantes. A exemplo temos os pontos
ser concentradas espacialmente no século de troca que se tornaram, com o passar do
XVIII. A distância entre os centros tempo, as sedes distritais como em Nossa
consumidores e de decisão, as Senhora da Glória e de Monte Alegre de
descontinuidades entre as fazendas e as Sergipe, Icó no Ceará, Feira de Santana na
precárias condições de vida, incentivaram Bahia e Arapiraca em Alagoas.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 45


Todos os estados do semiárido sociedade (separação entre mercadores e
nordestino possuem municípios cujos agricultores); e no espaço (desmatamento
processos de formação socioespacial foram e surgimento de novas povoações). Isso
engendrados a partir da segunda década sem alterar a estrutura fundiária, muito
do século XVII, quanto os viajantes criaram embora tenham surgido mais
os primeiros ranchos que ao logo do tempo arrendamentos e posses, fortalecendo o
foram transformados em povoações. Estas poder local – os coronéis (LIMA, 2007).
organizaram os seus pontos de trocas de
mercadorias, passando a ter nos séculos O capital não entrou na esfera da
posteriores feiras que se tornaram produção abrindo grandes campos de
importantes centros comerciais. cultivo, mas permitiu que o cultivo do
algodão continuasse a ser realizado por
Outras cidades tiveram seu pequenos produtores proprietários de terra,
surgimento ligado ao desenvolvimento das posseiros e/ou arrendatários,
atividades de subsistência, como a criação desenvolvendo relações sociais de
de gado e roçado. Muitos núcleos produção não-capitalistas. Já a sua
humanos que viviam nos currais e seu industrialização, que se achava sob controle
entorno, além dos roçados destinados a de empresas estrangeiras, localizadas
alimentação familiar, cultivavam o algodão principalmente no litoral, proporcionou
mocó (arbóreo), cuja finalidade era garantir aumento do trabalho assalariado, ou
a produção de tecidos grosseiros para relações sociais de produção capitalistas,
alimentar um pequeno comércio local.
com salários que variavam de acordo com
a dinâmica da economia mundial
No século XVIII, frente às mudanças
(ANDRADE, 1986, p. 85 e 158).
conjunturais internacionais, a região foi
transformada numa importante zona
No âmbito interno, as economias
produtora de algodão com ampla aceitação
locais passaram a ter momentos de crise e
no mercado internacional, particularmente
crescimento. Sendo a maior região brasileira
na Inglaterra.
produtora de algodão, o sertão nordestino
enfrentava os efeitos negativos das secas
Esta mesma conjuntura impôs novos
periódicas com a redução nos níveis de
movimentos ao capital a partir dos efeitos
produção agrícola e o crescimento da área
do progresso técnico produzido pela
Revolução Industrial inglesa. Neste plantada e da produção.
contexto, a elite brasileira em formação foi
criando as condições para o fim do sistema Para responder às demandas
colonial-escravista e abrindo espaço para internacinais, na segunda metade do
o desenvolvimento do modo capitalista de século XIX, muitas fábricas
produção em bases assalariadas e não descaroçadeiras de algodão já tinham
assalariadas. sido instaladas no Nordeste – Icó/CE,
Souza/PB.
E, assim, como em todo o Nordeste
do Brasil, a expansão do algodão como Em toda região Nordeste, o
cultura comercial provocou mudanças controle do processo de produção do
substanciais: na economia (ampliando o algodão no interior da unidade produtiva
número de unidades produtivas e era feito pela família. Mas, a circulação era
fomentando um mercado regional); na controlada por fazendeiros articulados aos

46 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


grupos hegemônicos da economia Como foi possível verificar, nos três
mundial. Os primeiros compravam a primeiros séculos de ocupação do
matéria-bruta dos pequenos produtores, Nordeste foram estabelecidas as condições
levava-as para as descaroçadeiras que, materiais objetivas para os processos
após transformá-las em matéria-prima, expropriatórios mediante a:
eram comercializados junto as fábricas de
produção de linha e tecidos. - Expropriação das terras indígenas,
ignorando sua existência, para atender ao
A análise da cadeia produtiva do projeto colonizador;
algodão até meados do século XX no
Nordeste brasileiro evidencia três questões - Inserção de atividades mercantis
que são fundamentais para compreender sem a extinção das atividades de
o processo de estruturação produtiva do subsistência;
espaço regional sertanejo:
- Separação entre os donos da força
1. A distinção entre os espaços da de trabalho e os donos dos meios de
produção agrícola (Agreste e Sertão) e do produção;
beneficiamento do algodão (Litoral)
produziu uma nítida divisão social e - Compartimentação da terra e a
territorial do trabalho, favorável ao litoral; criação das bases da propriedade privada
atual.
2. A maior parcela dos lucros
obtidos com o beneficiamento do algodão Tais processos estruturaram novas
ficou com os manufatureiros do litoral e relações de poder. Estruturaram uma
os comerciantes locais e regionais sociedade com características políticas e
(fazendeiros intermediários); culturais específicas, mas orientadas pela
mercantilização das atividades produtivas,
3. A renda adquirida pelos configurando a atual base territorial
agricultores pouco garantia sua estudada.
subsistência e de sua família.
É neste contexto, que sob a égide de
Recorremos a Oliveira (1993) para um Estado capturado pelas velhas
entender como o fazendeiro participava oligarquias rurais e as novas oligarquias
diretamente do processo de acumulação urbanas com vínculos rurais
primitiva. Além de acumular riquezas com extremamente fortes, que o BNB e a
o comércio, o beneficiador do algodão era SUDENE estabeleceram, a partir dos anos
também proprietário das terras de 1950, políticas de desenvolvimento
arrendadas, se apropriando de parte da econômico pautados na modernização da
produção realizada pelo meeiro, mediante agricultura nos vales úmidos (criação de
partilha, garantindo o sobre-produto. perímetros irrigados) e uma política de
Quando os moradores da fazenda industrialização priorizando as zonas de
pagavam o cambão, o proprietário se maior crescimento, as maiores capitais.
apropriava do sobre-trabalho e ainda
extraia a renda pelo usa da terra. Era uma O projeto da Sudene enfrentou
forma de apropriação de parte do valor sérias dificuldades com o particularismo
produzido, construindo um círculo e o localismo criado por e a partir dos
infernal de submissão. coronéis. No âmbito das relações

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 47


interestaduais e intermunicipais, gerou sócio-espacial e as inter-ralações.
níveis diferenciados de desenvolvimento
e despertou uma guerra fiscal prejudicial Foi dentro desta racionalidade
ao desenvolvimento local. Aqui é fácil técnica que foram implantadas novas
perceber como um projeto de zonas de produção irrigada (Vale do
desenvolvimento pautado na competição Jaguarice/CE, do Açú/RN, do rio
econômica, e não nas necessidades sociais Parnaíba/PI) e de distribuição de
básicas, jamais iria possibilitar a superação energia/CHESF (UHE Xingó), a zona da
das contradições socioeconômicas soja no oeste baiano, o projeto da ferrovia
regionais. transnordestina (ligando zona da soja aos
portos), a ampliação de portos e
Nos anos de 1990, o Projeto Áridas2 aeroportos e, a transposição do São
surgiu como uma alternativa ao GTDN3 Francisco.
recuperando o quadro geral do polígono
das secas, incorporando uma análise O semiárido brasileiro hoje ocupa
orientada pela lógica do desenvolvimento aproximadamente 18% do território
sustentável capitalista. Este projeto de nacional (1,5 milhões de km2) e concentra
desenvolvimento econômico permitiu cerca de 30% da população total do país.
enfrentar o esvaziamento do regionalismo
e do nacionalismo, enquanto estratégia A região Nordeste vivencia os
canalizadora de recursos e projetos, resultados do modelo de exploração
perante os imperativos do neoliberalismo. econômica aqui implantado, nos
permitindo identificar as seguintes
Enquanto manifestação mais concentrações sócio-espaciais apontadas
contudente da política neoliberal, o Áridas anteriormente: possui 28% da população
coadunou o moderno e o atrasado, fomen- brasileira; 20 milhões de pessoas vivendo
tando um modelo de desenvolvimento das em Recife, Salvador e Fortaleza, as
relações socias de produção sustentadas na maiores capitais; 50% dos pobres do
relação elite-Estado mantendo a Brasil e 51% dos inclusos no programa
concentração da terra, fortalecendo as Bolsa-família; 13% do PIB nacional, onde
monoculturas agroexportadoras, a 90% deste sai de Recife, Salvador e
modernização e a industrialização. Fortaleza; 5% das indústrias brasileiras,
ao mesmo tempo em que possui uma
O fato é que a globalização população com média de escolaridade de
provocou transformações substânciais no seis anos.
conteúdo regional, mudando as forma de
produzir e consumir o espaço, bem como O Semiárido vivencia os reflexos da
as condições de subsistência de sua modernização produtiva ao acompanhar
população. Isso alimentou reestruturações o crescimento de várias sedes municipais,
produtivas que se sustentam também na onde a dinâmica é resultado das
fragmentação, ou seja, no enfraquecimento sucessivas modernizações produtivas,
dos vínculos culturais, políticos, tais como Petrolina/PE, Juazeiro/BA,
econômicos, que mantinham a formação Sobral e Limoeiro do /CE. Todavia, o

O Projeto Áridas – Nordeste: uma estratégia de geração de emprego e renda, 1985.


2

Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, pedra fundamental para a criação da Sudene – Superintendência do
3

Desenvolviemnto do Nordeste.

48 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


consequente sugirmento das zonas Coordenação e revisão de Paul Singer.
periféricas nestas cidades, da violência Tradução de Regis Barbosa e Flávio R.
urbana, dos problemas ligados à saúde
pública etc, apenas evidencia a principal KOTHE, F. de Oli veira. Elegia para uma
característica deste modelo econômico: ao re(li)gião: SUDENE, Nordeste.
selecionar os espaços e grupos sociais a Planejamento e conflitos de classes. 6ª ed.
serem beneficiados com os investimentos Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 137p.
capitalistas, exclui a maior parcela da
sociedade – um modelo concentrador e RIBEIRO, D. O povo brasileiro – a
excludente por excelência. formação e o sentido do Brasil. 3º ed. São
Paulo, Companhia das letras, 1995. 476p.
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Petrópolis: Vozes, 1981.

MARX, Karl. O capital - Crítica da


Economia Política. Livro Primeiro. O
processo de produção do Capital.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 49


50 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
O trabalho como processo
educativo/formativo

Erivan Hilário

Licenciado em Pedagogia pela Universidade Federal do


Rio Grande do Norte e pós-graduando (lato-sensu) em Ensino
de Ciências Humanas e Sociais pela UFSC. Membro do Setor de
Educação do MST e da Escola Nacional Florestan Fernandes.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 51


Toda sociedade vive porque consome; e para consumir depende da produção.
Isto é, do trabalho. Toda a sociedade só vive porque cada geração nela cuida
da formação da geração seguinte e lhe transmite algo da sua experiência,
educa-a. Não há sociedade sem trabalho e sem educação
Leandro Konder

Trabalho e educação não dê para falar de trabalho sem tê-las


presentes. Para FRIGOTTO (2007):
Tomando como base a referida
epígrafe, fica nítida a relação intrínseca Não se pode, então, confundir o
entre trabalho e educação. Em se tratando trabalho na sua essência e generalidade
de ambos, enquanto existirem seres ontocriativa (Lukács, 1978) com certas
humanos, haverá trabalho, educação, formas históricas que o trabalho vai
haverá história, pois estar vivo é o assumir - entre elas a servil, a escrava e a
pressuposto básico que permite a assalariada, sendo que nesta última é
existência humana. Portanto, buscamos comum confundir trabalho com emprego
refletir sobre alguns aspectos relevantes ou se pagar as questões inerentes à venda
que vão configurando o trabalho enquanto da força de trabalho pelo trabalhador.
dimensão que possibilita processos de
aprendizados fundamentais para a
formação do ser humano. O trabalho promove todo o
processo de evolução da espécie humana.
O trabalho se constitui como fator Tal pressuposto delimita uma
determinante para a existência humana. compreensão em torno de sua existência,
Isso não deixa dúvidas, pois se trata de antes da constituição da sociedade,
conceber que o trabalho é uma “atividade conforme a conhecemos hoje. Podemos
que exige do gênero humano o uso considerar que o primeiro ato histórico do
constante das capacidades mentais e físicas ser humano foi a produção dos meios
na construção dos meios que possibilitem necessários para satisfazer suas
a sobrevivência” (MEKSENAS, 2005 p. 17). necessidades humanas. Então, aqui o
Portanto, não cabe reduzir o trabalho a trabalho se apresenta como uma relação
algumas atividades que ao longo da permanente entre ser humano e natureza,
história o mesmo foi assumindo, embora pois ao realizar determinadas ações que

52 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


lhe permitem a construção de certos formação oriunda da maneira de como
instrumentos, o homem vai transformando produzimos a nossa existência. Neste
a natureza externa, deixando suas marcas sentido, DALMAGRO (2007, p.7) ressalva
e concomitantemente vai também que “as formas e os objetivos educacionais
modificando a sua própria natureza. É o de qualquer sociedade se encontram
que afirma Marx (1988, p.142): sempre em relação íntima com o modo de
vida forma social e, portanto, com suas
Antes, o trabalho é um processo relações de produção e de trabalho. O
entre o homem e a natureza, um processo processo educativo consiste de modo geral
em que o homem, por sua própria ação, em ensinar os “indivíduos” a conviver em
medeia, regula e controla seu metabolismo uma determinada sociedade, isto é,
com a Natureza. Ele mesmo se defronta com comungando o modo de vida, os valores e
a matéria natural como uma força natural. as relações socialmente aceitas. As formas
Ele põe em movimento as forças naturais de educação predominantes nas diferentes
pertencentes à sua corporeidade, braços, épocas efetivam-se como necessidade de
pernas, cabeça e mãos, a fim de se apropriar cada período histórico, significando que a
da matéria natural numa forma útil à educação não é determinante das
própria vida. Ao atuar, por meio desse sociedades, mas fruto do que e como os
movimento, sobre a natureza externa a ele homens produzem sua existência.
e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo
tempo, sua própria natureza. Diante do exposto, percebe-se, então,
que é por meio da educação que os grupos
sociais tentam tornar comum alguns
Embora esse processo ainda ocorrer valores, práticas, idéias, posturas. Assim,
nos dias de hoje, na medida em que o nesse movimento da vida vai ocorrendo o
gênero humano evolui realizando o processo de socialização como sendo a
processo de transformação da natureza por capacidade que os indivíduos têm de
meio do trabalho, ele cria outras influir no comportamento do outro,
necessidades humanas, novos valores, aprendendo e ensinando, conhecendo e se
idéias, crenças que dependem do modo de fazendo conhecer nas ações que emergem
ser no mundo. Com isso, passa a existir a do desejo permanente de, nas práticas
preocupação de poder assegurar para as cotidianas, afirmar a existência humana.
gerações futuras certos aprendizados que Portanto, educar é preparar novos sujeitos
garantam a sua sobrevivência. Para sociais capazes de realizar a reprodução e
MEKSENAS (2005), esse fato faz com que a transformação na nossa existência social.
o ser humano se preocupe em transmitir
suas experiências cotidianas a seus Para muitos, a Educação é algo
semelhantes. Aquilo que se aprende na exclusivo da instituição Escola. Visão esta
prática é veiculado para outras pessoas o amplamente difundida pela classe
que possibilita que o conhecimento hegemônica quando lhe interessa,
humano sobre a natureza não se perca, mas chegando a ignorar a existência de outros
se acumule de geração em geração. Nasce, tempos e espaços que são por excelência
assim, a educação: maneiras de transmitir experiências sociais motoras de
e assegurar a outras pessoas o aprendizagens. É preciso romper com tais
conhecimento de crenças, técnicas e hábitos paradigmas e perceber que a formação dos
que um grupo social já desenvolveu a sujeitos acontece em outros tempos e
partir de suas experiências de espaços, não sendo privilégio somente da
sobrevivência (MEKSENAS, 2005). escola. As pessoas aprendem na sua prática
cotidiana e na sua experiência humana, pois
Portanto, a educação em seu sentido estas práticas estão carregadas de
geral refere-se a um amplo processo de significados, o que garante processos de

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 53


aprendizados que possibilitam projetar desenvolvimento humano. Para manter
aquilo que necessitam para viver melhor. esse sistema e continuar com a reprodução
Sendo assim, nos educamos no trabalho, capitalista faz-se necessário a perpetuação
na família, na comunidade, nos da exploração da força de trabalho.
movimentos sociais, na escola,
aprendemos e ensinamos em coletivos, Entretanto, o trabalho tem a
pois viver em coletivo é o que possibilita potencialidade de ser um ato criador de
a existência humana. riquezas a serviço da humanidade.
Todavia, a lógica de organização da vida
É importante ressaltar que tais ao longo da história, possibilitou
afirmações não ocultam o papel da escola mudanças tais que os seres humanos, em
na sociedade. Ao contrário, reafirmam-na sua maioria, foram compelidos à
como um dos múltiplos espaços em que a construção da subordinação do trabalho ao
formação humana acontece. A escola capital, condição central que sustenta a
reflete as práticas sociais, o processos existência do sistema capitalista. Nessa
educativo que acontece fora dela tais como relação de subordinação do trabalho ao
o mundo da produção, da luta social, da capital o que ocorre é um processo de
cultura, construindo assim o que deve e o expropriação dos trabalhadores dos meios
que pode ensinar, pressuposto de seu de produção e dos produtos por ele
trabalho pedagógico, intimamente ligado criados, restando-lhes apenas a sua força
às questões mais amplas da formação de trabalho como mercadoria, pois como
humana. os trabalhadores não possuem os meios de
produção social, eles são obrigados a
A educação apontará para uma nova
vender a única coisa que tem, ou seja, a sua
sociedade, formará novos sujeitos, quando
capacidade de trabalhar.
articulada com a luta para que o trabalho
seja pautado por relações superiores às
As transformações ocorridas no
relações capitalistas. Por isso, faz-se
modo de produção nas últimas décadas têm
necessário a busca constante para construir
aprofundado formas intensivas de
novas bases produtivas que democratizem
exploração da força de trabalho,
a terra, eliminem a propriedade privada
dos meios de produção, que garantam a semelhantes as que foram predominantes
soberania alimentar e preservem a nos primórdios da sociedade capitalista1 e,
biodiversidade, e que possibilite a geração dentre elas, o trabalho de crianças e
de renda. A luta por novas bases adolescentes. Nesse processo de
produtivas implica necessariamente em incorporação das crianças podemos
novas relações educativas. Ambas as perceber o caráter de exploração do
práticas tratam de processos educativos/ trabalho, sobretudo quando envolve
formativos que devem apontar para a principalmente atividades de período
formação de novos sujeitos sociais e para integral, com longas jornadas, em atividades
a construção de uma sociedade solidária, que deixam as crianças deveras estressadas
livre, plena e, socialmente justa. Portanto, e incompatíveis com a idade, o que as
são as contradições geradas pelo próprio impedem do acesso à escola,
sistema capitalista que provocam um comprometendo a sua dignidade e
processo de desigualdade social e autoestima. Um exemplo é o caso de
econômica fundado em uma divisão de crianças que sofrem abuso e exploração
classes que reduzem possibilidades do sexual, dentre outros aspectos.

1
Para ampliar essa informação conferir, entre outros, ENGELS, FRIEDRICH. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra.
São Paulo: Editora Boitempo, 2008.

54 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Portanto, a utilização do trabalho Ainda em SOUZA (2004), sem negar
infanto-juvenil no processo produtivo tem a função prática do trabalho, ressaltamos
a sua razão de ser nas relações sociais que ele deve ser visto também como
capitalistas e na relação que se estabelece dispositivo de socialização das crianças do
com o novo modo de produzir. Ela não é campo. O trabalho lhes dignifica, garante-
resultado da vontade das famílias dos lhes a honra e o respeito que lhes são
trabalhadores, muito menos, de devidos, adquirindo um caráter
determinada tradição cultural, como os socializador. Para alguns, essa experiência
ideólogos do sistema capitalista costumam da infância no campo retira e ignora a
afirmar (SILVA, 2003, p.3)2. dimensão lúdica, o que em parte podemos
considerar uma verdade (quando se trata
Quando, como em muitos casos, a de um trabalho que submete a criança a uma
criança trabalha no campo, ela na disciplina rígida e carga horária intensiva).
verdade atende a uma necessidade Por outro lado, precisamos considerar os
objetiva, porque é a própria sociedade momentos que foram e que são lúdicos: o
que a empurra para isso. Portanto, seria transformar a espiga de milho em uma
cômodo atribuir total responsabilidade boneca e passar horas e horas brincando, ou
para as famílias. São as condições então, brincar de esconde-esconde na
econômicas, sociais e culturais que são plantação, criar histórias em baixo das
geradas pelo sistema capitalista que árvores ou nos ranchos. Obviamente que
obrigam as famílias a exigirem o trabalho aqui não dá para olhar somente para o
infantil. No entanto, não podemos aspecto da cultura, da socialização. Mas
existe forte determinação nas necessidades
considerar toda atividade infantil como
econômica das famílias que acabam desde
trabalho explorado. Entendemos que é
cedo introduzindo a criança no mundo do
importante a introdução das crianças no
trabalho com a preocupação de garantir a
trabalho, desde que considerado como
transmissão de saberes acumulados a sua
medida de socialização, de aquisição de
geração seguinte, aos filhos, netos etc.
responsabi- bilidades, de noção de
produção da existência, de acordo com
as possibilidades da criança. Para Então, por que o trabalho educa?4
SOUZA (2004)3:
O trabalho educa porque atinge
No caso dos camponeses, o trabalho várias dimensões da formação humana:
infantil precisa ser compreendido a partir
das condições sociais de sua reprodução e - O trabalho educa formando consciência.
não de determinações capitalistas (Menezes,
2000:03), pois, nessas unidades, o trabalho Compreendemos aqui consciência
emerge como valor central na socialização como a visão de mundo das pessoas e seu
das crianças até chegado o momento de jeito de se posicionar diante da realidade.
freqüentarem a escola, geralmente a partir Seu modo de pensar, suas crenças, seus
dos sete anos de idade, quando passam a gostos, seus valores éticos e culturais.
vivenciar uma nova forma de socialização Sabemos que é a existência social que
que não substitui o trabalho, mas que se forma a consciência social de cada um de
une a ele. nós. Ou seja, nossa visão de mundo

2
SILVA, Francisco Carlos Lopes da. O trabalho infanto-juvenil na sociedade capitalista. (artigo disponível no site: http://
www.educaremrevista.ufpr.br/arquivos_15/lopes_da_silva.pdf - acessado no dia 10 de janeiro de 2008.
3
SOUZA, Emiliene Leite de. Um outro olhar sobre o trabalho infantil: o caso das crianças de Capuxu. UFPB, 2004.
4
Os elementos que se seguem nos três tópicos estão presentes no Boletim de Educação do MST de nº. 04, 1994.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 55


depende das condições objetivas em que ser humano tornar-se cada vez mais
vivemos. E entre estas condições objetivas, humano, cada vez mais pleno.
a forma como garantimos a nossa Na concepção do trabalho, tendo
sobrevivência material é a mais como base da formação e educação
determinante. É muito diferente o nível de humana mexer com todas as dimensões,
consciência de quem está dentro de um podemos dizer que o consideramos mais
processo produtivo e de quem não está. O plenamente educativo quando ele for uma
trabalho é uma dimensão tão forte para a atividade humana ampla, livre de
vida das pessoas que molda a sua mediação com a natureza e com outros
personalidade, o seu jeito de ser. seres humanos, muito além da exploração
do capital. Dentre as dimensões
- O trabalho educa produzindo conheci- destacamos algumas:
mentos e criando habilidades.
- a formação organizativa;
- a formação técnico-profissional;
Grande parte do conhecimento
- a formação do caráter ou moral
científico produzido pela humanidade
(valores, comportamento com as outras
nasceu a partir do trabalho e das pessoas);
necessidades de tornar a relação com a - a formação cultural e estética;
natureza mais facilitada e enriquecedora - a formação afetiva.
para o ser humano. Através do trabalho,
as pessoas incorporam pelas ações e
comportamentos o acúmulo dos Considerações finais
conhecimentos produzidos, e produzem
novos, à medida que passam a dominar a Diante do exposto, podemos
técnica do que fazem. concluir que o trabalho é ao mesmo tempo
educativo e deseducativo, pois ao mesmo
- O trabalho educa provocando neces- tempo em que ele está pautado por um
sidades humanas superiores. processo de exploração, onde os
trabalhadores só obedecem sem discutir
As pessoas, para atenderem as suas sobre o processo produtivo, ele permite a
necessidades básicas ou naturais, comem, produção da existência humana,
vestem-se, moram, reproduzem-se. Á produzindo o próprio ser humano. As
medida que trabalham, passam a aumentar pessoas se educam quando experimentam
o círculo de objetos e de pessoas com as o trabalho socialmente dividido, o que leva
quais se relacionam. E quanto mais a uma ação concreta de cooperação. Ao ter
aumenta este círculo, mais aumentam as que executar algumas tarefas com
eficiência, as pessoas se apropriam de
necessidades. Em vez da simples
habilidades técnicas. Mas o fundamental,
necessidade de comer, por exemplo,
e assim será educativo, quando a
aparece a necessidade de comer alimentos
apropriação da riqueza produzida for
cozidos, com talheres, etc. Assim como
socialmente dividida.
aparecem as necessidades de caráter mais
cultural: ler, conhecer lugares, freqüentar Ainda, fundamentalmente, quando
festas, aprender cada vez mais sobre o que há o trabalho coletivo, percebe-se que as
nos cerca, sobre o mundo em geral. Quanto circunstâncias vão possibilitando estes
maior o número e mais complexas as trabalhadores e trabalhadoras a se
necessidades, maiores são os motivos para perceberem enquanto classe que é
prosseguir e se qualificar no trabalho. E explorada. É importante lembrar que não
este parece ser o ciclo fundamental para o é o tipo de trabalho que torna mais

56 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


educativo ou deseducativo, mas “são as DALMAGRO, Sandra. Sobre Trabalho,
relações que as pessoas conseguem Educação e a Escola. UFSC, 2007 (Texto
estabelecer com o trabalho e entre si, para elaborado para apresentação em Seminário
realizá-lo, os elementos determinantes do no Doutorado).
seu caráter mais educativo ou mais
deseducativo” (MST, 1994). ENGELS, FRIEDRICH. A Situação da
Classe Trabalhadora na Inglaterra. São
Considerando as reflexões até aqui Paulo: Editora Boitempo, 2008.
apresentadas, reafirmamos a idéia de que
o trabalho tem um potencial pedagógico. FRIGOTTO, Gaudêncio. CIAVATTA,
Para FRIGOTTO (2007 p.3) “nesta Maria. (orgs). Ensino médio: ciência,
concepção de trabalho o mesmo se cultura e trabalho. Brasília: MEC, SEMTEC,
constitui em direito e dever e engendra um 2004.
princípio formativo ou educativo. O
trabalho como principio educativo deriva FRIGOTTO, Gaudêncio. Concepções e
do fato de que todos os seres humanos são mudanças no mundo do Trabalho e o
ensino médio. 2007.
seres da natureza e, portanto, têm a
necessidade de alimentar-se, proteger-se
KONDER, L. A construção da proposta
das intempéries e criar seus meios de vida.
pedagógica do SESC Rio. Rio de Janeiro,
É fundamental socializar, desde a infância,
Editora SENAC, 2000.
o princípio de que a tarefa de prover a
subsistência e outras esferas da vida pelo
MARX, K. O Capital. Volume I. 3. ed. São
trabalho, é comum a todos os seres
Paulo:Nova Cultural, 1988.
humanos, evitando-se, desta forma, criar
indivíduos ou grupos que exploram e
MEKSENAS, Paulo. Sociolgia da
vivem do trabalho de outros”. Educação: introdução ao estudo da escola
no processo de transformação social. 12º ed.
Compreender o trabalho como São Paulo: Loyola, 2005.
processo educativo é afirmá-lo como
experiência humana que se enraíza no MST. Dossiê MST Escola: Documentos e
sentido da luta constante dos seres Estudos 1990 – 2001. Caderno de Educação
humanos em produzir a sua própria nº 13. Edição Especial. São Paulo 2005.
existência, rompendo com qualquer forma
de discriminação, marginalização, MST. Escola, Trabalho e cooperação.
exploração. E por fim, parafraseando Boletim da Educação nº 4.São Paulo, 1994.
Paulo Freire, ninguém trabalha sozinho as
pessoas trabalham e se educam entre si, ORGANISTA, José Henrique Carvalho. O
descobrindo assim novos caminhos. debate sobre a centralidade do trabalho.
ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

SILVA, Francisco Carlos Lopes da. O


trabalho infanto-juvenil na sociedade
Referências Bibliográficas capitalista. 2003.

SOUZA, Emiliene Leite de. Um outro olhar


ANTUNES, Ricardo. (org). A dilalética do sobre o trabalho infantil: o caso das
trabalho. São Paulo: Expressão Popular, crianças de Capuxu. UFPB, 2004.
2004.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 57


58 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
Agroecologia
e Educação do Campo

Aloisio Souza da Silva

Integrante da Via campesina, educador nos Centros de Formação


por Alternância do Espírito Santo e educando do Curso Especial
de Geografia-CEGeo- Licenciatura e bacharel (parceria UNESP-
Presidente Prudente/INCRA-PRONERA/ ENFF).

Leandro Feijó Fagundes

Integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra


e educando do Curso Especial de Geografia – CEGeo - Licenciatura
e bacharel (parceria UNESP- Presidente Prudente/INCRA-
PRONERA/ ENFF).

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 59


O presente texto tem como intrínsecos a um mesmo processo de
finalidade contribuir com o processo de superação do avanço do capitalismo sobre
reflexão em torno da Agroecologia e da o Campesinato.
Educação do campo. Neste sentido, serão
abordados elementos que nos remetem a
(re)dimensionar o tema proposto, talvez As transformações na agricultura
um tanto diferente como a maioria dos
autores tenham o tratado. Isso porque A agricultura originou se há cerca de
entendemos que o tema merece ser 10.000 anos, passando por processos lentos
refletido a partir de sua complexidade de forma evolucionária e, não,
histórico-geográfica, como um desafio revolucionária. Muitos autores, ao expor
colocado no processo de pensar e agir este assunto, colocam que a revolução
sobre a realidade em diferentes escalas, verde foi um salto em termos de tecnologia
numa perspectiva territorial camponesa. e produtividade, mas isso não é verdade.
O que temos que ter bem claro é que
O texto esta estruturado em três sistemas agrícolas complexos evoluíram em
momentos: o primeiro, tratamos das diferentes partes do mundo, com alta
principais transformações ocorridas na produtividade, a exemplo de Chinampas-
agricultura, com destaque aos processos México, usando tecnologia, que contrastam
de industrialização, bem como os com as teorias de invenção da agricultura
movimentos de resistência a esta lógica moderna.
econômica; segundo, desenvolvemos
reflexões a partir do debate teórico- Neste sentido, a origem da
prático da Agroecologia, destacando os agricultura é a mesma do Campesinato, o
autores e suas principais contribuições qual se coloca como uma classe social
para construção enquanto ciência; por fim, historicamente definida, que se fez e se
o tema da Educação, Agroecologia e refez no trabalho familiar e comunitário e
Território Camponês, como elementos na relação direta com os elementos da

60 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


natureza, desenvolvendo tecnologias apresentar na multiplicidade de estratégias
próprias de cada tempo e lugar, e uma dentro do Campesinato adotadas, diante
cultura complexa que se baseia em de diferentes situações, que podem
conhecimentos empíricos e cosmológicos conduzir ora ao “descampesinamento”, ora
da realidade. a sua reprodução enquanto modo de vida
e trabalho camponês. (MARQUES, 2008)
Essa agricultura, dita atrasada por
muitos, tem como principal característica e Essa agricultura “esquecida”
princípio o respeito aos ecossistemas de precisa ser reafirmada como um modo de
origem. Os Camponeses domesticaram o vida que estabelece relações de produção
solo, a água, as plantas, os animais etc, e de reprodução sócio econômica que
desenvolvendo técnicas e instrumentos detêm em sua gênese princípios não
cada vez mais eficientes e adequados, capitalistas. Isso, a fim de construir
capazes de prover a vida das comunidades. soluções concretas que incorporem todas
Ao lidar com os fenômenos da natureza, os as dimensões complexas da vida humana,
camponeses produziram conhecimentos para que seja modificado radicalmente o
elementares que, posteriormente, alguns, quadro atual. Quadro que congrega um
foram sistematizados e até patenteados conjunto de crises que se manifestam na
pela ciência moderna, contrariando por concentração fundiária e demográfica,
completo a perspectiva solidária e degradação ambiental, erosão cultural e
comunitária dos camponeses.
genética, dentre outros aspectos.

Sem dúvida, as insistências,


A busca por alternativas ao modelo
sobretudo teóricas, da ausência do
capitalista deve passar, principalmente,
Campesinato na sociedade contemporânea
pela mudança de concepção de
em função de sua integração direta ou
agricultura e de campo, ou seja, pela
indireta com o mercado capitalista, faz parte
maneira de planejar o “desenvolvimento
de um projeto social dominante que tem
territorial”, não mais vinculada única e
como perspectiva a inserção e a integração
exclusivamente aos interesses da indústria
sistemática de tudo e de todos à lógica do
capitalista (como propunha a lógica
capital. Pelo contrário, entendemos que estas
desenvolvi- mentista dos Estados
relações são parte de uma estratégia, que os
nacionais da América Latina, baseados na
camponeses adotaram de forma
orientação da CEPAL - Comissão
involuntária, de sobrevivência às
“intempéries” da história para garantir sua Econômica para a América Latina e Caribe,
reprodução social, não perdendo sua sobretudo a partir da década de 1950, data
originalidade essencial que é a capacidade que integra a produção agropecuária à
de trabalhar e viver com e na terra. produção industrial em duplo sentido, a
partir da utilização de máquinas, insumos
O Campesinato possui uma industriais, fertilizantes, agrotóxicos e
organização da produção baseada no outras tecnologias de produção, e partir
trabalho familiar e no “uso” como valor. O da destinação direta dos produtos à
reconhecimento de sua especificidade não indústria, através da integração e da
implica a negação da diversidade de formas especialização, priorizando o comércio
de subordinação, as quais podem se exterior).

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 61


Sólo através de un cambio en las pautas A implantação deste modelo de
del desarrollo, abandonando un modelo de agricultura fez parte dos projetos
agricultura industrial destinada a la desenvolvimentistas, com efetiva
exportación, basada en un sistema de libre participação do Estado aliado ao capital
comercio, de grandes explotaciones, internacional, gerando uma economia
concentración de las propiedades y desigual e combinada entre centro e
desplazamiento de las personas, poderemos frenar periferia.
la espiral creciente de pobreza, bajos salarios,
migración del campo a La ciudad, y degradación A economia periférica é
ambiental. (ROSSET, 2007) especializada e heterogênea. Especializada
porque a maior parte dos recursos
Quando ocorreu a grande crise do produtivos é destinada à ampliação do
capitalismo nos anos de 1870 a 1896, a setor exportador. As novas tecnologias são
agricultura passou a ser subordinada a incorporadas apenas nos setores
indústria. Ocasionada pelo avanço da exportadores primários e atividades
indústria química e mecânica do século XX, diretamente relacionadas, que coexistem
a nova visão de agricultura, submetida com setores atrasados dentro do mesmo
pelos grandes grupos capitalistas, era país. Por isso, a periferia é heterogênea,
produzir somente para o mercado. pois nela coexistem setores atrasados com
setores de elevada produtividade (setores
exportadores). Já a economia dos centros é
Esta visão reducionista de lidar com
diversificada e homogênea. No sistema
os recursos naturais foi chamada na época
econômico mundial, cabe a periferia
de “revolução verde”. Este período foi
produzir e exportar matérias primas e
marcado pela geração de conhecimentos
alimentos, devendo os centros produzirem
tecnológicos destinados a agropecuária no
e exportarem bens industriais. O conceito
mundo inteiro e sistematizados em pacotes
de centro-periferia demonstra a desigual-
tecnológicos abrangendo a área da química,
dade inerente ao sistema econômico
da mecânica e da biologia. (BELATOS apud
mundial, com a distância entre centro e
ZAMBERLAM & FRONCHETI, 2001)
periferia tendendo sempre a aumentar.
(PREBISH apud BERCOVICI, 2003)
No início da década de 1950, esta
concepção de agricultura química foi
Este modelo de agricultura
introduzida no Brasil com o objetivo de
produziu, se não a maior, a mais
aumento de produção. Em pouco tempo, o importante contradição da sociedade
espaço agrário brasileiro foi modificado, brasileira que é a concentração da terra
abandonando as formas artesanais de versus a concentração demográfica, com
produção em favor das tecnologias maior acentuação a partir dos anos 60, com
industriais. Desta maneira, agravou-se as fortes migrações para a região sudeste do
desigualdades sociais, visto que priorizou- Brasil. Não obstante, isso provocou
se o latifúndio em detrimento do problemas de várias ordens, sobretudo no
minifúndio, que era tido como inviável e que diz respeito às condições de vida da
incapaz de produzir alimentos população e uso e conservação dos
satisfatoriamente, ainda mais para atender recursos naturais. Dentre estes, destacamos
ao mercado externo. o uso exagerado de agrotóxicos,

62 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


ocasionando envenenamento dos concordando com Bercovici, que afirma
agricultores, dos alimentos, do solo e da que quando não ocorre nenhuma
água, pelo uso crescente dos agrotóxicos, transformação, seja social, seja no sistema
colocando o Brasil entre os seis maiores produtivo, não se está diante de um
importadores entre os anos de 2000 e 2007, processo de desenvolviment- to, mas da
participando com 4% do total das simples modernização. Com a
importações mundiais (ANVISA,2010). modernização, mantém se o subdesenvol-
vimento, agravando a concentração de
Várias teorias e estudos apontam renda (BERCOVICI, 2003).
que a humanidade nunca viveu, em sua
fase de civilização, momentos que se Mais recentemente, este modelo
comparam ao atual, principalmente em econômico agroexportador ganha outra
relação ao meio ambiente, que pelo uso nomenclatura, conhecida como
sem limites impostos pelo Capital, vem AGRONEGÓCIO, marcada por uma nova
nas ultimas décadas comprometendo a geração tecnológica de modernização do
capacidade de reprodução da biosfera,
campo, que se articula e se efetiva por
gerando um déficit ambiental para as
meio de várias frentes articuladas e
futuras gerações. A todo o momento é
simultâneas, dentre elas a educação
propagandeado pela mídia a derrubada
escolar, através dos cursos de capacitação
de florestas tropicais, como é o caso da
que especializam a mão de obra e
Amazônia, um dos maiores depositários
propagam a ideologia do
de biodivercidade.
empreendedorismo rural no imaginário
popular camponês.
Embora muitos apontem que esta
problemática é característica dos países
Agronegócio é uma palavra nova,
considerados subdesenvolvidos, no
da década de 1990, e é também uma
sentido de culpá-los por isso, entendemos
o contrário, pois o subdesenvolvimento construção ideológica para tentar mudar
faz parte de uma lógica da divisão a imagem latifundista da agricultura
internacional do trabalho e da capitalista [...] É uma tentativa de ocultar
geoeconomia mundial. É uma face o caráter concentrador, predador,
necessária aos países desenvolvidos e não expropriatório e excludente para dar
uma fase ou estágio do desenvolvimento relevância somente ao caráter produtivista,
econômico. Em outras palavras, “o destacando o aumento da produção, da
subdesenvolvimento é, portanto, um riqueza e das novas tecnologias[...]
processo histórico autônomo e, não, uma (FERNANDES, 2004).
etapa pela qual tenham, necessariamente,
passado as economias que já alcançaram Podemos então, afirmar que o
grau superior de desenvolvimento” agronegócio é um processo de moderni-
(FURTADO, 1989). zação das atividades agropecuárias, e não
um desenvolvimento econômico como
Embora seja comum associarmos consta nos discursos e planejamentos
crescimento econômico a desenvolvi- territoriais, articulados pelo Estado a partir
mento, aqui faremos uma distinção, dos interesses do Capital.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 63


No início do século XX, mais cultivo que favoreciam os processos
especificamente na década de 1920 biológicos dos ecossistemas locais.
surgiram as primeiras correntes Podemos considerar quatro grandes
alternativas ao modelo industrial ou vertentes: agricultura biodinâmica,
convencional de agricultura. Estas, por sua biológica, orgânica e natural, como
vez, preconizavam o uso de práticas de veremos no quadro a seguir:

Vertente País
Pensador/es Características
Período
Esse método preconizava a moderna abordagem sistêmica,
entendendo a propriedade como um organismo sadio, onde solo,
BIODINÂMICA Alemanha Rodolf Steiner planta, animais e o homem convivem em harmonia e a fertilidade
1924 é a base de sua auto-suficiência. Steiner ressaltou a importância
das relações entre o solo e as forças de origem cósmica da natureza,
recomendou o uso de preparado biodinâmico elaborado por ele.
Este método foi difundido pelos praticantes da antroposofia.
Albert Fundamenta-se no uso de composto orgânico, aproveitando os
Inglaterra Howard resíduos internos do local. Howard inventou o processo “indore”
ORGÂNICA 1925 a 1930 & de compostagem, que aprendeu com agricultores indianos.
Jerome Irving
Rodele
Preconiza a menor alteração possível no funcionamento natural
dos ecossistemas. Não usa aração, rotação de culturas, nem o uso de
Japão
NATURAL Mokiti Okada compostos oriundos de estercos animal. Mais recentemente, a
1930 a 1940 agricultura natural tem se concentrado no uso de um preparado
biológico, EM (Micro organismos Eficazes). Essa corrente é ligada e
difundida pela igreja Missiânica e pelo mestre Masanobu Fukuoka.

Os aspectos econômicos e sócio políticos eram a base da proposta, se


preocupando com a autonomia dos produtores com a comercialização
Suíça Hans Peter direta aos consumidores. Foi na frança, em 1960, que a agricultura
BIOLÓGICA 1930 biológica mais se difundiu, tendo como difusor Claude Albert, que
Muller
propunha a saúde das plantas, consequentemente dos alimentos,
dando se por meio da manutenção da “saúde” dos solos. Este principio
apóia-se em um tripé, cujas bases de igual importância são: o manejo
dos solos, a fertilização com fosfatos naturais, basalto e rochas
calcárias, e a rotação de culturas.

As correntes citadas anteriormente cuja preocupação geral estava no


são as primeiras a contestar o modelo propósito de valorizar os aspectos sócio
imposto pela lógica da economia culturais da produção agrícola.
industrial para a agricultura. Na busca de
alternativas, na perspectiva de um modelo Neste sentido, todas as iniciativas
rural sustentável, surgem os movimentos sócio-politico-econômicas de contraposi-
ambientalistas da década de 80, que se ção ao capital precisam se colocar na
coloram radicalmente contra o modelo dimensão territorial, ou melhor, na
produtivo, calcado na revolução verde. perspectiva de organização do território
Esses movimentos visavam, sobretudo, sob outra concepção de campo e de
gerar um debate a respeito das desenvolvimento, que vai para além do
consequências do modelo agroindustrial crescimento econômico, mas que
para a população e para o meio ambiente, considera as múltiplas dimensões do

64 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


território camponês. Talvez, essa questão educação do que na de escola especifica-
seja relativamente nova na discussão em mente. Porém, contraditoriamente, os
torno da agroecologia e da educação do apontamentos de outra lógica educativa
campo. Porém, não porque as elaborações têm se resumidos às ações da escola.
desconsideraram as questões colocadas,
mas, sim, porque colocamos a agroecologia Esta, por sua vez, também possui
no plano da dimensão do planejamento suas limitações históricas, por cumprir um
territorial, e a educação como principal papel especifico no processo educativo.
meio de efetivação desta perspectiva. Em algumas situações, não temos
conseguido traduzir para nosso cotidiano,
Isso significa que precisamos todas as análises teóricos conceituais da
desvincular as pesquisas e práticas desses Educação do Campo, embora haja
interesses, e proporcionar uma produção experiências diversas e ricas, de grande
de técnicas e equipamentos menos nocivos relevância.
ao ambiente, com base ecológica e que
possam estar à disposição de todos, Portanto, não se trata aqui de
redirecionando a produção para além dos diminuir ou mesmo subjulgar sua
interesses econômicos do grande capital, capacidade e função sócio histórica. Muito
colocando-os no plano da sociedade. pelo contrário. Entendemos que a escola
tem muitas contribuições a oferecer numa
Em vista deste quadro, surge uma perspectiva agroecológica, por ser um
nova perspectiva de discussões que espaço privilegiado de reflexão e análise
defendem a Agroecologia e a Educação do da realidade concreta, de produzir
Campo como uma possível superação ao estímulos que contribuam com a formação
modelo atual de ordenamento e de personalidades, de leituras e atitudes
organização territorial do Campo. Mas, diante do mundo. É dotada de conheci-
apesar de todo este empenho, encontramos mento sistematizado e composta por
dificuldades de entender e “operacionali- instrumentais pedagógicos.
zar” estes conceitos, haja visto que muitos
tratam, no caso da Agroecologia, como A questão colocada é em relação ao
uma substituição de pacotes, do químico desafio de construir, na concretude das
para o orgânico, tendo somente um caráter relações sociais,outra perspectiva de
econômico, e, no caso da Educação do organização da economia e da sociedade,
Campo, uma simples substituição da onde a complexidade da educação se efetive
escola da cidade por uma escola do campo. na perspectiva agroecológica, em várias
dimensões da vida camponesa, tendo a
Então, será que ambas as escola tarefa fundamental neste processo, a
perspectivas, embora relevantes, não de servir de “coração para pulsar” a
apresentam limitações, por reduzir a vitalidade da possibilidade de romper com
agricultura e a vida no campo à dimensão a lógica da economia industrial.
econômica, e reduzir a educação à escola?
Talvez esta questão seja um tanto A agroecologia, neste sentido, passa
impactante e provoque inquietações, pois a ser tratada aqui como a organização do
de maneira geral há um entendimento que território camponês, e a escola como
avançamos mais na concepção da principal mecanismo de construção desta

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 65


possibilidade, de contribuir concretamente formas de ação social coletiva que
com a “re-educação” das relações que se apresentam alternativas à atual crise de
efetivam na vida cotidiana. modernidade, mediante propostas de
desenvolvimento participativo, desde os
âmbitos da produção e da circulação
O debate da Agroecologia alternativa de seus produtos, pretendendo
estabelecer formas de produção e de
A partir destes movimentos, surge
consumo que contribuam para encarar a
a agroecologia, que passou a se firmar como
crise ecológica e social, e deste modo,
disciplina científica, principalmente a
restaurar o curso alterado da co-evolução
partir dos pesquisadores Altieri e
social ecológica. Sua estratégia tem uma
Gliessman. Estes autores definem a
natureza sistêmica ao considerar a
agroecologia como uma das formas de
desenvolvimento capaz de criar um novo propriedade, a organização comunitária e
conceito de agricultura sustentável, já que o restante dos marcos de relações das
os estudos agroecológicos davam conta de sociedades rurais, articulados em torno da
algo que a agronomia convencional não dimensão local, onde encontram os sistemas
valorizava: a integração dos diferentes de conhecimento portadores do potencial
campos do conhecimento agronômico, endógeno e sócio-cultural. Tal diversidade
ecológico e sócio econômico. Neste é o ponto de partida de suas agriculturas
momento, ocorre uma compreensão e alternativas, a partir das quais se pretende
avaliação do efeito das tecnologias sobre o desenho participativo de métodos de
os sistemas agrícolas e a sociedade como desenvolvimentos endógeno, para
um todo. (ALTIERE, 2000) estabelecer dinâmicas de transformação em
direção as sociedades sustentáveis”.
Nesse sentido, a agroecologia carre-
ga em seu interior, além da preocupação Não podemos confundir a
com o equilíbrio de agroecossistemas, a agroecologia com um modelo de
responsabilidade de tentar servir de
agricultura que adota determinadas
alternativa para a busca de um novo
práticas ou tecnologias agrícolas, e, muito
caminho de desenvolvimento sócio
menos, como oferta de produtos “limpos”
econômico, principalmente para os países
ou ecológicos, em oposição aqueles
em ‘desenvolvimento’. Diferente da
característicos dos pacotes tecnológicos da
agricultura orgânica, biológica, natural ou
da biodinâmica, que visam basicamente revolução verde. (CAPORAL e
produzir alimentos mais saldáveis a custos COSTABEBER, 2000)
menores, a agroecologia tem consigo uma
preocupação maior e bem centrada nas Segundo alguns autores, a ideia de
questões sociais. transição na agroecologia é entendida
como um processo gradual e multilinear
Segundo Eduardo Sevilla Guzmán de mudanças, que ocorrem através do
(Universidade de Córdoba - Espanha), a tempo, nas formas de manejo dos
agroecologia constitui o campo dos agroecossistemas. Mas sempre tratando-se
conhecimentos que promovem “manejo de um processo social, pois depende
ecológico dos recursos naturais, através de sempre da intervenção humana.

66 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


A agroecologia é o estudo holístico tenha como ponto de partida a dimensão
dos agroecossistemas, abrangendo todos os local, pois os sistemas de conhecimento
elementos humanos e ambientais. Enfoca endógenos são portadores, na sua essência
a forma, a dinâmica e as funções dos da co-evolução social ecológica e cultural.
conjuntos das inter-relações e de processos
nos quais estes elementos estão envolvidos, A agroecologia é essencialmente
constituindo, assim, uma grande teia. camponesa. A história humana tem suas
raízes no Campesinato. Por isso, podemos
A agricultura sustentável, sob o dizer que a agroecologia é o meio pelo qual
ponto de vista agroecológico, é aquela que abrangeremos todos os elementos
é capaz de atender, de maneira integrada, humanos e ambientais. Neste sentido, a
aos seguintes critérios: baixa dependência visão da agroecologia precisa de uma
de inputs comerciais; uso de recursos dimensão que vá para além da agricultura
renováveis localmente acessíveis; sustentável, consolidando uma ação social
utilização dos impactos benéficos ou permanente, incorporando a multidimen-
benignos do meio ambiente local; aceitação cionalidade camponesa.
e/ou tolerância das condições locais, antes
da dependência da intensa alteração ou Todavia, em uma sociedade
tentativa de controle sobre o meio capitalista, tanto a agricultura como outras
ambiente; manutenção a longo prazo da dimensões da vida são levadas a imagem
capacidade produtiva; preservação da e semelhança da forma capitalista de se
diversidade biológica e cultural; utilização pensar o mundo. Segundo FERNANDES
do conhecimento e da cultura da “...as relações sociais capitalistas
população local; e produção de produzem relações sociais não
mercadorias para o consumo interno e para capitalistas”. Assim, em sua concepção, é
a exportação (GLIESSMAN, 1990); o mesmo dizer que os territórios
capitalistas produzem territórios não
Entretanto, ao refletirmos sobre a capitalistas. Esta é a oportunidade histórica
práxis da agroecologia, não única e exclu- que tem o camponês e a educação do
vamente voltada para as ações sócio- campo conceber a agroecologia como uma
econômicas, mas, sim, para trazer totalidade multidimensional, saindo da
elementos da lógica de funcionamento do dimensão econômica. FERNANDES,
Campesinato, percebe-se que estes quando trata da dimensão do território,
elementos, por sua vez, trazem princípios traz este como “totalidade e
agroecológicos. multidimensionalidade”, onde “as
disputas territoriais se desdobram em
Ao analisarmos o conceito proposto todas as dimensões, portanto, as disputas
por GUZMÁN, verifica-se que o ponto de ocorrem também no âmbito político,
partida é a relação homem-natureza, onde teórico e ideológico, o que nos possibilita
o homem sempre procurou de certa forma compreender os territórios materiais e
dominar a natureza. E a base para um imateriais”. (FERNANDES,2009)
processo agroecológico sem dúvida é a
ruptura desta lógica, perpassando por uma Nesta perspectiva, coloca-se em jogo
ação social coletiva, a fim de protagonizar dois projetos de desenvolvimento, um
um desenvolvimento participativo, que pautado na agricultura familiar integrada

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 67


ao capital, que tem como característica no e políticas mais amplas do que o conceito
discurso governamental a não de campo ou de rural somente como espaço
conflitualidade existente no campo de produção de mercadorias. (FERNADES,
brasileiro, onde todos podem entrar na 2006)
lógica de exploração capitalista, e um
outro, pautado pelo modo de vida Neste sentido, a educação
camponês, que coloca a agroecologia na entendida como os processos complexos
dimensão da conflitualidade da formação humana transcende as
“Campesinato X Agronegócio”. Este paredes da instituição escola, pois se faz
último tem em sua lógica a exploração dos historicamente por meio do conjunto das
recursos naturais de forma predatória em relações sociais que compõem as amplas
nome do lucro. inter relações da sociedade e natureza.

Portanto, a agroecologia está Porém, com o processo histórico de


intrinsecamente ligada a concepção organização da economia baseada na
camponesa, tornando-se um elemento indústria, como nos referimos
fundamental para uma nova organização anteriormente, os territórios camponeses
territorial. No sentido de que o camponês foram, de certa forma, contaminados com
é agroecológico e a agroecologia é esta lógica, configurando um quadro
camponesa, a constituição e a organização atual, também complexo, que exige uma
das multidimencionalidades do território superação cada vez mais imediata, dado
camponês, passa necessariamente pela o conjunto de problemas de ordem social
agroecologia. e ambiental vivenciados pela sociedade
contemporânea.

A educação, a agroecologia e o Neste sentido, a agroecologia se


território camponês coloca sobretudo em uma perspectiva real
concreta de reorganização do território
O campo pensado como um baseado em valores camponeses, que se
território compreende outras dimensões manifestam na cultura, na política, na
para além da econômica, superando as economia, e em outras dimensões da vida.
perspectivas capitalistas de organização da A educação é o meio pelo qual a política
produção agropecuária. econômica se efetiva na sociedade, sendo
O campo pode ser pensado como assim um projeto político econômico de
território ou como setor da economia. O organização do território camponês, exige
significado territorial é mais amplo que o uma educação camponesa que vá para
significado setorial que entende o campo além da instituição escola, ou seja, vários
simplesmente como espaço de produção de espaços e momentos de uma determinada
mercadorias. Pensar o campo como comunidade camponesa se transformam
território significa compreendê-lo como em educativos, como por exemplo, o
espaço de vida, ou como um tipo de espaço mutirão, a igreja, a festa... e a própria
geográfico onde se realizam todas as escola.
dimensões da existência humana. O conceito Isto não significa que estamos
de campo como espaço de vida é descartando esta instituição social, muito
multidimensional e nos possibilita leituras pelo contrário, estamos redimensionando

68 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


sua função sócio histórica. É a escola o entendemos que escola é espaço e ao
organismo social responsável pela mesmo tempo objeto de disputa de
elaboração do conhecimento sistematizado perspectivas territoriais antagônicas, que
de uma dada realidade concreta. As se manifestam na própria estrutura
teorias político-pedagógicas precisam se pedagógica como também nos currículos
efetivar na prática cotidiana do ambiente e conteúdos escolares. Isto significa que
escolar. Então, se a perspectiva que não somente a postura política do
colocamos ao território camponês é a educador é suficiente para romper por
agroecologia, como transformarmos a completo com este conflito. Mas vale
escola em uma escola agroecológica? ressaltar que sem ela, de maneira ética e
coerente, esta vitória é completamente
Num primeiro momento, afirmamos impossível.
que a principal característica desta escola é
ser uma escola “sem paredes”. Isto significa O mesmo acontece com a
que a escola não deve ser isolada da agroecologia tanto como conceito, como
realidade social a qual ela esta inserida. prática. A disputa se dá principalmente na
Entendendo-a como um espaço lógica, na finalidade e na forma de
privilegiado de uma reflexão sistemática, apropriação dos produtos resultantes do
a realidade concreta deve ser objeto trabalho agroecológico. Para o capital, o valor
permanente de investigação por meio de de troca sobrepõe o valor de uso, ou seja, o
instrumentos pedagógicos apropriados a que importa é o valor equivalente deste
cada ciclo da formação humana. produto a outras mercadorias, visando
sempre a acumulação privada do capital
A investigação, que num primeiro através do aumento das taxas de lucro, isto
momento parte do concreto, deve se se dá através da integração dos produtores
distribuir, num segundo momento, no agroecológicos (comumente reconhecidos
conjunto das disciplinas escolares para pelas certificadoras) ao mercado capitalista
que estas tenham condições pedagógicas de alimentos. O campo, nesta lógica é um
de dialogar entre si e com elementos da simples local de produção de mercadorias,
realidade, por meio de uma linguagem logo é compreendido unilateralmente pela
própria de cada momento escolar, dimensão econômica
garantindo assim o processo de
aprofundamento científico, afim de Para o Campesinato, ao contrario, o
projetar uma realidade possível com o valor de uso sobrepõe o valor de troca, ou
tecido social que a compõe. Neste caso seja, a apropriação do produto resultante
especifico, os educandos e sua respectiva do trabalho agroecológico prima pela sua
comunidade, ou seja, seu território. qualidade material no processo de
apropriação sócio-coletiva de alimentos, e
Como afirmamos anteriormente que cultural, pois nas relações sociais de
o Campesinato produz relações sócio- trabalho produz-se cultura, sentimento,
econômicas não capitalistas. A superação afeto e apego, tanto aos produtos, bem
do modelo de agricultura que contaminou como ao lugar de produção, neste sentido
o território camponês, só pode ser o território camponês transcende a lógica
efetivada pela própria lógica camponesa, econômica e se transforma em um espaço
ou seja, pela agroecologia. Porém, de viver, morar, trabalhar, estudar, etc.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 69


Outro elemento de disputa é a educadores/as é elemento central neste
questão da tecnologia, que tanto se faz contexto, pois exige: lucidez cientifica em
presente na escola, como na agroecologia. sua área de atuação específica, com domínio
Na ótica do capital, a agroecologia de mecanismos e instrumentos que
compreende um pacote tecnológico, potencializem o processo de ensino
inclusive com um conjunto de receituários aprendizagem; consciência metodológica e
agronômicos que podem ser aplicados em procedimental. Estes elementos são centrais
realidades distintas sobre a mesma fórmula para um processo de transformação da
e que pode ser difundido através dos sociedade, contrapondo a lógica do capital.
órgãos de assistência e escolas técnicas. A Portanto o educador traz consigo a condição
escola neste contexto se coloca como um histórica de promover, dentro de seu
espaço de reprodução de um padrão contexto social, mudanças gradativas e
tecnológico previamente estabelecido onde significativas para a classe trabalhadora,
a pesquisa e a experimentação não mas para isto sua postura ética, no caso do
significam a produção do conhecimento a educador do campo, tem que convergir com
partir de realidades específicas e, sim, a lógica camponesa, que tem na sua raiz a
padrões homogêneos. agroecologia.

Do ponto de vista do Campesinato, a Neste sentido reafirmamos que


tecnologia é um conjunto de práticas e de muita coisa está sendo feita, mas
relações entre a sociedade e a natureza, que precisamos refletir constantemente sobre
se dão de maneira dialética, onde ao mesmo nossas ações, afim de colocar a escola num
tempo em que o camponês é produtor do contexto que proporcione uma educação
espaço é, também, produto social de caráter libertador emancipatório, ou
historicamente definido. Sendo assim, a seja, uma escola sem paredes, que
tecnologia é um patrimônio social coletivo. dialogue com a realidade, proporcionando
elementos de reflexão para os movimentos
Neste contexto, a escola se coloca como sociais. Não queremos aqui transferir toda
um espaço pedagógico-dialético de produção a responsabilidade para a escola, mas
de conhecimento a partir da realidade identificar o papel que esta pode cumprir
contraditória, que se efetiva através do na elaboração de propostas que
dialogo, elemento chave da iniciação e da contrapõem a ideologia capitalista.
produção cientifica. Produzir um
conhecimento agroecológico na sociedade De maneira geral, entendemos que
contemporânea exige de nós a superação da o instrumento político real da classe social
dicotomia entre a ciência moderna e a camponesa, que tratamos hoje como
sabedoria tradicional, onde nem uma nem Movimento Social Camponês, precisa se
outra se coloca num plano de maior ou menor colocar primordialmente como um ente
importância, mas se complementam por uma planejador de seu território, caso contrário,
necessidade histórica. ficará sempre a margem da lógica do
planejamento do Estado, que, pela
A prática e a teoria não se separam, experiência, entendemos que é a lógica do
embora tenham características que se capital. Ou superamos este desafio
distinguem do ponto de vista analítico da histórico ou estamos fadados a derrota e a
epistemologia. A práxis dos/as manutenção do estatus quo.

70 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


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Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 71


72 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
O Projeto Político Pedagógico:
possibilidades das escolas do/no campo

Joelma de Oliveira Albuquerque

Profa. Ms. da Universidade Federal de Alagoas (Campus Arapiraca)


e Doutoranda em Educação da UNICAMP.

Nair Casagrande

Profa. Dra. da Faculdade de Educação


da Universidade Federal da Bahia.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 73


Ao discutir o projeto político
pedagógico (PPP), entendemos que, por Diante disso, que posição deve se
coerência, deveríamos iniciar esta assumir enquanto educadores e
proposição apresentando explicações educadoras do campo e da cidade? Seremos
acerca da nossa sociedade. Isso porque a indiferentes à exploração dos
escola não está livre do que ocorre na trabalhadores? Devemos achar normal que
sociedade, nem está à margem dela. A a educação oferecida aos que são os
escola é uma instituição que expressa, nas verdadeiros produtores das riquezas
suas mais diversas instâncias, as bases humanas seja fraca, frágil,
sobre as quais ela está construída. A descompromissada politicamente? Está
organização social é essa base. Portanto, claro que não.
devemos iniciar entendendo quais são
essas bases da nossa sociedade, que O modelo produtivo no campo que
asseguram um determinado projeto de está atrelado aos interesses do
escolarização. Capitalismo é o do agronegócio. Este é
caracterizado pela grande concentração
A sociedade em que vivemos tem das forças produtivas, isto é, os meios de
como características fundamentais a posse produção (terra, ferramentas, maquinário,
por uma minoria (a classe burguesa) dos etc.) e a força de trabalho (capacidades
meios materiais e dos instrumentos de humanas usadas no trabalho, como as
trabalho, das matérias-primas que habilidades e conhecimentos dos
garantem a produção de todas as coisas trabalhadores que vendem a sua força de
necessárias para vivermos e a exploração trabalho) nas mãos de poucos, ou seja, dos
do trabalho pelos patrões (que também latifundiários.
constituem a classe burguesa). Esta
formulação define as bases do que é A proposta de desenvolvimento do
denominada de Sociedade Capitalista. Nesta campo que se contrapõe ao agronegócio
sociedade os camponeses, os é a agricultura camponesa. Os
trabalhadores do campo, vão sendo trabalhadores do campo reivindicam esse
expropriados de tudo: da terra, da saúde, modelo de produção, porque pressupõe
da educação, das artes, enfim, ficam um grande número de pessoas
privados de viver dignamente. envolvidas na produção, um campo com

74 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


estrutura para que todos vivam programa de vida escolar que expresse as
dignamente (saúde, educação, saneamento, necessidades dos trabalhadores.
cultura) e, também, em que sejam
preservadas suas características no que diz
respeito à biodiversidade. Mas a condição 1. Organização da educação
fundamental para que essa mudança ocorra
é a alteração radical das relações de Estamos falando de educação e,
produção capitalistas. É a instauração do portanto, em primeiro lugar, precisamos
trabalho livre e associado. saber o que ela significa para nós. O
homem, para produzir os bens necessários
Isso significa que a educação é um a sua existência, precisa transformar a
dos pontos fundamentais desse processo natureza e a si próprio. Ao mesmo tempo
de transição de uma organização à outra. em que desenvolve sua atividade
Isso porque os trabalhadores precisam ter principal, o trabalho, ele também se
os conhecimentos profundo acerca das transforma. Mas como acontece essa
ciências que lhes permitam produzir os transformação?
meios de sua existência.
A agricultura camponesa admite Quando necessitamos produzir
que novos conhecimentos podem e devem alguma coisa, precisamos conhecer essa
ser incorporados pelos trabalhadores, para coisa. Não podemos produzir aquilo cujas
que possam produzir cada vez mais com características desconhecemos. E foi assim
menos esforço e sem destruir a natureza. em toda a história humana. Quando
Isso vale para ressaltar que é falsa a idéia precisamos construir, verificamos os
que os camponeses defendem uma melhores materiais, a melhor técnica, os
agricultura atrasada. Não se trata disso. Os melhores instrumentos. No entanto,
camponeses defendem a socialização dos somente podemos fazer isso se
meios de produção e o fim da exploração conhecermos o maior número de materiais,
do trabalho. de técnicas, de instrumentos possíveis,
para que possamos, diante de uma
Por isso, quando falamos de necessidade, optar por aquilo que atenda
educação, temos que falar da sociedade em melhor as nossas necessidades.
que esta educação está inserida. Não
podemos entender que podemos modificar É neste ponto que reside o
a educação somente, e esquecermos de que significado da educação na história
ela tem bases firmadas na sociedade em humana. Trata-se de um processo de
que vivemos. Por isso é necessário que a transmissão, das velhas às novas gerações,
educação seja um ponto de apoio para a de todo o saber socialmente construído e
organização de novas possibilidades de historicamente acumulado; da transmissão
organização social., que esteja num às novas gerações de tudo aquilo de
perspectiva de emancipação humana. melhor que a humanidade produziu em
termos de conhecimento. Neste sentido,
Na seqüência de nossas reflexões, significa transmitir às novas gerações uma
apresentaremos a discussão acerca da das condições da continuidade da
organização da educação vinculada a um produção e reprodução da vida no seu
projeto de sociedade. A partir daí, sentido amplo, social.
apresentamos o debate sobre o projeto
político pedagógico enquanto o orientador Assim, o acesso ao conhecimento
dos compromissos coletivos da escola do enquanto um bem socialmente
campo. Finalmente, discutimos os aspectos desenvolvido e historicamente acumulado
referentes à como organizar um PPP/ é uma condição para que os trabalhadores

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 75


alterem as relações de produção. Não garanta o acesso do conhecimento
basta que eles tenham ferramentas, socialmente útil à classe trabalhadora de
matérias-primas, tempo e espaço forma a garantir sua instrumentalização
disponíveis para a produção, se não frente ao fato de que não é possível realizar
dominam os conhecimentos de como uma transformação social, ou alcançar o
organizar isso tudo de forma a produzir poder popular sem educação que possa
abundantemente e sem exploração do garantir um processo de construção da
trabalho dos outros; se não compreendem consciência de classe. Este processo
as conseqüências históricas da permite que o sujeito se torne sujeito ativo
organização da produção no marco do num processo que lhe permita se
capitalismo; se não projetarem instrumentalizar para compreender e agir
coletivamente, a cada dia, a construção de sobre sua realidade numa perspectiva
um futuro cada vez mais digno para a transformadora.
humanidade; se não souberem como se
auto-organizar para que todos tenham Assim, o acesso ao conhecimento
liberdade na realização desta ou daquela escolar, de forma crítica e transformadora,
atividade. é fundamental para a garantia de uma
formação consistente para os trabalhadores.
Dentro dessa compreensão, os
trabalhadores vêm reivindicando uma Quando expusemos anteriormente
educação de qualidade, consistente, as características do modo capitalista de
ampla, e não a educação que nos é organizar a produção da vida, nossa
oferecida pelo Estado – esvaziada de intenção foi mostrar que temos uma tarefa
conteúdos científicos, despolitizada. No de muita responsabilidade na história da
Brasil, em especial, no atual contexto humanidade: opormos-nos à aceitação
histórico, os trabalhadores do campo estão passiva da realidade, integrando-nos à luta
se auto-organizando para garantir essa e ao trabalho, para transformar o mundo
transmissão do conhecimento socialmente de acordo com as necessidades e
produzido e historicamente acumulado às aspirações cada vez maiores dos
novas gerações. A escola é a principal trabalhadores e trabalhadoras do campo e
instituição responsável pela transmissão da cidade.
às novas gerações dos conhecimentos
acumulados historicamente. Por isso os Podemos perceber que na ampla
trabalhadores reivindicam escola para maioria das escolas públicas (onde estudam
todos e educação de qualidade, os filhos dos trabalhadores) existem sérios
socialmente referenciada, gratuita e laica. problemas estruturais: desde a infra-
estrutura das escolas, que é precária e não
Assim, esse movimento político permite uma organização do trabalho
amplo pela emancipação social, no qual pedagógico de forma a garantir uma
se situa a educação do campo, deve educação digna, até a negação de conteúdos
englobar a educação como um direito importantes referentes às ciências, às artes,
inalienável de todo ser humano, o que às atividades da cultura corporal. Em
nunca se deu de graça, mas, sim, com contrapartida, os filhos da burguesia (classe
muita luta por essa e outras reivindicações dominante) estão nas melhores escolas, com
da classe trabalhadora. as melhores estruturas e usufruem os mais
avançados conhecimentos.
Nesse sentido, é de fundamental
importância que a escola cumpra sua Isso não acontece por acaso. A
responsabilidade de transmissão do educação internaliza valores em cada um
conhecimento historicamente acumulado desses sujeitos, para garantir que o seu
às novas gerações. Em especial, que papel na estrutura social seja mantido.

76 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Significa que existe uma educação, que é Assim, temos que garantir que o
dada à ampla maioria das pessoas (a conhecimento esteja na escola. Mas, não
classe trabalhadora), que faz com que ela qualquer conhecimento, como vimos, não
se mantenha onde está e, como se isso não o conhecimento “mínimo”, não o
bastasse, que essas pessoas se convençam conhecimento que é baseado na nossa
de que o mundo é assim e não temos realidade imediata. O conhecimento escolar
alternativas. deve ser o mesmo para todos. Deve haver
uma base consistente e comum para todos.
Portanto, o conhecimento escolar
não pode ser um para alguns, outro para
os demais. Não devemos cair no discurso 2. O PPP: orientador dos compro-
de que os conhecimentos devem ser eleitos missos coletivos da escola
a partir da realidade de cada um. Isso
porque, se for assim, aos que moram nas A escola, como uma das principais
periferias, o que iremos ensinar? Formas instituições responsáveis pela formação
de “conviver” com a miséria? Devemos das gerações, deve ser compreendida como
ensinar somente aquilo que diz respeito à aquela que vai proporcionar às crianças,
miséria imediata das pessoas, mantendo- jovens e adultos a apropriação das formas
as na ignorância? Esse é um discurso como o homem, ao longo da história da
falacioso que devemos combater, que é o humanidade, construiu e sistematizou o
discurso da classe dominante, do projeto conhecimento, como esse conhecimento se
educacional imposto pela burguesia para expressa na realidade e como o homem
a classe trabalhadora. pensa sobre ele.

Esse discurso de “conviver” Para articularmos uma proposta de


transforma as desigualdades em meras Projeto1 Político Pedagógico, temos que
diferenças, e assim a educação da classe ter clara a proposição de educação, a teoria
trabalhadora fica esvaziada dos conteúdos pedagógica e de sociedade que
clássicos, dos conteúdos que foram defendemos e queremos construir. Neste
desenvolvidos durante a história da sentido, pensar o trabalho pedagógico da
humanidade, e, portanto, são o patrimônio escola, o Projeto Político Pedagógico,
social e cultural de todos os seres humanos. significa pensar a pedagogia do trabalho,
Teríamos milhões de “Daiane dos Santos”, tendo como referência inicial, ponto de
se todos os jovens tivessem acesso ao partida, o trabalho do campo. Significa
conhecimento da Ginástica. Porém estudos pensar, especialmente para a Educação do
comprovam que o conhecimento da Campo, o caráter pedagógico dos
ginástica está desaparecendo das escolas. processos de mudança na base técnica da
produção no campo.
Ainda nos convencem que, se
“quisermos”, com nosso “esforço”,
podemos chegar lá. Mais uma vez estão a) A escola é um dos objetos centrais
nos convencendo de que cada um, da Educação do Campo
individualmente, é que deve buscar o
conhecimento. E sabemos que a educação A escola necessita compreender
de qualidade é um DIREITO DE TODOS qual o ser humano que deseja formar e
E DEVER DO ESTADO! como contribuir para formar novos sujeitos

1
Curiosidade: sentido etimológico (origem da palavra): “o termo projeto vem do latim projectu, particípio passado do verbo
projicere, que significa lançar para diante”.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 77


sociais. Deve estar atenta às como o de ser camponês, de ser
particularidades dos processos sociais do trabalhador, de ser membro de uma
tempo histórico em que se insere, comunidade, de participar das lutas
ajudando a formar as novas gerações de sociais, de cultura, de nação. Essa
trabalhadores e militantes sociais. intencionalidade, segundo Caldart, deve
estar atrelada a três aspectos, no mínimo:
Para tanto, Caldart (2004) destaca à auto-estima, à memória e resistência
aspectos importantes da organização do cultural e à militância social.
trabalho pedagógico na escola, que
compõem o PPP e que devem ser
acompanhados permanentemente, como - Socialização e produção de
um desafio que nos faça avançar na diferentes conhecimentos. A escola tem a
construção da Educação do Campo. São responsabilidade de, na realização de seu
estes: trabalho pedagógico, ligado aos
elementos anteriores, pôr em movimento,
- Socialização ou vivência de socializar e produzir diferentes tipos de
relações sociais, isto é, viver, na prática do conhecimentos, fornecendo, assim, as
dia-a-dia da escola, a socialização que não ferramentas culturais necessárias para a
busque adaptar as pessoas ao formato da formação humana nas várias dimensões
sociedade atual, com predominância do que exige a educação do campo.
individualismo, da sobrepujança, mas
aprofundar as relações sociais que
b) O PPP deve ser parte de um
permitam formar sujeitos conscientes de
plano para a vida
transformações, inclusive da sociedade, as
relações de cooperação, da preocupação
Significa que a alteração da
com o bem-estar coletivo, dos valores da
organização da educação escolar faz parte
justiça e da igualdade entre as infinitas
da construção de condições, no presente,
individualidades, as relações de
do futuro em que serão combatidas
solidariedade, de respeito e outras. permanentemente as características
destrutivas da forma como a sociedade
- Construção de uma visão de atual (capitalista) se organiza.
mundo. Neste caso, compreendemos que
é tarefa específica da escola contribuir na Foi diante deste desafio que
construção de um ideário que oriente a educadores e educadoras russos, ainda no
vida das pessoas, o que inclui ferramentas início dos anos de 1900, propuseram a
culturais para uma leitura precisa da elaboração de “planos de vida escolar”, que
realidade em que vivem os sujeitos que é mais conhecido como Projeto Político
constituem a comunidade escolar. Pedagógico (PPP), e que estamos propondo,
neste caderno, chamá-lo de “Programa de
- Cultivo das identidades e, Vida”. Essa é a forma que temos para nos
acrescentaríamos, o cultivo da consciência referir à educação de que estamos falando
de classe2, em que se trabalhe, buscando aqui. Faz com que tenhamos sempre
ajudar a construir a visão de si mesmo, presente o quanto é importante o nosso
atrelada aos vínculos coletivos, sociais, trabalho como educadores e educadoras do

2
A consciência de classe é entendida enquanto formação de uma consciência da situação de classe na história, a partir de um
processo dialético no qual o movimento da história é tornado consciente pelo conhecimento de sua situação de classe. A consciência
de classe aparece enquanto uma possibilidade objetiva, ou seja, a expressão racional dos interesses históricos do proletariado.

78 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


campo, pois somos sujeitos dessa educação todas as escolas, sejam elas do campo ou
para o futuro. da cidade, deverá estar acompanhado de
outros elementos fundamentais. Para
Com a elaboração da Constituição Caldart (2004), esse processo, a partir da
Brasileira no ano de 1988, tivemos a Educação do Campo, deve articular:
institucionalização do projeto pedagógico,
no qual a realidade local passou a ser a 1. Formação humana vinculada a
base para a abordagem de temas e uma concepção de campo.
conteúdos propostos nos currículos
escolares. 2. Luta por políticas públicas que
garantam o acesso universal à educação.
Outro momento histórico
importante foi a promulgação da Lei de 3. Projeto de educação dos e não
Diretrizes e Bases da Educação Nacional para os camponeses.
(LDB), em 1996, que instituiu que toda
escola precisa ter um projeto político 4. Movimentos Sociais como
pedagógico (PPP). Este surge como sendo sujeitos da Educação do Campo.
um resultado das lutas dos trabalhadores
da educação pelo direito de participação 5. Vínculo com a matriz pedagógica
nas decisões que dizem respeito à do trabalho e da cultura do campo.
instituição escolar, as quais passam desde
a participação nas definições dos conteúdos
6. Valorização e formação dos
a serem trabalhados, até mesmo na forma
educadores.
da organização da dinâmica escolar.
7. Escola como um dos objetos
Assim, esse processo histórico de
principais da Educação do Campo.
luta expressa também a compreensão de
que a forma de organização do modo de
vida do campo deve orientar a construção Vale ressaltar que esses elementos
do PPP ou do Programa de Vida. O que constituem a proposição da Educação
programa de vida deve expressar o do Campo têm seu início na luta dos
compromisso coletivo da escola com a luta camponeses, o que não significa que não
pela compreensão e apreensão dos possam ser princípios universais para
processos sociais, culturais, políticos e uma educação consistente para a classe
econômicos, que delimitam/influenciam a trabalhadora como um todo. Quando se
formação do ser humano, capaz de fala em Formação humana vinculada a uma
interferir nos rumos da vida individual e concepção de campo, significa uma
coletiva. concepção que se contrapõe à concepção
capitalista, que opõe campo e cidade, que
O PPP/Programa de Vida deve ser nega condições de vida a todos os
expressão da articulação entre teoria trabalhadores.
educacional, teoria pedagógica e projeto
histórico, com as condições concretas da Dessa forma, podemos visualizar o
escola e do coletivo escolar. Deve ser uma quanto é importante compreendermos o
síntese em movimento da organização do sentido político da Educação do Campo:
trabalho da escola como um todo orgânico, a luta pela autodeterminação e auto-
em busca dos objetivos sociais mais organização dos produtores livremente
amplos da classe trabalhadora. associados, em que os trabalhadores
possam decidir a melhor maneira de
O processo da construção do Projeto organizar a produção dos bens necessários
Político Pedagógico/Programa de vida para à vida. É a partir dessas necessidades,

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 79


conforme aponta Mészáros (2005), que Por isso a importância de uma educação
devem ser estabelecidos os objetivos consistente, rica em conhecimentos
político-pedagógicos, a organização do elaborados.
trabalho pedagógico da escola e do
professor. Para compreender o que é planejar,
importa muito recuperar o significado do
planejamento para a vida humana, para
3. Como organizar um PPP/ sermos o que somos hoje: mulheres e
Programa de vida que expresse as homens trabalhadores e trabalhadoras,
necessidades dos trabalhadores? educadoras e educadores do campo e da
cidade. Fazemos parte do grupo de
É tarefa fundamental no pessoas que desenvolvem a capacidade de
reconhecimento do PPP/Programa de projetar, de antever as ações na cabeça
Vida, o planejamento de ações concretas, cuja antes de colocá-las em prática,
intencionalidade tenha referência no processo transformando aquilo que tínhamos
de uma transformação social radical. Os pensado, projetado, planejado, através de
educandos e educadores, e a comunidade atividades concretas, em novas
escolar, podem e devem criar e recriar seus possibilidades para nossas vidas.
projetos, não de qualquer maneira, mas
com um objetivo claro e definido, Assim, a concepção de ser humano
originado nas lutas dos trabalhadores do
nesse processo é a de um sujeito ativo em
campo e da cidade, neste caso, a luta pela
sua relação transformadora com a natureza
apropriação do saber historicamente
e a sociedade, através de seu trabalho, em
desenvolvido e acumulado pela
que o sujeito também se transforma. Então,
humanidade.
constatamos que há um grande desafio:
entendermos que o PPP poderá ser
Caldart (2005) nos ajuda a avançar
instrumento teórico-metodológico de
na compreensão do que significa projetar,
intervenção e mudança na realidade. Este
planejar. Para tanto, cabe a nós
assumirmos, enquanto educadoras e plano deve orientar as ações, a organização
educadores, o desafio de “pensar” e, mais do trabalho pedagógico da escola e do
ainda, “fazer” a escola que queremos, com professor. É um compromisso coletivo,
base na necessidade vital dos que fica sistematizado, e deve ser a base
trabalhadores, de acessar a riqueza da avaliação das ações da escola.
imaterial produzida e sistematizada pela
humanidade, sob a forma dos O PPP deve ser estruturado a partir
conhecimentos científicos, técnicos, da organização de estudantes, professores
artísticos, da cultura corporal e outros. e da comunidade onde a escola está
localizada, que juntos devem traçar
Pensando no PPP/Programa de diretrizes que colaborem para a definição
Vida, podemos entender que é exatamente e consolidação de planos de vida das
para isso que projetamos, que planejamos. crianças, jovens e adultos que freqüentam
“Planejar é pensar antes de fazer” a escola. A seguir apresentamos algumas
(CALDART, 2005, p.106). Mas para indicações sobre como podemos proceder
“pensar” antes de “fazer”, precisamos ter para a elaboração do PPP/Programa de
conhecimentos sobre as coisas, sobre o Vida. Cabe assinalar que não é uma regra
mundo, a sociedade, conhecimentos que a ser seguida a risca, mas são orientações
nos permitam pensar algo rigorosamente que poderão dirigir as ações para que se
elaborado, necessário e socialmente útil. construa e se consolide um PPP.

80 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


a) O desafio de planejar coleti- Para planejar coletivamente
vamente significa que temos que nos reunir. Para
tanto é necessário mobilizar a comunidade
Para a elaboração do PPP/ escolar e do entorno da escola. Isso pode
Programa de vida, é necessário que todos ser feito através de divulgação com
na escola estejam envolvidos. Trabalhar cartazes, convites, palestras, campanhas
com os estudantes, que levem a
coletivamente não é fácil. Exige um
comunidade a entender que a elaboração
esforço de todos, para que os objetivos
do PPP poderá expressar com quais
coletivos prevaleçam sobre os objetivos
objetivos a escola deve formar suas
individuais. Vale destacar que, em nossa crianças e adolescentes e como a
sociedade, somos ensinados a competir o comunidade pode participar dessa
tempo todo e não a colaborar; somos formação.
incentivados ao individualismo nas suas
formas mais extremas. Portanto, o que b) É fundamental que a maioria da
deve nos mover para buscar a organização comunidade seja mobilizada
do coletivo escolar é uma convicção
política baseada nos objetivos coletivos, Quando julgarmos que a
a todos e para todos. comunidade está mobilizada e pronta para
participar, devemos marcar a reunião. Ela
Um conceito importante de deve ocorrer de preferência em momentos
apresentarmos aqui é o da auto- que garantam a participação de um maior
organização. Mas o que significa número de pessoas possível, num espaço
que acomode bem a todos.
pensarmos na auto-organização?
Enquanto educadores, devemos, por meio
Nessa reunião todos os envolvidos
do trabalho pedagógico, negar a
profissionalmente no dia-a-dia escolar já
exploração do homem pelo homem. devem ter se organizado anteriormente e
preparado apresentações sobre como está
Isso significa criar coletivos a escola e como entendem que ela poderia
escolares nos quais os estudantes atuem. ser. Aos professores, diretores e
Significa fazer da escola um tempo de vida coordenadores caberá a tarefa de fazer aos
e não uma preparação para a vida. presentes na reunião uma breve exposição
Significa permitir que os estudantes da história da educação escolar no mundo
construam a vida escolar (FREITAS, p. 60). e no Brasil e das leis e diretrizes da
Mas como, por qual caminho construir essa educação brasileira, de forma acessível e
condição? Isso exige o desenvolvimento enriquecedora. Os profissionais da
de três questões básicas: 1) habilidade de educação têm a obrigação de trazer as
trabalhar coletivamente, de encontrar seu informações que os interessados em
lugar no trabalho coletivo; 2) habilidade pensar a escola, que não são profissionais
de abraçar organizadamente cada tarefa; da educação, não têm. A comunidade,
para poder discutir, precisa de
3) capacidade para a criatividade
informações, e isso os profissionais da
organizativa. A habilidade de trabalhar
escola devem garantir. Essas informações
coletivamente cria-se apenas no processo devem ser trabalhadas para assegurar a
de trabalho coletivo, mas também participação de todos na discussão.
significa a habilidade de, quando
necessário, dirigir e, quando necessário, As escolas podem recorrer a outros
de ser dirigido por seus colegas profissionais que vão até a comunidade
(PISTRAK, p.15). falar sobre pontos que se julguem

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 81


necessários a um aprofundamento maior. b) Estudo do PPP atual, ou, na
É importante lembrar que a elaboração de inexistência deste, dos elementos que
um PPP/Programa de Vida pode durar até regem a vida escolar atualmente.
um (1) ano ou mais, se esse tempo for (Destacando-se a sistematização/
necessário para garantir o envolvimento elaboração escrita).
consciente da comunidade interessada.
c) Estudos de aprofundamento
Entendemos que a construção do teórico (Indicando este caderno como
PPP/Programa de Vida começa desde as ponto de partida para o estudo; indicando
primeiras reuniões da equipe escolar para referências básicas de aprofundamento;
organizar sua elaboração, sendo necessária
destacando a sistematização/elaboração
uma ata de todas as reuniões, dentro ou fora
escrita).
da escola. Essas atas vão contar a história
da construção do PPP. Alguns pontos
fundamentais a serem esclarecidos e d) Elaboração de síntese do debate
encaminhados nas primeiras reuniões são: e dos estudos realizados, e construção da
proposta de PPP da escola.
1) O que vem a ser e para que serve
um Projeto Político Pedagógico (PPP)/ e) Debate final com sistematização
Programa de Vida de uma escola? da experiência e com fechamento do PPP.

2) Quem deve e quem pode f) Organização do coletivo escolar


participar de sua elaboração? para a implementação do novo PPP.

3) Quanto tempo pode durar a g) A implementação do PPP/


construção de um PPP? exigirá atenção, o acompanhamento
constante dos elementos que o constituem,
4) Definição da periodicidade das que concretizam o mesmo na prática do
reuniões. dia-a-dia da escola, isto é, a própria
organização do trabalho pedagógico da
5) Eleição da coordenação colegiada escola. São estes: fins, objetivos da escola e a
com representantes da escola e da dinâmica da avaliação; a estrutura
comunidade. organizacional, o currículo, o tempo escolar e o
tempo comunidade, o processo de decisão, as
6) Eleição do grupo que fará a
relações de trabalho.
sistematização da construção do PPP.
Todo esse processo prático, esse
7) Elaboração de um planejamento
desafio da construção do Projeto Político
do processo a ser desenvolvido.
e Pedagógico/Programa de Vida para a
Educação do Campo, sempre estará
Para colocar propriamente em permeado pela construção de um projeto
prática esse processo de sistematização, de de educação dos trabalhadores do campo,
elaboração do PPP, é necessário: com base em suas necessidades e
acúmulos de lutas desenvolvidas por
a) Realização de diagnóstico da esses sujeitos.
escola, com estudo da realidade do
contexto. (Destacando-se que isso deve ser Trata-se de fazê-lo com a clareza de
feito pelo coletivo organizado no item que estamos construindo uma educação
anterior; bem como a sistematização/ que é política e pedagógica, tendo como
elaboração escrita). referência os interesses sociais, políticos,

82 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


culturais da classe trabalhadora do campo Referências Bibliográficas
e da cidade. Este movimento que se
realizará na construção, sistematização e
implementação do PPP é resultado e dá COLETIVO DE AUTORES. Metodologia
continuidade à necessária luta pela do Ensino da Educação Física. São Paulo:
Educação do Campo, permeada de lutas Cortez, 1992.
por políticas públicas voltadas para as
necessidades e particularidades do campo FREITAS, Luiz Carlos de. Crítica da
e pela mobilização dos trabalhadores da Organização do Trabalho Pedagógico e da
cidade em torno da construção de um Didática. Campinas: Papirus, 1995.
projeto histórico superador do
capitalismo.
______. Ciclos, seriação e avaliação.
Editora Moderna.
Elaborar um programa de vida para
a escola significa que teremos que realizar
ações concretas, atividades que colocarão ______. Projeto histórico, ciência
na prática nossas intenções. Essas ações pedagógica e Didática. Educação e
devem estar integradas à vida e ao trabalho Sociedade. Nº 27. 1987:122-140
do campo, para que possamos constatar,
compreender, explicar e superar as LIBÂNEO, J. C. Pedagogia e pedagogos
problemáticas da sociedade, que se para quê? São Paulo, Cortez, 2002.
expressam na vida do campo. Assim
podemos pensar além dos PPP ou MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A
Programas de Vida em si mesmos, além ideologia alemã: crítica da mais recente
dos limites de uma educação restrita à mera filosofia alemã em seus representantes
transmissão desarticulada de conteúdos Feuerbach, B. Bauer e Stiner, e do socialismo
sem sentido e significado para os objetivos alemão em seus diferentes profetas (1845-
de transformação da vida social. 1846). São Paulo: Boitempo, 2007.

Pensar um programa de vida para PISTRAK, M. M. Fundamentos da escola do


além de um programa somente de ensino trabalho. São Paulo-SP: Expressão Popular,
restrito à sala de aula significa pensarmos 2004. 3.ed. 224pp.
em planos de vida para as crianças, jovens
e adultos do campo brasileiro. Desta
questão surgem outras: como passar do
ensino para a educação integral que
contemple os diversos aspectos do ser
humano; das velhas grades curriculares
aos planos de vida? E este plano de vida é
a articulação entre o PPP (programa de
vida escolar) e o currículo escolar
(programa escolar), quer dizer, é um plano
de vida e de ação para a escola como um
todo, inclusive a comunidade em que ela
está inserida.

Assim, é fundamental vincular a


vida escolar a um processo de
transformação social, fazendo dela um
lugar de educação do povo, para que se
assuma como sujeito da construção de
uma nova sociedade.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 83


84 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
POEMAS para a CAMINHADA

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 85


86 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
NORDESTINO SIM, Aqueles pobres mendigos
Vão à procura de abrigos
NORDESTINADO NÃO Cheios de necessidade
Patativa do Assaré Nesta miséria tamanha
Se acabam na terra estranha
Sofrendo fome e saudade
Nunca diga nordestino Mas não é o Pai Celeste
Que Deus lhe deu um destino Que faz sair do Nordeste
Causador do padecer Legiões de retirantes
Nunca diga que é o pecado Os grandes martírios seus
Que lhe deixa fracassado Não é permissão de Deus
Sem condições de viver É culpa dos governantes
Não guarde no pensamento Já sabemos muito bem
Que estamos no sofrimento De onde nasce e de onde vem
É pagando o que devemos A raiz do grande mal
A Providência Divina Vem da situação crítica
Não nos deu a triste sina Desigualdade política
De sofrer o que sofremos Econômica e social
Deus o autor da criação Somente a fraternidade
Nos dotou com a razão Nos traz a felicidade
Bem livres de preconceitos Precisamos dar as mãos
Mas os ingratos da terra Para que vaidade e orgulho
Com opressão e com guerra Guerra, questão e barulho
Negam os nossos direitos Dos irmãos contra os irmãos
Não é Deus quem nos castiga Jesus Cristo, o Salvador
Nem é a seca que obriga Pregou a paz e o amor
Sofrermos dura sentença Na santa doutrina sua
Não somos nordestinados O direito do bangueiro
Nós somos injustiçados É o direito do trapeiro
Tratados com indiferença Que apanha os trapos na rua
Sofremos em nossa vida Uma vez que o conformismo
Uma batalha renhida Faz crescer o egoísmo
Do irmão contra o irmão E a injustiça aumentar
Nós somos injustiçados Em favor do bem comum
Nordestinos explorados É dever de cada um
Mas nordestinados não Pelos direitos lutar

Há muita gente que chora Por isso vamos lutar


Vagando de estrada afora Nós vamos reivindicar
Sem terra, sem lar, sem pão O direito e a liberdade
Crianças esfarrapadas Procurando em cada irmão
Famintas, escaveiradas Justiça, paz e união
Morrendo de inanição Amor e fraternidade

Sofre o neto, o filho e o pai Somente o amor é capaz


Para onde o pobre vai E dentro de um país faz
Sempre encontra o mesmo mal Um só povo bem unido
Esta miséria campeia Um povo que gozará
Desde a cidade à aldeia Porque assim já não há
Do Sertão à capital Opressor nem oprimido

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 87


MADRUGADA CAMPONESA
Thiago de Mello

Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite
a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção


feita de medo e arremedo
para enganar solidão
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.

Breve há de ser
sinto no ar
tempo de trigo maduro
vai ser tempo de ceifar
Já se levantam prodígios
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão
um leite novo minando
no meu longe seringal.

Madrugada da esperança
já é quase tempo de amor
colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana
minha alma no seu pendão.

Madrugada Camponesa
faz escuro (já nem tanto)
vale a pena trabalhar
faz escuro, mas eu canto
porque a manhã vai chegar.

88 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


JOÃO BOA MORTE
CABRA MARCADO PARA MORRER
Ferreira Gullar

Essa guerra do Nordeste


não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.

Não faz um ano que os homens


que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado CANÇÃO DE OUTONO
já era baixo e no entanto Cecília Meireles
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.
Perdoa-me, folha seca,
João e seus companheiros não posso cuidar de ti.
não gostaram da proeza: Vim para amar neste mundo,
se o novo preço não dava e até do amor me perdi.
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo De que serviu tecer flores
já era muita fraqueza. pelas areias do chão,
“Não vamos voltar atrás. se havia gente dormindo
Precisamos de dinheiro. sobre o própro coração?
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto E não pude levantá-la!
para outro fazendeiro.” Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
Com o coronel foram ter. é que sou triste e infeliz.
Mas quando comunicaram Perdoa-me, folha seca!
que a outro iam vender Meus olhos sem força estão
o cereal que plantaram, velando e rogando áqueles
o coronel respondeu: que não se levantarão...
“Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso. Tu és a folha de outono
Aquele que se atrever voante pelo jardim.
pode rezar, vai morrer, Deixo-te a minha saudade
vai tomar chá de sumiço”. - a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 89


SOU NEGRO
Solano Trindade

Sou negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh‘alma recebeu o batismo dos
tambores
atabaques, gongôs e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor de engenho
novo
e fundaram o primeiro Maracatu

Depois meu avô brigou como um danado


nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês APRENDIZADO
ela se destacou Ferreira Gullar

Na minh‘alma ficou
o samba Do mesmo modo que te abriste à alegria
o batuque abre-te agora ao sofrimento
o bamboleio que é fruto dela
e o desejo de libertação e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.

90 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


ESCOLA É
... o lugar que se faz amigos.

Não se trata só de prédios, salas, quadros,


Programas, horários, conceitos...
Escola é sobretudo, gente
Gente que trabalha, que estuda
Que alegra, se conhece, se estima.
O Diretor é gente,
O coordenador é gente,
O professor é gente,
O aluno é gente,
Cada funcionário é gente.
E a escola será cada vez melhor
Na medida em que cada um se comporte
Como colega, amigo, irmão.
Nada de “ilha cercada de gente
Por todos os lados”
Nada de conviver com as pessoas e depois,
Descobrir que não tem amizade a ninguém.
SABER VIVER
Nada de ser como tijolo
Cora Coralina
que forma a parede,Indiferente, frio, só.
Importante na escola não é só estudar,
Não é só trabalhar,
Não sei... Se a vida é curta
É também criar laços de amizade,
Ou longa demais pra nós,
É criar ambiente de camaradagem,
Mas sei que nada do que vivemos
É conviver, é se “amarrar nela”!
Tem sentido, se não tocamos o coração
Ora é lógico...
das pessoas.
Numa escola assim vai ser fácil!
Muitas vezes basta ser:
Estudar, trabalhar, crescer,
Colo que acolhe,
Fazer amigos, educar-se, ser feliz.
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
É por aqui que podemos
Silêncio que respeita,
Começar a melhorar o mundo.
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
(Paulo Freire)
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,


É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 91


CANÇÃO DO REMENDO E DO CASACO
Bertolt Brecht

Sempre que o nosso casaco se rasga


vocês vêm correndo dizer: assim não pode ser;
isso vai acabar, custe o que custar!
Cheios de fé vão aos senhores
enquanto nós, cheios de frio, aguardamos.
E ao voltar, sempre triunfantes,
nos mostram o que por nós conquistam:
Um pequeno remendo.
Ótimo, eis o remendo.
Mas onde está
o nosso casaco?
Sempre que nós gritamos de fome
vocês vêm correndo dizer: Isso não vai continuar,
é preciso ajudá-los, custe o que custar!
E cheios de ardor vão aos senhores
enquanto nós, com ardor no estômago, esperamos.
E ao voltar, sempre triunfantes,
exibem a grande conquista:
um pedacinho de pão.
Que bom, este é o pedaço de pão,
mas onde está
o pão?
Não precisamos só do remendo,
precisamos o casaco inteiro.
Não precisamos de pedaços de pão,
precisamos de pão verdadeiro.
Não precisamos só do emprego,
toda a fábrica precisamos.
E mais o carvão.
E mais as minas.
O povo no poder.
É disso que precisamos.
Que tem vocês
a nos dar?

92 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


ELOGIO DO APRENDIZADO
Bertolt Brecht

Aprenda o mais simples!


Para aqueles cuja hora chegou
Nunca é tarde demais!
Aprenda o ABC; não basta, mas
Aprenda! Não desanime!
Comece! É preciso saber tudo!
Você tem que assumir o comando!
Aprenda, homem no asilo!
Aprenda, homem na prisão!
Arenda, mulher na cozinha!
Aprenda, ancião!
Você tem que assumir o comando!
Frequente a escola, você que não tem casa!
Adquira conhecimento, você que sente frio!
Você que tem fome, agarre o livro: é uma arma.
Você tem que assumir o comando.

Não se envergonhe de perguntar, camarada!


Não se deixei convencer
Veja com seus olhos!
O que não sabe por conta própria
Não sabe.
Verifique a conta
É você que vai pagar.
Ponha o dedo sobre cada item
Pergunte: O que é isso?
Você tem que assumir o comando.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 93


MORTE DE NANÃ Todo dia, todo dia,
Quando eu vortava da roça,
Patativa do Assaré Na mais compreta alegria,
Dento da minha paioça
Minha Nanã eu achava.
Eu vou contá uma histora Por isso, eu não invejava
Que eu não sei como comece, Riqueza nem posição
Pruquê meu coração chora, Dos grandes dêste país,
A dô no meu peito cresce, Pois eu era o mais feliz
Omenta o meu sofrimento De todos fio de Adão.
E fico uvindo o lamento
De minha arma dilurida, Mas, neste mundo de Cristo,
Pois é bem triste a sentença Pobre não pode gozá.
De quem perdeu na isistença Eu, quando me lembro disto,
O que mais amou na vida. Dá vontade de chorá.
Quando há sêca no sertão,
Já tou velho, acabrunhado, Ao pobre farta feijão,
Mas inriba dêste chão, Farinha, mio e arrôis.
Fui o mais afortunado Foi isso que aconteceu:
De todos fios de Adão. A minha fia morreu,
Dentro da minha pobreza, Na sêca de trinta e dois.
Eu tinha grande riqueza:
Era uma querida fia, Vendo que não tinha inverno,
Porém morreu muito nova. O meu patrão, um tirano,
Foi sacudida na cova Sem temê Deus nem o inferno,
Com seis ano e doze dia. Me deixou no desengano,
Sem nada mais me arranjá.
Morreu na sua inocença Teve que se alimentá
Aquêle anjo incantadô, Minha querida Nanã,
Que foi na sua isistença,
No mais penoso matrato,
A cura da minha dô
Comendo caça do mato
E a vida do meu vivê.
E goma de mucunã.
Eu bejava, com prazê,
Todo dia, demenhã,
Sua face pura e bela. E com as braba comida,
Era Ana o nome dela, Aquela pobre inocente
Mas, eu chamava Nanã. Foi mudando a sua vida,
Foi ficando deferente.
Nanã tinha mais primô Não sirria nem brincava,
De que as mais bonita jóia, Bem pôco se alimentava
Mais linda do que as fulô E inquanto a sua gordura
De un tá de Jardim de Tróia No corpo diminuía,
Que fala o dotô Conrado. No meu coração crescia
Seu cabelo cachiado, A minha grande tortura.
Prêto da cô de viludo. Quando ela via o angu,
Nanã era meu tesôro, Todo dia demenhã,
Meu diamante, meu ôro, Ou mesmo o rôxo beju
Meu anjo, meu céu, meu tudo, De goma de mucanã,
Sem a comida querê,
Pelo terrêro corria, Oiava pro dicumê,
Sempre sirrindo e cantando, Depois oiava pra mim
Era lutrida e sadia, E o meu coração doía,
Pois, mesmo se alimentando Quando Nanã me dizia:
Com feijão, mio e farinha, Papai, ô comida ruim!
Era gorda, bem gordinha
Minha querida Nanã, Se passava o dia intêro
Tão gorda que reluzia. E a coitada não comia,
O seu corpo parecia Não brincava no terrêro
Uma banana-maçã. Nem cantava de alegria,

94 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Pois a farta de alimento Ia apressando o cansaço,
Acaba o contentamento, Seguido pelo compasso
Tudo destrói e consome. Da musga dos passarinho.
Não saía da tipóia
A minha adorada jóia, Na sua pequena bôca
Infraquecida de fome. Eu via os laibo tremendo
E, naquela afrição lôca,
Daqueles óio tão lindo Ela também conhecendo
Eu via a luz se apagando Que a vida tava no fim,
E tudo diminuindo. Foi regalando pra mim
Quando eu tava reparando Os tristes oínho seu,
Os oínho da criança, Fêz um esfôrço ai, ai, ai,
Vinha na minha lembrança E disse: “Abença, papai!”
Um candiêro vazio Fechó os óio e morreu.
Com uma tochinha acesa
Representando a tristeza Enquanto finalizava
Bem na ponta do pavio. Seu momento derradêro,
Lá fora os passo cantava,
E, numa noite de agosto, Na copa do cajuêro.
Noite escura e sem luá, Em vez de gemido e choro,
Eu vi crescê meu desgôsto, As ave cantava em coro.
Eu vi crescê meu pená. Era o bendito prefeito
Naquela noite, a criança Da morte do meu anjinho.
Se achava sem esperança Nunca mais os passarinho
E quando vêi o rompê Cantaro daquele jeito.
Da linha e risonha orora,
Fartava bem pôcas hora Nanã foi, naquele dia,
Pra minha Nanã morrê. A Jesus mostrá seu riso
E omentá mais a quantia
Por ali ninguém chegou, Dos anjo do Paraíso.
Ninguém reparou nem viu Na minha maginação,
Aquela cena de horrô Caço e não acho expressão
Que o rico nunca assistiu, Pra dizê como é que fico.
Só eu a minha muié, Pensando naquele adeus
Que ainda cheia de fé E a curpa não é de Deus,
Rezava pro Pai Eterno, A curpa é dos home rico.
Dando suspiro maguado
Com o rosto seu moiado Morreu no maió matrato
Das água do amó materno. Meu amô lindo e mimoso.
Meu patrão, aquele ingrato,
E, enquanto nós assistia Foi o maior criminoso
A morte da pequenina, Foi o maió assassino.
Na menhã daquele dia, O meu anjo pequenino
Veio um bando de campina, Foi sacudido no fundo
De canaro e sabiá Do mais pobre cimitero
E começaro a cantá E eu hoje me considero
Um hino santificado, O mais pobre dêste mundo.
Na copa de um cajuêro
Que havia bem no terrêro Soluçando, pensativo,
Do meu rancho esburacado. Sem consôlo e sem assunto,
Eu sinto que inda tou vivo,
Aqueles passo cantava, Mas meu jeito é de defunto.
Em lovô da despedida, Invorvido na tristeza,
Vendo que Nanã dexava No meu rancho de pobreza,
As misera desta vida. Tôda vez que eu vou rezá,
Pois não havia ricurso, Com meus juêio no chão,
Já tava fugindo os purso. Peço em minhas oração:
Naquele estado misquinho, Nanã, venha me buscá.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 95


PARA OS QUE VIRÃO
Thiago de Mello

Como sei pouco, e sou pouco,


faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.

Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido


no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda pessoa
do plural.

Não importa que doa: é tempo DESILUSÃO


de avançar de mão dada Patativa do Assaré
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar Como a folha no vento pelo espaço
o verbo amar. Eu sinto o coração aqui no peito,
De ilusão e de sonho já desfeito,
É tempo sobretudo A bater e a pulsar com embaraço.
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda Se é de dia, vou indo passo a passo
de nós mesmos. Se é de noite, me estendo sobre o leito,
Se trata de ir ao encontro. Para o mal incurável não há jeito,
(Dura no peito, arde a límpida É sem cura que eu vejo o meu fracasso.
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo. Do parnaso não vejo o belo monte,
Minha estrela brilhante no horizonte
Os que virão, serão povo, Me negou o seu raio de esperança,
e saber serão, lutando.
Tudo triste em meu ser se manifesta,
Nesta vida cansada só me resta
As saudades do tempo de criança.

96 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


QUERO SER TAMBOR
José Craverinha – Mozambique

Tambor está velho de gritar


Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.
Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.
Nem nada!
Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.
Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.
Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 97


98 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico
ANEXOS
Documentos sobre Educação do Campo

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 99


Conselho Nacional de Educação
Câmara de Educação Básica

RESOLUÇÃO CNE/CEB 01 - 3 DE ABRIL DE 2002(*)

Institui Diretrizes Operacionais


para a Educação Básica nas Escolas
do Campo.

O Presidente da Câmara da Educação Básica, reconhecido o modo


próprio de vida social e o de utilização do espaço do campo como
fundamentais, em sua diversidade, para a constituição da identidade da
população rural e de sua inserção cidadã na definição dos rumos da
sociedade brasileira, e tendo em vista o disposto na Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 -LDB, na Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996, e na
Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprova o Plano Nacional de
Educação, e no Parecer CNE/CEB 36/2001, homologado pelo Senhor
Ministro de Estado da Educação em 12 de março de 2002, resolve:

Art. 1º A presente Resolução institui as Diretrizes Operacionais para


a Educação Básica nas escolas do campo a serem observadas nos projetos
das instituições que integram os diversos sistemas de ensino.

Art. 2º Estas Diretrizes, com base na legislação educacional,


constituem um conjunto de princípios e de procedimentos que visam
adequar o projeto institucional das escolas do campo às Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e
Médio, a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Especial, a Educação
Indígena, a Educação Profissional de Nível Técnico e a Formação de
Professores em Nível Médio na modalidade Normal.
Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida pela
sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na
temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva
que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na
sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem
as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva
no país.

Art. 3º O Poder Público, considerando a magnitude da importância


da educação escolar para o exercício da cidadania plena e para o

(*)CNE. Resolução CNE/CEB 1/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 9 de abril de 2002. Seção 1, p.
32.Acesso a este documento no link: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB012002.pdf

100 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


desenvolvimento de um país cujo paradigma tenha como referências a
justiça social, a solidariedade e o diálogo entre todos, independente de
sua inserção em áreas urbanas ou rurais, deverá garantir a universalização
do acesso da população do campo à Educação Básica e à Educação
Profissional de Nível Técnico.

Art. 4° O projeto institucional das escolas do campo, expressão do


trabalho compartilhado de todos os setores comprometidos com a
universalização da educação escolar com qualidade social, constituir-se-á
num espaço público de investigação e articulação de experiências e estudos
direcionados para o mundo do trabalho, bem como para o
desenvolvimento social, economicamente justo e ecologicamente
sustentável.

Art. 5º As propostas pedagógicas das escolas do campo, respeitadas


as diferenças e o direito à igualdade e cumprindo imediata e plenamente
o estabelecido nos artigos 23, 26 e 28 da Lei 9.394, de 1996, contemplarão a
diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais,
políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia.
Parágrafo único. Para observância do estabelecido neste artigo, as
propostas pedagógicas das escolas do campo, elaboradas no âmbito da
autonomia dessas instituições, serão desenvolvidas e avaliadas sob a
orientação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Ed ucação Básica
e a Educação Profissional de Nível Técnico.

Art. 6º O Poder Público, no cumprimento das suas


responsabilidades com o atendimento escolar e à luz da diretriz legal do
regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, proporcionará Educação Infantil e Ensino Fundamental nas
comunidades (*) CNE. Resolução CNE/CEB 1/2002. Diário Oficial da
União, Brasília, 9 de abril de 2002. Seção 1, p. 32.
rurais, inclusive para aqueles que não o concluíram na idade
prevista, cabendo em especial aos Estados garantir as condições necessárias
para o acesso ao Ensino Médio e à Educação Profissional de Nível Técnico.

Art. 7º É de responsabilidade dos respectivos sistemas de ensino,


através de seus órgãos normativos, regulamentar as estratégias específicas
de atendimento escolar do campo e a flexibilização da organização do
calendário escolar, salvaguardando, nos diversos espaços pedagógicos e
tempos de aprendizagem, os princípios da política de igualdade.
§ 1° O ano letivo, observado o disposto nos artigos 23, 24 e 28 da
LDB, poderá ser estruturado independente do ano civil.
§ 2° As atividades constantes das propostas pedagógicas das escolas,
preservadas as finalidades de cada etapa da educação básica e da
modalidade de ensino prevista, poderão ser organizadas e desenvolvidas
em diferentes espaços pedagógicos, sempre que o exercício do direito à
educação escolar e o desenvolvimento da capacidade dos alunos de
aprender e de continuar aprendendo assim o exigirem.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 101


Art. 8° As parcerias estabelecidas visando ao desenvolvimento
de experiências de escolarização básica e de educação profissiona l,
sem prejuízo de outras exigências que poderão ser acrescidas pelos
respectivos sistemas de ensino, observarão:
I - articulação entre a proposta pedagógica da instituição e as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a respectiva etapa da Educação
Básica ou Profissional;
II - direcionamento das atividades curriculares e pedagógicas
para um projeto de desenvolvimento sustentável;
III - avaliação institucional da proposta e de seus impactos sobre
a qualidade da vida individual e coletiva;
IV - controle social da qualidade da educação escolar, mediante
a efetiva participação da comunidade do campo.

Art. 9º As demandas provenientes dos movimentos sociais


poderão subsidiar os componentes estruturantes das políticas
educacionais, respeitado o direito à educação escolar, nos termos da
legislação vigente.

Art. 10. O projeto institucional das escolas do campo, considerado


o estabelecido no artigo 14 da LDB, garantirá a gestão democrática,
constituindo mecanismos que possibilitem estabelecer relações entre a
escola, a comunidade local, os movimentos sociais, os órgãos
normativos do sistema de ensino e os demais setores da sociedade.

Art. 11. Os mecanismos de gestão democrática, tendo como


perspectiva o exercício do poder nos termos do disposto no parágrafo
1º do artigo 1º da Carta Magna, contribuirão diretamente:
I - para a consolidação da autonomia das escolas e o fortalecimento
dos conselhos que propugnam por um projeto de desenvolvimento que
torne possível à população do campo viver com dignidade;
II - para a abordagem solidária e coletiva dos problemas do
campo, estimulando a autogestão no processo de elaboração,
desenvolvimento e avaliação das propostas pedagógicas das
instituições de ensino.

Art. 12. O exercício da docência na Educação Básica, cumprindo


o estabelecido nos artigos 12, 13, 61 e 62 da LDB e nas Resoluções 3/
1997 e 2/1999, da Câmara da Educação Básica, assim como os Pareceres
9/2002, 27/2002 e 28/2002 e as Resoluções 1/2002 e 2/2002 do Pleno
do Conselho Nacional de Educação, a respeito da formação de
professores em nível superior para a Educação Básica, prevê a formação
inicial em curso de licenciatura, estabelecendo como qualificação
mínima, para a docência na Educação Infantil e nos anos iniciais do
Ensino Fundamental, o curso de formação de professores em Nível
Médio, na modalidade Normal.
Parágrafo único. Os sistemas de ensino, de acordo com o artigo
67 da LDB desenvolverão políticas de formação inicial e continuada,
habilitando todos os professores leigos e promovendo o
aperfeiçoamento permane nte dos docentes.

102 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Art. 13. Os sistemas de ensino, além dos princípios e diretrizes que
orientam a Educação Básica no país, observarão, no processo de
normatização complementar da formação de professores para o exercício
da docência nas escolas do campo, os seguintes componentes:
I - estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das
crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade
social da vida individual e coletiva, da região, do país e do mundo;
II - propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino,
a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do
campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e
respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a
fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e
colaborativa nas sociedades democráticas.

Art. 14. O financiamento da educação nas escolas do campo, tendo


em vista o que determina a Constituição Federal, no artigo 212 e no artigo
60 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, a LDB, nos
artigos 68, 69, 70 e 71, e a regulamentação do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
- Lei 9.424, de 1996, será assegurado mediante cumprimento da legislação
a respeito do financiamento da educação escolar no Brasil.

Art. 15. No cumprimento do disposto no § 2º, do art. 2º, da Lei 9.424,


de 1996, que determina a diferenciação do custo-aluno com vistas ao
financiamento da educação escolar nas escolas do campo, o Poder Público
levará em consideração:
I - as responsabilidades próprias da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios com o atendimento escolar em todas as etapas e
modalidades da Educação Básica, contemplada a variação na densidade
demográfica e na relação professor/aluno; II - as especificidades do campo,
observadas no atendimento das exigências de materiais didáticos,
equipamentos, laboratórios e condições de deslocamento dos alunos e
professores apenas quando o atend imento escolar não puder ser
assegurado diretamente nas comunidades rurais;
III - remuneração digna, inclusão nos planos de carreira e
institucionalização de programas de formação continuada para os
profissionais da educação que propiciem, no mínimo, o disposto nos
artigos 13, 61, 62 e 67 da LDB.

Art. 16. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação,


ficando revogadas as disposições em contrário.

FRANCISCO APARECIDO CORDÃO


Presidente da Câmara de Educação Básica

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 103


Declaração final da II Conferência
Nacional por uma Educação do Campo
Luziânia/GO - 2 a 6 de agosto de 2004

POR UMA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

QUEM SOMOS

Somos 1.100 participantes desta II Conferência Nacional Por Uma


Educação do Campo (II CNEC); somos representantes de Movimentos
Sociais, Movimento Sindical e Organizações Sociais de Trabalhadores e
Trabalhadoras do Campo e da Educação; das Universidades, ONG´s e de
Centros Familiares de Formação por Alternância; de secretarias estaduais
e municipais de educação e de outros órgãos de gestão pública com atuação
vinculada à educação e ao campo; somos trabalhadores/trabalhadoras do
campo, educadoras/educadores e educandas/educandos: de comunidades
camponesas, ribeirinhas, pesqueiras e extrativistas, de assalariados,
quilombolas, povos indígenas...

A nossa caminhada se enraíza nos anos 60, quando movimentos


sociais, sindicais e algumas pastorais passaram a desempenhar papel
determinante na formação política de lideranças do campo e na luta pela
reivindicação de direitos no acesso a terra, crédito diferenciado, saúde,
educação, moradia, entre outras. Fomos então, construindo novas práticas
pedagógicas através da educação popular que motivou o surgimento de
diferentes movimentos de educação no e do campo, nos diversos estados
do país. Mas foi na década de 80 / 90 que estes movimentos ganharam
mais força e visibilidade.

Temos denunciado a grave situação vivida pelo povo brasileiro que vive
no e do campo, e as conseqüências sociais e humanas de um modelo de
desenvolvimento baseado na exclusão e na miséria da maioria. Temos
denunciado os graves problemas da educação no campo e que continuam hoje:

· faltam escolas para atender a todas as crianças e jovens;


· ainda há muitos adolescentes e jovens fora da escola;
· falta infra-estrutura nas escolas e ainda há muitos docentes sem a
formação necessária;
· falta uma política de valorização do magistério;
· falta apoio às iniciativas de renovação pedagógica;
· falta financiamento diferenciado para dar conta de tantas faltas;
· os mais altos índices de analfabetismo estão no campo;
· os currículos são deslocados das necessidades e das questões do campo
e dos interesses dos seus sujeitos.

104 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


Reafirmamos a luta social por um campo visto como espaço de
vida e por políticas públicas específicas para sua população.

Em julho de 1998, neste mesmo lugar, foi realizada a I Conferência


Nacional Por Uma Educação Básica do Campo, promovida pelo MST,
UNICEF, pela UNESCO, CNBB e UnB. Foi uma ação que teve papel
significativo no processo de rearticulação da questão da educação da
população do campo para a agenda da sociedade e dos governos, e
inaugurou uma nova referência para o debate e a mobilização popular: a
Educação do Campo que é contraponto tanto ao silêncio do Estado como
também às propostas da chamada educação rural ou educação para o meio
rural no Brasil. Um projeto que se enraíza na trajetória da Educação Popular
(Paulo Freire) e nas lutas sociais da classe trabalhadora do campo.

O processo da I Conferência Nacional mostrou a necessidade e a


possibilidade de continuar a mobilização iniciada. De lá para cá o trabalho
prosseguiu através das ações das diferentes organizações e através de
encontros, de programas de formação de educadores e educadoras e
criação de fóruns estaduais.

Uma conquista recente do conjunto das organizações de


trabalhadores e trabalhadoras do campo, no âmbito das políticas públicas,
foi a aprovação das “Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas
Escolas do Campo” (Parecer no 36/2001 e Resolução 1/2002 do Conselho
Nacional de Educação). Outra conquista política importante está sendo
a entrada da questão da Educação do Campo na agenda de lutas e de
trabalho de um número cada vez maior de movimentos sociais e sindicais
de trabalhadores e trabalhadoras do campo e o envolvimento de
diferentes entidades e órgãos públicos na mobilização e no debate da
Educação do Campo, como pode-se observar pelo próprio conjunto de
promotores e apoiadores desta II Conferência.

O QUE DEFENDEMOS

Lutamos por um projeto de sociedade que seja justo, democrático


e igualitário; que contemple um projeto de desenvolvimento sustentável
do campo, que se contraponha ao latifúndio e ao agronegócio e que
garanta:

· a realização de uma ampla e massiva reforma agrária;


· demarcação das terras indígenas;
· o fortalecimento e expansão da agricultura familiar/
camponesa;
· as relações/condições de trabalho, que respeitem os direitos
trabalhistas e previdenciáriosx dos trabalhadoras e trabalhadores rurais;
· a erradicação do trabalho escravo e da exploração do trabalho
infantil;
· o estímulo à construção de novas relações sociais e humanas,
e combata todas as formas de discriminação e desigualdade fundadas

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 105


no gênero, geração, raça e etnia;
· a articulação campo – cidade, o local - global.

Lutamos por um projeto de desenvolvimento do campo onde a


educação desempenhe um papel estratégico no processo de sua
construção e implementação.

O momento atual do país nos pareceu propício para realização de


um novo encontro nacional que fosse bem mais do que um evento; que
pudesse reunir e fazer a síntese da trajetória dos diferentes sujeitos que
atuam com a Educação do Campo. E assim fizemos. Nestes cinco dias da
II CNEC estivemos debatendo sobre campo e sobre educação e
especialmente nos debruçamos sobre como efetivar no Brasil um
tratamento público específico para a Educação do Campo.

Nossas proposições estão voltadas para as crianças, os


adolescentes, os jovens, os adultos e os idosos que vivem e atuam na
diversidade de formas de produção e de vida no e do campo. Estamos
especialmente preocupados com os milhões de adolescentes e jovens
que estão fora da escola e de outros processos educativos formais ou
que estão em escolas inadequadas ou precisam ir à cidade para
estudar e que a cada dia se descobrem sem alternativas sociais dignas
de trabalho e de permanência no campo.

Respeitando a diversidade dos sujeitos que aqui representamos e


ao mesmo tempo construindo a unidade necessária para a tarefa que nos
colocamos, queremos aqui reafirmar o nosso compromisso coletivo com
uma visão de campo, de educação e de política pública:

- Defendemos uma educação que ajude a fortalecer um projeto


popular de agricultura que valorize e transforme a agricultura familiar/
camponesa e que se integre na construção social de um outro projeto de
desenvolvimento sustentável de campo e de país como acima nos
referimos.

- Defendemos uma educação para superar a oposição entre


campo e cidade e a visão predominante de que o moderno e mais
avançado é sempre o urbano, e que o progresso de um país se mede pela
diminuição da sua população rural.

- Defendemos a mudança da forma arbitrária atual de


classificação da população e dos municípios como urbanos ou rurais;
ela dá uma falsa visão do significado da população do campo em nosso
país, e tem servido como justificativa para a ausência de políticas públicas
destinadas a ela.

- Defendemos o campo como um lugar de vida, cultura,


produção, moradia, educação, lazer, cuidado com o conjunto da natureza,
e novas relações solidárias que respeitem a especificidade social, cultural
e ambiental dos seus sujeitos. Dessa dinâmica social e cultural se alimenta
a educação do campo que estamos construindo.

106 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


- Defendemos políticas públicas de educação articuladas ao
conjunto de políticas que visem a garantia do conjunto dos direitos sociais
e humanos do povo brasileiro que vive no e do campo. O direito à
educação somente será garantido se articulado ao direito à terra, à
permanência no campo, ao trabalho, às diferentes formas de produção e
reprodução social da vida, à cultura, aos valores, às identidades e às
diversidades. Defendemos que este direito seja assumido como dever do
Estado.

- Defendemos um tratamento específico da Educação do Campo


com dois argumentos básicos: - a importância da inclusão da população
do campo na política educacional brasileira, que é condição de construção
de um projeto de educação nacional, vinculado a um projeto de
desenvolvimento nacional, soberano e justo. Na situação atual esta
inclusão somente poderá ser garantida através de uma política pública
específica: de acesso e permanência e de projeto pedagógico; - a
diversidade dos processos produtivos e culturais que são formadores
dos sujeitos humanos e sociais do campo e que precisam ser
compreendidos e levados em conta na construção do projeto pedagógico
da educação do campo.

- Lutamos por direitos sociais, humanos, conseqüentemente


universais, garantidos com políticas universais. Políticas que garantam a
universalização do direito à educação.

O QUE QUEREMOS

1. Universalização do acesso da população brasileira que trabalha


e vive no e do campo à Educação Básica de qualidade social por meio de
uma política pública permanente que inclua como ações básicas:

- fim do fechamento arbitrário de escolas no campo;


- construção de escolas no e do campo;
- acesso imediato à educação básica;
- construção de alternativas pedagógicas que viabilizem com
qualidade a existência de escolas de educação fundamental e de ensino
médio no próprio campo;
- educação de jovens e adultos (EJA) adequada à realidade do
campo;
- políticas curriculares e de escolha e distribuição do material
didático-pedagógico que levem em conta a identidade cultural dos povos
do campo;
- acesso às atividades de esporte, arte e lazer;
- condição de acesso às pessoas com necessidades especiais.

2. Ampliação do acesso e garantia de permanência da população


do campo à Educação Superior por meio de uma política pública
permanente que inclua como ações básicas:

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 107


- Interiorização das Instituições de Ensino Superior, públicas,
gratuitas e de qualidade;
- formas de acesso não excludentes ao ensino superior nas
universidades públicas;
- cursos e turmas específicas para atendimento das demandas
de profissionais do campo;
- concessão de bolsas de estudo em cursos superiores que sejam
adequados a um projeto de desenvolvimento do campo;
- inclusão do campo na agenda de pesquisa e de extensão das
universidades públicas;
- financiamento pelo CNPq para pesquisas na agricultura
familiar/camponesa e outras formas de organização e produção das
populações do campo;

3. Valorização e formação específica de educadoras e educadores


do campo por meio de uma política pública permanente que priorize:

- a formação profissional e política de educadores e educadoras


do próprio campo, gratuitamente;
- formação no trabalho que tenha por base a realidade do campo
e o projeto político e pedagógico da Educação do Campo;
- incentivos profissionais e concurso diferenciado para
educadores que trabalham nas escolas do campo;
- Definição do perfil profissional do educador do campo;
- Garantia do piso salarial profissional nacional e de plano de
carreira;
- Formas de organização do trabalho que qualifiquem a atuação
dos profissionais da educação do campo;
- Garantia da constituição de redes coletivas: de escolas,
educadores e de organizações sociais de trabalhadoras e trabalhadores
do campo, para construção – reconstrução permanente do projeto
político-pedagógico das escolas do campo, vinculando essas redes a
políticas de formação profissional de educadores e educadoras.

4. Formação de profissionais para o trabalho no campo por meio


de uma política pública específica e permanente de:

- cursos de nível médio e superior que inclua os jovens e adultos


trabalhadores do campo e que priorizem a formação apropriada para os
diferentes sujeitos do campo;
- uso social apropriado das escolas agrotécnicas e técnicas
atendendo as necessidades dos trabalhadores e trabalhadoras do campo;
- fortalecimento das equipes técnicas;
- implementação de novos formatos de cursos integrados de
ensino médio e técnico tomando como referência a sociobiodiversidade;
- formação e qualificação vinculadas a educação do campo, junto
às universidades construídas coletivamente com os sujeitos do campo,
às equipes técnicas contratadas e aos órgãos públicos responsáveis pela
assistência técnica.

108 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


- criação de uma sugestão de agenda específica para os institutos
de pesquisa sobre agricultura familiar/camponesa e outras formas de
organização e produção das populações do campo.

5. Respeito à especificidade da Educação do Campo e à


diversidade de seus sujeitos.

O campo tem sua especificidade. Não somente pela histórica


precarização das escolas rurais, mas pelas especificidades de uma
realidade social, política, econômica, cultural e organizativa, complexa
que incorpora diferentes espaços, formas e sujeitos. Além disso, os
povos do campo também são diversos nos pertencimentos étnicos,
raciais: povos indígenas, quilombolas...;

Toda essa diversidade de coletivos humanos apresenta formas


específicas de produção de saberes, conhecimentos, ciência, tecnologias,
valores, culturas... A educação desses diferentes grupos tem
especificidades que devem ser respeitadas e incorporadas nas políticas
públicas e no projeto político e pedagógico da Educação do Campo, como
por exemplo, a pedagogia da alternância.

O QUE VAMOS FAZER

As organizações que assinam este documento assumem o


compromisso com as seguintes ações prioritárias:

1. Articular e coordenar a construção de uma Política Nacional de


Educação do Campo, em parceria governo federal e movimentos sociais,
levando em conta as Diretrizes Operacionais, experiências já existentes e
a plataforma aqui indicada.

2. Criar uma Política de Financiamento diferenciado para a


Educação do Campo, com definição de custo-aluno que leve em conta os
recursos e serviços que garantam a qualidade social da educação, as
especificidades do campo e de seus sujeitos.

3. Cumprir a Constituição Federal que determina a aplicação dos


recursos vinculados, de no mínimo 18% da União e 25% dos Estados e
Municípios para a manutenção e desenvolvimento do ensino público,
desvinculando da dívida pública (externa e interna), estes recursos.

4. Eliminar a desvinculação dos Recursos da União (DRU), que


desviam 20% dos mesmos, e voltar a garanti-los para a Educação.

5. Garantir a participação de representantes dos movimentos


sociais do campo na Comissão de discussão do Fundeb e no
acompanhamento da sua aplicação.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 109


6. Regulamentar o regime de colaboração e cooperação entre as
três esferas do Poder Público quanto à sua responsabilidade na
implementação das políticas de Educação.

7. Articular uma política de Educação do Campo com as


diferentes políticas públicas, para a promoção do desenvolvimento
sustentável do campo, priorizando os seus sujeitos.

8. Incentivar e apoiar a elaboração e a distribuição de materiais


didáticos específicos dos sujeitos do campo.

9. Mobilizar iniciativas para a derrubada dos vetos do Plano


Nacional de Educação (PNE).

10. Participar da Avaliação do Plano Nacional de Educação (PNE)


e reformulá-lo para nele incluir a Educação do Campo.

11. Regulamentar, com urgência, a Resolução 03/99,


especialmente, no que se refere à criação e à regulamentação tanto de
escolas indígenas como da formação de professores específicos para elas.

12. Incorporar a Educação do Campo nos Planos Estaduais e


Municipais de Educação assegurando a participação dos movimentos
sociais no acompanhamento da sua execução.

13. Garantir a participação dos Movimentos Sociais nos Conselhos


de Educação, Nacional, Estaduais e Municipais, e em outros espaços
institucionais.

14. Garantir a construção coletiva do projeto político-pedagógico


da Educação do Campo com a participação da diversidade dos sujeitos,
tendo sempre como referência os direitos dos educandos.

15. Reconhecer as escolas dos acampamentos (escolas itinerantes),


bem como a escolarização desenvolvida na Educação de Jovens e Adultos
(EJA), nas diferentes experiências educativas do campo.

16. Promover todos os meios necessários para acelerar a


implementação das Diretrizes Operacionais para Educação Básica das
Escolas do Campo (DOEBEC).

17. Garantir a formação específica de educadoras e educadores


do campo, pelas universidades públicas, pelo poder público em parceria
com os movimentos sociais.

18. Participar da Reforma Universitária para nela garantir a


incorporação da Educação do Campo.

110 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


19. Investir na formação e na profissionalização dos educadores/das
educadoras e outros profissionais que atuam no campo, priorizando os que
nele vivem e trabalham.

20. Criar, para os educadores e educadoras do Campo, Centros


Regionais de Formação devidamente equipados.

21. Potencializar a Coordenadoria de Educação do Campo e o Grupo


Permanente de Trabalho (GPT) de Educação do Campo do MEC, com
participação dos Movimentos Sociais, para viabilizar a implementação das
propostas de Educação do Campo em todos os níveis, levando em conta a
plataforma aqui indicada.

EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIREITO NOSSO, DEVER DO ESTADO

Assinam esta Declaração:

CNBB - MST - UNICEF - UNESCO - UnB - CONTAG - UNEFAB -


UNDIME – MPA - MAB – MMC – MDA/INCRA/PRONERA – MEC –
FEAB – CNTE – SINASEFE – ANDES – Comissão de Educação e Cultura
da Câmara dos Deputados – Frente Parlamentar das CEFFA´S – SEAP/PR
– MTE – MMA – MinC – AGB – CONSED – FETRAF – CPT – CIMI –
MEB – PJR – Cáritas - CERIS - MOC – RESAB – SERTA – IRPAA –
Caatinga – ARCAFAR SUL/NORTE

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 111


Carta do II Seminário Nacional
de Educação do Campo
Cuiabá, MT - 08 e 09 de Junho de 2006

Por ocasião da II Reunião Ordinária do CONSED/2006, realizada


na cidade de Cuiabá/MT, nos dias 08 e 09 de junho do corrente ano, o
MEC, o CONSED e a UNDIME, com a participação de organizações da
sociedade civil organizada, promoveram o SeminárioNacional de
Educação do Campo, com os objetivos de cumprir a agenda proposta na
reunião em Gramado/RS, em 23 de novembro de 2005 , aprofundar o
debate e contribuir de forma sistêmica para a definição e implantação de
uma política que promova a Educação do e no Campo como direito à
uma educação de qualidade.

As proposições aqui apresentadas estão voltadas para as crianças,


os adolescentes, os jovens e os adultos que vivem no campo, respeitando
a diversidade desses sujeitos, e ao mesmo tempo, construindo a unidade
necessária para a tarefa que se coloca, de reafirmar o compromisso coletivo
com uma visão de campo, de educação pública e de política pública.

Toda essa diversidade de coletivos humanos apresenta formas


específicas de produção de saberes, conhecimentos, ciência, tecnologias,
valores e culturas. A educação desses diferentes grupos tem
especificidades que devem ser respeitadas e incorporadas nas políticas
públicas e no projeto político e pedagógico da Educação do Campo.
Destaca-se ainda que o rural e o urbano são apreendidos como dois pólos
de um continuum, com especificidades, que não se anulam nem se isolam,
mas, antes de tudo, articulam-se e ganham significado em função de um
projeto nacional orientado para a qualidade de vida de todos.

Nessa perspectiva, o Seminário Nacional sobre Educação do


Campo propõe a seguinte agenda prioritária de compromissos para o
desenvolvimento das políticas públicas de Educação do Campo:

a) estabelecer sistemática de financiamento permanente para


Educação do Campo sob a responsabilidade dos entes federados;

b) estruturar programas de apoio financeiro e expansão e melhoria


da estrutura física e dos equipamentos;

c) consolidar, socializar e validar, entre os entes federados,


universidades, movimentos sociais e sindicais, proposta de Política
Nacional de Formação dos Profissionais do Campo;

d) definir política de formação inicial e continuada para os


profissionais da Educação do Campo, com base em novo desenho e em

112 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


novas propostas pedagógicas;

e) apoiar programas de incentivo a pesquisas para orientar o


redesenho de propostas curriculares, a produção de materiais pedagógicos
e livros didáticos apropriados à Educação do Campo;

f) estabelecer nova organização escolar que vise à superação dos


paradigmas da seriação, transporte escolar, nucleação e da homogeneização;

g) apoiar programas específicos de formação integrada (escolarização


técnicoprofissional) para os povos do campo;

h) institucionalizar e fortalecer mecanismos deliberativos, de


assessoramento e de consulta, nos âmbitos federal, estadual e municipal,
com representação dos governos e da sociedade civil organizada (Grupo
Permanente de Trabalho e Comitês/Fóruns Estaduais e Municipais);

i) fortalecer o regime de colaboração entre União, Estados e


Municípios na definição,

implementação e avaliação das políticas de desenvolvimento da


Educação do Campo;

j) garantir a inclusão de capítulo específico sobre a Educação do


Campo nos Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação e garantir,
nos Planos Plurianuais de Ação, de recursos necessários à implementação
das políticas prioritárias.

k) institucionalizar Política de Valorização dos Profissionais da


Educação do Campo, na perspectiva da melhoria da qualidade das condições
de trabalho e de vida, em razão do exercício da atividade na escola do
campo;

l) realizar, anualmente, Seminário Nacional sobre Educação do


Campo pelo CONSED/MEC/UNDIME, com a participação da sociedade
civil organizada, para aprofundar os debates, socializar as experiências e
avaliar as políticas implementadas.

Mato Grosso, 09 de junho de 2006.

Ricardo Henriques
Secretário da SECAD/MEC

Mozart Neves Ramos


Presidente do CONSED

Mª do Pilar L. Almeida e Silva


Presidente da UNDIME

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 113


Ministério da Educação
Conselho Nacional de Educação
Câmara de Educação Básica

RESOLUÇÃO CNE/CEB 02 - 28 DE ABRIL DE 2008(*)

Estabelece diretrizes complementares, normas


e princípios para o desenvolvimento de
políticas públicas de atendimento da Educação
Básica do Campo.

A Presidenta da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional


de Educação, no uso de suas atribuições legais e de conformidade com o
disposto na alínea “c” do § 1º do art. 9º da Lei nº 4.024/1961, com a redação
dada pela Lei nº 9.131/1995, com fundamento no Parecer CNE/CEB nº 23/
2007, reexaminado pelo Parecer CNE/CEB nº 3/2008, homologado por
despacho do Senhor Ministro de Estado da Educação, publicado no DOU de
11/4/2008, resolve:

Art. 1º A Educação do Campo compreende a Educação Básica em suas


etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação
Profissional Técnica de nível médio integrada com o Ensino Médio e destina-
se ao atendimento às populações rurais em suas mais variadas formas de
produção da vida – agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais,
ribeirinhos, assentados e acampados da Reforma Agrária, quilombolas,
caiçaras, indígenas e outros.
§ 1º A Educação do Campo, de responsabilidade dos Entes Federados,
que deverão estabelecer formas de colaboração em seu planejamento e
execução, terá como objetivos a universalização do acesso, da permanência e
do sucesso escolar com qualidade em todo o nível da Educação Básica.
§ 2º A Educação do Campo será regulamentada e oferecida pelos
Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, nos respectivos âmbitos
de atuação prioritária.
§ 3º A Educação do Campo será desenvolvida, preferentemente, pelo
ensino regular.
§ 4º A Educação do Campo deverá atender, mediante procedimentos
adequados, na modalidade da Educação de Jovens e Adultos, as populações
rurais que não tiveram acesso ou não concluíram seus estudos, no Ensino
Fundamental ou no Ensino Médio, em idade própria.

(*) Publicada no Dou de 29/4/2008, Seção 1, p. 25-26. Acesso a este documento no link: http://
portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2008/rceb002_08.pdf

114 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


§ 5º Os sistemas de ensino adotarão providências para que as crianças
e os jovens portadores de necessidades especiais, objeto da modalidade
de Educação Especial, residentes no campo, também tenham acesso à
Educação Básica, preferentemente em escolas comuns da rede de ensino
regular.
Art. 2º Os sistemas de ensino adotarão medidas que assegurem o
cumprimento do artigo 6º da Resolução CNE/CEB nº 1/2002, quanto aos
deveres dos Poderes Públicos na oferta de Educação Básica às comunidades
rurais.
Parágrafo único. A garantia a que se refere o caput, sempre que
necessário e adequado à melhoria da qualidade do ensino, deverá ser feita
em regime de colaboração entre os Estados e seus Municípios ou mediante
consórcios municipais.

Art. 3º A Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental


serão sempre oferecidos nas próprias comunidades rurais, evitando-se os
processos de nucleação de escolas e de deslocamento das crianças.
§ 1º Os cincos anos iniciais do Ensino Fundamental,
excepcionalmente, poderão ser oferecidos em escolas nucleadas, com
deslocamento intracampo dos alunos, cabendo aos (*) Publicada no Dou
de 29/4/2008, Seção 1, p. 25-26.
sistemas estaduais e municipais estabelecer o tempo máximo dos
alunos em deslocamento a partir de suas realidades.
§ 2º Em nenhuma hipótese serão agrupadas em uma mesma turma
crianças de Educação Infantil com crianças do Ensino Fundamental.

Art. 4º Quando os anos iniciais do Ensino Fundamental não puderem


ser oferecidos nas próprias comunidades das crianças, a nucleação rural
levará em conta a participação das comunidades interessadas na definição
do local, bem como as possibilidades de percurso a pé pelos alunos na
menor distância a ser percorrida.
Parágrafo único. Quando se fizer necessária a adoção do transporte
escolar, devem ser considerados o menor tempo possível no percurso
residência-escola e a garantia de transporte das crianças do campo para o
campo.

Art. 5º Para os anos finais do Ensino Fundamental e para o Ensino


Médio, integrado ou não à Educação Profissional Técnica, a nucleação rural
poderá constituir-se em melhor solução, mas deverá considerar o processo
de diálogo com as comunidades atendidas, respeitados seus valores e sua
cultura.
§ 1º Sempre que possível, o deslocamento dos alunos, como previsto
no caput, deverá ser feito do campo para o campo, evitando-se, ao máximo,
o deslocamento do campo para a cidade.
§ 2º Para que o disposto neste artigo seja cumprido, deverão ser
estabelecidas regras para o regime de colaboração entre os Estados e seus
Municípios ou entre Municípios consorciados.

Art. 6º A oferta de Educação de Jovens e Adultos também deve


considerar que os deslocamentos sejam feitos nas menores distâncias
possíveis, preservado o princípio intracampo.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 115


Art. 7º A Educação do Campo deverá oferecer sempre o
indispensável apoio pedagógico aos alunos, incluindo condições infra-
estruturais adequadas, bem como materiais e livros didáticos,
equipamentos, laboratórios, biblioteca e áreas de lazer e desporto, em
conformidade com a realidade local e as diversidades dos povos do campo,
com atendimento ao art. 5º das Diretrizes Operacionais para a Educação
Básica nas escolas do campo.
§ 1º A organização e o funcionamento das escolas do campo
respeitarão as diferenças entre as populações atendidas quanto à sua
atividade econômica, seu estilo de vida, sua cultura e suas tradições.
§ 2º A admissão e a formação inicial e continuada dos professores e
do pessoal de magistério de apoio ao trabalho docente deverão considerar
sempre a formação pedagógica apropriada à Educação do Campo e às
oportunidades de atualização e aperfeiçoamento com os profissionais
comprometidos com suas especificidades.

Art. 8º O transporte escolar, quando necessário e indispensável,


deverá ser cumprido de acordo com as normas do Código Nacional de
Trânsito quanto aos veículos utilizados.
§ 1º Os contratos de transporte escolar observarão os artigos 137,
138 e 139 do referido Código.
§ 2º O eventual transporte de crianças e jovens portadores de
necessidades especiais, em suas próprias comunidades ou quando houver
necessidade de deslocamento para a nucleação, deverá adaptar-se às
condições desses alunos, conforme leis específicas.
§ 3º Admitindo o princípio de que a responsabilidade pelo
transporte escolar de alunos da rede municipal seja dos próprios
Municípios e de alunos da rede estadual seja dos próprios Estados, o
regime de colaboração entre os entes federados far-se-á em conformidade
com a Lei nº 10.709/2003 e deverá prever que, em determinadas
circunstâncias de racionalidade e de economicidade, os veículos
pertencentes ou contratados pelos Municípios também transportem alunos
da rede estadual e vice-versa.

Art. 9º A oferta de Educação do Campo com padrões mínimos de


qualidade estará sempre subordinada ao cumprimento da legislação
educacional e das Diretrizes Operacionais enumeradas na Resolução CNE/
CEB nº 1/2002.

Art. 10 O planejamento da Educação do Campo, oferecida em


escolas da comunidade, multisseriadas ou não, e quando a nucleação rural
for considerada, para os anos do Ensino Fundamental ou para o Ensino
Médio ou Educação Profissional Técnica de nível médio integrada com o
Ensino Médio, considerará sempre as distâncias de deslocamento, as
condições de estradas e vias, o estado de conservação dos veículos
utilizados e sua idade de uso, a melhor localização e as melhores
possibilidades de trabalho pedagógico com padrão de qualidade.
§ 1º É indispensável que o planejamento de que trata o caput seja
feito em comum com as comunidades e em regime de colaboração, Estado/
Município ou Município/Município consorciados.

116 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


§ 2º As escolas multisseriadas, para atingirem o padrão de qualidade
definido em nível nacional, necessitam de professores com formação
pedagógica, inicial e continuada, instalações físicas e equipamentos
adequados, materiais didáticos apropriados e supervisão pedagógica
permanente.
Art. 11 O reconhecimento de que o desenvolvimento rural deve ser
integrado, constituindo-se a Educação do Campo em seu eixo integrador,
recomenda que os Entes Federados – União, Estados, Distrito Federal e
Municípios – trabalhem no sentido de articular as ações de diferentes setores
que participam desse desenvolvimento, especialmente os Municípios, dada
a sua condição de estarem mais próximos dos locais em que residem as
populações rurais.

Art. 12 Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação,


ficando ratificadas as Diretrizes Operacionais instituídas pela Resolução
CNE/CEB nº 1/2002 e revogadas as disposições em contrário.

CLÉLIA BRANDÃO ALVARENGA CRAVEIRO

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 117


Conselho Estadual de Educação

RESOLUÇÃO CEE/PE 02 - 31 DE MARÇO DE 2009

Institui diretrizes, normas e


Publicada no DOE em 14/07/2009, princípios para a Educação Básica
Homologada pela Portaria SE nº 5920
de 13/07/2009 página 13 e
e suas Modalidades de ensino nas
republicada no DOE em 25/09/2009, Escolas do Campo que integram
páginas 1, 2 e 3. o Sistema de Educação do Estado
de Pernambuco.

O PRESIDENTE DO CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DE


PERNAMBUCO, no uso de suas atribuições e com base no que dispõem
os Incisos I, VII e VIII do art. 2º da Lei Estadual nº 11.913, de 27 de dezembro
de 2000 e IV, V, VII e VIII do art. 4º do Regimento do Conselho Estadual
de Educação, homologado pelo Decreto nº 26.294, de 08 de janeiro de
2004, e

Considerando o disposto no Art. 3º da Constituição Federal; o Art.


28 da LDBN, Lei nº 9.394/1996; o Art. 25 do Plano Nacional de Educação
– Lei nº 10.172/2001 e os pareceres e resoluções do Conselho Nacional de
Educação,

RESOLVE:

Art.1º A presente Resolução, no âmbito do Sistema de Ensino do


Estado de Pernambuco, estabelece as diretrizes, princípios e normas a
serem observados no processo de elaboração, desenvolvimento e avaliação
da política e dos projetos institucionais das escolas de educação básica
do campo.

Art. 2º As diretrizes, definidas pelo Conselho Estadual de Educação


- consultados os diversos setores que representam a população do campo
e respeitados os marcos regulatórios vigentes – deverão contribuir para o
exercício do direito à educação escolar, adequando-se às Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Básica e suas modalidades, no
contexto da diversidade do campo;

Art. 3º A Educação do Campo, responsabilidade dos entes federados


mediante um efetivo regime de colaboração, deve assegurar o atendimento
do direito humano à educação escolar da população do campo, nos
diversos contextos e formas de produção das suas condições materiais e
de existência social – agricultores familiares, extrativistas, pescadores

118 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


artesanais, ribeirinhos, assentados, acampados da reforma agrária,
quilombolas, caiçaras, indígenas e outros.

Art.4º O projeto institucional das escolas do campo, elaborado e


desenvolvido à luz dos princípios que orientam as diretrizes nacionais
para a educação básica e a gestão democrática da educação escolar nos
sistemas de ensino, tem como finalidade maior viabilizar uma política
educacional fundada na indivisibilidade, interdependência e
universalidade dos direitos humanos, contemplando sinalizações de
futuro que apontem para o fortalecimento da democracia no universo
cultural do campo.
Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida pelo
respeito à diversidade das comunidades rurais, à universalidade da
dignidade humana e à garantia dos direitos a ela associados; ao
reconhecimento dos processos de interação e transformação do campo;
à garantia do acesso aos avanços científicos e tecnológicos disponíveis
no mundo atual, às diretrizes nacionais da educação básica e à fidelidade
aos princípios éticos que devem nortear a convivência solidária e
colaborativa nas sociedades democráticas.

Art.5º A educação básica do campo, nos termos desta Resolução,


compreende:

I- A educação infantil;
II- O ensino fundamental;
III- O ensino médio;
IV- A educação profissional técnica de nível médio, integrada ou
não com o ensino médio;
V- A educação de jovens e adultos.

Art. 6º Constitui responsabilidade do Poder Público garantir às


pessoas residentes no campo, a Educação Especial, em todos os níveis,
etapas e modalidades de ensino, assegurando a matrícula em classe
comum do ensino regular, e, de forma complementar ou suplementar, o
Atendimento Educacional Especializado – AEE, aos alunos com
deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades
ou superdotação.
Parágrafo único. Considera-se AEE o conjunto de atividades,
recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados pela escola em
sua proposta pedagógica, ofertados aos alunos do ensino regular com o
apoio técnico e financeiro previsto no art. 1º do Decreto Federal nº 6.571
de 17 de setembro de 2008.

Art. 7º O poder público, cumprindo o estabelecido na legislação


educacional, deve expandir o parque escolar, assegurando às instituições
de educação básica no campo: organizar o ano letivo cumprindo o
estabelecido pelo artigo 24 da LDBEN; associar o calendário escolar,
ouvidos os respectivos conselhos de educação, ao tempo de cada
comunidade e suas especificidades; prever a possibilidade de

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 119


implantação de escolas de tempo integral; atender aos pré-requisitos de
qualidade exigidos para todos os indivíduos, propiciando instalações,
equipamentos, laboratórios, bibliotecas, museus, livros didáticos, área
de lazer, recursos didáticos e formação pedagógica apropriada dos
profissionais da educação.
Parágrafo único. A educação infantil e os anos iniciais do ensino
fundamental serão oferecidos nas próprias comunidades, evitando-se o
processo de nucleação de instituições e o deslocamento dos(as)
estudantes.

Art. 8º Na eventual impossibilidade de oferecer os anos finais do


ensino fundamental, do ensino médio integrado ou não, à educação
profissional e da Educação de Jovens e Adultos na própria comunidade,
o atendimento escolar, priorizado o princípio intracampo, poderá ser
realizado em escolas nucleadas, localizadas no seu entorno como um
“serviço de proximidade”, considerando-se as seguintes providências:
I - consulta às comunidades interessadas;
II- determinação do tempo mínimo de percurso residência- escola;
III- disponibilidade de um transporte escolar adequado;
IV- projeto político pedagógico que articule a partir dos direitos
humanos as pluralidades advindas das atividades econômicas, da
cultura e das tradições que tecem a diversidade da vida do campo;
V- programa de merenda escolar condizente com as necessidades
dos(as) estudantes face ao tempo necessário para o deslocamento e
desenvolvimento da jornada pedagógica diária.

Art. 9º O programa do transporte escolar, quando utilizado, deverá


atender, no mínimo, às seguintes exigências:
I- cumprimento das normas do Código Nacional de Trânsito
quanto aos veículos utilizados e, em espécie, no caso da efetivação de
contratos de locação de veículos, do disposto nos Artigos 137 a 139;
II- criação de normas complementares, em que se estabeleçam: a
regulamentação das distâncias do deslocamento e dos trajetos residência-
escola-residência; os processos de avaliação do estado de conservação e
manutenção de veículos e de adaptação aos alunos com necessidades
educativas especiais e as condições adequadas das estradas e vias dos
percursos utilizados;
III- respeito à duração da jornada diária de estudos e dias letivos
estabelecidos no calendário, com base nos marcos regulatórios vigentes
e modo de vida das comunidades;
IV- colaboração entre os entes federados no processo de
deslocamento dos estudantes, considerando a legislação vigente sobre
o transporte escolar, bem como a garantia do atendimento do direito à
educação da população do campo;
V- possibilidade de designar um(a) educador(a) responsável para
desenvolver atividades pedagógicas, em situações de maior distância
no trajeto residência-escola-residência.

Art. 10 Os níveis de aprendizagem conferidos nas escolas


multisseriadas, através do sistema de avaliação, deverão assegurar

120 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


diretrizes que contribuam para atingir, respeitadas as especificidades da
vida das comunidades para atingir padrões de qualidade definidos
nacionalmente, respeitadas as especificidades da vida das comunidades.

Art. 11 Os sistemas de ensino, atentos ao entendimento da educação


do campo como eixo articulador do desenvolvimento territorial, elegerão
princípios de políticas de formação e normatização que propiciem, no
projeto político-pedagógico da escola, a compreensão do conjunto das
ações direcionadas para a qualidade da vida coletiva e do bem comum.

Art. 12 A formação, a remuneração e os planos de carreira dos(as)


profissionais que atuam nas escolas do campo deverão garantir condições
dignas de trabalho, sem desconhecer o movimento permanente de
constituição de novos direitos e cumprindo o que determina a
Constituição, as diretrizes nacionais de carreira e a Lei nº 11494/2007,
que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação –
FUNDEB.

Art. 13 Os casos omissos serão analisados e resolvidos pelo CEE/PE.

Art. 14 Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Sala das Sessões Plenárias, em 31 de março de 2009.

JOSÉ RICARDO DIAS DINIZ


Presidente

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 121


Documento final do I Seminário
Municipal de Educação do Campo
Santa Maria da Boa Vista – PE

1. Considerações iniciais

O I Seminário Municipal de Educação do Campo aconteceu no


período de 6 a 8 de julho do corrente ano, no espaço da AABB. Esse
seminário foi organizado pela Coordenação de Educação do Campo da
Secretaria Municipal de Educação de Santa Maria da Boa Vista/PE. Durante
três dias consecutivos aproximadamente 500 educadores, todos vinculados
ao sistema municipal de Educação e oriundos das diversas regiões do
município: Sede, Ribeirinha, Sequeiro, Assentamentos, Projeto Fulgêncio
puderam debater, refletir e propor ações no âmbito da Educação do Campo
no município, tendo como princípio orientador o debate da identidade dos
povos do campo e as Políticas Públicas, tema central do seminário.

Esse I Seminário se propôs a discutir questões pertinentes à realidade


da população de Santa Maria da Boa Vista, considerando seus aspectos
históricos, geográficos, econômicos, políticos, sociais e culturais. Sendo
assim, foram traçados e alcançados os seguintes objetivos:

· Desencadear um processo de discussão em torno da Política Pública


de Educação do Campo tendo como referência as diretrizes operacionais
para Educação Básica nas escolas do Campo;

· Socializar as experiências de Educação do Campo desenvolvida no


bojo das regiões do município;

· Discutir a concepção de Escola do Campo: organização do trabalho


pedagógico, seus pressupostos e marcos legais;

· Debater o processo de construção da identidade dos povos do


Campo.

2. Contexto

Do município

Santa Maria da Boa Vista em termo de território é um dos


municípios maiores do Estado, segundo o IBGE (2009), são 3.001 quilômetros
quadrado, contando com uma população de 41.745 habitantes, que segundo
dados das Secretarias de Agricultura e planejamento 67% da população vive
no campo.

A economia gira em torno do comércio, serviço público, mas


principalmente da agricultura e pecuária. Há pequenas e grandes

122 Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico


propriedades, onde tem destaque a produção de uva e vinho, mas o que
é predominante é agricultura familiar/camponesa que produz uma
variedade como: feijão, melancia, banana, maracujá, goiaba e etc.

Santa Maria da Boa Vista, além das riquezas naturais, como bioma
da caatinga, é uma terra marcada por uma formação de seu povo bastante
rica, desde na sua história ter a forte presença de indígenas, quilombolas,
vaqueiros, pescadores, agricultores, pequenos comerciantes. Uma
população que surge entre o rio a caatinga, tendo assim sua população
basicamente residindo: na sede do município, na grande faixa de terra
chamada de sequeiro, e ainda uma considerável população vivendo as
margens do rio.

Um município que tem mais de 38 assentamentos de reforma


Agrária1 com o maior número de famílias assentadas do Estado num total
de 3.240. Há também projetos de reassentamentos de famílias agricultoras
que foram atingidas pela construção da Barragem de Itaparica. Temos
ainda 4 comunidades Quilombolas reconhecida pelo Ministério da
Cultura e mais duas em processo de reconhecimento.

Da Educação do Campo

No parecer de n. 36 de 2001, da Câmara de Educação Básica do


Conselho Nacional de Educação, percebemos que há uma luta histórica
pela Universalização da Educação escolar no Brasil, mas em especial no
campo. Essa luta não apenas garantir a universalização pela
universalização, mas colocada como um projeto educativo que considere
as experiências de produção da existência dos sujeitos e as características
do campo.

Situamos a força desse debate a partir de 1998, quando é realizada


no Brasil a I Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo,
que aconteceu em Luziânia – GO, promovida pela Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil – CNBB; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra – MST; Fundo das Nações Unidas para Infância – UNICEF;
Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura –
UNESCO e Universidade de Brasília – UnB2. Essa primeira conferência
surgiu no decorrer do I Encontro Nacional dos Educadores da Reforma
Agrária – ENERA, realizado em 1997. Portanto, dado o contexto da época
onde foi pensada a Política de esvaziamento do campo, milhares de escolas
no campo estavam sendo fechadas e seus alunos levados para os centros

1
Esses assentamentos de Reforma Agrária vinculados ao INCRA alguns são acompanhados pelo
Sindicato dos Trabalhadores Rurais ligados a FETAPE, e sua maioria é ligado ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST que entre os Assentamentos destaca-se o Catalunha pelo
número de famílias assentadas 604, sendo considerado o maior assentamento de Pernambuco.
2
Essas entidades promotoras da conferência se constitui como uma Articulação Nacional Por uma
Educação Básica do Campo, sendo que anos depois foram incorporadas outras entidades na medida
em que o debate foi ganhando visibilidade de outros sujeitos coletivos.

Educação do Campo: Semiárido, Agroecologia,Ttrabalho e Projeto Político Pedagógico 123


urbanos, a conferência surge como essa força importante de reafirmar
que o campo existe e que é legítima a luta por políticas públicas especificas e por
uma projeto educativo para quem vive nele.

Como fruto do debate da construção de Políticas especificas para


o Campo surge em 1999, o Programa Nacional de Educação nas áreas de
Reforma Agrária – PRONERA3, não como política pública, mas como
ação para enfrentar no campo, mas exclusivamente, nas áreas de Reforma
Agrária o alto índice de analfabetismo e a baixa escolaridade da população
assentada. O PRONERA contribuiu significativamente para a elevação
do nível de escolaridade dessa população, pois conseguiu pensar num
projeto educativo que alfabetizasse e escolarizasse considerando a
perspectiva de um novo projeto de desenvolvimento de campo,
contribuindo assim para permanência dessas famílias no campo.

No ano de 2002, fruto do acumulo, os sujeitos sociais do campo


tem uma grande conquista no âmbito da legislação, pois em Abril de
2002 é instituído pelo Conselho Nacional de Educação por meio da
Câmara de Educação Básica as Diretrizes operacionais para Educação
Básica nas escolas do campo. Essa resolução com base na legislação
educacional passa a reconhecer a diversidade dos sujeitos do campo e
suas pedagogias, constituindo-se assim num conjunto de princípios e
procedimentos que visam adequar os projetos institucionais das escolas
do campo as Diretrizes curriculares nacionais em seus diversos níveis e
modalidades de ensino.

Em 2004, o Ministério da Educação criou a SECAD e nesse mesmo


foi realizado a II Conferência Nacional de Educação do Campo4, onde para
além das experiências apresentadas, o debate esteve centrado no âmbito
de pensar a Política de Educação do Campo. No ano seguinte (2005) foi
realizado Seminários Estaduais com o objetivo de debater as Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, e construir,
no mínimo, três mapas: da situação da educação no campo, das experiências
inovadoras locais e das demandas específicas dos municípios.

A secretaria municipal acompanhando o debate nacional em


torno da Política Pública de Educação do Campo, e principalmente,
atendendo a resolução que institui as diretrizes operacionais para
Educação Básica nas escolas do Campo, criou em seu organograma a
coordenação de Educação do campo com o objetivo de poder pensar no
processo de operacionalização de Política Pública de Educação do
Campo, como também articular as diversas experiências educativas que
vem sendo gestada nas diversas escolas situadas na várias regiões
existente no município.

3
É um Programa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA do Ministério do
Desenvolvimento Agrário. O programa funciona a partir de parceria do INCRA com Instituições de
Ensino Superior e Movimento Sociais do Campo.
4
Essa II Conferência foi articulada e promovida pela CNBB - MST - UNICEF - UNESCO -UnB -
CONTAG - UNEFAB - UNDIME - MPA -MAB - MMC - MDA/INCRA/PRONERA - MEC - FEAB -
CNTE - SINASEFE - ANDES - Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados – Frente
Parlamentar das CEFFA´S - SEAP/PR - MTE - MMA - MinC - AGB - CONSED - FETRAF - CPT - CIMI
- MEB - PJR - Cáritas - CERIS - MOC - RESAB - SERTA - IRPAA - Caatinga - ARCAFAR SUL/NORTE.

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3. Afirmações

Durante esses três dias de debates por meio de painéis, socialização


de experiências, trabalhos de grupos por regiões, foram afirmados algumas
convicções que contribuem para pensarmos uma Educação do Campo desde
dos sujeitos que produzem, trabalham e vivem no e do campo. Tais
afirmações destacam-se:

1. Educação do Campo é um direito humano;


2. Educação deve está articulado a um projeto de desenvolvimento
do campo;
3. Educação do campo vinculada ao Trabalho e a cultura
4. Reconhecimento da diversidade e o respeito a diferença
5. Articular os aspectos de território com a função social do campo;
6. Cultivar os aspectos da cultura, tradição e valores do campo;
7. Cultivar a utopia camponesa, a crença na mudança e isso deve ser
alimentado por meio das músicas, danças, poesias, linguagem própria do campo;

4. Das proposições/Desafios

O seminário conseguiu apontar muitos caminhos que ajudarão avançar


com a Educação no município em seus vários aspectos, sendo assim, segue a
baixo algumas dessas proposições:

a) Retomar o plano municipal de Educação, incorporando as questões


de ordem estrutural e construir um capítulo específico sobre Educação do
Campo;
b) Realizar um trabalho mais articulado entre as escolas e seus
educadores da sede do município, criando espaços para estudos e
planejamento mais articulado uma vez que as escolas da sede recebem
estudantes praticamente das diversas regiões;
c) Pensar na formação de Educadores(as) que tenha como base o
projeto de Educação do campo que vem sendo debatido em todo território
nacional, sobretudo, no que tange aos princípios filosóficos e pedagógicos;
d) Implementar projetos de arborização e hortas agroecológicas nas
escolas;
e) Recuperar, trabalhar a memória das comunidades articulando com
o processo de formação escolar dos educandos(as);
f) Melhorar as condições do Transporte escolar;
g) Construção de bibliotecas e ou aquisição de acervos para contribuir
com o processo de aprendizagem;
h) Realizar intercambio entre as regiões;
i) Pensar numa proposta de formação específica para os educadores(as)
que tem sala multisseriadas para além dos programas como a escola ativa;
j) Realizar o II Seminário para continuar aprofundando o debate.

Santa Maria da Boa Vista/PE, 8 de Julho de 2010.

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