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Sonia Mugschl
Ali pelos anos oitenta, tempo em que a leitura passou a ser um assunto
cheio de promessas de prazer, eu estava em plena ebulição, à procura do
sentido das letras. Muito me comoveram os cartazes e cartões com aqueles
dizeres que viraram emblemas de quem aderiu a uma espécie de nova
pedagogia da leitura. Dois entraram no glossário do meu discurso: ler é um
prazer e ler para ser. Para mim, faziam todo o sentido. Mexiam comigo.
Alteravam as decisões da minha vida profissional.
Comecei a ler mais. Virei literalmente uma missionária da leitura. Mas,
quando chegou a vez de eu dar conta do recado e desconstruir textos literários
especiais, ler passou a ser mesmo mais trabalho do que prazer no meu
glossário sobre leitura. Ler passou a exigir e continua exigindo um preço
altíssimo, uma atitude sempre única para a qual jamais estaremos preparados,
nem se a releitura for de um texto preferido. Cada ato é um e único.
Valho-me das definições de Barthes (1987, p.21-22) para justificar o que
digo. Para ele, o texto de prazer “contenta, enche, dá euforia (...) vem da
cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura”.
Só que ele traz outra possibilidade: o texto de fruição: o que “põe em estado
de perda (...) desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases
históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de
seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a
linguagem.” (BARTHES, 1987, p. 24)
Quando chega a mim essa noção de que prazer de ler é reducionista, no
sentido de manter o leitor equilibrado e que é necessário à fruição o estado de
perda que põe em crise a relação do leitor com a linguagem, eu chego ao
cerne desta questão: a literatura exige que o leitor enfrente o desconforto
também da fluidez linguística, reflexo dos estados existenciais do escritor que
vai acordar os do leitor.
Só a gramática normativa, a que a escola ensina, própria da língua
imaginária, não põe o leitor em estado de perda, não faz vacilar “as bases
históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de
seus valores e de suas lembranças”. O que faz da leitura uma fruição é
também a quebra das expectativas do leitor. Fruir um texto é o despertar do
sentido também de tudo fora do lugar normativo, porém dentro do espaço
sistemático. Não de tudo no lugar que o leitor foi ensinado a encontrar.
Por isso, o leitor precisa de mais gramáticas. Quanto mais melhor. Que
cheguem as orientações do que deve ser a língua; do que é realmente a língua
por seus usos; do que acontece com o falante, independente de ele saber o
que ela é ou deve ser. O leitor precisa passar pelo normativo, pelo descritivo e
pelo que tem internalizado como conhecimento linguístico que ninguém a ele
precisa ensinar. Por aí, ele terá algum alento para sustentar suas expectativas
quebradas, lugar dos mergulhos pelos quais será tragado em todas as
dimensões pelo texto-fruição.
E divago aqui: a leitura é uma espécie de pescaria. Só que, enquanto o
leitor se distrai procurando o sentido nas linhas que lê, ele é que acaba sendo
pescado. E isso é muito bom. Mais que leitura, é a experiência da linguagem.
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