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Revista Teologia e Sociedade 1 - 5 2008 - Interprete Das Escrituras de Calvino
Revista Teologia e Sociedade 1 - 5 2008 - Interprete Das Escrituras de Calvino
Comissão Editorial
Eduardo Galasso Faria, Fernando Bortoleto Filho,
Gerson Correia de Lacerda, Shirley Maria dos Santos
Proença e Valdinei Aparecido Ferreira.
Anual
ISSN 1806563-5
4 EDITORIAL
SERMÃO
160 JUBILEU DE CALVINO
Maurice Gardiol
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Editorial
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A decisão de dedicar o pre-
○
○
Eduardo Galasso F
sente número e o próximo de
○
○
no do homenageado e do evan-
○
do mundo reformado/presbi-
○
São Paulo
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4
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○
vras de Karl Barth, o teólogo do sé- um texto que procura comparar a
○
○
culo XX, que nos fez lembrar o sig- obra teológica de Calvino com a de
○
○
nificado de Calvino no espectro Barth e um dos sermões vencedo-
EDITORIAL
REVIST
REVISTA
○
○
maior da obra do reino de Deus? res no concurso do Jubileu, reali-
○
Suas palavras ainda hoje ressoam e zado em Genebra, os demais escri-
A TEOL
○
fornecem diretrizes: “reconhecemos tos são dedicados à obra de Calvino
TEOLOGIA
○
em Calvino um exemplo e um mo- como intérprete das Escrituras,
○
○
○
○
à Igreja de seu tempo, de maneira exegético sobre livros da Bíblia, em
○
○
inesquecível, o caminho da obedi- ○
comentários ou preleções, já publi-
ência, obediência no pensamento e cados em língua portuguesa: Sal-
○
○
Teologia e Sociedade no.5 foi pre- tem planejado sua participação neste
○
○
2008
○
8 , São P
○
dois dos seus textos fazem uma realizado, que por certo se juntará
○
Paulo
○
aulo
aulo,, SP
francês. Dois outros constituem to que nos é dado viver como Igre-
○
Eduardo Galasso F
○
PÁGINAS 4 E 5
Faria
aria
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5
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Quem era e quem é Calvino?
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C
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Interpretações recentes
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008
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○
CALVINO?
○
1. Interpretações luterana entre a Igreja como
○
VINO? INTERPET
Eberhard Busch
reo Rodrigues de Oliveira
○
agente da graça e o Estado como
do passado ○
○
○
○
Alemanha. Entre seus livros está The Great tura Jacob Burckhardt, de Basi-
○
em Reformed World, vol. 57, no.4, 12.07, “Who único homem nunca foi tão pro-
○
recent times”, Geneva. Tradução: Eduardo movida como o foi por Calvino,
○
○
Galasso Faria.
que não somente fez de suas con-
○
○
2
Dietrich Bonhoeffer. Ethik. Munich: Chr. Kaiser,
○
3
Conforme Werner Kaegi, Jacob Burckhardt: eine
○
Biographie. Bd 5, Das neuereEurope and das todos por causa das mais inocen-
○
6
○
○
○
○
○
○
Stefan Zweig em 1937, usou esta com Troeltsch, Charles Hodge, no
○
REVISTA
○
caracterização de Calvino para acu- Seminário de Princeton, disse que
○
○
por causa de sua visão de que a igre-
QUEMTEOLOGIA
REVIST
REVISTA
sar Adolf Hitler de ser um demoní-
○
○
aco.4 O próprio Karl Barth escreveu ja como igreja nada tinha a ver com
○
as questões seculares, Calvino se-
○
que quando alguém conhece os de-
A TEOL
○
ERA EE SOCIEDADE
talhes da tão admirada maneira de guiu a doutrina luterana dos dois
TEOLOGIA
○
viver em Genebra no tempo de reinos. Isto é verdade, prossegue
○
○
QUEM É CAL
○
farisaísmo vêm quase que automati- silenciassem os representantes da
○
○
camente à mente. “Nenhum de nós... ○
igreja que testemunham a verdade
gostaria de ter vivido naquela santa e a lei de Deus.8
○
○
CALVINO?
○
INTERPETAÇÕES
○
AÇÕES RECENTES
○
○
almente disse.”10
○
4
Stefan Zweig. Castelio Gegen Calvin order ein
○
Paulo
5
“Keiner von us...würde in dieser heiligen Stadt gelebt
○
Zürich: Theologischer Verlag, 1993, 163. Em inglês: Charles Scribners, 1898, 104-106.
○
Eerdmans, 1995.
9
Abraham Kuyper. Calvinism: Six Stone-Lecture. Grand
○
6
Ernst Troeltsch. Gesammelte Schriften. Vol. 1 – Die Calvinismo. S. Paulo: Cultura Cristã, 2002. (NT)
Eberhard Busch
○
Biéler, ver nota 63. Capitalism (II)”, in Richard Gamble, Articles on Calvin
○
7
Op. cit., 721. 1992, 169.
○
○
○
○
○
○
○
7
○
○
○
○
○
○
2. O centro da ria de Deus, justiça, santificação e
○
C
○
redenção.” Ele demonstrou quão
○
teologia de Calvino
○
genuína era sua exposição da dou-
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008
○
○
Provavelmente seja verdadeiro trina da justificação em 1547, na-
○
que cada época influencia os resul- quilo que foi realmente o primeiro
○
○
tados de suas pesquisas pela manei- comentário diferenciado oferecido
○
○
ra como as perguntas são formula- por um protestante sobre a doutri-
○
○
das. Todavia, alguém deve dizer tam- na da justificação proposta pelo
○
○
bém, com Reid, que os especialis- Concílio de Trento e que foi em si
○
○
tas em anos e décadas recentes “têm mesmo uma afirmação substantiva.
CALVINO?
○
feito grandes esforços” para ouvir Embora na época, os decretos do
○
VINO? INTERPET
○
mais cuidadosamente “o que ○
○
concílio não tivessem sido publica-
Calvino realmente disse”, primeiro dos, Calvino estava bem informado
INTERPETAÇÕES
○
○
Igreja não deve ser avaliada somen- receu em tradução alemã até a pu-
○
○
mas ao mesmo tempo insistiu, mais continuam discutindo até que pon-
○
○
11
Herman Selderhuis, ed. Calvinus Praeceptor
○
“Ele é a fonte da vida em Cristo Je- Ecclesiae. Papers of the International Congress on
○
sus, que para nós se tornou sabedo- Genebra: Droz, 2004, 233-264.
○
○
○
○
○
○
○
8
○
○
○
○
○
○
possibilitar alguma compreensão nas ruas, “hereges” eram “sacrifica-
REVISTA
○
comum entre as confissões que vêm dos”, ou seja, eram mortos queima-
○
○
a afirmação paulina em Gl 2.6, de dos porque se opunham a esta dou-
○
○
que a fé justifica sem as obras e Gl trina do sacrifício.13 Ao definir sua
○
5.6 sobre a fé que opera pelo amor. liturgia, Calvino, em contraste com
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
De qualquer maneira, Cal- Zwínglio, não optou pelo serviço de
○
○
vino permanece, com sua doutrina prédica medieval tardio, nem con-
○
○
da justificação, nos fundamentos da cedeu importância secundária ao
○
○
Reforma Protestante. No entanto culto litúrgico. Ao contrário, como
○
○
para ele, a diferença decisiva em ○
Christian Grosse recentemente de-
relação a Roma estava em outro lu- monstrou, ele infundiu vida nova na
○
○
1534 em Paris, foi para Calvino a pírito Santo, na Ceia, nos comunica
○
te. Por seu sacrifício único ele torna incapaz de persuadir o governo da
○
○
oficiais da igreja humana, tão impor- funda de que a Ceia do Senhor fazia
○
○
rei Francisco I seguia a hóstia con- mas como lectio continua, a exposi-
○
○
13
○
12
Bernard Cottret. Calvin: Biographie. Paris: JC 14
Eberhard Busch et al. Eds. Calvin Studienausgabe.
○
2000, 109.
○
○
○
○
○
○
9
○
○
○
○
○
○
ção de todos os seus livros).15 outros. Nesta parte do livro, Calvino
○
C
○
A quantidade de discussão trata de modo extensivo sobre com
○
○
dedicada à compreensão correta da a doutrina católico-romana da igre-
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008
○
○
eucaristia na primeira edição da ja. É interessante que ele trabalha
○
Institutio Christianae Religionis de fundamentalmente com o mesmo
○
○
1536 mostra que do ponto de vista material usado pelo outro lado, mas
○
○
de Calvino, naquele tempo esta era o interpreta de maneira diferente,
○
○
a questão mais importante na con- tanto formal quanto substancial-
○
○
trovérsia com a Igreja Católica Ro- mente. Aí ele ataca o essencial da
○
○
mana. Na última edição bastante doutrina católico-romana sobre a
CALVINO?
○
ampliada da Institutio de 1559, a igreja, doutrina esta que consti-
○
VINO? INTERPET
○
crítica se expande para uma dispu- ○
○
tui a base do sistema de organiza-
ta acerca da compreensão da igreja, ção papal. 17 Não vejo no
INTERPETAÇÕES
○
○
que este é o tema da segunda gera- este debate. Para Calvino esta era
○
○
e estrutura das quatro partes da edi- como por calvinistas, Cristo, como
○
○
ção de 1559 são confusas nos deta- o mediador entre Deus e a huma-
○
que Calvino, nas três primeiras par- cio, ou seja, como profeta, rei e
○
○
tes, quer falar sobre Deus Pai, o Fi- sacerdote. Mas, ao contrário do
○
○
ga quarta parte ele trata da igreja, enfatiza que Cristo está vivo e,
○
Eberhard Busch
quais Deus nos convida para à co- a esses três ofícios em favor de
○
○
15
Christian Grosse. “Dogma und Doctrina bei Calvin”
17
Cf. Timothy George ed. John Calvin and the
○
in: Calvinus Praeceptor (nota 11), 189 et seq. Church:a Prism of Reform.Louisville,: Westminster/
○
16
Wilhem H. Neuser. “Einige Bemerkungen zum Stand Salutis zur Heilsvemitlung bei Calvin. Stutgart: F.
○
der Calvinorschung” in: Calvinus Praeceptor (nota 11), Steiner Verlag, 1989. Veröffentlichungen des Instituts
○
10
○
○
○
○
○
○
seja capaz de fazer isso. Sua rela- Cristo, não cabeças da igreja. Isto
REVISTA
○
ção para com a igreja é semelhan- ficou evidente pelo fato de que os
○
○
te à da cabeça para com o corpo e três ofícios sob sua liderança são
○
○
não existem cabeças substitutivas. distribuídos para pessoas diferen-
○
Somente ele governa a igreja e a tes que conduzem a igreja coleti-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
igreja é uma comunidade de ir- vamente. Esta interpretação dá
○
○
mãos e irmãs, ligados a ele e uns novo significado aos três ofícios
○
○
aos outros em mútuo intercâmbio, exercidos pelo governo da igreja,
○
○
como ficou expresso no Catecis- que difere do ponto de vista da
○
○
mo de Genebra de 1545.18 Cada ○
Igreja Católica Romana: os pasto-
membro participa no corpo de res incorporam o ensino profético
○
○
Cristo, mas apenas como membro de Cristo. Eles não são, de modo
○
○
nos, como está declarado na Se- ram o ofício real de Cristo. Eles
○
○
1566.19 Dessa forma, pela fé,20 to- nhão e assegurar o cuidado das al-
○
○
te, como diz Zwínglio em sua afir- com os pobres corresponde ao ofí-
○
○
18
Joh Calvin. Catechism of Geneva. Perguntas 34-45.
○
19
Heinrich Bullinger. Das zweirw Helvetische
○
20
Heidelberg Catechism. Pergunta 31.
so ainda hoje é importante quando
○
21
11
○
○
○
○
○
○
bem como o dilema no qual se en- que está sendo realizada é dirigida
○
C
○
contram os próprios luteranos, a uma nova descoberta de Calvino,
○
○
uma vez que o seu conceito de jus- mas caminha em passos lentos. A
QUEM ERA E QUEM É CAL
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○
○
tificação não mais pressupõe primeira grande tarefa, ou melhor,
○
separá-los da Igreja Católica Roma- enorme tarefa com relação a isso, é
○
○
na. Não estou dizendo que a dou- publicar novamente todos os textos
○
○
trina da igreja era o centro da teo- de Calvino e, em alguns casos, pela
○
○
logia de Calvino. O centro de sua primeira vez, bem como torná-los
○
○
teologia pode ser resumido com acessíveis a todas as pessoas. De
○
○
uma frase tirada de seu comentá- fato, existem importantes textos de
CALVINO?
○
rio sobre Jeremias: “Ubi Calvino que não foram mais im-
○
VINO? INTERPET
○
cognoscitur Deus, etiam colitur ○
○
pressos desde o século XVI ou des-
humanitas”, que significa “Onde de a edição de Leiden, no século
INTERPETAÇÕES
○
○
Deus é levado a sério, existe igual- XVII, ou mesmo que nunca foram
○
○
3. Edições de
○
língua original.
○
Eberhard Busch
Calvino
○
Apesar das aparências, existe nos tada por Peter Barth e Wilhelm
○
○
para a pesquisa dessas questões fun- gumas edições mais antigas têm la-
○
22
Calvini Opera 38, 388.
○
○
○
○
○
○
12
○
○
○
○
○
○
do século XIX). Novas edições, que Calvini Opera. No entanto, uma
REVISTA
○
estão aparecendo agora tentam, por audaciosa nova edição foi iniciada.
○
○
um lado, garantir textos cientifica- Os textos básicos são a última edi-
○
○
mente responsáveis e, por outro, ção de cada obra impressa no tem-
○
preencher lacunas. Uma inestimá- po de Calvino, ou a última edição
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
vel visão das novas edições é pro- examinada por ele próprio: Ioannis
○
○
porcionada por Michael Bihary em Calvini Opera Omnia, publicada
○
○
sua Bibliographia Calviniana, pela Livraria Droz em Genebra,
○
○
Calvins Werke und ihre Über- editada por oito prestigiosos pesqui-
○
○
setzungen, Praga, 2000. ○
sadores de Calvino e enriquecida
Essa lacuna foi preenchida em por úteis referências literárias com
○
○
1961 com o lançamento de uma notas. Até agora oito volumes desta
○
○
coleção inclui 600 sermões que não rio de Calvino aos Romanos do pes-
○
século XVI. Esta edição demonstra tas pessoas têm hoje para compre-
○
○
23
○
24
Op. cit., XXXII. compreender “seu rico estilo em
○
○
○
○
○
○
○
13
○
○
○
○
○
○
detalhe, bem como sua refinada ar- todas as novas publicações desde
○
C
○
gumentação.” Mas isto significa que 1971 na bibliografia de Calvino pu-
○
○
“quem quer que queira deixar blica no Calvin Theological Journal.
QUEM ERA E QUEM É CAL
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○
○
Calvino falar hoje terá de traduzi- É notável que, em muitos trabalhos
○
lo”, como observa Christian Link no recentes, metade do texto é consti-
○
○
prefácio à Studienausgabe, que ele tuída por notas de rodapé que fre-
○
○
e diversos outros estudiosos têm quentemente se referem ao grande
○
○
editado desde 1994. Nesta edição, número de outras monografias que
○
○
várias partes representativas da te- frequentemente e infelizmente não
○
○
ologia de Calvino, algumas das quais são acessíveis ao leitor. Além disso,
CALVINO?
○
não foram traduzidas até hoje, apa- não há falta de estudos com teses
○
VINO? INTERPET
○
recem em duas línguas: na língua ○
○
específicas que não conseguem ser
original e em tradução alemã. Seis fundamentadas exceto apelando
INTERPETAÇÕES
○
○
nova edição em 2004 publicada por tos, não pode ser mais que um sim-
○
○
interpretações
○
Calvino, uma exuberância de estu- ção para esses problemas, mas so-
○
○
25
Calvinus Praeceptor, nota 11, 142.
○
○
○
○
○
○
14
○
○
○
○
○
○
mente uma pergunta que os própri- Esperar que a pesquisa mais re-
REVISTA
○
os especialistas precisam responder. cente trate unicamente com estas
○
○
Quem é alcançado por seu árduo questões seria incorreto. Na verda-
○
○
trabalho? Minha opinião é que isso de, é preciso reconhecer respeito-
○
só pode ser respondido de modo samente que os múltiplos esforços
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
relevante quando, em seu zelo por de pesquisa, assumindo muitas di-
○
○
compreender Calvino, eles se dei- reções e abordagens, lançaram in-
○
○
xarem contagiar por ele de modo a confundíveis novas luzes sobre mui-
○
○
compreender com Calvino, ou seja, tos ângulos obscuros de Calvino e
○
○
compreender com este falível men- ○
seu mundo, trazendo-o para mais
sageiro o que Deus colocou diante perto de nós. Vemos Calvino em seu
○
○
e levado a sério como mestre da igre- August da Polônia33 e assim por di-
○
○
26
Marijn de Kroon, Martin Bucer und Johannes 31
Jan Marius J. Lange van Ravenswaay. Augustinus
○
Calvin. Reformatorische Perspektiven. Einleitung und totus noster. Das Augstinverständnis bei Joahannes
○
Texte, trad. Hartmut Rudolph. Göttingen: Vandenhoeck Calvin. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1990,
○
45.
○
27
Anthony N.S. Lane, Calvin and Bernard of
○
1996 (Studies in Reformed Theology and History, New Präedestinationslehre. Calvin im Vergleisch mit Pighius,
○
28
Barbara Pitkin. “Redefining Repentance: Calvin and 19.
○
285. 33
Mihály Márkus, “Calvin und Polen.
○
29
Wim Janse, Calvin, a Lasco und Beza. Eine Empfehlung”, in Calvinus Praeceptor (nota 11), 323-
○
30
Elsie McKee. Calvin and his Colleagues as Pastors: Europ. Hochschulschriften, Reihe 23, no. 407.
○
331-342.
○
○
○
○
○
○
○
○
15
○
○
○
○
○
○
jovem,34 em seu relacionamento com e assim obter uma idéia razoavel-
○
C
○
as mulheres,35 crianças e jovens,36 mente abrangente do reformador de
○
○
com os batistas37 ou com a filosofia Genebra e sua obra.
QUEM ERA E QUEM É CAL
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○
○
grega38. Mas ele, com certeza, nos é Com relação ao conhecimento
○
apresentado como um teólogo e al- de Calvino e sua teologia, mais
○
○
guém ocupado com tópicos teológi- esclarecedora que a longa lista de
○
○
cos como a hermenêutica,39 antro- literatura sobre ele é a recente dis-
○
○
pologia, 40 a doutrina da predes- ponibilidade de muitos sermões e
○
○
tinação,41 a mediação da salvação,42 comentários bíblicos.Resumindo,
○
○
escatologia,43 doutrina,44 oração45 e enquanto antigamente Calvino era
CALVINO?
○
assim por diante. visto à luz de sua Institutio e no con-
○
VINO? INTERPET
○
Não precisamos completar aqui ○
○
texto de seus escritos polêmicos,
a longa lista de contribuições. Cer- hoje os pesquisadores começam a
INTERPETAÇÕES
○
○
tamente que nem todos estes estu- lê-lo principalmente através dos ser-
○
○
35
Jane Dempsey Douglas. Women, Freedom and
40
Mary Poten Angel. John Calvin´s Perspectival
○
Calvin. Philadelphia: Westminster Press, 1985. Em Anthropology. Atlanta: Scholars Press, 1988. American
○
36
Jeffrey R. Watt.” Childhood and Youth in the
○
37
Willem Balke. Calvin und die Täufer. Evangelium oder
○
43
Raimund Lülsdorff. Die Zukunft Jesu Christi. Calvins
religiöser Humanismus, trad. Heinrich Quistrop.
○
38
Irena Backus. “Calvin´s Knowleldge of Greek Kontroverstheologische Studien, Bd. LXIII, J.A.
○
11), 343-350.
○
44
Victor E. Assonville Jr. “Dogma und Doctrina bei Calvin
○
39
Alexandre Ganoczy and Stefan Scheld. Die in einer begrifflichen. Wechselwirkung: Ein Seminarbericht”,
○
45
Jae Sung Kim, Prayer in Calvin´s Soteriology, in
1983; Peter Opitz. Calvins theologische Hermeneutik.
○
16
○
○
○
○
○
○
tações da Bíblia o assunto de suas Max Engammare, por exemplo,
REVISTA
○
preleções teológicas, que foram ano- está preocupado com as interpreta-
○
○
tadas por secretários oficiais e pos- ções de Calvino sobre o livro do
○
○
teriormente publicadas. Para ele, a Gênesis.47 De acordo com ele, a fi-
○
instrução teológica significava expo- gura de Abraão é exemplar e
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
sição da Escritura Sagrada. Ele a apre- confortadora para o reformador em
○
○
senta tanto como doutrina que, de Genebra. Ele mostra que Calvino
○
○
acordo com Victor d´Assomville, viu a si mesmo e sua vida inteira
○
○
significa comunicação autorizada por como um refugiado e, nessa condi-
○
○
Deus, em oposição ao dogma, que é ○
ção, ele se dirigiu a outras pessoas,
ensino humano.46 ou seja, aos oprimidos na França
○
○
não são a mesma coisa, mas não di- cimento do senhorio de Cristo em
○
são preparativos curtos para os ser- gir de sua pátria por causa da perse-
○
mões, que expressam a mesma coi- guição, dentre os quais alguns vie-
○
○
sa, mas de modo mais detalhado e, ram para Genebra, e também para
○
○
E são precisamente estes textos que sobre Atos 1-7, referiu-se especial-
○
○
essa razão, seu ensino se apresenta, te, à medida que tratava da figura
○
○
46
Cf. nota 44.
○
48
Wilhelmus Moehn, “Abraham – ´Père de l´Église de
○
17
○
○
○
○
○
○
Calvino sobre Gênesis, que estava 5. A ética de
○
C
○
fazendo ao mesmo tempo. De acor-
○
Calvino
○
do com Calvino, Abraão é o modelo
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008
○
○
através do qual a verdadeira fé e o Uma ampliação iluminadora mas
○
discipulado obedientes se apresen- também uma correção da imagem
○
○
tam unidos indissoluvelmente. E, jun- que temos do reformador de Ge-
○
○
tamente com Abraão, Calvino tam- nebra aparece em uma questão le-
○
○
bém tinha em vista o inevitável pro- vantada por Robert Kingdon, que
○
○
blema contemporâneo do consequentemente estimulou mui-
○
○
nicodemismo, ou seja, a atitude da- tos estudiosos, especialmente nor-
CALVINO?
○
queles que criam evangelicamente te-americanos, a empreender estu-
○
VINO? INTERPET
○
mas que, em contradição com essa ○
○
dos interessantes. A questão era: o
fé, viviam vidas aparentes, adaptadas que realmente era novo e diferente
INTERPETAÇÕES
○
○
enfatizava que o amor aos vizinhos a obra social passou a ser realizada
○
○
ra de tudo o que virá à luz quando Mark Valeri, para Calvino, a econo-
○
○
49
Robert Kingdon, “Calvinism and Social Welfare”, in
○
50
Mark Valeri. “Religion, Discipline and the Economy
○
1, 1997, 123-142.
○
51
Op. cit. 139.
○
○
○
○
○
○
18
○
○
○
○
○
○
po.51 Ele lutou especialmente con- bros do conselho político e do con-
REVISTA
○
tra a usura e já que ela sempre rea- selho da igreja (os presbíteros) rea-
○
○
parece, escondendo-se por trás de lizam seu trabalho de responsabili-
○
○
diferentes rótulos, sua luta voltou- dade pública.
○
se contra o mau uso da linguagem Os pesquisadores mencionados
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
em favor da confiabilidade e inte- mostraram que Calvino tinha duas
○
○
gridade de caráter. Todavia ele não preocupações em particular, acerca
○
○
luta contra ela com um radicalismo das quais ele insistiu com o povo de
○
○
cego, mas como um teólogo que Genebra, no desempenho de seu
○
○
tem o bom senso de saber a dife- ○
dever profético. Ou, para dizer mais
rença entre conceder empréstimos claramente, ele reconheceu que ha-
○
○
ção” isola “os indivíduos uns dos ou- estrangeiros que dentro de um cur-
○
○
objeto de lucro.”52 E Jane Dempsey tão, a regra era que cada cidade era
○
criados iguais, criados uns para os sos de seu país, vieram para Gene-
○
52
Op. cit. 138.
aparentemente as vê como
○
○
53
Jane Dempsey Douglass. “Calvin´s Relation to
correspondendo à reciprocidadde
○
19
○
○
○
○
○
○
o estrangeiro era ou não realmente palavra com o outro, “nosso Senhor
○
C
○
próximo se tornou, acima de tudo, mostra-nos hoje que seremos ir-
○
○
muito prática. É provável que pelo mãos, porque Cristo é a paz de todo
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008
○
○
menos parte do ressentimento das mundo e de todos os seus habitan-
○
antigas famílias estabelecidas em tes. Portanto, devemos viver juntos
○
○
Genebra com Calvino tivesse como em uma família de irmãos e irmãs,
○
○
base a resposta claramente afirma- que Cristo instituiu com o seu san-
○
○
tiva que ele deu a essa questão prá- gue. E ele nos dá a oportunidade de
○
○
tica. Por isso ele deliberadamente questionar cada inimizade (que en-
○
○
permaneceu durante a maior parte contramos).56
CALVINO?
○
do tempo que viveu em Genebra O outro embaraço que Calvino
○
VINO? INTERPET
○
como um estrangeiro ele mesmo, ○
○
mostrou ao povo de Genebra como
para mostrar o significado do pro- professor e pregador e que colocou
INTERPETAÇÕES
○
○
quando, após algum tempo, por vol- tava bem firmada a idéia de dar ao
○
○
ta de 1555, a liderança da cidade caiu pobre como boa obra. O fato de que
○
○
nas mãos dos estrangeiros.54 Estes o pobre continuava pobre não era
○
○
embora eles não possam falar uma pobreza em sua forma terrível com
○
○
54
Valeri, op. cit. (nota 50), 128.
com ele, a criação dos seres huma-
○
55
Kingdon, op. cit., (nota 49), 228.
○
56
Calvin, Sermo Deutr. 125, CO 28:16 et seq.; Valeri,
○
op. cit. (nota 50), 139. bém que Deus vê o seu ser em nos-
○
○
○
○
○
○
○
20
○
○
○
○
○
○
sos amigos que são vítimas tortura- dariedade seja formada, uma socie-
REVISTA
○
das pela desumanidade. Mas, como dade baseada no recíproco dar e re-
○
○
confirma Wolterstorff, é exatamen- ceber.
○
○
te sobre este vulnerável amor de Estudos recentes têm mostrado
○
Deus que a luta de Calvino pela jus- que os refugiados ricos da França
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
tiça foi estabelecida. 57Portanto, o estavam incluídos nesta partilha
○
○
dever do rico não termina com o com os pobres. Tudo isso tinha
○
○
fazer caridade. Ao invés disso, como como alvo a realização da solidarie-
○
○
na citação de Calvino por Valeri “Eu dade social, na qual a pobreza a po-
○
○
não posso me separar daqueles que ○
breza não é mais o destino da maio-
se tornaram necessitados, aos quais ria das pessoas como conseqüência
○
○
xúria dos ricos nas metrópoles. Esta que o apoio de Calvino a um “equi-
○
que ela nem é uma virtude digna em dada por Deus”, a tradição sobrevi-
○
○
57
Nicolas Wolterstorff. The Wounds of God: Calvin´s
disso, a autonegação no entender de
○
cos. Isto significa que o rico parti- Calvin, “Argument” zum Kommentar zum ersten
59
○
isso, a esperança e o propósito de Troeltsch, op. cit. (nota 6), 676, 717.
○
60
○
21
○
○
○
○
○
○
social-democratas.61 Isso tem sido ou seja, cada homem deve suprir ao
○
C
○
afirmado também mais recentemen- necessitado de acordo com a exten-
○
○
te por R. C. Gamble e Sephen Reid: são de seus recursos de forma que
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008
○
○
“O calvinismo de Genebra era mais ninguém tenha demais e ninguém
○
um ataque à riqueza do que uma de- tenha tão pouco.” 64 “Deus exige”,
○
○
fesa da acumulação de capital.”62 declara Calvino aqui. Ele declara isto
○
○
Wolterstorff cita um sermão de como um pregador da Palavra de
○
○
Calvino sobre Gl 6.9-11, no qual ele Deus. Ele afirma isto em uma igre-
○
○
junta ambos os lados, o pobre e o ja cristã, que deveria se entender
○
○
estrangeiro, e diz: “Não podemos como uma assembléia de seres hu-
CALVINO?
○
olhar a pessoa que é pobre e des- manos em comunidade e responsa-
○
VINO? INTERPET
○
prezada senão como se fosse o nos- ○
○
bilidade pessoal sob seu único ca-
so próprio rosto em um espelho... beça, Cristo.
INTERPETAÇÕES
○
○
lugar mais distante do mundo. Dei- como uma instituição com o pro-
○
AÇÕES RECENTES
ção de 2 Co 8.13 ss. a que André do com seu gosto particular, mas ao
○
○
Biéler já se referiu: “Deus exige que contrário, para usar a Bíblia seria-
○
Eberhard Busch
79, e Richard C. Gamble, op. cit., (nota 10) 161-163. Altíssimo, que cuida dos mais hu-
○
○
63
Wolterstorff (nota 57) 138 e ss. CO 51:105. mildes, como Deus a si mesmo se
○
64
○
22
○
○
○
○
○
○
de Calvino no que se refere às lágri- não aplicaríamos a nós mesmos,
REVISTA
○
mas das vítimas sociais que também mas olhando para Deus – “que Deus
○
○
vitimam a Deus. Agora gostaria de é misericordioso para conosco, mes-
○
○
me referir também ao escrito de mo quando parece estar contra
○
Randall Zachman entitulado Crying nós”. Calvino também escreve, re-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
to God on the Brink of Despair ferindo-se à lamentação que apare-
○
○
(Clamando a Deus à beira do de- ce no Salmo 77, onde a pergunta é
○
○
sespero) . Ele fala da interpretação se Deus se esqueceu de ser miseri-
○
○
que Calvino dá ao Salmo 22: “Deus cordioso: “A bondade de Deus está
○
○
meu, Deus meu, por que me desam- ○
inseparavelmente ligada à sua essên-
paraste?” E o reformador de Gene- cia, a ponto de ser impossível para
○
○
bra explica com palavras que talvez ele não ser misericordioso.”65
○
○
○
65
○
23
○
○
○
○
○
Genebra,
○
○
○
○
Calvino e o trato com
○
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
os hereges
○
○
○
○
CALVINO
○
○
VINO E O TRA
○
○
○
○
○
○
Introdução
TRATO
○
TO COM OS HEREGES
○
tolerância. Dois séculos adiante,
A tentativa do artigo não é ○
Ao se analisar o contexto em
○
24
○
○
○
○
○
○
Bodin, que lutou em prol da tole- des de um declarado campeão da
○
REVISTA
○
rância entre católicos e huguenotes, tolerância, das liberdades individu-
○
○
ais e dos direitos civis da sociedade.
GENEBRA,
REVIST
REVISTA
na França daquele período. Porém,
○
○
é necessário apontar que a tolerân- Infelizmente, nem todo o senso fi-
○
losófico das atitudes conciliatórias,
○
cia, de fato, nasceu somente na dé-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL
○
cada de 1680, nos ensinos dos do irenismo e da valorização da paz
TEOLOGIA
○
iluministas e, posteriormente, se entre os cristãos, ou mesmo da in-
CAL
CALVINO
○
VINO E O TRA
○
ropa, na Inglaterra e nos Estados cia, nada disso merece o nome de
○
○
Unidos. Na verdade, é obra de um ○
tolerância. Nesse sentido, segundo
homem em particular: John Locke, Bainton (1953, p. 7), a lógica de
○
○
TRATO
○
TO COM OS HEREGES
○
foi fiel ao seu ideal de humanista para Bèze havia apenas ocorrido
○
○
negassem os seus príncipes. Ele ad- Genebra com as outras cidades su-
○
ra, pois nada seria possível fazer com muitos anabatistas, e então afirmou
○
○
Calvino também não foi toleran- que Genebra apenas baniu aqueles
○
○
Paulo
aulo
aulo,, SP PÁGINAS 24 A 43
○
1
A tolerância de Locke ainda é distinta da liberdade 2
Sobre isso, considerar: COTTRETT, Bernard.
○
de consciência, apregoada por Bayle, segundo o qual Traducteurs et divulgateurs clandestins de la Réforme
○
essa liberdade repousa sobre o direito de errar. No dans l ‘Angleterre henricienne, 1520-1535. In: Revue
○
sentido estrito, a liberdade de consciência não admite d’Histoire Moderne et Contemporaine, 1981, n. 28, p.
○
de conscience? Épistémologie et politique à l’aube des Calvin. In: La liberté de conscience: XVI-XVIIe siècles.
○
Lumières. Études Théologiques et Religieuses, 1990, n. 1991, p. 21-37. BUISSON, F. Sébastien Castellion: sa
○
25
○
○
○
○
○
○
para com Hiérome Bolsec, que ha- Sorbonne – França (apud BECKER,
○
○
via blasfemado contra a providên- 1971, p. 401). O texto-resposta de
○
○
cia de Deus. Foi clemente com Bèze, datado de 1560, foi o Traité de
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
Sébastien Castellion, que amaldi- l’autorité du magistrat en la punition
○
çoou livros das Escrituras Sagradas; des hérétiques et du moyen d’y
○
○
e ainda com Valentin, que blasfe- procéder – Tratado sobre a autorida-
○
CALVINO
○
mou contra a essência divina. Ne- de do magistrado em punir os heré-
○
VINO E O TRA
○
nhum deles foi morto: Bolsec foi ticos e do seu modo de proceder.
○
○
banido de Genebra. Castellion teve Não se pretende arriscar conclu-
○
○
problemas apenas quando saiu de sões, exceto fazer a ressalva de que
○
TRATO
Genebra e foi para Basiléia. Valentin se deve cuidar mais para não serem
○
○
TO COM OS HEREGES
onde está a crueldade? Para ele, so- Porém, respeita-se a própria or-
○
○
nas esse.
○
○
4
A esse respeito há um bom trabalho desenvolvido
○
por Bernard Cottret: Biographie (1990), porém não ou indireta de Calvino para buscar
○
p. 235-241.
○
○
○
○
○
○
26
○
○
○
○
○
○
cios políticos de Genebra e de sua to- livre arbítrio (Opera Calvini, v. 21,
REVISTA
○
lerância, ou mesmo de sua falta. p. 481, 15 maio 1551). Com certe-
○
○
za, a predestinação se constitui em
○
1551: Bolsec e a
○
um dos dogmas mais contestados do
○
calvinismo doutrinário.
TEOLOGIA E SOCIEDADE
predestinação
○
De fato, o que causa polêmica é
○
○
Esse frade carmelita, parisiense a confusão com a dupla predes-
○
○
e médico, Jérôme-Hermès Bolsec, tinação. Quem faz essa confusão
○
○
se voltou contra Calvino e a doutri- acaba criticando o Deus que esco-
○
○
na da predestinação. Bèze (1565) ○
lheu salvar alguns e também esco-
tratou Bolsec como homem cheio lheu condenar outros. Entender a
○
○
Calvino chegou a atribuir tal ig- época havia algo como grupos de
○
○
merecia punição por seu ato de se- leigos. Bolsec se insurgiu contra a
○
○
Afinal, poderia haver cura para esse 80-131). Logo à saída, Bolsec já foi
○
○
27
○
○
○
○
○
○
176, Registres du Conseil, 27 out. o controle. Esse era o problema que
○
○
1553). Restou a Bolsec confrontar um herege representava para a co-
○
○
Calvino acerca dessa doutrina que munidade naquele contexto.
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
o médico julgava absurda. Até mesmo entre os ministros
○
Ele enviou a Calvino um verda- surgiam dissensões. O pastor André
○
○
deiro quebra-cabeças metafísico: os Zébédée, de Noyon, e Jean Lange,
○
CALVINO
○
“Artigos propostos por Jerome de Bursin, pregaram contra as idéi-
○
VINO E O TRA
○
Bolsec ao mestre Calvino, a fim de as de Calvino, em 1555
○
○
que ele responda categoricamente (COTTRET, 1995, p. 222, nota 27).
○
○
e sem razões humanas nem Iniciando com Bolsec a pregação das
○
TRATO
cer perigos à própria cidade. Prova João Calvino, antigo pastor de Ge-
○
○
Bolsec, em 1552 ouviam-se nas ta- Levantou, nesse livro, inúmeras fal-
○
○
“Calvino faz de Deus o autor do pe- Destilou toda a sua raiva contra o
○
○
28
○
○
○
○
○
○
dessas acusações. Nem mesmo é midou, mas continuou desafiando a
REVISTA
○
necessário, face aos fatos históricos Igreja, primeiro a católica, agora a
○
○
que são comprovados. No entanto, protestante. Naquele século XVI
○
○
as falácias colaram e até hoje mui- não poderia esperar-se outro final:
○
tas dessas infâmias são tidas como foi condenado à morte.
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
verdadeiras pelos que ignoram a his- Médico, teólogo, filósofo,
○
○
tória de Calvino. Como se as fofo- geógrafo, astrônomo e astrólogo,
○
○
cas prevalecessem sobre as narrati- este espanhol nascido em Vilanova
○
○
vas abalizadas e historicamente de Sigena-Huesca, no norte da
○
○
verificadas. O livro de Bolsec circu- ○
Espanha, defendia idéias teológicas
lou bastante. Foi condenado até que contrariavam tanto as doutrinas
○
○
lou. O povo gosta de ler coisas des- sado de heresia, Serveto já havia sido
○
Consistório.
○
meira condenação, mas acabou des- estudada em seu contexto histórico. (Westminster
○
Dictionary, p. 1.263).
○
○
○
○
○
○
○
29
○
○
○
○
○
○
de de Vienne6, trocou correspon- Genebra, acabou preso. Houve um
○
○
dências com Calvino sobre assun- processo contra ele, baseado em 38
○
○
tos de cunho teológico. Serveto não artigos, condenando-o por heresia.
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
aceitava as doutrinas do batismo Era o mês de agosto de 1553. Era
○
infantil, da cristologia segundo o uma época sombria e em Genebra
○
○
Concílio da Calcedônia, nem mes- havia um grupo de opositores a
○
CALVINO
○
mo a doutrina da trindade, segundo Calvino que se aproveitaram da si-
○
VINO E O TRA
○
o Concílio de Nicéia. Calvino e tuação para criar polêmica. Entre
○
○
Serveto romperam esse relaciona- eles estava o genebrino Philibert
○
○
mento epistolar em 1547. Berthelier, do partido político dos
○
TRATO
tava o condenado. Como se estives- carta, “Espero que Serveto seja con-
○
○
se executando o próprio herege, ain- denado à morte, mas desejo que seja
○
outro país não seria feita a mesma jas das cidades vizinhas, Berna, Zu-
○
○
aportuguesado para Viena, mas isso causa confusão tenciado na fogueira daquela cida-
○
Vienne, o XV Concílio Ecumênico que condenou à de francesa. Serveto não tinha para
○
1311 e 1312.
○
7
Efígie é a representação plástica da imagem de uma
○
30
○
○
○
○
○
○
A disputa se acirrou e as autori-
REVISTA
○
dades de Calvino e do Consistório
○
○
foram desafiadas. Juntamente com os
○
○
pastores de Genebra, no dia sete de
○
setembro, Calvino e os demais pro-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
testaram diante do PC solicitando a
○
○
independência do poder eclesiástico.
○
○
Repetiram o protesto no dia 15. No
○
○
dia 18 de setembro, o PC decidiu
○
○
○
“ater-se aos editos como era o costu-
me anterior” (FARIA, 2008, p. 225).
○
○
quais eram os seus erros. Nesse perí- samente”. Acusava Calvino de here-
○
○
1553, Berthelier conseguiu sua ad- essa última cartada, contando com
○
○
a de Serveto?
○
○
8
Disponível em: http://fr.wikipedia.org/wiki/
No dia 26 de setembro, o PC
○
31
○
○
○
○
○
○
de Genebra decretou a condenação Crueldade? Por parte dos execu-
○
○
de Serveto à morte na fogueira, já tores houve, sim. Mas, não se pode
○
○
para o dia seguinte. Novamente continuar imputando somente a
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
Calvino escreveu a Farel, explican- Calvino a condenação de Serveto,
○
do-se: “Nós nos temos esforçado muito menos atribuir-lhe crueldade.
○
○
para mudar o tipo de morte. Foi Se houve alguém que intercedeu
○
CALVINO
○
em vão. Eu lhe direi de viva voz para que não queimassem Serveto
○
VINO E O TRA
○
porque nada conseguimos” (FA- vivo na fogueira, esse foi Calvino.
○
○
RIA, 2008, p. 225). Depois, as acusações de cruelda-
○
○
A sentença foi dada pelo PC de de continuaram sendo dirigidas jus-
○
TRATO
tica das demais cidades suíças e até Serveto seria apoiado por Bethelier
○
demais opositores. Calvino foi acu- Mas, não por conta de Calvino. Po-
○
○
sado por Serveto que queria sua rém, como há requintes sempre
○
32
○
○
○
○
○
○
rante os fatos. cina oficial.
REVISTA
○
Reiterando, houve crueldade Lembram-se da execução e mor-
○
○
contra Serveto: uma coroa de espi- te de Serveto. Esquecem a sua vida.
○
○
nhos com enxofre foi colocada so- Ele foi um médico de alto nível.
○
bre a cabeça do sentenciado. Foi Também foi um homem que desa-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
usada lenha verde para que a foguei- fiou a sua época, confrontou a lide-
○
○
ra durasse mais e para que o suplí- rança eclesiástica católica e depois
○
○
cio fosse mais cruel e doloroso etc. a protestante. Insistiu em combater
○
○
Depois, some-se a isso o atribuir a doutrina da Trindade e acabou su-
○
○
exclusivamente a Calvino a culpa ○
cumbindo, perdendo a batalha. Fin-
por esse erro monumental. Na ver- dou morto e como a constante pe-
○
○
lação pulmonar com exatidão, cem que apoiava Calvino. Lutou pela
○
até mesmo a sua descoberta foi, por 1541. Agora, após o caso Serveto,
○
○
33
○
○
○
○
○
○
der que pertencera aos libertinos ou demais cidades.
○
○
articulans e favoreceram Calvino. O próprio PC de Genebra defen-
○
○
Como vingança, parece terem deu e implantou regras e pontos
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
sido os próprios libertinos os pri- importantes que servem até hoje
○
meiros a difamar Calvino e atribuir como referência mundial de demo-
○
○
falsamente a condenação de Serveto cracia representativa. Calvino, em
○
CALVINO
○
ao reformador. Os libertinos o ma- particular, defendeu a teoria do di-
○
VINO E O TRA
○
taram. Caíram em descrédito. Per- reito civil de resistir aos abusos do
○
○
deram o poder do PC. Então, fize- Estado, um problema filosófico-po-
○
○
ram de Calvino o bode expiatório lítico de desobediência civil e do di-
○
TRATO
calvinistas. Até hoje, muitos deixam Como uma pedra que se coloca
○
○
34
○
○
○
○
○
○
to em 22 de outubro de 1563) era compatriota de Calvino,
REVISTA
○
1903.9 natural da região do Dauphiné fran-
○
○
cês, da cidade de Saint-Martin-du-
○
Após 1553:
○
Fresne, próxima à divisa com a Su-
○
íça (COTTRET, 1995, p. 237). Es-
a oposição do
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
tudou no Collège de la Trinité em
○
amigo Castellion
○
Lyon. Tornou-se grande conhecedor
○
○
Serveto continuou como um de grego, hebraico, italiano, alemão
○
○
souvenir em Genebra após o seu e latim.
○
○
suplício. Bèze (1565) continuou re- ○
Por volta de 1540 ele aderiu ao
protestantismo em Lyon, onde pre-
○
Institutas.
○
9
Disponível em: www.servetus.org.br. Acesso em 03
tornaram-no bem conhecido. Era
○
jun. 2008.
○
○
○
○
○
○
35
○
○
○
○
○
○
ainda o autor de Dialogues sacrés –
○
○
diálogos sacros – em edição bilín-
○
○
güe, latim-francês, combinando a
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
educação religiosa com os ensinos
○
clássicos.
○
○
Castellion resolveu candidatar-se
○
CALVINO
○
também ao ministério. Tinha mui-
○
VINO E O TRA
○
tos filhos e o salário de professor lhe
○
○
era insuficiente. Porém, tinha idéias
○
○
teológicas que contrariavam
○
TRATO
na da predestinação.
○
10
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/
○
36
○
○
○
○
○
○
nhecido como Dryander. Começou caráter e competência pedagógica.
REVISTA
○
com eles a tradução da Bíblia Calvino e os demais pastores da
○
○
(COTTRET, 1995, p. 238). Venerável Companhia de Pastores
○
○
Platter havia sido aprisionado de Genebra assinaram esse docu-
○
quando apresentou ao rei Carlos V mento honroso recomendando-o
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
o seu projeto de tradução do Novo para Basiléia. Afinal, era amigo da-
○
○
Testamento (1543). Ele buscou re- queles pastores.
○
○
fúgio na Inglaterra onde foi nomea- Em Basiléia acabou tornando
○
○
do professor de grego na Universi- querido e renomado, como era de
○
○
dade de Cambridge (1548). Em ○
se esperar. Porém, iniciou a enviar
1549 partiu para Basiléia e depois suas correspondências que comba-
○
○
traduzir uma parte do Pentateuco. naquele século XVI. Mas, ainda não
○
○
Foi em 1551 que ele resolveu fazer Talvez mais a liberdade de consciên-
○
○
37
○
○
○
○
○
○
Embora Castellion fosse muito obras de Ochino e todo o seu reno-
○
○
prestigiado em Basiléia, a publica- me e lisura caíram por terra.
○
○
ção de seu livro atacando Calvino Em 1554 Bèze escreveu sua res-
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
foi impedida. Era o seu Tratado dos posta a Castellion. A resposta teve
○
heréticos, a saber se devem ser per- sua versão francesa em 1560, com
○
○
seguidos, e como se deve conduzir com o título Tratado sobre a autoridade
○
CALVINO
○
eles, segundo o conselho, opinião e do magistrado em punir os heréticos
○
VINO E O TRA
○
sentença de muitos autores tanto e seu modo de proceder. Não foram
○
○
antigos quanto modernos (1554). tomadas providências pela universi-
○
○
Castellion usou o pseudônimo de dade de Basiléia. Mas, o Sínodo
○
TRATO
1545: solidariedade
○
Vachat – um
○
reportagem somente
○
em 2008
Armando Araújo Silvestre
sas com um inimigo da causa evan- gata a imagem de Calvino. Tal furo
○
○
nova fé. Castellion traduzira uma das tre as preciosidades do MIR – Mu-
○
○
○
○
○
○
○
38
○
○
○
○
○
○
seu Internacional da Reforma – em nando morais à medida que a
REVISTA
○
Genebra. É um manuscrito autogra- pessoa tem a impressão de ter
○
○
fado por Calvino, de 1545, que mos- sido abandonada por Deus.
○
○
tra o reformador em seu ângulo mais
○
humano. Para esse museu, o acha- Apesar dos esforços de Calvino
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
do é mais do que uma preciosidade. e dos barbeiros da cidade, que eram
○
○
Ele foi colocado em exposição sob os cirurgiões naquela época, Jean
○
○
a proteção de uma vitrine, protegi- Vachat morreu no mesmo dia. Na
○
○
do contra a exposição direta de luz, paisagem religiosa e ética da época,
○
○
em uma das doze salas do MIR. ○
o suicídio era uma questão grave e
O manuscrito datado de 23 de exigia um procedimento da justiça
○
○
janeiro de 1545 é a única carta co- penal que negava ao suicida até mes-
○
○
dômen com uma faca, para acabar no caso – um segundo pastor e dois
○
○
escreveu Calvino nessa carta. Antes que Jean Vachat poderia ter sobrevi-
○
○
de morrer, o suicida foi visitado por vido aos ferimentos se ele já não es-
○
39
○
○
○
○
○
○
pultura cristã. Isabelle Graesslé anali- mas sem ter sucesso em fazer valer
○
○
sa que “O relatório revela um lado hu- seus direitos. A carta terminou sen-
○
○
mano de Calvino. Ele mostra que o do comprada por um colecionador,
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
mais severo dos teólogos não era aqui- que morreu em 2005. Os descen-
○
lo que imaginávamos”. dentes do colecionador decidiram
○
○
Mas, esse retrato poderia não ter então revendê-la. Ela foi posta em
○
CALVINO
○
sido pintado e essa nova faceta “mais leilão em julho de 2007, na Christie’s
○
VINO E O TRA
○
luminosa” da personalidade de de Londres, onde passou para as
○
○
Calvino poderia ter permanecido mãos do seu novo proprietário pela
○
○
desconhecida para sempre. O moti- soma de 70 mil libras. Foi compra-
○
TRATO
vo? A carta foi roubada e ficou desa- da pelo grupo de mecenas que
○
○
TO COM OS HEREGES
dessa data. Ele só retornou à tona em Figura 3. O documento inédito mostra a humanidade
○
swissinfo.html?siteSect=105&sid=8620853. Acesso
○
em 23 maio 2008.
to provocou consternação na cida-
○
12
Manuscrito assinado por Calvino retorna à Genebra.
○
images/sri/2007/sriimg20071219_8549618_7.jpg.
○
40
○
○
○
○
○
○
Em seus vários salões, o museu Considerações
REVISTA
○
lembra sempre da evolução da Ge-
○
finais
○
nebra de Calvino, do seu estatuto de
○
○
“Roma protestante” ao desenvolvi- O que se sabe de Calvino no Bra-
○
mento da cidade com grandes cons- sil ainda é muito pouco. Há a triste
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
truções, promovidas para receber os constatação de que nem mesmo os
○
○
huguenotes. E a história vem até os que se dizem fiéis calvinistas conhe-
○
○
dias de hoje, como detalha Olivier cem algo de substancial desse
○
○
Fatio, presidente do conselho da reformador universal. Isso chega a
○
○
Fundação do Museu: ○
estarrecer. Há mesmo alguns que se
dizem guardiães da herança deixa-
○
○
Das guerras religiosas até a re- da por Calvino, mas que não conse-
○
○
seu MIR. O museu não é apenas perder também o norte para o pre-
○
○
quando as pessoas estão hoje entre Quem sabe alguns retratos aju-
○
○
atual.
○
13
Disponível em: http://www.swissinfo.ch/por/
○
swissinfo.html?siteSect=105&sid=8620853. Acesso
mundo e contextualizá-las na busca
○
em 10 jun. 2008.
○
○
○
○
○
○
41
○
○
○
○
○
○
de soluções para os problemas de oso e político, bem como as contri-
○
○
nossa própria época. buições que posteriormente deu à
○
○
A opção por apresentar esse re- cidade e ao mundo. Retratar Calvino
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008
○
○
trato de Calvino corresponde a ape- é também fazer uma análise de seus
○
lar para algo não estático, mas sem- escritos. Quando o foco é político,
○
○
pre em movimento. No caso de há que se privilegiar o que tange ao
○
CALVINO
○
Calvino, seus retratos congelam, seu pensamento político, com todas
○
VINO E O TRA
○
condensam, identificam-se com a as nuanças possíveis.
○
○
fugacidade do traço e com a verda- Para a fase de elaboração desse
○
○
de da alma. Portanto, se estão ainda retrato é preciso buscar um enten-
○
TRATO
tórico passa por este crivo. O que pinceladas sobre o pensamento des-
○
○
se pode tentar é desenhar ou insistir se personagem que, por sua vez, foi
○
nação por várias cidades como Ba- lugar de refúgio para onde afluíam
○
○
Outros traços podem delinear o truir uma sociedade cristã ideal, quin-
○
○
42
○
○
○
○
○
○
○
REVISTA
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○
○
○
○
○
43
○
○
○
○
○
○
O Discurso do Pão da
○
C
○
○
○
Vida: fundamento bíblico da
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008
○
○
○
○
doutrina eucarística de João
○
○
○
○
Calvino
○
○
○
○
○
○
Se perguntarmos a uma as- encontravam-se em grande pe-
○
Claude Emmanuel Labrunie*
reo Rodrigues de Oliveira
○
sembléia constituída por ○
○
rigo. Afinal, todas as tentativas
presbiterianos “Qual seria a dou- de reformar a igreja da Europa
○
prosseguiam no exercício do
○
○
VINO
44
○
○
○
○
○
○
Império Romano Germânico” e o eucarística que pudesse reaproximar
○
REVISTA
○
de “Igreja Católica Romana”, tam- as igrejas em fase de dispersão. Esta
○
○
visão contextual mostra muito bem
JOÃO CAL
O DISCURSO
REVIST
REVISTA
bém presumivelmente santa. As duas
○
○
estavam bem determinadas em usar que a teologia de Calvino é o opos-
○
to de uma teologia de “torre de mar-
○
sua santidade para exterminar as igre-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL
CALVINO
○
jas nascidas da Reforma. fim”. Para o reformador de Gene-
TEOLOGIA
○
VINO
Os dois potentados do século bra a teologia é atividade encarnada
○
○
DO PÃO DA Vol.
○
de mãos dadas neste intento. E comunidade da fé. A teologia é ques-
○
○
como se tal ameaça não fosse sufi- ○
tão “de vida ou morte” para o cris-
ciente, Lutero e Zuínglio haviam-se tão e para a igreja.
○
○
VIDA:
○
te enfraquecido. Foi uma das ironi- de ser pão e passa a ser o próprio
○
○
Paulo
cebia claramente que era urgente nho. Só o padre tomava o vinho. Por
○
○
45
○
○
○
○
○
○
“de fide” (oficial e obrigatória) no ção de Lutero da presença real de
○
C
○
IV Concílio do Latrão de 1215. Na Cristo não pode ser confundida nem
○
○
Idade Média não raro os homens com a consubstanciação, nem com
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008
○
○
costumavam usar longos bigodes e a interpretação similar de
○
barbas. Acontecia, então, que após impanação, porque a visão luterana
○
○
beberem do vinho sagrado, gotas do concebe a presença como real, po-
○
○
mesmo caíam no chão durante o rém não localizada, inclusa nos dois
○
○
procedimento de voltar para seu lu- elementos. Tal presença fundamen-
○
○
gar. Ocorria então o horror de ou- ta-se na onipresença da pessoa de
○
○
tros pisarem inadvertidamente no Cristo, sendo, portanto, uma união
○
próprio sangue de Cristo! Foi preci- sobrenatural e sacramental, não lo-
○
○
so limitar o beber do cálice ao ofici- ○
○
calizada. “Para provar a possibilida-
ante. Esta providência, que contra- de desta presença deixou-se levar a
○
○
era concebido em termos do mila- todo lugar em que ela queria, inclu-
○
○
sangue, quanto do pão e vinho, coe- Zuínglio. Ele não aceitou a visão da
○
○
xistem em união íntima. Para ilus- Santa Ceia de Lutero que anuncia-
○
○
46
○
○
○
○
○
○
a eucaristia. Lutero pegou um pe- nificativos de ambos os antagônicos
REVISTA
○
daço de giz e com ele escreveu na enunciados de Wittenberg e de Zu-
○
○
tampa da mesa “Hic est corpus rique. Precisava ser um modelo
○
○
meum”, “Este é o meu corpo”. Ou- mediador entre os dois anteriores.
○
tra ironia, Lutero havia estabeleci- E de fato foi. Tradicionalmente tem-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
do antes do inicio do encontro, a se afirmado que a eucaristia
○
○
condição de que todas as discussões calviniana (aquela do próprio
○
○
teológicas se fizessem a partir do Calvino, por contraste com a tradi-
○
○
texto bíblico da tradução da Vulgata ção que o seguiu, à qual atribuímos
○
○
Latina, e não dos textos nas línguas ○
o adjetivo “calvinista”) é mais depen-
originais. Ele sabia que Zuínglio era dente da concepção sacramental
○
○
po”, como “Este significa meu cor- conta o aporte dos aspectos: ponto
○
forma verbal “é” pode e deve ser to, que Bullinger (1504-1575), o
○
○
47
○
○
○
○
○
○
consciente de uma comunicação Calvino sentir-se autorizado a reivin-
○
C
○
maior de Cristo no sacramento, do dicar autoridade superior para o tes-
○
○
que aquela que você expressa, nem temunho joanino dado à Ceia, so-
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008
○
○
por isso cessaremos de ser um brepondo-se ao ensino dos sinóticos
○
n’Ele”.1 e de Paulo na primeira epístola aos
○
○
Baseado em que a autoridade Coríntios, capitulo 11? Em todos os
○
○
Calvino ousava propor o novo en- muitos textos do reformador de
○
○
tendimento simbólico? A única au- Genebra sobre a eucaristia, a pri-
○
○
toridade aceitável para todos os meira passagem bíblica invocada
○
○
reformadores: a Bíblia. Calvino re- neles, como ponto de partida para
○
conheceu o ensino eucarístico con- tudo o que se vai expor em seguida,
○
○
tido no capitulo 6 do Evangelho de ○
○
é sempre João 6!
João, especificamente o “Discurso É bom ouvirmos o próprio
○
○
Pão do Céu”, contido nos versículos tante. “Quanto ao mais, não é por
○
23 a 7l. Quando Jesus afirma para acaso que as quatro histórias que nar-
○
○
seus ouvintes “Eu sou o pão vivo que ram como Cristo desempenhou o ofi-
○
○
desce do céu. Quem comer deste pão cio de Mediador, receberam o titulo
○
○
que o mundo tenha vida” – a pre- do que estes (os quatro evangelhos)
○
sença de Cristo não está nos elemen- a virtude e os frutos de seu advento.
○
○
coração dos crentes! A questão cen- uma grande diferença entre São João
○
○
tral da eucaristia não está mais na e os outros três: é que aquele não faz
○
○
1
1- C.f. João Calvino – Textos escolhidos. São Paulo:
Jehan calvin sur le Nouveau
○
48
○
○
○
○
○
○
Testament. Vol 1, Paris: Librairie de tra-se na congregação (reunião dos
REVISTA
○
Ch. Meyrueis et Compagnie, 1854- pastores às sextas-feiras) sobre a Di-
○
○
55, p. XVIII). vindade de Jesus Cristo, publicada
○
○
A discussão mais pormenoriza- em 1558 [Opera Calvini 47, 465-
○
da sobre a comparação entre o quar- 484)].Encontramos ali o seguinte
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
to evangelho e os sinóticos encon- trecho:
○
○
○
○
○
○
○
“Se lemos São Mateus, São Marcos e São Lucas,
○
como ele foi enviado por Deus seu Pai a fim de perfa-
○
49
○
○
○
○
○
○
ções” dos pastores dedicam-se ao to na Ceia do Senhor. Ele al-
○
C
○
exame do quarto evangelho duran- cança este objetivo ao funda-
○
○
te os anos de 1551 a 1553, quando mentar-se no Discurso do
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
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○
○
Calvino publica seu Comentário de Pão da Vida.
○
João. Em seguida os sinóticos são
○
○
examinados todas as sextas-feiras de 2. A realidade da presen-
○
○
1553 a 1555, ano da publicação do ça de Cristo inclui a partici-
○
○
comentário calviniano que se intitula pação de seu corpo (ou car-
○
○
Harmonia dos Evangelhos (Deux ne) na união redentora do
○
○
Congrégations et Exposition du Mediador com o crente, que
○
Catéchisme. PETER, Rodolphe, ed.. ocorre na eucaristia. Para
○
○
Paris: PUF, 1964, pp. IX e XV). ○
○
Calvino, esta inclusão da car-
Calvino fez questão de conhecer ne redentora de Cristo tam-
○
○
50
○
○
○
○
○
○
mentalmente a mesma que do Cristo encarnado, em sua
REVISTA
○
ocorre na pregação do Evan- comunicação a nós mediante
○
○
gelho, na oração, na leitura a fé, e conseqüentemente,
○
○
devocional da Bíblia, no culto mediante a Ceia. A longa aná-
○
comunitário. Acontece que a lise de João 6 nesta obra não
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
Ceia é dádiva do Deus que con- foi esquecida por Calvino que,
○
○
descende em comunicar-se no ao contrario, a aplicou à eu-
○
○
nosso nível. Assim, na Ceia, caristia. A dívida de Calvino
○
○
por intermédio do pão e do para com Zuínglio parece,
○
○
vinho, todos os nossos senti- ○
antes de tudo, concernir a pos-
dos são convocados a partici- sibilidade exegética de João 6,
○
○
51
○
○
○
○
○
○
Santo, a fé, o crente) que in- de do ser humano é o concei-
○
C
○
tervém no encontro divino- to de “pessoa”. Este conceito
○
○
humano descrito pelo Discur- é eminentemente relacional.
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008
○
○
so do Pão da Vida, como in- Cada pessoa é o resultado,
○
terpretado na exegese de além de outras realidades, das
○
○
Calvino (Cf. seu Comentário relações interpessoais vi-
○
○
in loco), constitui o padrão venciadas por cada um. É pre-
○
○
soteriológico que determina a ciso lembrar que este concei-
○
○
estrutura e conteúdo da Ceia. to não existia na Antiguida-
○
○
de. Os autores do Antigo e do
○
Concluiremos com quatro con- Novo Testamento não dispu-
○
○
siderações finais. ○
○
nham do vocábulo “pessoa”.
Exegetas de hoje perceberam
○
○
52
○
○
○
○
○
○
nos em parte, pela concep- Zurique ou Consensus Tigurinus. O
REVISTA
○
ção da eucaristia do re- Acordo consistia em texto de 26
○
○
formador de Genebra. Ele artigos sobre a Ceia (João Calvino
○
○
teria inaugurado a era mo- – textos escolhidos. Pp. 212-214).
○
derna da compreensão da Dois anos após a celebração desse
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
Santa Ceia como comunhão consenso, todas as igrejas das regi-
○
○
interpessoal de Cristo com ões protestantes da Suíça haviam
○
○
o cristão. aderido. Pouco a pouco ocorreu o
○
○
mesmo com as igrejas calvinistas
○
○
D) Cabe, então, uma inda- ○
espalhadas pela Europa.
gação de cunho pastoral para O Acordo de Zurique atesta que,
○
○
Zuínglio assim procedeu em sua das umas das outras, que mal sub-
○
○
liturgia eucarística (KLEIN, Carlos siste entre nós apenas uma socieda-
○
○
tia que pudesse unir as igrejas pro- do. No que me concerne, se minha
○
○
53
○
○
○
○
○
Calvino
○
○
○
○
○
sobre a vida cristã
CAL
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CALVINO
○
○
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Falar do ensino de João cado de modo a criar obstácu-
○
Eduardo Galasso F
reo Rodrigues de Oliveira
○
Calvino sobre a vida cristã ou a ○
○
los insuperáveis em sua busca de
vida do cristão é buscar compre- Deus. Em oposição ao ensino
○
54
○
○
○
○
○
○
O objetivo da vida cristã portan- Deus em nós, um dia corrompida,
○
REVISTA
○
to, é a restauração da imagem de é transformada e recuperada. Por
○
○
um lado participamos na morte de
CAL
REVIST
REVISTA
CALVINO
Deus dentro do ser humano. Com
○
○
isso, passamos a partilhar a vida do Cristo e, por outro, somos regene-
VINO
○
rados pelos efeitos de sua ressurrei-
○
próprio Cristo, sua morte e ressur-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL
○
reição, sendo moldados por sua atu- ção. Ao participarmos de sua mor-
TEOLOGIA
○
○
○
○
○
o pecado, da mesma forma que na de sua ressurreição, somos vivifica-
○
○
sua ressurreição experimentamos, ○
dos para uma nova vida. Todavia,
pela ação do Espírito, uma vida nova não estamos livres dos efeitos do
○
○
pírito Santo. E é pela fé que ela ocor- mas uma disposição interior funda-
○
realizada não de uma vez por todas, vivo, direto e confiante nele. É o que
○
Paulo
Eduardo Galasso F
○
cristã é acima de tudo, uma decor- à lei divina que manifesta a glorifi-
○
○
pando do corpo de Cristo, ele passa de. Ou seja, estamos falando de uma
○
○
nosso ser e é a partir daí que a rege- seus escritos, seja quando expõe os
○
○
Faria
aria
○
○
○
○
○
○
55
○
○
○
○
○
○
tos ou comenta o livro dos Salmos. cristão pode evitar o abuso pecami-
○
○
Pode-se dizer que a grande deli- noso no trato com a criação, uma
○
○
mitação do pensamento teológico lição valiosa quando enfrentamos a
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO
○
○
de Calvino e sua ética é favorecer a devastação da terra e a crise ecoló-
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ
○
verdadeira piedade, a que as pesso- gica atual. Como diz ele:
○
○
as devem ser conduzidas. Fazer bro-
○
○
tar o temor filial, a fé salvadora, o “Sobriedade não denota du-
○
○
louvor do coração, a justiça divina, biamente tanto a castidade e
○
○
o amor filial e reverente é o seu pro- a temperança, quanto o puro
○
○
pósito, dentro do objetivo maior de e frugal uso dos bens tempo-
○
glorificar a Deus pela obediência à rais” (Institutas III, VII, 32).
○
○
sua Palavra. ○
○
te. Era deplorável o quadro religio- dado por Calvino ao tema da vida
○
○
mas também uma prática comerci- justificação ( Institutas, III, XI), pro-
○
○
por intermédio dela que se chega ao pelo pecado que prepara o caminho
○
○
56
○
○
○
○
○
○
meiro vive a experiência da fé para damental e de amplo alcance pasto-
REVISTA
○
então, se tornar consciente do pe- ral. Em 1550 foi preparada uma
○
○
cado e ter consciência da necessi- edição dele como separata, para ser
○
○
dade de arrependimento. Em 1536, amplamente lida nos lares e pelas
○
com a 1ª. edição da Instituição da pessoas. Foram inúmeras as
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
Religião Cristã (Institutas), ele ain- reedições deste opúsculo publicado
○
○
da partilhava a idéia de Lutero de e avidamente lido em várias línguas,
○
○
que a penitência abre o caminho onde quer que o interesse pela obra
○
○
para o conhecimento de Cristo e de Calvino tenha se desenvolvido.
○
○
que o sofrimento causado pelo pe- ○
No Brasil também temos uma edi-
cado o antecede. No entanto, em ção deste livrinho precioso, símbo-
○
○
homem não pode conhecer sua real publicado pela primeira vez no ano
○
○
da pelo ser humano para se justifi- estão colocadas, Calvino não se dei-
○
○
ela é uma questão de vida. Foi notó- rador romano Marco Aurélio. Mui-
○
○
57
○
○
○
○
○
○
desconsiderando qualquer oposição a religião cristã. Do estoicismo man-
○
○
entre o que é natural e o sobrenatu- teve a noção de direito natural, jun-
○
○
ral. Existe uma lei natural que for- tando-o a concepções teológicas e
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO
○
○
nece uma regra de conduta para to- políticas. Evitando os perigos de
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ
○
dos os seres humanos, que são ir- cada um, ele os colocou a serviço
○
○
mãos e provêem de um mesmo do evangelho. O que certamente há
○
○
Deus. O dever supremo é seguir a em Calvino é um ascetismo relati-
○
○
razão. O mal é relativo e o universo vo em que transparece o desconten-
○
○
bom, sendo a indiferença o cami- tamento com este mundo em com-
○
○
nho – aí está a felicidade - já que os paração com a vida futura. Todavia,
○
esforços transformadores da reali- está bastante distante dele o consi-
○
○
dade são inúteis. Tanto o estoicismo ○
○
derar este mundo e seus valores
como o humanismo colocavam em como alheios a nós.
○
○
estóica existe a idéia do bem como zer uma apresentação bem elabora-
○
○
capaz de tornar seus seguidores so- mente na vida das pessoas e da co-
○
○
lidários com os que sofrem. Valeu- munidade. Para isso, as pessoas de-
Faria
aria
58
○
○
○
○
○
○
ções em si. comando... portanto, não nos
REVISTA
○
Na elaboração de seu ensino so- pertencemos, e, até onde seja
○
○
bre a vida Cristã, Calvino menciona exequível, esqueçamos a nós
○
○
em primeiro lugar a apropriação in- mesmos e a tudo que é nos-
○
terior da fé, que ele chama de so. Pelo contrário, somos de
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
autonegação. Sua manifestação ex- Deus; logo, vivamos e morra-
○
○
terior é o levar a Cruz. A isto se acres- mos para ele Assim deve ser,
○
○
centa a ressurreição, que se baseia de sorte que o homem em si
○
○
no Cristo glorificado. Em conseqü- já não viva, mas deixe Cristo
○
○
ência, passamos a meditar na vida ○
viver e reinar em sua vida (Gl
futura que nos dá horizonte para 2.20)”. (Institutas, III, VII, 1)
○
○
das, por mais adversas que sejam. cristão esteja disposto e pre-
○
Autonegação
○
se desprenda de si mesmo:
○
59
○
○
○
○
○
○
fiança com esta condição: que tiças e malefícios, na verda-
○
○
sejam administradas em be- de, este não é um motivo jus-
○
○
nefício do próximo (I Pe to por que o deixes de abra-
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO
○
○
4.10)”... “Seja a regra para a çar com amor e cumulá-lo
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ
○
benevolência e beneficência: com os benefícios de tua esti-
○
○
tudo quanto Deus nos dispen- ma...” (Institutas, III, VII, 7).
○
○
sou com que possamos assis-
○
○
tir ao próximo e disso somos A mortificação que se requer
○
○
mordomos, mordomos que ocorrerá quando forem cumpridas
○
○
estão obrigados a prestar con- as leis da caridade. Entretanto,
○
ta de nossa mordomia.” “cumpre-as aquele que o faz de sin-
○
○
(Institutas, III, VII, 5) ○
○
cero senso de amor.” (Institutas, III,
VII, 7). Calvino deseja “tratar mais
○
○
cupações consigo mesmo deve es- negação de nós mesmos, a qual diz
○
tar pronto para se dedicar à justiça, respeito a Deus” que nos convoca a
○
○
deve fazer o bem a todos, os III, VII, 8) Aquele que permite que
○
60
○
○
○
○
○
○
impossível exceto pela fé em Cris- afirmar que a vida cristã deveria
REVISTA
○
to.” Daí que a renúncia a si mesmo consistir apenas de sofrimento e tri-
○
○
não pode ser uma atitude pessoal bulação, mas pode-se notar que
○
○
simples e negativa, baseada apenas muitas vezes é o que predomina. A
○
em esforço próprio. Renuncia-se a luta continua sempre. “Se somos
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
si mesmo a fim de confiar a condu- banidos de nosso país, estamos mais
○
○
ta da vida a Cristo. Além disso a prontos para ser recebidos na famí-
○
○
negação de si mesmo deve vir acom- lia do Senhor.” (Institutas, III, 8,7).
○
○
panhada de uma atitude positiva de “Se temos opróbrio e ignomínia...
○
○
amor para com o próximo. A re- ○
isso não nos traz méritos...”
núncia a si mesmo deve dar lugar a Compartilhamos os sofrimen-
○
○
rar-se para uma vida dura, laborio- fiança na carne e nos acolhermos
○
○
Quanto mais sofremos mais parti- Deus, não sucumbimos pois “o Se-
○
○
entanto, sofrer por Cristo e com ele to, nas agruras, é preciso reconhe-
○
61
○
○
○
○
○
○
acha conveniente, se apressa, ser qualificado de incredulidade.
○
○
subjuga e refreia a crueldade (Institutas, III, VIII, 9) A causa prin-
○
○
da nossa carne com o remé- cipal para suportar e levar a cruz é a
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO
○
○
dio da cruz. .... Daí ser ne- consideração da vontade divina e
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ
○
cessário que uns sejam pro- rebelar-se contra ela é ir contra a
○
○
vados por um tipo de cruz, justiça divina. Na verdade, “o Pai
○
○
outros o sejam por outro. boníssimo nos consola, enquanto
○
○
(Institutas III, VIII, 5) “por- declara que no próprio fato que nos
○
○
quanto aflige não para levar aflige com uma cruz, contempla a
○
○
à ruína ou fazer perecer: an- nossa salvação.” Se as “tribulações
○
tes, para livrar da condena- nos são salutares, por que não as su-
○
○
ção do mundo.” ... “Deus cas- ○
○
portamos com espírito agradecido e
tiga aquele a quem ama e, sereno?” (Institutas, III, VIII, 11)
○
○
A vida futura
○
○
acostumemos ao menosprezo da
○
Todavia, levar a cruz “não signi- “o Senhor ensina aos seus acer-
○
○
por seus infortúnios e isso não pode vida futura. Assim, temos pro-
○
○
○
○
○
○
○
62
○
○
○
○
○
○
veito da disciplina da cruz quan- flácido” que no entanto, será “reno-
REVISTA
○
do aprendemos que a vida pre- vado dentro em pouco a uma glória
○
○
sente, estimada em si mesma, firme, perfeita, incorruptível, celes-
○
○
é inquieta, turbulenta, “em ne- te...” (Institutas, III, IX, 5)
○
nhum aspecto absolutamente Mesmo que vejamos nessas pa-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
feliz...”(Institutas, III, IX, 1) lavras a busca de equilíbrio, é espon-
○
○
“ante a imortalidade futura, tânea a associação que fazemos com
○
○
desprezemos esta vida e, em as idéias platônicas que influencia-
○
○
vista da servidão do pecado, ram o reformador. Teria ele se des-
○
○
escolhamos renunciar a ela, ○
cuidado da ênfase paulina na ressur-
sempre que ao Senhor agradar reição do corpo? Ou estaria utilizan-
○
○
sas, que desprezem de forma unila- No capítulo X deste livro III, ele
○
○
teral sua apresentação através de um trata do uso correto dos bens ter-
○
○
rias: “Com efeito, esta vida, por mais parecem servir mais ao pra-
○
○
III, IX, 3) Outros textos chamam a isso, não é sem razão que Pau-
○
○
muitos, fala sobre o corpo: “este modo que é como se dele não
○
○
63
○
○
○
○
○
○
ma disposição de ânimo com de, seria apenas viver a “pão e água”.
○
○
que são vendidas (1 Co (Institutas, III, X, 1) Ou seja, atitu-
○
○
7.30,31).” Mesmo assim, des extremas desse tipo não
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO
○
○
Deus criou os alimentos le- correspondem ao ensino da Palavra
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ
○
vando em conta não só a ne- de Deus.
○
○
cessidade, mas também o de- Nesta linha dialética, ele continua:
○
○
leite e alegria. “Assim, na
○
○
indumentária, além da neces- “onde ficam as ações de gra-
○
○
sidade, foi seu propósito fo- ças, se com iguarias ou com
○
○
mentar o decoro e a dignida- vinho a tal ponto te fartas que
○
de.” (Institutas, III, X, 1, 2) ou te embotes ou sejas deixa-
○
○
○
○
do inapto para os deveres da
Nesta questão, a experiência his- piedade e de tua vocação? “A
○
○
nismo com usos e costumes, não usam deste mundo sejam dis-
○
por. Embora Calvino visse nessa Todos devem aprender com Pau-
○
○
so, considerou seus conselhos “rí- fome, a ter abundância, a sofrer pe-
○
Eduardo Galasso F
gidos demais, pois feriram as cons- núria.” Deus é aquele que “como
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
64
○
○
○
○
○
○
Conclusão O ascetismo medieval e as ên-
REVISTA
○
fases puritanas acerca da vida cris-
○
○
tã, em termos de atitudes
○
Sem dúvida, o desafio é grande.
○
proibitivas e negativistas acabou
○
Como nos valer do ensino de
marcando a história dos seguido-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
Calvino e confrontá-lo com um
○
res do reformador de Genebra, in-
○
mundo que caminha irresponsavel-
○
clusive favorecendo críticas sobre o
○
mente em direção oposta, muitas
○
“medo à liberdade” (Erich Fromm)
○
vezes voltado apenas para a
○
ou sua atuação ditatorial, contrá-
○
“curtição” da vida presente com os
○
ria à vida e à livre consciência
confortos e prazeres do mundo ○
(Stefan Zweig).
○
res religiosas!
○
○
○
○
○
○
○
○
65
○
○
○
○
○
○
vos. Muitas vezes desorientados, mativo, pleno de alegria, mas tam-
○
○
buscam os seus próprios caminhos bém sujeito aos sofrimentos ine-
○
○
de vida no mundo competitivo que vitáveis, à semelhança do Jesus de
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO
○
○
os cerca e que pede eficiência a Nazaré, como forma de servir ao
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ
○
qualquer custo. Como considerar próximo e ao mundo. Embora
○
○
a questão de se ajustar ao mundo essa expressão de fé de modo ge-
○
○
das competições egoístas diante de ral tenha se tornado rara, não é
○
○
uma proposta que aparenta ser ir- difícil encontrá-la. Nos últimos
○
○
racional, mística, normativa e me- cinqüenta anos, especialmente na
○
○
dieval? Como tornar válida uma América Latina, o mundo cristão
○
espiritualidade que foi tão vigoro- pôde contemplá-la com alguma
○
○
sa no século XVI, mas que hoje re- ○
○
freqüência, mesmo em sua forma
quer um novo entendimento, com mais dura, ou seja, no martírio.
○
○
tuado traço pluralista que o acom- dido pela encontro direto com os
○
Eduardo Galasso F
or, estivermos sob o poder do Es- pátria. É preciso que nos aproprie-
Faria
aria
66
○
○
○
○
○
○
obra, com uma visão estereotipa- pontâneo para glorificar a Deus por
REVISTA
○
da e preconceituosa. O que senti- esta notável proposta de compre-
○
○
mos, ao lê-lo, mesmo que de ma- ensão da prática da fé, que brota
○
○
neira necessariamente crítica, em do mais puro evangelho de Cristo.
○
um novo tempo, é o impulso es- Portanto, Soli Deo gloria!
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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edição.
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MCKIM, Donald K.(ed). The Cambridge Companion to John Calvin. Cambridge: N. York,
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WENDEL, François. Calvin. The origin and development of his religious thought. London/
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67
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○
○
○
○
Karl Barth,
○
○
○
○
Leitor de Calvino
KARL BAR
PÁGINAS 68 A 75, 2008
○
○
○
○
BARTH
○
○
TH
TH,, LEITOR DE CAL
○
○
○
○
○
○
○
○
Na efervescência dos prepa- recebeu o título de graduação
○
CALVINO
○
rativos para a comemoração dos ○
em teologia. E também neste
VINO
mês de dezembro deste ano com- Berlim onde teve entre os mais
○
Adilson de Souza Filho
68
○
○
○
○
○
○
Eduard Thurneysen, o colega que va em derrocada. O otimismo de
○
REVISTA
○
também se tornaria grande amigo e seus mentores liberais parecia des-
○
○
locado numa Europa dilacerada pela
KARL TEOLOGIA
REVIST
REVISTA
confidente ao longo de sua carrei-
○
○
ra1. Conhecedor e apreciador da te- guerra5. Resguardado pela neutrali-
○
dade suíça frente à guerra, Barth se
○
ologia liberal efervescente na épo-
A TEOL
BAR
BARTH
○
ca, após receber o título de bacha- vê abalado a cada explosão das
TEOLOGIA
○
rel em teologia em 1909, foi orde- bombas,com os gritos dos moribun-
TH
TH,
○
○
, LEITOR DE Vol.
○
○
Designado pastor auxiliar em ativamente de cada fase da luta6.
○
○
Genebra, aproveitou para ler minu- ○
Frente ao caos estabelecido
ciosamente as Institutas de Barth, em conversa com o amigo
○
○
CAL
CALVINO
○
res condições de vida daquela vila. contram duas das mais importan-
○
○
Paulo
2
Idem.
necessidade do povo era da prega-
aulo
○
aulo,, SP PÁGINAS 68 A 75
Adilson de Souza Filho
○
3
BOSC, J. & CARREZ, M. & DUMAS, A. Teologos
ção que correspondesse aos proble-
○
1968, pp.50-51.
mas colocados pela industrialização,
○
5
GONZALEZ, Justo, L. A Era Inconclusa. Op.cit.
○
6
MONDIN. Op.cit. p.17.
○
7
GONZALEZ. A Era Inconclusa, p.68.
○
8
MONDIN. Op. cit..p. 17.
○
○
○
○
○
○
69
○
○
○
○
○
○
der especialmente ao texto bíblico sição substancial entre Deus e tudo
○
○
para dar resposta aos questiona- aquilo que é humano, vale dizer, a
○
○
mentos de sua época é semelhante razão, a filosofia, a cultura12. Diz
KARL BAR
PÁGINAS 68 A 75, 2008
○
○
à atitude tomada pelos reforma- Barth que os teólogos liberais, com
○
dores por ocasião da efervescência sua pretensão de tornar a fé popu-
○
BARTH
○
religiosa do século XVI. Barth se- lar com a ajuda da ciência das reli-
○
TH
TH,, LEITOR DE CAL
○
gue a trilha dos reformadores, in- giões, do método histórico crítico e
○
○
clusive usando a mesma fonte ainda da filosofia, injuriaram a
○
○
metodológica de Calvino, isto é, o transcendência de Deus13. Barth
○
○
Proslogion 9 de Anselmo de afirmou que Deus é o totaliter alter
○
Cantuária. (totalmente outro), sendo inútil pen-
○
CALVINO
○
O texto preferido para suas me- ○
sar em alcançá-lo com a razão, com
VINO
teve sobre Barth o mesmo efeito que o totalmente outro não pode ser
○
tivera sobre Lutero. Ali ele reencon- encontrado por nenhum conceito e
○
○
mas sim enquanto oposta à razão10. textos bíblicos para formular sua
○
○
11
BARTH, Karl. Die Römerbrief. München, 1919. No
○
12
GIOVANNI, Reale , DARIO, Antiseri. HISTÓRIA DA
○
13
Idem.
○
humana. Barth ainda afirmou a opo- Biblioteca de autores cristianos, 1995, p.344.
○
○
○
○
○
○
○
70
○
○
○
○
○
○
à exegese fiel, em lugar das inter- se no próprio Deus e não na razão
REVISTA
○
pretações baseadas nos métodos his- humana. Para Barth, contrariando
○
○
tórico-crítico e filológico. Barth re- a analogia entis (analogia a partir do
○
○
agiu contra o subjetivismo religioso ser), a fé deixa de ser fé quando pro-
○
que aprendera de seus mestres e cura suportes racionais. Ele parte da
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
seguindo a mesma idéia de Calvino, analogia fidei (analogia a partir da
○
○
diz que o Deus das Escrituras é fé), afirmando que só assim será
○
○
transcendente e jamais será objeto possível compreender as verdades
○
○
de especulação humana; somente cristãs18. Barth estudou exaustiva-
○
○
por meio do Espírito Santo é possí- ○
mente a obra de Anselmo, intitulada
vel fazer teologia. Afirmou que sem Fides Quaerens Intellectum (Fé em
○
○
etc15. Para Barth, por mais corretas teologia natural. Calvino aplicava a
○
○
16
Idem, p.40: Barth nesta afirmação repete a mesma
ela é muito mais o milagre da inter-
○
homem17. Esta idéia de que Deus é 1967, Libro I, Cap. VII, 33.
○
○
18
Idem, p.743.
mais um elemento característico na
○
19
BARTH, Karl. FIDES QUAERENS INTELLECTUM.
○
cimento de Deus, do qual Barth se publicado em português pela editora Novo Sécuylo,
○
○
20
OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Bernardo do
○
71
○
○
○
○
○
○
utiliza o mesmo conceito de numem A partir da influência de
○
○
extraído de Rudolf Otto para falar Anselmo, Barth passou a estudar
○
○
do Deus absconditus, o totalmente melhor a função e a natureza da te-
KARL BAR
PÁGINAS 68 A 75, 2008
○
○
outro. ologia. Compreende que sua tarefa
○
Nos moldes da teologia de não era tanto acentuar a distância
○
BARTH
○
Calvino sobre a majestade de Deus, entre homem e Deus, mas, penetrar
○
TH
TH,, LEITOR DE CAL
○
Barth diz que a história do homem no significado do conhecimento de
○
○
é história de pecado e de morte e Deus colocado à disposição do ho-
○
○
está sob o juízo de Deus, sob o não, mem na Revelação23. Com a publi-
○
○
mas trata-se do não dialético, supe- cação de seu ensaio Fides Quaerens
○
rado no sim que Deus pronuncia em Intellectum, sobre o Proslogion de
○
CALVINO
○
Jesus Cristo21. Esta afirmação de ○
Anselmo, Barth define sua
VINO
pírito Santo para fazer teologia cor- ria guiá-lo em seu novo empreendi-
○
○
encerra por meio do seguinte dado: tendo chegado ao seu final. Nessa
○
○
seja, ele quer fazer teologia para analogia fidei25. A obra consumiu
○
21
GIBELLINI, Rosino. A teologia do Século XX. São
Adilson de Souza Filho
23
MONDIN, Battista, op.cit.p.18.
tra a razão, ele dependia dela para
○
○
24
BARTH, Karl. Die Kirchliche Dogmatik. München:
fazer teologia, mesmo a sua teolo-
○
1932.
○
gia evangélica.
○
25
Idem, p.19.
○
○
○
○
○
○
72
○
○
○
○
○
○
o resto do tempo teológico de Barth, lica a idéia expressa nas seguintes
REVISTA
○
que começou a escrevê-la em 1932 palavras-chave 27: Nação, Raça,
○
○
e foi até 1968, ano de sua morte. Führer. Muitos protestantes liberais
○
○
Outro ponto que destaca a seme- apoiaram a absurdidade da
○
lhança teológica e pastoral de Barth perfectibilidade da raça humana.
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
com Calvino é o fato de que a sua Isso soava como apoio incondicio-
○
○
Dogmática Eclesiástica tenha se nal à semelhante idéia nazista defen-
○
○
prestado ao papel de expressar à dida e levada a sério por Hitler.
○
○
comunidade da Igreja Reformada, Havia a crença, em razão da mistu-
○
○
assim como as Institutas se pres- ○
ra de evangelho e cultura, de que a
taram ao papel de guia bíblico e te- Alemanha fora chamada a civilizar
○
○
causa disso não era possível tornar- ca se misturava cada vez mais com
○
Em 1933, ano em que Hitler su- mã, os teólogos contrários a tal pos-
○
○
1
BARTH, Karl. Die Kirchliche Dogmatik. I/1 (1932).
zismo, o movimento dos “cristãos
○
○
2
MONDIN, Battista. Op.cit. p.19.
alemães” que impulsionava para a
○
3
GONZALEZ, Justo, L. A Era Inconclusa, .p.71.
○
73
○
○
○
○
○
○
Confessional da Igreja Evangélica ração de apoio incondicional ao
○
○
Alemã reuniu-se na cidade de Reich. As aulas deveriam sempre
○
○
Barmen. Faziam-se presentes ainda começar com a saudação nazista e
KARL BAR
PÁGINAS 68 A 75, 2008
○
○
representantes de todas as igrejas a manifestação de fidelidade a
○
confessionais alemãs, reformadas, Hitler. Mas Barth recusou todas es-
○
BARTH
○
luteranas e unida em um concílio sas imposições do Führer e por isso
○
TH
TH,, LEITOR DE CAL
○
livre. Não havia interesse por parte foi expulso da Alemanha,
○
○
das igrejas confessantes, conforme retornando à Basiléia, Suíça. Seu
○
○
declarado na introdução da Confis- retorno à Alemanha se deu logo de-
○
○
são de Barmen, de romperem com pois da segunda Guerra em 1945,
○
a Igreja Unida Alemã mas havia o para participar de algumas reuniões
○
CALVINO
○
incômodo devido aos rumos toma- ○
eclesiásticas30. É também neste mes-
VINO
Führer sobre esta Igreja. Desta reu- volume de obra Dogmática Eclesi-
○
○
1
O LIVRO DE CONFISSÕES. S. Paulo: 1969. Missão
foram recrutados pelo exército.
○
2
BARTH, Karl. Dádiva e Louvor. Artigos Selecionados.
○
74
○
○
○
○
○
○
Escócia. Em 1959 recebeu nova- coisa, porém, tenho certeza: em seus
REVISTA
○
mente esse título pela Universidade momentos de lazer, certamente tocam
○
○
de Estrasburgo, França. Em 1961 foi Mozart, e então até o Senhor se
○
○
jubilado, mas ainda foi encarregado compraz em ouvi-los31. Cabe ainda
○
das preleções que deram origem ao mencinonar a homenagem feita por
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
seu livro Introdução à Teologia Evan- Hans Küng por ocasião do funeral
○
○
gélica. Em 1962 viajou aos Estados de Barth, na Catedral de Basiléia;
○
○
Unidos e recebeu novamente o mes- falando como teólogo católico: Nos-
○
○
mo título pela Universidade de Chi- so tempo precisa urgentemente do
○
○
cago. Em 19 de abril de 1963, lhe ○
doctor utriusque theologiae, perito em
foi concedido o Prêmio Sonning, em ambas as teologias, evangélica e ca-
○
○
Em 1968 Barth ainda proferiu cisamos nos lembrar dele nesta fes-
○
uma palestra acerca dos “Discursos” ta que está sendo preparada para
○
○
1
BARTH, Karl. Wolfgang Amadeus Mozart. (1956),
quando desejam entoar louvores a
○
pp.14-15.
○
2
Encontram-se registradas tais palavras, também, na
○
75
○
○
○
○
○
○
João Calvino
Calvino,, intérprete das
○
○
○
Escrituras: o homem
○
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
e o seu contexto
○
○
CALVINO
○
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
○
○
○
○
○
○
“A respeito da minha
○
No curto período que vai do
○
L ysias Oliveira Santos
reo Rodrigues de Oliveira
○
○
1
Apud Costa, Hermisten M. P. “Prefácio” in grande produção é preciso con-
○
2
Claude E. Labrunie, “Cronologia de João
○
3
Holder, R. Ward, “Calvin as commentator on the
○
76
○
○
○
○
○
○
nho de seu trabalho, recursos para antes de nós esta tarefa e nos depa-
○
REVISTA
○
a produção e edição de suas obras, ramos com a obra minuciosa e far-
○
○
tamente documentada de T. H. L.
○
○
refas a cumprir. Têm a ver igual- Parker, exposta nos livros Calvin’s
○
New Testament Commentaries 4,
○
mente com as condições culturais
A TEOL
CAL
CALVINO
○
próprias de seu tempo, ou seja, as Calvin’s Old Testament Commen-
TEOLOGIA
○
VINO
VINO,
encruzilhadas para os que pretendi- taries5 e Calvin’s Preaching6. Estes
○
○
E SOCIEDADE
am aventurar-se na pesquisa e ex- livros serão as principais referênci-
, INTÉRPRETE
○
posição da Bíblia: a encruzilhada en- as mas outras obras, logicamente,
○
○
tre o medievalismo e o humanismo; ○
serão também usadas.
entre a especulação filosófica e a
○
○
pessoais
ções referem-se finalmente à situa- como estava nos últimos quinze anos
○
○
colha das formas nas quais iria ex- amigos a pé ou a cavalo até ao local
○
○
aulo
aulo,, SP PÁGINAS 76 A 109
5
Parker, T.H.L. Calvin’s Old Testament Commentaries.
○
tudo da literatura do grande Edinburgh: T & T, Clark Ltd, 1986 (a partir daqui:
○
○
77
○
○
○
○
○
○
São Pedro, onde pregava ou à Aca- tarefas dificilmente conciliáveis para
○
○
demia onde proferia suas conferên- ele. Mesmo assim, Farel que moral-
○
○
cias, ele recebia os alunos em seu mente constrangeu-o a trabalhar em
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
leito de enfermidade e ali transmi- Genebra, ordena agora friamente
○
tia suas lições. Colladon, amigo de para que ele continue com suas es-
○
CALVINO
○
Calvino, dá estas informações, com critas: “Continue, diz ele, a tornar
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
referencia aos comentários dos Pro- Paulo familiar a todos, de acordo
○
○
fetas Menores: “Estavam faltando com a graça que lhe foi dada”.
○
○
apenas duas ou três aulas sobre Calvino responde pacientemente:
○
○
Malaquias. Quando o impressor ter- “Quanto a sua exortação para eu
○
minou o seu trabalho. Calvino, para continuar a escrever, somente dese-
○
○
que a tarefa não ficasse incompleta, ○
○
jo que eu tenha mais tempo e me-
deu estas aulas em seu quarto para lhor saúde”.8
○
○
bre, e por ser inverno, não seria bom um ritmo que espantava a todos os
○
○
para ele sair ao ar livre) e assim es- seus amigos. Vendo com que rapi-
○
○
sas junto com a parte que já estava “Calvino não sucumbe a nenhum
○
E O SEU CONTEXTO
nos permaneceu por anos como uma como se tivesse muito tempo para
○
○
lo, até completar todos os livros da saúde. Durante muitos anos sofreu
○
○
rizados ao perceber, mais tarde, que quecas, gota. Mas trabalhou sem
○
○
7
Parker, Old Testament, p. 17.
○
8
Parker, New Testament, p 12.
○
9
Parker, op. cit.. Quatro meses antes da sua morte,
○
○
○
○
○
○
○
78
○
○
○
○
○
○
ocorrida em 27 de maio de 1564, po necessário para o preparo destas
REVISTA
○
deu sua última aula na Academia e tarefas. Colladon observa que ele
○
○
pregou seu último sermão na cate- não dispunha de tempo suficiente
○
○
dral de São Pedro.10 para preparar suas aulas. Por mais
○
que quisesse, ele não tinha oportu-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
As limitações do tempo dis- nidade, geralmente dispondo de
○
○
ponível - Em carta ao rei Eduardo menos de uma hora para se prepa-
○
○
VI da Inglaterra (1551), Calvino de- rar. Atividades estas por si mes-
○
○
clara: “Ainda que o desempenho de mas suficientes para “fazer com que
○
○
minhas obrigações me deixe muito ○
uma pessoa sentisse que havia cum-
pouco tempo, contudo, por mais prido um dia completo de traba-
○
○
não tenho muito tempo para escre- nho de seu trabalho. A política ecle-
○
○
1539 e 1541 esteve envolvido nas manter, envolvendo réplica nas po-
○
○
tomava muito tempo nas viagens e lo que não era imediatamente ne-
○
○
10
“Cronologia de Calvino”, in João Calvino: Textos
os dias da semana. Proferia aulas
○
11
Parker, New Testament, p. 4.
○
12
○
79
○
○
○
○
○
○
Nicholas des Gallars disse que para dos. “Não há qualquer dúvida de que
○
○
conferir seus trabalho com Calvino o que foi dito por Moisés era por si
○
○
era preciso aproveitar as poucas mesmo excelente e adaptado perfei-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
horas de folga que dispunha, e mes- tamente para a instrução do
○
mo assim após ler dois ou três ver- povo...Não tive outra intenção ao
○
CALVINO
○
sos, Calvino já era importunado pe- estabelecer esta ordem, a não ser a
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
los seus colegas.15 de ajudar aos leitores inexperientes
○
○
Por isso escrevia sobre mais de a se familiarizarem de maneira mais
○
○
um assunto ao mesmo tempo. Por clara, conveniente e aproveitável,
○
○
exemplo, em 1538, em Estrasburgo com os escritos de Moisés”.18
○
ao mesmo tempo em que redigia seu Os críticos estão lembrando
○
○
comentário sobre Romanos, prepa- ○
○
sempre as suas deficiências em al-
rava também as conferências sobre gumas áreas específicas, necessári-
○
○
para ser um comentarista da Bíblia? já disse que não sou muito diligente
○
○
seu trabalho. No prefácio das Epís- mente porque tal esforço de minha
○
○
tolas Paulinas avisa: “Não tomem parte seria de pouco proveito para
○
○
que vão se iniciar no estudo das Es- derada contudo, é que “embora
○
○
Lysias Oliveira Santos
17
Parker, New Testament, p. 41.
○
18
Parker, Old Testament, pp. 93, 94.
○
80
○
○
○
○
○
○
Calvino não tenha atingido os que ele traduz o mesmo verso bíbli-
REVISTA
○
cânones da historiografia moderna, co. Com respeito, por exemplo, às
○
○
e esperar tal coisa seria um anacro- traduções dos comentários de
○
○
nismo, ele usa instrumentos de Gênesis e Isaias, fica-se em dúvida
○
grande poder no esforço de chegar se ele mesmo traduziu, se alguém
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
ao conhecimento das Escrituras no anotou de suas conferências, se fo-
○
○
seu sentido pleno, bem como a tra- ram tomadas de uma edição impres-
○
○
dição da interpretação da Igreja”.20 sa, tal é a profusão de versões nos
○
○
Calvino está ciente de que o co- comentários, nas conferências e nos
○
○
mentarista tem de possuir uma ○
sermões.23
mente enciclopédica para poder tra- Contudo, dada a sua formação
○
○
da lepra no Antigo Testamento, fala qual redigiu a maior parte dos seus
○
○
“Confesso que não sou médico, ca- ve R. Ward Holder: “Fica claro tam-
○
○
paz de discorrer a respeito dos pon- bém que Calvino sente-se em casa
○
○
20
Holder, R. Ward, “Calvin as commentator on the
○
declarar suas dúvidas e seu desco- Pauline epistles” in McKim, D. K. e outros, Calvin and
○
○
2006.
○
uma interpretação.22 21
Parker, Old Testament,p. 96.
○
○
24
Por exemplo, o seu comentário a De Clementia de
○
p. 49.
○
25
○
○
○
○
○
○
81
○
○
○
○
○
○
tava26, aí demonstrando possuir as dos chegavam a Genebra. Na falta
○
○
qualidades próprias de um grande de trabalho, eram também chama-
○
○
comentarista: respeito à fala do au- dos para auxiliar Calvino na reda-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
tor, percepção do sentido total do ção dos textos.29 Até alunos eram
○
texto analisado e sua relação com aproveitados nesta atividade.30
○
CALVINO
○
as partes componentes e a habilida- Os secretários seguiam um pla-
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
de em comunicar o que ele mesmo no: cada um estava a postos com o
○
○
ouviu.27 E estas qualidades foram se papel e tinta necessários e tomava
○
○
completando com a experiência de as notas em grande velocidade e se
○
○
quem passou a vida examinando o uma palavra escapava de um deles,
○
texto sagrado, discutindo, trocando era conferida depois com o outro.
○
○
informações com os colegas e mes- ○
○
Imediatamente após a leitura, um
tres que se mostravam mais capa- deles pegava as anotações dos ou-
○
○
zes nas diversas áreas das atividades tros dois e as comparava com as suas
○
○
textos, lendo e revisando para que outro secretário aquilo que eles es-
○
○
campo da editoração - Eram gran- nha para fazer este acerto final.31
○
indica que ele mesmo redigiu o tex- redigidos com a ajuda de secretári-
○
29
Parker, Old Testament, p. 11.
○
82
○
○
○
○
○
○
os. Calvino queixava-se e até mes- com os outros comentários. Calvino
REVISTA
○
mo se desculpava por não poder ter passou em seguida a imprimir seus
○
○
apresentado o trabalho como32 gos- livros em Genebra, com João
○
○
taria de fazer. Curiosamente chega- Girard, que, entre outras vantagens,
○
va a censurar o excesso de fidelida- possuía tipos em caracteres
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
de dos escribas, achando que deve- hebraicos.34
○
○
riam melhorar a qualidade literária
○
○
do texto.33 Dificuldades na definição
○
○
A estas dificuldades acrescem os das prioridades - Mediante tantas di-
○
○
problemas ligados à publicação de ○
ficuldades, Calvino relutou durante
seu trabalho. Seu primeiro editor, bom tempo a dedicar-se à produção
○
○
amigo, Calvino ofereceu a ele a pu- de sua vontade. Algumas razões ali-
○
○
cação dificultaram em muito as pu- mir outra atividade que não estives-
○
○
Carta aos Corintios, cuja copia ex- que a Igreja necessitava de uma ex-
○
○
35
Parker, New Testament, p.6.
tim, ao contrário do que aconteceu
○
○
○
○
○
○
○
83
○
○
○
○
○
○
alimentar nos fiéis a fé propagada Bucer antecedeu-me neste trabalho,
○
○
pela Reforma é que sentiu a impor- com a sua sólida cultura, diligência
○
○
tância de uma exposição clara e ob- e fidelidade e, então, não havia mui-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
jetiva da Bíblia.36 ta necessidade de minha participa-
○
Nesta perspectiva estava preocu- ção nesta tarefa”. 38 Igualmente,
○
CALVINO
○
pado com o tipo de exposição bíbli- quanto ao comentário de Romanos,
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
ca que era mais útil para a instrução está consciente do valor dos comen-
○
○
dos fiéis. Procurou então em seus taristas da Igreja Antiga, Idade Mé-
○
○
sermões e aulas desenvolver uma dia e dos seus contemporâneos
○
○
atividade doméstica, em linguagem como Melanchthon, Bullinger e so-
○
simples e adaptada às circunstânci- bretudo Bucer. “De inicio temi ser
○
○
as de vida de suas igreja locais. Para ○
○
tomado por imprudente e arrogan-
isso em vez do latim, a língua dos te se tentasse tal empreendimento
○
○
grandes tratados, optou pela língua depois de outros tão excelentes tra-
○
○
nasse era para ser entendido e era ver apenas resumos mais
○
○
lidade literária inferior à dos gran- Logo que tomou ciência dos “es-
○
E O SEU CONTEXTO
Várias vezes também ele fez re- publicação dos comentários. Eles
○
38
Parker, op.cit. p. 30.
○
84
○
○
○
○
○
○
saísse de sua indecisão e iniciasse de vas experiências no campo do co-
REVISTA
○
imediato tão importante tarefa. Fi- nhecimento recebem o nome geral
○
○
cavam horrorizados ao testemunha- de humanistas. O humanismo, no
○
○
rem o desperdício de tão urgente contexto do século XVI busca uma
○
oportunidade. Perceberam que o aproximação do estudo às fontes e
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
material produzido por Calvino era não a um axioma particular de uma
○
○
excelente subsídio para a difusão dos dada disciplina. 42 Os ideais
○
○
princípios da Reforma, especial- humanistas estão bem ilustrados nas
○
○
mente nos redutos de resistência. instruções de Bullinger, amigo e su-
○
○
Diante de tal pressão, Calvino per- ○
cessor de Zuínglio a um jovem que
cebeu que a sua produção seria deseja se preparar de acordo com
○
○
e social.
○
○
○
Encruzilhada histórica. Os
○
41
Parker, op cit. pp. 25, 12 e 18.
○
42
Holder, R. W, op. cit. p. 238.
○
43
○
○
○
○
○
○
85
○
○
○
○
○
○
em suas exposições e comentários em vez de tentar o enquadramento
○
○
da Bíblia. Alguns acham que ele ba- de Calvino bem como de outras au-
○
○
lança entre dois pólos, um profun- toridades da Reforma dentro de
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
do impulso tradicional representa- uma definição acadêmica, é preciso
○
do por um esforço no sentido de saber o que cada reformador lia, em
○
CALVINO
○
construir instrumento de controle que foram formados, para quem
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
cultural e espiritual e, do outro lado, estavam escrevendo, qual a posição
○
○
trabalha contra isto, com obstinada anterior da igreja sobre o que esta-
○
○
originalidade, rebelando-se ao ex- vam interpretando,45 incluindo a in-
○
○
tremo contra estas mesmas estru- terpretação medieval. Ao aplicar
○
turas. Outros pesquisadores, ao exa- este teste a Calvino concluiremos
○
○
minar o humanismo de Calvino e ○
○
com Bernard Cottret, biógrafo do
sua maneira de comentar a Bíblia, Reformador, que ele tinha “um pé
○
○
teúdo dos textos bíblicos ou as dife- usa desde seus tempos de juventu-
○
○
Lysias Oliveira Santos
rentes interpretações que ele preci- de, nos seus documentos bíblicos e
○
○
44
Holder, R. W, op cit. p. 250.
○
45
Holder, R. W. op. cit p. 245.
de seus sermões, aulas, pesquisas di-
○
○
46
Holder, R.W. op. cit. p. 251, nota 105.
retas e criadas também em situa-
○
47
Parker, New Testament, p. 29.
○
86
○
○
○
○
○
○
seculares.48 Em seu livro de teolo- Platão e a outros clássicos para a
REVISTA
○
gia sistemática, Loci Communes, interpretação de alguns textos gre-
○
○
aplica-o na sua análise de Roma- gos.53
○
○
nos.49 Bucer alia este método com O uso que Calvino faz das cate-
○
outros para explorar os axiomas gorias filosóficas pode ser ilustrado
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
(loci) presentes nos textos 50. com o termo substância. Ele define
○
○
Calvino não rejeita o método substância assim: “Por ‘substancia’
○
○
aristotélico em si, mas critica seu eu entendo o ensino (doctrina ), pois
○
○
uso indiscriminado, pois leva o co- no Evangelho Deus traz às claras
○
○
mentarista a concentrar-se apenas ○
nada mais do que aquilo que está
nos pontos principais (loci), deixan- contido na Lei”54. A partir daí ele
○
○
dem ser de interesse do leitor.51 Os nico para explicar que a Lei era a
○
losofia, assim como Paulo foi uma o Antigo e o Novo Testamentos ele
○
○
48
Parker, op. cit. pp. 29, 30. 54
Parker,op. cit.p. 51.
○
○
49
Parker,op. cit. p. 34. 55
Parker,op.cit; p. 52.
○
○
50
Parker,op. cit. p. 45. 56
Parker,op.ct, pp. 50, 62.
○
○
51
Parker,op. cit. pp. 49, 50. 57
Parker,op cit. pp. 137, 151.
○
52
Parker, op.cit p. 75. 58
Calvino, João. Romanos. São Bernardo do Campo:
○
53
Parker, op. cit.p. 81.
○
59
Id. ib. p. 117.
○
○
○
○
○
○
○
○
87
○
○
○
○
○
○
Cristã”. Já Erasmo fala de uma entre uma posição marcionita de
○
○
philosophia Christi, uma forma de aceitar só o Novo Testamento e uma
○
○
misticismo e faz uma chamada a supervalorização do Antigo.62
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
todas as pessoas para estudar a filo- Calvino, já que se decidiu por ser
○
sofia cristã, uma aproximação a um intérprete da Bíblia, tinha de
○
CALVINO
○
Cristo, o verdadeiro professor. O tomar posição sobre o assunto. Em
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
Cristo de Erasmo é filosofo divino linhas gerais, como os demais
○
○
que expõe a sabedoria do Pai.60 Em- reformadores, sustentou a posição
○
○
bora não tenha este pensamento, tradicional da aceitação dos dois
○
○
Calvino entende a filosofia cristã Testamentos. Quanto à composição
○
como uma sorte de hermenêutica.. do Cânon ele é menos crítico do que
○
○
Ele declara que escreveu as ○
○
seus contemporâneos Erasmo e o
Institutas para resumir os principais próprio Lutero, não reconhecendo
○
○
nha de estabelecer entre os dois Tes- se mais dos Pais e dos teólogos con-
○
○
60
Parker, New Testament, p 67.
○
61
Holder, R. W. op. cit. pp. 234, 252, 255; Calvino,
○
64
Parker, op. cit. p. 73.
ambos e os anabatistas oscilavam
○
○
○
○
○
○
○
88
○
○
○
○
○
○
temporâneos, opondo-se em geral reinado, os preceitos morais, tudo,
REVISTA
○
ao pensamento da Escolástica.65 Isto aponta, de uma maneira ou de ou-
○
○
reflete-se mais claramente em dois tra para Cristo.70 O procedimento
○
○
posicionamentos quanto ao comen- metodológico de Calvino para de-
○
tário da Bíblia: o estudo em seqüên- senvolver esta interpretação teoló-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
cia dos livros completos e não de gica da Bíblia, principalmente o con-
○
○
pequenas porções do texto e a ex- fronto entre a interpretação literal
○
○
posição direta do conteúdo dos li- e a interpretação alegórica será ana-
○
○
vros e não sua redução aos chama- lisado na terceira parte deste traba-
○
○
dos axiomas da fé. Os Pais preferi- ○
lho. É importante observar aqui que
dos são: Crisóstomo, Agostinho, a as próprias prioridades esta-
○
○
Para ele, Orígenes é o maior dos mentários revelam esta posição te-
○
comentaristas66. Isto não o impede, ológica. Ele começa pela parte cen-
○
○
Id. ib.
lho. 69 Assim toda a Lei: os sacrifíci-
70
○
○
71
Parker, New Testament, p.71.
os, as cerimônias, o sacerdócio, o
○
○
○
○
○
○
○
89
○
○
○
○
○
○
pa na época de Calvino interferiu no “cristianíssimo rei da França”, ele
○
○
desempenho de seu trabalho. Para dedicou os seus comentários tam-
○
○
ficarmos com três exemplos, pode- bém a pessoas importantes. Um
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
mos lembrar os transtornos causa- caso curioso refere-se à dedicatória
○
dos com o seu exílio forçado em do Gênesis. Quando publicado em
○
CALVINO
○
Estrasburgo (1538-1541) e a sua separado (1554) foi dedicado a João
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
volta para Genebra, o que dificul- Frederico, João Guilherme e a um
○
○
tou principalmente o serviço de im- segundo João Frederico, duques da
○
○
pressão de seus comentários.72 Saxônia e à eterna memória de ain-
○
○
As guerras que agitavam a Euro- da outro João Frederico, também
○
pa também interferiram diretamen- duque da Saxônia. Mas quando,
○
○
te em seu trabalho. Calvino queixa- ○
○
mais tarde, foi publicada a coleção
se a seu amigo M. de Falais, resi- do Pentateuco, as necessidades de
○
○
Corintios ainda está dormindo pre- vro foi dedicado a Melchior Wolmar,
○
○
74
Parker, Old Testamen, p. 11.
○
Institutas a Francisco I, 76
Parker, New Testament, p. 14.
○
○
○
○
○
○
○
90
○
○
○
○
○
○
mo espírito”.77 Ele recorre ao Direi- A encruzilhada ético- social -
REVISTA
○
to Romano para condenar a Três aspectos, pelo menos, estão
○
○
corrupção, o não cumprimento de presentes hoje, na avaliação do mo-
○
○
contratos, os falsos pesos e medi- delo da Reforma implantada sob a
○
das, as atitudes que “destroem a so- liderança de Calvino em Genebra:
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
ciedade dos homens”.78 Há diferen- a orientação sócio-econômica, os
○
○
ças entre os tributos devidos na le- rigores da moral exigida da popula-
○
○
gislação mosaica e os impostos pa- ção e a atitude em relação às mino-
○
○
gos ao Estado. Aqueles são provas rias marginalizadas.
○
○
do reconhecimento do senhorio de ○
Os assuntos relacionados com a
Deus e devem ser feitos com plena economia sempre despertaram o
○
○
Deus”. Assim ele não separa as leis roso que dá a seus filhos a boa terra
○
○
do Estado das Leis da Igreja. As leis para nela livres viverem e dela se
○
○
77
Parker op. cit. p. 111.
○
78
Parker, op. cit. p. 158.
○
78
Parker, Old Testament, p. 139.
○
79
Parker, op. cit. p. 152.
○
81
Parker, Old Testament, p. 139.
○
Genebra.81
○
82
Parker, op. cit. p. 141.
○
○
○
○
○
○
○
○
91
○
○
○
○
○
○
alimentarem.83 Na prática, Calvino O rigoroso modelo de conduta
○
○
aceita a situação vigente, concorda, cristã imposta por Calvino na comu-
○
○
por exemplo, com a cobrança de nidade de Genebra, contudo, pare-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
juros, exigindo, porém, o fiel cum- ce estar mais longe desta lei
○
primento dos contratos estabeleci- conduzida pelo amor e que leva a
○
CALVINO
○
dos, condenando os falsos pesos e um ambiente de alegria e de liber-
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
as falsas medidas, o desrespeito à dade. Aproxima-se, isto sim, mais
○
○
propriedade do outro, o enriqueci- do rigor imposto pela Lei mosaica,
○
○
mento às custas do próximo ou por com o seu tom ameaçador, que in-
○
○
meio de artimanhas ilícitas. 84 duz as pessoas ao seu cumprimento
○
Tratando-se das observâncias da pelo medo da condenação. Um
○
○
lei moral, Calvino declara que o ○
○
exemplo tirado de seus Comentári-
amor é o centro da sua interpreta- os: sobre a purificação da mulher
○
○
ção biblica,85 pois o amor é o fim da após o parto, embora, por um lado
○
○
que é arrancado pela força ou por sim o exigia porque a prática sexual
○
○
temor servil não pode agradar a era apenas por prazer e não para a
○
○
Deus,86 embora em alguns casos es- procriação, por outro lado, afirma
○
E O SEU CONTEXTO
83
○
Lysias Oliveira Santos
atormentada, impossibilitado de 84
Parker, op. cit. p. 157.
○
○
88
Parker, op. cit. pp. 54, 124.
bênção e um livre dom do amor de
○
○
89
Parker op. cit. p. 141.
Deus.88
○
○
○
○
○
○
○
○
○
92
○
○
○
○
○
○
órfãos, as viúvas, o escravo, o lepro- Calvino entre a exegese e a
REVISTA
○
so, mais em seu sentido espiritual. hermenêutica – Os críticos estra-
○
○
Quanto à situação da mulher, por nham que, na análise dos documen-
○
○
exemplo, ele explica que o tempo tos bíblicos, Calvino se encontre bem
○
da purificação da mulher é maior avançado para a sua época, ao pas-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
quando ela dá à luz uma menina, e so que, na interpretação dos mes-
○
○
isto não por questões médicas, mas mos pareça bastante conservador.91
○
○
religiosas. E ele cita três interpreta- A exegese, entendida como a tarefa
○
○
ções correntes, todas, realmente, de de alcançar o mais completo senti-
○
○
sentido religioso.90 ○
do do texto,92 consistia, dadas as li-
mitações a serem expostas nas pá-
○
○
campo da
exposição bíblica
○
91
Holder, R. W. op. cit. p. 250.
○
balho. 93
Holder, R. W. op. cit. p. 251, nota 110.
○
○
○
○
○
○
○
○
93
○
○
○
○
○
○
os apóstolos às vezes usavam uma Calvino. Embora os dois níveis se
○
○
linguagem mais livre do que a do interpenetrem, eles se desenvolvem
○
○
original, desde que ficassem satis- separadamente. É como se o nível
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
feitos se o que citavam se aplicasse interpretativo se apresentasse qua-
○
bem ao seu tema, e daí não se preo- se inconscientemente, como um
○
CALVINO
○
cupavam muito com o uso (rigoro- pressuposto para o resultado final
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
so) das palavras”.94 Este costume é da análise. Assim, na hermenêutica,
○
○
já encontrado na Patrística, até em Calvino mostra-se mais conserva-
○
○
Agostinho um dos dois Pais preferi- dor, mais próximo de Agostinho,
○
○
dos de Calvino95 e se torna de largo seu teólogo preferido, ao passo que
○
uso na Escolástica, quando em ge- no afazer exegético Calvino escolhe
○
○
ral a exposição direta do texto é ○
○
conscientemente seus instrumentos
substituída pelos axiomas de fé. de trabalho, aproximando-se mais
○
○
nebra faz com que seus escritos es- cumentos antigos da Bíblia, vai apre-
○
○
95
Holder, R. W., op. cit. p. 251.
○
96
Parker, New Testament, p. 32.
○
97
Parker, Old Testament, p. 147.
ção para se entender o porquê da
○
98
Holder, op. cit., pp. 251, 252.
○
94
○
○
○
○
○
○
mento, exatamente nos tempos de vreiros da Basiléia aproveitando a
REVISTA
○
Calvino quando, depois do burocracia papal na aprovação da
○
○
pioneirismo de Lourenço de Valla obra, fizeram com que Erasmo se
○
○
(1405 -1457), 100 aparecem três apressasse na preparação do seu tex-
○
grandes especialistas empenhados to, no qual reconhece, ele mesmo,
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
na publicação do texto grego do muitas falhas. Além disso ele, cum-
○
○
Novo Testamento: Erasmo de prindo promessa aos editores, in-
○
○
Roterdam, cujo texto de seu Novo cluiu o famoso “coma joanino” so-
○
○
Testamento Grego alcançou 29 edi- bre a Trindade (I Jo 5. 6-8), presen-
○
○
ções no período de 1516 a 1560,101 ○
te só em alguns manuscritos do seu
Roberto Estêvão, o qual “editou o tempo.104 Beza, que em uma edição
○
○
superado com a descoberta dos pa- cem anos atrás.105 Calvino criticou
○
○
também a preocupação com o de- zada da Bíblia, 106 contudo uma edi-
○
○
100
Epp, E. J, “Textual Criticism!”, in The New
○
101
Parker, New Textament, p. 93.
○
102
○
104
Parker, op. cit. p. 96.
○
105
Parker, op. cit, p. 100, nota 2.
○
106
○
○
○
○
○
○
95
○
○
○
○
○
○
ção da obra iniciada por Erasmo convivido com três fatos importan-
○
○
(1633) foi considerada o texto ofi- tes ligados à sua vida e à sua obra.
○
○
cial (textus receptus) para as tradu- Ele veria na sua França nascer um
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
ções nas Igrejas Reformadas.107 movimento que iria revolucionar a
○
Quando Calvino começou a es- prática da tradução e contribuir
○
CALVINO
○
crever seus Comentários havia vá- para que a língua e a literatura fran-
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
rias edições impressas do texto gre- cesas se tornassem universais. Foi o
○
○
go: cinco de Eerasmo, a movimento das chamadas “belas
○
○
Complutense, a de Colineu, além de infiéis”, uma tradução livre que des-
○
○
mais algumas, e outras foram im- tacava a beleza do texto original, em
○
pressas ao longo do período do seu oposição à tradução “palavra por
○
○
trabalho. Parker faz um apro- ○
○
palavra”, ou seja, uma tradução es-
fundado trabalho de comparação tritamente literal. O outro fato era
○
○
outros textos. Calvino, além dos tex- mir o lugar antes ocupado por
○
E O SEU CONTEXTO
que Calvino fez um trabalho avan- para o ensino escolar. Mesmo assim
○
○
çado para a época em que viveu. sua profissão era considerada mun-
○
○
Calvino e as dificuldades de
○
○
96
○
○
○
○
○
○
uma tentação diabólica.108 Septuaginta e foi aprender hebraico
REVISTA
○
Calvino vai iniciar seu trabalho para traduzir o Antigo Testamento.
○
○
com a Bíblia diante de si. Mas qual Em suas aulas Calvino lia o texto
○
○
Bíblia? A francesa, a latina, a grega, primeiro em hebraico e depois em
○
a hebraica?109 Isto dá a dimensão de latim, procurando ao vivo mostrar
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
Calvino como tradutor. Aparecem a sua preocupação com uma boa
○
○
questões a resolver tanto na língua tradução do hebraico.
○
○
de partida como na de chegada. Ele Qual é a língua de chegada nas
○
○
vai traduzir a língua de Deus ou a traduções de Calvino, o latim ou o
○
○
dos homens? Calvino crê na inspi- ○
francês? Calvino escrevia seus co-
ração da Bíblia e chega falar em mentários e fazia as suas conferênci-
○
○
Deus como o seu autor, mas não crê as em latim e os sermões geralmen-
○
○
isso tem de estudar muito para fa- superioridade de uma língua sobre a
○
zer uma boa tradução.110 Mas, com outra. Os tradutores das bíblias
○
○
te. Ele precisa da bíblia hebraica? tura clássica religiosa e secular. Para
○
○
anos atrás abandonaram os judeus latim e o francês vêm das duas tare-
○
○
108
Santos, Lysias O. Qual das Bíblias é a certa?
○
109
Parker, Calvin´s Preaching, Westminster, John
○
duzir e escrever em latim. Mas, ad- Knox Press, Louis ville, EUA, p.80.
○
○
97
○
○
○
○
○
○
fas. Seu trabalho de origem em Ge- guns humanistas rejeitaram este
○
○
nebra era o de conferencista, defen- método por razões teológicas ou li-
○
○
sor dos principais pontos da Refor- terárias. Calvino afirma que a Bíblia
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
ma. Aí a sua formação humanista o tem um só sentido, objetivo
○
levava a priorizar o latim em suas ex- (germanus), simples (simplex e não
○
CALVINO
○
posições. Mas na verdade ele veio a duplex) e ancorado no próprio texto
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
se identificar como pastor da cidade (literalis).114
○
○
e por isso era preciso ensinar em fran- Mas os eruditos da Reforma não
○
○
cês, a língua do povo. puderam livrar-se totalmente das
○
○
alegorias. Erasmo penetrou profun-
○
A interpretação da Bíblia no damente na pesquisa do Novo Tes-
○
○
tempo de Calvino – Pelo que foi vis- ○
○
tamento, mas na hora de comentar
to, Calvino participa da interpreta- o sentido do texto prendia-se a este
○
○
ver Jesus e a sua igreja nos textos tão qualificá-lo como figura central nos
○
Igreja era que, além do sentido lite- do contra o método alegórico, que
○
E O SEU CONTEXTO
piritual ou místico, pelo qual os fa- ao seu tempo, dando liberdade para
○
○
todo dos “quatro sentidos” das Es- Deus para enterrar esta distorção
○
○
Lysias Oliveira Santos
114
Parker, New Testament, p. 64.
○
115
Parker, op. cit., pp. VIII, 62 e 70.
○
98
○
○
○
○
○
○
alegorias que saem diretamente do Alguns tipos da interpretação de
REVISTA
○
texto. Na prática, porém ele se dei- Calvino: Israel é a Igreja; Moisés, o
○
○
xou levar pela “serpente que nos profeta, corresponde a Cristo; a
○
○
atrai à primeira vista”,117 e é inven- Páscoa e o cordeiro pascal são tipos
○
tor de algumas interpretações bem da Santa Ceia; os sete braços do
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
engenhosas. castiçal e o óleo de oliva puro para a
○
○
Vejamos como Calvino usa al- lâmpada são figuras para o Espírito
○
○
guns termos consagrados dos mé- Santo, o tabernáculo é o tipo da Igre-
○
○
todos interpretativos: Analogia: ja. O princípio que conduz a deter-
○
○
deve ser usada como uma rápida ○
minação de todas estas figuras
lembrança de que, no texto bíblico bíblicas é este: sendo Cristo o fim,
○
○
co, mas sentido que oscila dentro de da como um sistema religioso, com
○
118
Parker, op. cit., pp. 72-75.
missão redentora: O Espírito Santo
○
○
119
Holder, R. W., op. cit, p. 243.
de Cristo, O Evangelho, a Igreja.
○
○
○
○
○
○
○
99
○
○
○
○
○
○
Um exemplo desta “amarga sátira” continua sendo palavra de Deus e
○
○
pode ser sua investida contra os pre- deve ser tratada com toda a serie-
○
○
lados católicos, qualificados como dade devida.124
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
“cães raivosos, cuja mitra, bastão e Em seus Comentários, Calvino
○
pretensões similares são as suas úni- procura penetrar nesta linguagem
○
CALVINO
○
cas marcas distintivas, mas cuja de Deus, para desvendar todos os
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
vanglória consiste em que são eles recursos, todas as figuras de lingua-
○
○
os sucessores dos apóstolos”.120 gem nela contida. Uma figura da
○
○
Como todos os demais aspectos qual Calvino gosta é a hapálage, que
○
○
da obra de Calvino até aqui exami- consiste no intercâmbio de dois ele-
○
nados, seu estilo também é profun- mentos de uma proposição, rever-
○
○
damente marcado pelas circunstân- ○
○
tendo a relação normal entre am-
cias do seu trabalho. Ele tem de di- bos. 125 Embora inspirados por
○
○
alogar com o texto e com seus lei- Deus, os autores bíblicos conservam
○
○
tarefa Calvino diz que o intérprete também. Ainda bem que eles tam-
○
○
120
Calvino, Exposiçao de Romanos, p. 40.
○
Lysias Oliveira Santos
121
Parker, New Testament, p. 55.
○
122
Parker, Old Testament, pp. 15 e 63.
○
125
Holder, R. W., op. cit. p 249, nota 96. Calvino,
○
126
Parker, op. cit., p. 100.
esta palavra, assim “acomodada”,
○
○
○
○
○
○
○
100
○
○
○
○
○
○
car tão somente a sabedoria espiri- nárias.130 O mesmo não podemos
REVISTA
○
tual”.127 Um dos inibidores de um dizer da uniformidade e conseqüente
○
○
estilo mais livre na comunicação de qualidade de seus Comentários.
○
○
Calvino com os leitores é a necessi- A primeira razão para que isto
○
dade de se fazer entender. Ele mes- aconteça vem da própria natureza
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
mo declara que “a principal virtude dos livros bíblicos. Percebendo isto,
○
○
do intérprete é a clara brevidade”. Parker pensou em iniciar seu traba-
○
○
Ele prefere agradar a mente dos lho sobre os Comentários do Anti-
○
○
ouvintes com bons ensinamentos do go Testamento, de Calvino, compa-
○
○
que os seus ouvidos com um amon- ○
rando cada Comentário com um
toado de palavras vazias.128 Ele es- outro escritor que o antecedeu na
○
○
um desafio para que ele se expresse Bíblia. Assim ele compararia os Sal-
○
com Erasmo, ele prefere que a sua Gênesis com Lutero, e alguns ou-
○
língua não seja tão elegante, mas que tros com Nicolau de Lira e André
○
○
seja lúcida e fiel. Então esforça-se de São Vítor, mas desistiu da idéia
○
○
língua familiar ao seu povo e tratem extenso e fugiria dos objetivos que
○
○
trabalho de Calvino
○
como comentarista
○
das Escrituras
○
○
○
128
Parker, Old Testament, p 20.
○
que desde 1539 até 1559 sua mente Parker, op. cit, p. 89.
130
○
○
101
○
○
○
○
○
○
seus textos foram redigidos por alu- tender cada vez mais o seu signifi-
○
○
nos, secretários e amigos, nem sem- cado. Assim lia e levava em consi-
○
○
pre com uma boa revisão de sua deração outras interpretações dadas
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
parte. E o próprio Calvino reconhe- ao texto. Como resultado, ele fazia
○
ce esta diferença qualitativa. constantes revisões na medida em
○
CALVINO
○
Há textos que ele faz questão de que seu pensamento mudava sobre
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
publicar e se contraria com as difi- interpretações dadas anteriormen-
○
○
culdades relacionadas à sua edi- te. Por isso é possível que haja sen-
○
○
ção.132 Há alguns a respeito dos síveis mudanças entre a primeira e
○
○
quais ele pede desculpas por não ter a última edição de um texto por ele
○
saído do jeito que gostaria que fos- publicado. Por exemplo, na revisão
○
○
se.133 E há outros ainda cuja divul- ○
○
que fez em 1556 ele corrige a inter-
gação ele lamenta. Quanto à publi- pretação que dera para Gl 4.25:
○
○
faz uma longa reclamação, dizendo Jerusalém com o Monte Sinai? Mes-
○
que até mesmo os textos que ele mo que em outra ocasião eu manti-
○
○
ser divulgadas. Ao deixar que suas tempo – Parker bem observou que
○
○
Mas, por insistência dos amigos e gens originais, na busca pela recu-
○
○
Lysias Oliveira Santos
público134. 132
Parker, New Testament, p. 7.
○
133
Parker, Old Testament, pp. 24, 25.
○
102
○
○
○
○
○
○
tamento das circunstâncias históri- suas intepretaçoes, 137 e por isso
REVISTA
○
cas, na necessidade de uma teologia prendeu-se mais à exegese do texto
○
○
firmada na Bíblia, na tradução para do que sua reformulação represen-
○
○
diferentes línguas modernas. Isto fez tada pelos loci.
○
ressurgir grandes estudiosos que, a A interpretação bíblica de
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
partir do pioneirismo de Erasmo de Henrique Bullinger é a menos co-
○
○
Roterdã, se dedicassem à interpre- nhecida dos Reformadores. Em
○
○
tação do texto sagrado. Faremos Zurique a partir de 1525, publica
○
○
uma rápida comparação entre farto material didático, ensinando os
○
○
Calvino e três dos que mais se des- ○
alunos a estudar os assuntos secula-
tacaram como estudiosos da Bíblia res e a Bíblia. Seus comentários são
○
○
co, que esta é a sua obra principal prendendo-se, como vimos, mais à
○
○
dos comentários seus sobre Rm, 1 tar todas as Epístolas, mas qual se-
○
○
36.
resume o conteúdo bíblico em pe-
○
○
137
Parker, op. cit., 49.
quenos tópicos (loci.).136 Calvino
○
○
138
Sobre Bullinger, Parker, op. cit, pp. 36-42.
não fez do método o ponto de alto
○
○
○
○
○
○
○
103
○
○
○
○
○
○
três primeiros capítulos de Roma- biógrafo de Calvino, compara o seu
○
○
nos tomaram mais de 500 paginas! humanismo com os Comentários
○
○
Bucer combateu veemente mente as que escreveu e conclui que ao esco-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
alegorias, mas usou paráfrases para lher conscientemente um diferente
○
esclarecer os hebraísmos e as estilo de retórica, ele critica a retóri-
○
CALVINO
○
idiossincrasias. O trabalho de Bucer ca do humanismo com uma retórica
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
é ao mesmo tempo comentário e bíblica. R. C. Gamble, outro crítico
○
○
teologia sistemática, diferentemen- de Calvino, procurando definir a sua
○
○
te de seus colegas que publicaram escolha hermenêutica, conclui que
○
○
em textos separados a interpretação ele estava comprometido com uma
○
bíblica e a suma de seus pensamen- propensão mental essencialmente
○
○
tos da teologia reformada.139 Neste ○
○
medieval.140
sentido Calvino trilhou também ca- As críticas a Calvino, porém, já
○
○
Calvino é que ele não soube se equi- Lutero de judaizante por causa das
○
compreensão à luz do pensamento Sobre Bucer, Parker, op. cit. pp. 42-48.
○
139
○
104
○
○
○
○
○
○
dissolve o Antigo Testamento pela tuas prostituições”.144
REVISTA
○
leitura cristológica, mesmo que se Uma das dificuldades para ava-
○
○
possa percorrer muitas páginas de liar as falhas dos Comentários de
○
○
seus Comentários do Antigo Testa- Calvino, precisamente os do Anti-
○
mento encontrando só interpreta- go Testamento, refere-se à precari-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
ções históricas sem aparecer o nome edade de suas edições. A uma gran-
○
○
de Cristo.141 de falta de notas de rodapé, ou quan-
○
○
Calvino ficava feliz quando sou- do as há, são ingênuas e irrelevantes,
○
○
be que um casal ilustre havia apre- salvando-se raras exceções. As tra-
○
○
ciado seu Comentário de 1 Corín- ○
duções são insatisfatórias, não tan-
tios. Mas houve alguém que não o to quanto a incorreções, mas quan-
○
○
porque, como bom zuingliano, ele passagem exposta. Há, por exem-
○
○
pecado de Onã. (Gn 19. 31ss; 38. ainda no século XVI. O título do pre-
○
○
141
Parker, Old Testament, p. 2 e Parker, New
○
143
Parker, Old Testament, pp. 2 e 3.
○
105
○
○
○
○
○
○
fácio de Teodoro Beza ao Comentá- o seu material de forma clara, lógi-
○
○
rio a Romanos, de Calvino é: “O mais ca e simples, o chamou de príncipe
○
○
excelente Comentário de Calvino dos expositores. Os editores das
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
entre todas as Epístolas, incluída a obras de Calvino em Brunswick con-
○
Epistola aos Hebreus”.146 Um alu- cordam com ele. Comparando
○
CALVINO
○
no de Reuchlin, de Bratislava, que Calvino com outros reformadores
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
procurou Calvino para resolver al- concluem que com justiça ele pode
○
○
guns problemas de exegese, assim ser chamado de “príncipe e guia dos
○
○
se expressou. “Ainda que Erasmo teólogos”. Jorge P. Fisher reconhece
○
○
seja considerado o príncipe dos te- que Calvino é o exegeta por excelên-
○
ólogos, em muitos aspectos parece cia da Reforma. “A palma pertence a
○
○
não ter atingido como o senhor o ○
○
Lutero como tradutor; a Calvino,
pensamento de Paulo. Eu o felicito como intérprete da Palavra”. 149
○
○
pelo dom notável que Deus lhe deu T. H. L Parker, declara que em todos
○
○
lo com os seus mais santos pensa- sua energia intelectual, pelo seu
○
○
rios de Calvino, pois eu lhes digo que do para a opinião de Karl Barth so-
○
○
146
Parker, New Testament, p. 19.
○
147
Id. ib.
○
usou, como ninguém, de todas fer- Maia, Hermisten M. P., Prefácio de: Calvino,
○
148
106
○
○
○
○
○
○
tante e o grande acúmulo de suas mesma dúvida.
REVISTA
○
obras. Barth Diz que Calvino é”uma A importância dos Comen-
○
○
catarata, uma floresta primitiva, um tários de Calvino - Desde tempos
○
○
poder demoníaco, alguma coisa vin- antigos ecoa o grito: Calvinus homo
○
da diretamente do Himalaia, abso- unius libri, Calvino, o homem de
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
lutamente chinês, um estranho, um um único livro, Calvino, o Tomás
○
○
ser mitológico”.151 Sobre a atualida- de Aquino protestante.153 Nesta
○
○
de dos comentários de Calvino ele perspectiva os Comentários seriam
○
○
diz: “Por exemplo, colocando lado a leituras dispensáveis para uma com-
○
○
lado os trabalhos de Jülicher e de ○
preensão do pensamento de
Calvino, quão energicamente Calvino. No que pese, porém, a
○
○
tes! Paulo fala e as pessoas do século Esta importância pode ser resumi-
○
○
152
○
107
○
○
○
○
○
○
tura a base de sua fé. Segundo por Scriptura aquele que penetra nos
○
○
apontar a estreita ligação da escri- seus meandros de língua, de histó-
○
○
tura com toda e qualquer definição ria, de cultura, de conhecimentos, e
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008
○
○
dos princípios da fé cristã. Tercei- só homens que se dedicam como
○
ro, por defender o comprometi- Calvino conseguem fazer isto.
○
CALVINO
○
mento pastoral da mensagem que Calvino é herdeiro de um passa-
○
VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM
○
vem da Bíblia. do que, na ânsia de extrair da Bíblia
○
○
As páginas anteriores deste arti- o seu pensamento teológico destruiu
○
○
go tentaram mostrar o que era para a Bíblia, ficando só com o pensa-
○
○
Calvino passar a vida expondo a Bí- mento teológico. Ao começar tam-
○
blia. São suas palavras: “Se eu diri- bém pelo pensamento teológico,
○
○
gir-me ao púlpito sem ter olhado ○
○
Calvino logo descobriu que por trás
para um livro e imaginar frivolamen- de tudo está a própria Bíblia. Ao
○
○
confusão por causa da minha audá- reu seu amigo Bullinger, como vi-
○
○
cia”155 Infelizmente não muito tem- mos páginas atrás. Infelizmente logo
○
○
po depois este principio tão caro aos também seus seguidores continua-
○
155
Parker, Preaching, 81.
○
○
○
○
○
○
108
○
○
○
○
○
○
norteiam a vida cristã. língua da Bíblia não é a língua do
REVISTA
○
Mas acima de tudo, os Comen- povo, o tempo da Bíblia não era o
○
○
tários de Calvino são uma demons- tempo do povo, os interesses da
○
○
tração de que a exegese é um ser- Bíblia não eram os interesses do
○
viço para a Igreja. Às voltas com as
○
povo, tempos enfim, em que o
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
múltiplas atividades, sem saber o mundo da Bíblia não era o mundo
○
○
que escolher, se pregar, escrever, do povo. O reformador, ao contrá-
○
○
pastorear, polemizar, administrar, rio, vive este vai-e-vem entre a Bí-
○
○
Calvino talvez não estivesse dando blia e o povo, entre a cátedra e o
○
○
conta de que penetrar nos mistéri- ○ púlpito, entre o estudo e o
os da Sola Scriptura é engajar-se de
○
Igreja, pois para Calvino a Igreja é uma erudição que não mais serve à
○
○
a Schola Dei e o seu currículo são igreja, não mais serve ao povo. É
○
Bíblia havia sido tirada do povo. A tura deve ser feita para a Igreja.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
156
Holder, R. W., op. cit. pp. 252, 253.
○
○
○
○
○
○
○
109
○
○
○
○
○
○
O Comentário de Calvino
○
○
○
○
ao livro de Daniel
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
CALVINO
○
○
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
Considerações mento não é tão cristológica
○
José Adriano Filho
reo Rodrigues de Oliveira
○
quanto a de outros teólogos. Na
iniciais ○
○
○
seu ministério era a exegese bí- to que podem ser lidas como re-
○
○
teólogos católicos e os
○
1
BERG, Jan van den. “O trabalho exegético de blemas trazidos a Genebra pe-
○
110
○
○
○
○
○
○
que afirmavam que o tempo da Lei Calvino. Tanto em suas prédicas
○
REVISTA
○
passara e rejeitavam toda Igreja e dis- quanto preleções, podemos falar de
○
○
um projeto de interpretação dos
O COMENTÁRIO
REVIST
REVISTA
ciplina, levaram-no a demonstrar que
○
○
a redenção de Cristo, a Lei e o Evan- profetas. Seus comentários aos pro-
○
fetas do Antigo Testamento estão
○
gelho não eram antitéticos, pois há
TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL
○
unidade entre o Antigo e o Novo Tes- entre suas últimas publicações
TEOLOGIA
○
tamento, na medida em que não há expositivas. A série começa com o
○
○
○
○
único Deus. meiro em 1550, mas revisado sub-
○
DE CAL
○
Nas Institutas da Religião Cris- ○
seqüentemente, em 1559. Então,
após Gênesis (1554) e Salmos
CALVINO
tã, no capítulo “Da Similaridade
○
○
VINO
○
Calvino demonstra que os dois Tes- Oséias (1557), aos doze Profetas
○
AO LIVRO DE DANIEL
○
os Pais não se baseia nos méritos tros não foram escritos por Calvino,
○
deles, mas na sua misericórdia. A mas são compilações que seus ami-
○
○
Aliança feita com os pais é seme- gos fizeram das Preleções feitas na
○
○
se dizer uma mesma com ela, pois transcrições, publicadas nas Prele-
○
○
difere somente na ordem em que foi ções, não Comentários. Dessa for-
○
aulo
aulo,, SP PÁGINAS 1
2
AUERBACH, Erich. Figura, pp.13-64; DAWSON,
tigo Testamento faz conhecer a pro-
○
senta como realidade presente.4 Institutas da Religião Cristã, Livro II, capítulo 10,
○
3
○
parágrafo 2.
Os profetas do Antigo Testamen-
110
○
10 A 129
4
PUCKETT, David L. John Calvin’s Exegesis of the Old
○
111
○
○
○
○
○
○
bre os profetas do Antigo Testamen- retornar à França, para ali trabalhar
○
○
to estão à parte de suas outras ex- em favor da Igreja Reformada.7
○
○
posições das Escrituras que foram A preocupação com a evan-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
publicadas. Com exceção do co- gelização da França era própria não
○
mentário de Isaías, seu caráter como só dos estudantes, mas também dos
○
○
Preleções e a natureza particular do “ministros” e “outros ouvintes”. A
○
○
público ao qual foram dirigidas re- Companhia dos Pastores de Gene-
○
○
velam-nos como era a leitura feita bra era dominada por franceses du-
○
○
por Calvino dos profetas.5 rante o período da liderança de
CALVINO
○
○
Calvino na cidade, de forma especi-
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
1- A audiência de al entre 1555-1564. Além disso, os
○
○
○
“outros ouvintes” deviam pertencer
Calvino
○
blico “os estudantes”, “os ministros” Calvino. Sem dúvida, foi a Igreja
○
○
e “outros ouvintes”, grupos que es- Reformada que atraiu a maior par-
○
○
que os estudantes fossem os ouvin- vável que muitas pessoas que vieram
○
○
○
○
5
WILCOX, Pete, “The Prophets”, pp.107-108.
○
112
○
○
○
○
○
○
França, por exigência das congrega- vinham de todas as partes da Euro-
REVISTA
○
ções reformadas de lá. No final de pa, como Itália, Alemanha, Inglater-
○
○
1561, um desses enviados a Gene- ra, Escócia, sendo a maior parte
○
○
bra, que esperava uma indicação deles composta por franceses envol-
○
para trabalhar numa igreja na Fran- vidos como Calvino na
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
ça, escreveu uma carta a Guilher- evangelização de sua terra natal. As
○
○
me Farel, em Neuchâtel, onde afir- preleções de Calvino lhes foram
○
○
ma que havia várias pessoas em dirigidas primariamente. O caráter
○
○
Genebra provenientes de muitos desse público nos informa quem
○
○
lugares da França, recrutando tra- ○
eram eles, sendo fácil imaginar o que
balhadores para a colheita na Fran- uma aplicação imediata da exposi-
○
○
vintes das preleções de Calvino, es- sobre Daniel, Calvino afirma: “Por-
○
timando haver mais de mil pessoas tanto, quem realmente tira provei-
○
○
cada dia”. Isso sugere que os “ou- to da Palavra de Deus é aquele que
○
○
tros ouvintes” formavam um gran- aprende que sua vida está sob os
○
○
membros da Companhia dos Pas- tenha alcançado esta fase será ca-
○
do suas tarefas.9
○
○
9
WILCOX, Pete, “The Prophets”, pp.113-114.
○
ses, mas também estudantes que CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.208-109.
○
10
○
○
○
○
○
○
113
○
○
○
○
○
○
2- A Igreja de to. Nesses capítulos, formados por
○
○
visões que se referem “particular-
○
Cristo no mundo e
○
mente à Igreja de Cristo, o Senhor
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
a proteção do
○
prediz o futuro, e esse aviso prévio
○
era mais do que necessário”.12
○
Senhor
○
No início da exposição ao capí-
○
○
O comentário de Calvino ao li- tulo 7, Calvino declara:
○
○
vro de Daniel estabelece uma rela-
○
○
ção entre a situação de sofrimento Aqui Daniel começa ofere-
CALVINO
○
vivida pelo povo de Deus na época
○
cendo instrução peculiar à
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
de Daniel com aquela das igrejas na Igreja. Pois Deus anterior-
○
○
França, no momento em que a Re- ○
○
mente o designara como in-
forma lançava ali suas raízes e nos térprete e instrutor de reis pro-
○
○
que deve ser aplicado à igreja de seus ja, para que exerça nela seu
○
○
do povo judeu lá e da igreja cá, são dos aos filhos de Deus em seu
○
○
vivida pelo povo de Deus, que é re- se estenderam para além dos
○
○
○
○
11
CRISTOFANI, J. R. “Hermenêutica de Calvino e
○
Lutero”, p.20.
como Deus prediz, através de
○
○
12
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.35-36.
Daniel, o que aguardava o povo elei-
○
○
○
○
○
○
○
114
○
○
○
○
○
○
Daniel o conteúdo deste ca- ataques dos inimigos em duas fren-
REVISTA
○
pítulo. Todos os profetas in- tes e depois fala sobre as muitas
○
○
sistiram com o povo eleito mudanças. O que ele apontou foi tão
○
○
sobre a esperança de livra- verdadeiro, que é óbvio que Deus
○
mento, depois que Deus hou- estava falando por sua boca. Daniel
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
vera castigado neles sua ingra- foi um instrumento do Santo Espí-
○
○
tidão e obstinação. Ao lermos rito e nada proclamou baseado em
○
○
o que outros profetas anunci- suas próprias idéias”. Sua inteligên-
○
○
aram concernente a sua re- cia era divinamente evocada a
○
○
denção futura, presumiría- ○
discernir eventos futuros.14
mos que à Igreja fora prome- A grande preocupação de
○
○
falou com suas próprias idéias, mas ataques com aço puro. Reco-
○
○
13
CALVINO, João. Daniel, vol. 2, pp.9-10.
ria nas mãos dos cruéis inimigos”.
○
○
14
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.36-37.
Daniel lista seus pactos, relata os
○
○
○
○
○
○
○
115
○
○
○
○
○
○
interromperam suas reuniões advento de Cristo. No entan-
○
○
pacíficas com violência. Sei to, isso contém uma analogia
○
○
que alguns foram mortos em temporal; essas mesmas coi-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
suas casas, outros nas ruas; sas são verdadeiras para nós –
○
corpos foram arrastados isto é, devem ser adaptadas
○
○
como num mero esporte; para nosso uso.
○
○
mulheres foram estupradas; Daniel regozijou-se pela Igre-
○
○
até mesmo uma mulher grá- ja em miséria, por tanto tem-
○
○
vida e seu bebê não nascido po submersa num profundo
CALVINO
○
○
foram traspassados; casas fo- dilúvio de maldades, quando
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
ram quebradas e roubadas. deduziu, a partir de um cálcu-
○
○
No entanto, apesar de atroci- ○
○
lo dos anos, que o dia da liber-
dades ainda piores serem pas- tação previsto por Jeremias
○
○
dias, Deus mostrou a seu pro- ção. Por essa razão, a igreja de Cris-
José Adriano Filho
○
○
116
○
○
○
○
○
○
O profeta não nos encorajou belecer uma relação entre a situa-
REVISTA
○
a ter esperança e paciência uti- ção enfrentada por eles e a situação
○
○
lizando apenas os exemplos da igreja da sua época, refere-se à
○
○
daqueles dias. Somou a isso proteção que o Senhor dispensa aos
○
uma exortação, ditada pelo fiéis, afirmando:
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
Espírito, que se estende a todo
○
○
o reino de Cristo, pertencen- Mas o que Daniel relata so-
○
○
do também a nós. Portanto, bre aqueles três também é
○
○
não se nos permita que se tor- pertinente a nós. Portanto, é
○
○
ne difícil sermos incluídos no ○
certo inferirmos esta doutri-
número daqueles que se afir- na geral quando o perigo nos
○
○
117
○
○
○
○
○
○
profunda e segura em seu co- As preleções sempre terminam
○
○
ração. Pois cada um procura com uma oração estreitamente rela-
○
○
uma maneira de preservar sua cionada com o tema que está sendo
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
própria vida, como se Deus exposto. Tendo sempre em mente a
○
não possuísse poder algum. situação de perseguição a que a igre-
○
○
Portanto, quem realmente ja estava sujeita, destaca-se no co-
○
○
tira proveito da Palavra de mentário uma das orações que de-
○
○
Deus é aquele que aprende clara a confiança em Deus, que ja-
○
○
que sua vida está sob os cui- mais permitirá que os fiéis sejam atin-
CALVINO
○
○
dados do Senhor e que sua gidos pelos tiranos desse mundo:
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
proteção nos basta. Qualquer
○
○
um que tenha alcançado esta ○
○
Deus Todo-Poderoso, visto
fase será capaz de enfrentar que nos encontramos em pe-
○
○
○
○
17
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.208-209.
○
○
○
○
○
○
118
○
○
○
○
○
○
todo o curso de nossas vidas, Daniel declara que não existe
REVISTA
○
permite que, por fim, alcan- sabedoria nos homens, exceto
○
○
cemos a bendita imortalida- aquela advinda de Deus. Al-
○
○
de que nos prometeste e que guns, é claro, são sábios; po-
○
está guardada para nós nos dem ser até mesmo muitíssi-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
céus através de Jesus Cristo, mo inteligentes. Entretanto,
○
○
nosso Senhor. Amém.18 deve-se perguntar se ela vem
○
○
deles próprios. Daniel mostra
○
○
que os homens são engenho-
3- A verdadeira ○
○
○
sos e invejosos quando reivin-
sabedoria é dom dicam para si alguma coisa,
○
○
de Deus
○
contrário dos magos caldeus, cha- ças? Aquele que criou a sabe-
○
○
18
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, p.110.
cia de Deus e o atribuem a si
○
○
19
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.91, 97-99.
próprios, se chegam bem pró-
○
○
20
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.117-118.
ximos do sacrilégio. Por isso,
○
○
○
○
○
○
○
119
○
○
○
○
○
○
do que podem comprovar.21 A co- tacou-os com uma porção
○
○
mentar a sabedoria de Daniel e seus dobrada do Espírito. Entre-
○
○
amigos, Calvino afirma: tanto, é importante que man-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
tenhamos os nossos olhos em
○
Aqui o profeta apresenta o Daniel, pois, como já menci-
○
○
que já mencionamos – a ra- onamos, o Senhor antes de-
○
○
zão porque ele obteve autori- terminou que fosse ele profe-
○
○
dade foi para que cumprisse ta, e queria, por assim dizer,
○
○
mais as tarefas de profeta. Ele condecorá-lo com sua insíg-
CALVINO
○
○
precisava destacar-se com nia oficial, para que seus
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
marcas nítidas, para que os ensinamentos já encontras-
○
○
judeus, primeiramente, e de- ○
○
sem uma recepção de ante-
pois os estrangeiros, ficassem mão preparada. Diz ele, por-
○
○
cientes de ser ele dotado com tanto, que a estes quatro jo-
○
○
pois seria fútil dizer que essa tado com o singular dom da
○
○
para que este pudesse mostrar quais ele adorna os homens e que
○
○
○
○
120
○
○
○
○
○
○
(...) a sabedoria de Deus não cem sua glória, e sim deveri-
REVISTA
○
está oculta na escuridão, se- am enaltecê-las.23
○
○
não que nos é revelada. Pois
○
○
Deus diariamente nos dá dis- A sabedoria e o entendimento,
○
so claras e seguras evidênci- portanto, são dados por Deus para a
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
as; Aqui ele também corrige glória do seu nome, como diz a ora-
○
○
a ingratidão humana; toda vez ção que finaliza a quarta preleção:
○
○
que retraem o louvor da ex-
○
○
celência de Deus e o atribu- Deus todo Poderoso, de
○
○
em a si próprios, se chegam ○
quem procede todo dom per-
bem próximos do sacrilégio. feito – e embora alguns ho-
○
○
quando reivindicam para si al- o que quer que nos seja dado
○
○
121
○
○
○
○
○
○
prendamos a coisas terrenas, a um rei do que ver suas or-
○
○
mas que aprendamos a elevar dens rejeitadas. Querem que
○
○
nossas mentes à verdadeira todos sejam obedientes, até
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
sabedoria de conhecer-te mesmo quando o que ordenam
○
como o verdadeiro Deus, e seja em extremo injusto. No
○
○
dá-nos a obediência à tua re- entanto, tudo indica que, de-
○
○
tidão. Que estejamos conten- pois, o rei consegue dominar-
○
○
tes com apenas esta coisa, se, quando pergunta a
○
○
obedecer-te e nos consagrar Sadraque, Mesaque e Abede-
CALVINO
○
○
inteiramente a ti, para que teu Nego se estão ou não prepara-
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
nome seja glorificado duran- dos para adorarem seu deus e
○
○
te toda a nossa vida, através ○
○
a imagem de ouro. Ao falar-lhe
de Jesus Cristo, nosso Se- em tom hesitante, oferecendo-
○
○
4- Poder e idolatria
Poder antever certa moderação nas
○
○
naquele período.
nalmente, ele se prorrompe em
○
24
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.200-201.
○
○
○
○
○
○
○
122
○
○
○
○
○
○
Calvino reflete sobre o poder ao sejos de todos estarão soltas.
REVISTA
○
se referir ao rei Nabucodonozor, É por essa razão que afirmo
○
○
quando afirma: que uma tirania é melhor, e
○
○
pode prevalecer mais facil-
○
Em primeiro lugar, sob a fi- mente, do que a anarquia, pois
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
gura de uma árvore, o próprio onde não há governo, tam-
○
○
Nabucodonozor é bém não há ninguém para rei-
○
○
prefigurado. Não que ele nar e manter o restante preso
○
○
corresponda ao rei em todos aos seus deveres. (...) Em se-
○
○
os aspectos, mas porque ○
gundo lugar, ele desejava mos-
Deus estabeleceu impérios no trar que, embora os tiranos e
○
○
ver som o mais selvagem dos sível, para que se vêem força-
○
○
que somos todos iguais; mas, queiram quer não. Eis que o
○
○
sa. O resumo de tudo será a Daniel foi lançado na cova dos le-
○
123
○
○
○
○
○
○
ões, Calvino afirma que muitas ve- de temer que tal desacordo viesse a
○
○
zes os reis e seus conselheiros são estremecer o governo”. Nesse sen-
○
○
brutos e ignorantes: tido, os príncipes, quando querem
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
legislar acerca da adoração a Deus,
○
Notamos nas cortes dos reis costumam olhar para o que lhes
○
○
que os lugares mais elevados agrada, e não para o que Deus or-
○
○
são ocupados por bestas sel- dena. Tal audácia e imprudência é
○
○
vagens. Pois, sem querer re- que leva aqueles investidos de auto-
○
○
petir velhas histórias, os reis ridade a fabricar deuses e ordenar a
CALVINO
○
○
de hoje são todos estúpidos e sua adoração:27
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
brutos; são como cavalos e ju-
○
○
mentos entre os animais sel- ○
○
É oportuno observarmos a di-
vagens; de modo que, quanto visão de três tipos de deuses:
○
○
to, quando Daniel afirma que guma razão natural para ado-
○
○
○
○
124
○
○
○
○
○
○
dada na autoridade de gera- sado, os aprovam e pensam que es-
REVISTA
○
ções passadas. Chamavam a tão certos. Mas nada disso é firme,
○
○
esses deuses de ‘políticos’, pois tais pessoas não foram instruí-
○
○
porque eram recebidos por das na escola de Deus, a verdadeira
○
uma ‘política’ de consenso religião. Como as folhas se movem
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
comum (...) quando o vento sopra por entre as
○
○
No que diz respeito ao poe- árvores, todos os que não estão en-
○
○
tas, os filósofos foram força- raizados na verdade de Deus oscila-
○
○
dos a ceder ao capricho das rão e serão lançados para frente e
○
○
massas, mas, ao mesmo tem- ○
para trás quando algum vento so-
po, ensinar que era nocivo o prar. O decreto régio é como uma
○
○
tios é que o consenso reinava coisas por sua mão, que as mantém
○
○
28
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.185-187.
ína. Eles consideram apenas os er-
○
○
29
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, p.190.
ros legados pelas gerações do pas-
○
○
○
○
○
○
○
125
○
○
○
○
○
○
incontável miscelânea de deu- turas desejam assegurar o que
○
○
ses, atribuindo a cada um seu é próprio de Deus, juntam
○
○
próprio ofício. Isso porque estas duas coisas insepara-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
não conseguem contentar-se velmente: que Deus prevê to-
○
com uma simples unidade no das as coisas no sentido em
○
○
tocante a Deus. Outros in- que nada há que se possa ocul-
○
○
ventam uma espécie de tar de sues olhos; e, então, que
○
○
semideuses. (...) Confessam ele mesmo determina o que
○
○
que nada podem ocultar-se de há de vir, governa o mundo
CALVINO
○
○
Deus, mas que ele prevê to- de acordo com sua vontade;
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
das as coisas; e a isso atribu- nada acontece por acaso, se-
○
○
em todas as previsões que são ○
○
não unicamente em conso-
feitas nas Escrituras. O que nância com seu governo. Por-
○
○
Deus é assim, que ele prevê do esses dois princípios não são
○
○
○
○
126
○
○
○
○
○
○
Considerações possibilidade de aplicá-lo ao mo-
REVISTA
○
mento atual da igreja.
○
finais
○
Nesse sentido, Calvino estabele-
○
○
Calvino utilizou todos os meios ce uma relação constante entre a
○
históricos e filológicos à disposição situação de sofrimento vivida pelo
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
para alcançar uma exegese bíblica povo de Deus na época de Daniel e
○
○
contextual, cujo objetivo último era a situação similar das igrejas na Fran-
○
○
provocar a fé, a qual surge quando ça, no momento em que a Reforma
○
○
o Espírito Santo prepara o caminho lançava ali suas raízes e nos primei-
○
○
para tal. Importa, pois, para Calvino, ○
ros anos do seu desenvolvimento.
o testemunho interno do Espírito Tanto nas exposições da primeira
○
○
Escritura 2 Timóteo 3.16-17: “Toda onde, segundo ele, Deus prediz, atra-
○
○
são, para a correção, para a educa- riências amargas vividas pelo povo
○
ca do texto. Importa o sentido lite- Apesar disso, ele não deixa de men-
○
○
texto original não deve excluir a confiança em Deus, que jamais per-
○
○
○
○
○
○
○
127
○
○
○
○
○
○
jetória de nossa luta e por fim
○
○
mitirá que os fiéis fossem atingidos alcancemos aquele feliz des-
○
○
pelos tiranos desse mundo, além de canso que nos está prepara-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008
○
○
afirmar que Deus dá sabedoria e do no céu por Cristo nosso
○
Senhor. Amém.
○
entendimento aos fiéis, para a gló-
○
Deus Onipotente, visto que
○
ria do seu nome.
○
Esta confiança está presente nas outrora permitiste que teus
○
○
orações que encerram a trigésima servos mantivessem sua cora-
○
○
terceira e a trigésima nona preleções: gem em meio a tantas e tão
CALVINO
○
○
variadas comoções, faz com
VINO AO LIVRO DE DANIEL
○
que extraiamos a mesma
○
Deus onipotente, visto que
○
outrora admoestaste teus ser- ○
○
edificação dessas profecias; e
vos de que teus filhos, enquan- visto que temos chegado à
○
○
poder; consoante tua promes- vel, até que, por fim, desfru-
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
128
○
○
○
○
“ ○
○
○
REVISTA
○
○
○
Nabucodonozor ergueu um novo Deus,
○
○
pretendendo introduzir uma nova
○
○
forma de religião, sob o pretexto de
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
que sua memória seria celebrada pelas
○
○
gerações futuras, como o fazem
○
○
também os governantes atuais, que
○
○
não perguntam o que é consistente
○
○
soprar
soprar.. O decreto régio é como uma
○
○
129
○
○
○
○
○
○
Comentário de Calvino
○
○
○
a 1 Coríntios
○
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
CALVINO
○
○
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
Introdução guto; de outra foi defensor ina-
○
∗
Paulo Sérgio de P
reo Rodrigues de Oliveira
○
○
balável. A bíblia, para ele, esta-
Calvino, passados 500 anos ○
va a serviço da igreja.
de seu nascimento, ainda tem
○
○
Humanismo e os recursos
○
vas – e atuais!
○
exegético-hermenêuticos usados
○
* O rev. Paulo Sérgio é pastor, deão e professor dos a lerem, na íntegra, o comen-
○
tário.
○
○
○
○
○
○
○
130
○
○
○
○
○
○
I. Influência do afetaram sua teologia. A interpre-
○
REVISTA
○
tação das Escrituras não dependia
○
Humanismo
○
apenas da capacidade humana, mas
COMENTÁRIO
REVIST
REVISTA
○
○
Renascimento e Reforma são principalmente da eficácia do Espí-
○
rito, que é a garantia da compreen-
○
distintos movimentos, embora haja
TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL
○
aproximações entre eles. Se o são de seu conteúdo.
TEOLOGIA
○
humanista enfatiza a grandeza do
○
○
DE CAL
○
e a grandeza de Deus, conforme
○
acentua Boisset: “... enquanto o ○
exegéticos e
CALVINO
○
hermenêuticos
VINOVol.A 1 1nº 5,
○
CORÍNTIOS
al e valorizou o contexto histórico.
○
to. Seus interesses críticos foram criação, o que importa para Orígenes
○
○
Paulo
○
aulo
aulo,, SP PÁGINAS 1
Paulo Sérgio de P
○
Calvino foi um humanista, sim. co diferente. Para ele, a bíblia foi dada
○
30 A 147
○
Proença
roença
○
○
○
○
○
○
131
○
○
○
○
○
○
do algum texto falhava em edificar, Dificuldades textuais podem ser
○
○
devia-se olhar sob ou além da “letra explicadas pela noção de acomoda-
○
○
que mata”, para o sentido espiritual ção, que se refere ao ajustamento
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
que “dá vida”. A igreja medieval divino às limitações humanas, das
○
estruturou a proposta de Agostinho quais algumas são permanentes e
○
○
e a chamou “quadriga”. Além do sen- outras variáveis, sujeitas a circuns-
○
○
tido literal, havia outros três, corres- tâncias históricas. A bíblia ilustra a
○
○
pondentes às virtudes teológicas (fé, acomodação a culturas cambiantes,
○
○
CALVINO
○
○
aquilo em que se deve crer; 2) forma única em circunstâncias di-
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
tropológico (amor), o que a igreja versas e tratou a igreja de forma
○
○
deve fazer; 3) anagógico (esperança), ○
○
diversificada. A Revelação aconte-
o que a igreja deve antecipar. Por ce em tempo e espaço diferentes e
○
○
riormente, foi feita distinção entre quer revelar dos infinitos mistérios
○
○
sentido literal, dividido entre literal- do seu ser, o que, por sua própria
○
○
porvir). Ambos são literais. Isaias 53, (Holder, 2006, pp. 248-9). Revela
○
○
por exemplo: Israel como servo so- algo da própria bíblia, que não ofe-
○
○
ral-histórico; Jesus Cristo, como re- tureza de Deus, mas uma concep-
○
Paulo Sérgio de Proença
1
Em seu comentário de 1 Coríntios 9.8-9, Calvino dá
○
tura tipológica (sentido literal-duplo, uma mostra de sua apreciação do método alegórico:
○
acima); não teve disposição para Paulo pretenda explicar este mandamento alegorica-
○
132
○
○
○
○
○
○
Deus fala aos homens como uma pretação da Escritura deve ser feita
REVISTA
○
mãe fala ao bebê. Exemplo de aco- para a igreja, toda interpretação é
○
○
modação foi a encarnação, pela qual subordinada ao julgamento da igre-
○
○
Deus trouxe salvação aos seres hu- ja. Calvino simplesmente assume
○
manos; testemunha a condescen- que o lugar da Escritura é dentro da
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
dência divina em se revelar em con- igreja, sua esfera própria é dentro
○
○
ceitos humanos. Segundo Rogers, “a da igreja e os membros da igreja cor-
○
○
noção de acomodação capacitou os retamente lêem, consideram, obe-
○
○
teólogos a fazerem a exegese das decem e vivem a Escritura”
○
○
Escrituras de uma forma que o mé- ○
(Holder, pp.252-3).
rito de Deus foi preservado e as li-
○
Calvino intérprete-
○
Bíblia
○
um limite, além do qual não pode escritos do AT, à luz da morte e res-
○
○
ir); autoridade da Escritura (ação do surreição de Jesus. Por isso, ele acre-
○
○
texto do livro, de outros livros do chamados gramáticos especulativos: “... (do latim
○
133
○
○
○
○
○
○
go paulino, para ele, o trabalho do mentarista da bíblia. Entre 1540 e
○
○
intérprete é captar a mente do au- 1546, trabalhou no comentário de
○
○
tor; no caso, a mente de Paulo, ou o 1 Coríntios. O período coincide
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
senso de sua teologia. com o seu retorno a Genebra, em
○
As Institutas nasceram para ser que estava preocupado com suas
○
○
um guia a todos os que quisessem próprias atividades pastorais e com
○
○
estudar a bíblia.4 A igreja era uma a qualidade dos pastores:
○
○
verdadeira escola, a schola Dei (es-
○
○
CALVINO
cola de Deus), cujo perfeito currí- Nossos colegas são mais obs-
○
○
culo era a Escritura. Contudo, avan- táculos do que ajuda para nós:
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
çar nesse estudo sem um guia seria eles são rudes e personalistas,
○
○
partir para uma viagem sem um ○
○
não têm zelo nem preparo.
mapa. Ele não esconde sua intenção Mas, o que é pior de tudo, eu
○
○
pastorais
○
○
O comentário a 1 Coríntios
○
divina Palavra”.
Isso ocorre, de igual forma, com
○
○
5
Calvino adotou a tendência dos teólogos medievais
Calvino. Circunstâncias de sua vida
○
134
○
○
○
○
○
○
II. Estratégias e “Ele poderia ter-se expresso assim...”
REVISTA
○
(p. 474); “É como se dissesse...” (p.
○
temas desenvolvidos
○
484); “Este, portanto, será o senti-
○
○
Serão apresentadas, primeira- do...” (p. 488). 6 É comum o recur-
○
mente, algumas estratégias presen- so ser usado em seqüências sintáti-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
tes no comentário abordado e, em cas truncadas, em partes que acu-
○
○
seguida, uma seleção de alguns te- sam divergências de leituras prove-
○
○
mas da epístola. nientes de traduções ou de apoio de
○
○
manuscritos diferentes ou, ainda,
○
1. Estratégias ○
○
quando há dificuldades de fundo
doutrinário.
○
identificadas
○
○
Apresentação de
○
meio de perguntas
○
perífrases
○
○
6
Para fazermos referência ao comentário de Calvino a
○
página.
○
7
É provável que isso seja influência do estilo do
○
introduzidas por “fórmulas” de próprio Paulo. Sabe-se que Paulo usava a diatribe
○
135
○
○
○
○
○
○
davia, alguém poderá chegar à se- necessária para a interpretação mais
○
○
guinte inferência... Minha resposta correta. Além de fatos históricos,
○
○
é que...” (p. 486). são citados historiadores também.
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
As perguntas são poderosas ar-
○
mas de envolver o leitor no raciocí- Polêmica com o
○
○
nio apresentado, além de exigir re- “papismo” e princípios
○
○
ação e elaboração mental deles. Às católicos
○
○
perguntas elaboradas, todas em tor- São freqüentes as referências à
○
○
CALVINO
○
○
sentadas respostas esclarecedoras.
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
Um exemplo: “Como esta cláusula
○
e derivados. Citamos, a título de
○
se harmoniza com o que Paulo ensi- ○
○ exemplo, o comentário de 13.8: “Os
na em Efésios 2.3...? A isso respon- papistas torcem este versículo a fim
○
○
Uso de dados
○
históricos
○
dada à história como terreno para A polêmica deve ser entendida à luz
○
○
8
Além do contexto histórico, há o contexto literário
○
monstram aguda percepção da in- que, uma vez considerado, impedia o erro da
○
136
○
○
○
○
○
○
Bíblia, tradição reconhecer as ligações entre partes
REVISTA
○
exegética e literatura seqüenciais do texto, identificar as
○
○
rupturas e seqüências naturais de
não bíblica
○
○
boa coesão. O sólido conhecimento
○
É sabido que Calvino, como
das línguas originais pode ser per-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
humanista, tinha sólida formação.
○
cebido nas inúmeras remissões a
○
Conhecia não somente bíblia e teo-
○
elas, cujos termos são analisados sob
○
logia, mas os principais autores do
○
o ponto de vista semântico e a com-
○
patrimônio cultural conhecido na
○
preensão do encadeamento sintáti-
○
época. Além dos autores ligados à
○
co não era de forma alguma despre-
teologia, ele cita historiadores, filó- ○
hermenêuticos.
○
○
○
○
Línguas originais e
○
○
9
Os teólogos medievais não liam grego nem hebraico;
questões textuais
○
sua natureza, as evidências de gran- Vulgata, é verdade, mas sob o rigor de um exegeta
○
137
○
○
○
○
○
○
‘por causa de’, mas isto é obviamen- Divisão e unidade na
○
○
te devido à ignorância dos copistas, Igreja
○
○
pois não existe qualquer ambigüida-
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
de na partícula grega...” (p. 474). Em na igreja não se aplicam a diferen-
○
1 Co 15.51 menciona que não há
○
ças de opinião, que, por si mesmas,
○
variantes nos manuscritos gregos,
○
não causam necessariamente divi-
○
embora haja três diferentes redações
○
sões. Estas se insinuam por meio da
○
no latim. Depois de apresentá-las,
○
ambição, “a fonte de todos os ma-
○
CALVINO
○
○
é que estas diferenças são oriundas
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
do fato de que alguns revisores, sen-
○
de da igreja repousa principalmen-
○
do um tanto obtusos, e achando a ○
○
te nesta única coisa: que todos nós
redação genuína um tanto
○
2. Temas de
Temas
○
1 Coríntios
○
Retórica e “artes”
○
○
138
○
○
○
○
○
○
esplêndidos dons de Deus, Disciplina moral e
REVISTA
○
dons estes que poderíamos tirania
○
○
chamar instrumentos para O caso de incesto do capítulo quin-
○
○
auxiliarem os homens no de- to merece atenção. A gravidade da
○
sempenho de suas atividades
TEOLOGIA E SOCIEDADE
situação exige remédio amargo e ime-
○
nobres. Portanto, não há nada
○
diato. Deve-se ser vigilante para afas-
○
de irreligioso nessas artes,
○
tar a “imundícia”. Devia-se recorrer à
○
pois são detentoras de ciên- exclusão. O poder de excomunhão foi
○
○
cia saudável, e estão subordi- dado à igreja; quando, por necessida-
○
○
nadas a princípios verdadei- ○
grifos nossos).
○
go da tirania:
○
nas, por melhor que sejam, são ser- em se tratando de uma ques-
○
10
Harrisville e Sundberg, ao sintetizarem o pensamen- povo. E notemos ainda que
○
coisas que devam ser temidas pelos cristãos, nem as nada existe em mais frontal
○
p. 20). Note-se que não se diz “para o bem comum também nas epístolas pastorais, principalmente em 1
○
da Igreja”. Timóteo.
○
○
○
○
○
○
139
○
○
○
○
○
○
oposição à disciplina de Cris- admiração pelo estado de solteiro,
○
○
to [...] do que a tirania; e a tratavam (sic) com desdém o sagra-
○
○
porta se abre amplamente do estado matrimonial” (p. 194). O
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
para ela quando todo o poder ato sexual com a esposa jamais pode
○
fica circunscrito a um único ser considerado impuro (p. 199). A
○
○
homem (p. 157). virgindade, pensaram alguns, era a
○
○
maior das virtudes, daí que o celi-
○
○
O reformador de Genebra foi bato passou a ser valorizado. Com
○
○
CALVINO
○
○
a pureza moral da Igreja e integri- ministros da igreja, o que Deus mes-
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
dade das Escrituras, para o que não mo reprova, pela própria instituição
○
○
media esforços nem tinha medo de ○
○
do casamento. O celibato é um dom,
se expor a riscos. Em seu testamen- uma questão de consciência e não deve
○
○
to, em que se identifica como mi- ser nunca imposição externa, desres-
○
○
te, isso é confirmado: “De igual católico). Uma síntese bem feita so-
○
○
140
○
○
○
○
○
○
de, deve valer-se dele (p. 242). mem pode ter e, sim, da pre-
REVISTA
○
eminência que Deus confere
○
○
O matrimônio é interpretado ao homem, de modo a fazê-
○
○
à luz do momento histórico que via lo superior à mulher. A glória
○
o mundo ordenado por posições de Deus é percebida num es-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
comandadas pela hierarquia, o que tado mais excelente através
○
○
garantia a estabilidade. Sobre o co- do homem, assim como é re-
○
○
brir ou não a cabeça, se é próprio fletida em cada autoridade
○
○
ou não à mulher, Calvino diz que “o superior (p. 334).
○
○
pai de família é considerado rei. ○
É presunção da mulher qualquer
Portanto, ele reflete a glória de tentativa de elevação a uma posição
○
○
Deus... Se o homem cobre sua ca- que não lhe é de direito. Esta foi a
○
○
beça, ele se rebaixa daquela pree- porção atribuída por Deus; elas de-
○
(p. 331). Cobrir a cabeça é sinal de como a vida solitária não faz bem
○
as era o que importava. Mas, am- “Deus nos traz à comunhão com
○
○
bos, homem e mulher, não são ima- ele por meio dos sacramentos” (p.
○
141
○
○
○
○
○
○
ma forma que comemos pão meio do poder secreto do Espírito
○
○
(p. 353). Santo.
○
○
Os sacramentos são “testamen-
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
A doutrina da transubstan- tos” e nos despertam a certeza da
○
ciação, segundo a qual, após a con- salvação. Na ceia, o vinho deve ser
○
○
sagração, o pão deixa de ser pão em distribuído com o pão. A celebra-
○
○
sua essência, permanecendo apenas ção adequada da Ceia contempla a
○
○
os acidentes externos e passa a ser declaração de fé do crente (p. 360)
○
○
CALVINO
○
○
Calvino12. O pão é alimento e, para submeter ao poder de Deus:
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
isso, deve ter a substância e não a
○
○
aparência de pão. Além disso, se o ○
○
Ora, se alguém não possui se-
corpo de Cristo está no céu, como quer um leve vestígio de fé
○
○
está em todo lugar, pois, como es- rito de Cristo, como poderia
○
○
escolásticos diziam que “Cristo Mais que isto, visto que o tal
○
○
355). Presta-se, neste caso, adora- cado, como estaria apto a re-
○
12
Para Calvino, a transubstanciação era uma espécie
“auto-exame”? Os “papistas” diziam
○
cálice proporciona comunhão, pela incorporação a que era a confissão auricular. Para
○
13
Esta pergunta de Calvino, citando uma objeção de fé e arrependimento:
○
142
○
○
○
○
○
○
me precisa estar baseado e sóbria. Vejamos sua concepção de
REVISTA
○
nestes dois elementos. No profeta. “Profeta” é o mensageiro de
○
○
arrependimento incluo o Deus; é ele quem explica os misté-
○
○
amor, pois é indubitável que rios de Deus para a instrução dos
○
a pessoa que aprendeu a ne- que ouvem:
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
gar-se a fim de devotar-se a
○
○
Cristo e ao seu serviço, tam- ... Paulo conceitua estes pro-
○
○
bém se entregará de corpo e fetas, não como dotados com
○
○
alma à promoção da unida- o dom de profetizar [=vatici-
○
○
de que Cristo nos recomen- ○
nar, predizer], senão que
dou. Aliás, o que se exige não eram abençoados com o dom
○
○
mar que você é digno, estou de dos dons, cuja origem comum
○
○
Os dons do Espírito
○
Particularmente interessante é o
○
143
○
○
○
○
○
○
lho entre as nações” (p. 411).14 Ao liberdade concedida a mulheres, Pau-
○
○
cabo, Calvino achava que não se lo as proíbe de falar em público; de-
○
○
devia dar muita atenção às línguas, vem elas se restringir ao que é “con-
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
uma vez que à profecia cabia priori- veniente”, pois, se à mulher cabe a
○
dade. E, ainda, o dom de línguas submissão, ela não tem autoridade
○
○
exigia interpretação, o que o fazia para falar em público. (p. 438).
○
○
equivaler à profecia e, por outro
○
○
lado, não participa da comunhão da Ressurreição
○
○
CALVINO
igreja quem não se expressa de for- Pela sua morte, Cristo se fez par-
○
○
ma compreensível.
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
○
tal. A sua ressurreição nos faz parti-
○
Deus não é [autor] de ○
○ cipantes, juntamente com Ele, da
confusão: a liturgia natureza divina, pois pela expiação
○
○
te porque havia tagarelice feminina. desta questão, uma vez que, para
○
Paulo Sérgio de Proença
Para administrar eventual excessiva ele, Deus fará tudo de acordo com
○
○
14
A igreja pode sobreviver sem o dom de línguas; mas
A nós nos cabe sermos abundantes
○
dentemente, ele cita como exemplo deste caso o (15.58), pois move-nos a esperança
○
não impediu que os apóstolos promovessem avanço de que uma vida melhor nos está
○
divina.
surreição produz o efeito de fazer-
○
○
○
○
○
○
○
144
○
○
○
○
○
○
nos incansáveis na prática do bem” Conclusão
REVISTA
○
(p. 497).
○
Calvino foi um homem de seu
○
○
tempo, com os aspectos positivos e
Adoção de práticas
○
○
negativos nisso implicados. Mas sua
○
externas
TEOLOGIA E SOCIEDADE
obra ainda fala, com relevância ao
○
○
Uma última observação, referen- “nosso” tempo.
○
○
te ao mau costume de se admitirem A família reformada ainda con-
○
práticas externas e nocivas à igreja.
○
serva, de forma geral, formação con-
○
Calvino, comentando o v. 11.1, ad-
○
sistente para seus pastores, com ên-
○
igreja. Sua crítica ainda hoje – prin- guas originais da bíblia e metodologia
○
○
descaracterização completa na
○
ética. Não precisamos copiar nada Além disso, deve-se ressaltar seu
○
○
nem devemos ter vergonha de ser- zelo pela pureza moral da Igreja, de
○
mos reformados:
○
mente o que vêem fazer aque- guntas então não formuladas, como
○
○
145
○
○
○
○
○
○
com nossa herança de fé. mirado seu trabalho pela
○
○
Como comentarista das Escritu- mesma razão. Em um sécu-
○
○
ras, deixa-nos um legado que não lo que produziu mais do que
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008
○
○
se pode perder: uma justa divisão de interes-
○
○
santes e originais comen-
○
Os comentários de Calvino tadores da Escritura, católi-
○
○
foram lidos em sua própria cos e protestantes, Calvino
○
○
época porque foram conside- permanece como um dos
○
○
CALVINO
○
○
ensão do significado da Es-
VINO A 1 CORÍNTIOS
○
critura. Desde então, novas
○
da hoje vale (Steinmetz,
○
gerações de leitores têm ad- ○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○ 2006, p. 291).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
○
Paulo Sérgio de Proença
BEZA, Theodoro de. A vida e a morte de João Calvino. Campinas: LPC, 2006.
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HARRISVILLE, Roy A. e SUNDBERG, Walter. The Bible in Modern Culture. Grand Rapids: B. Erdmans,1995.
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HOLDER, R. W. “Calvin as commentator on the Pauline epistles”. In: MCKIM, Donald. K. (Ed.). Calvin and
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ROGERS, Jack B. “Autoridade e Interpretação da Bíblia na Tradição Reformada”. In: MCKIM, Donald K.
○
○
STEINMETZ, David. C. “John Calvin as an interpreter of the Bible”. In: MCKIM, Donald. K. (Ed.). Calvin and
○
146
○
○
○
○
○
○
○
REVISTA
○
○
○
○
○
○
○
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
“ ○
○
○
○
○
○
○
Os comentários de Calvino
○
○
genuína compreensão do
○
divisão de interessantes e
○
○
Escritura, católicos e
○
○
2006, p. 291
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
147
○
○
○
○
○
João Calvino
Calvino,,
○
○
○
○
leitor de Salmos
○
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008
○
○
○
○
CALVINO
○
○
VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS
○
○
○
○
○
○
○
○
Em seus quase 55 anos de quanto a Instituição.
○
∗
Marcos P
reo Rodrigues de Oliveira
○
vida, o reformador francês João ○
○
A exegese para Calvino tinha
Calvino escreveu comentários a um único objetivo: a edificação
○
Testamento, particularmente o
Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão
cia. Porém não era assim que en- livro de Salmos. Faremos uma
○
○
∗
148
○
○
○
○
○
○
As formas de dia após dia, cuidadosamente anota-
○
REVISTA
○
va cada palavra pregada para seu pró-
○
exposição
○
prio proveito espiritual. Após a sua
JOÃO TEOLOGIA
REVIST
REVISTA
○
○
Tradicionalmente é muito morte, outros compiladores deram
○
seqüência a esse mesmo trabalho.
○
enfatizado o trabalho do reformador
A TEOL
CAL
CALVINO
○
de Genebra em comentar os livros
TEOLOGIA
○
○
VINO
VINO,
da Bíblia. De fato, essa face de sua 2. Congregações. São muito
E SOCIEDADE
obra não pode ser esquecida. Porém, conhecidas as reuniões realizadas to-
, LEITOR DE
○
realçar apenas este lado não faz jus- das as sextas-feiras lideradas por
○
○
tiça a Calvino. Sua leitura da Bíblia, ○
Calvino. A presença era obrigatória
e particularmente do Antigo Testa- a todos os pastores da cidade e
○
○
SALMOS
○
Marcos P
○
aulo
aulo,, SP PÁGINAS
149
○
○
○
○
○
○
adolescentes de cerca de quinze cês a fim de que um maior número
○
○
anos de idade. Tinham, portanto, de pessoas pudesse ter acesso a eles.
○
○
um tom mais acadêmico. Seus comentários observam uma
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008
○
○
É Importante notar que o co- ordem muito simples. Tomando uma
○
mentário ao livro de Salmos de parte do texto para discussão, ele
○
CALVINO
○
Calvino (1557) surgiu após o primeiro explica detalhadamente o
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VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS
○
reformador francês apresentar pre- significado daquela porção e depois
○
○
leções sobre este livro e enquanto faz uma não menos rica aplicação
○
○
discutia o texto das unidades deste daquele ensino na vida dos leitores.
○
○
livro nas Congregações. A princípio No caso dos Salmos, ele inicia com
○
ele não pensava em publicar outro uma discussão sobre a autoria, o con-
○
○
comentário, mas devido a insisten- ○
○
texto histórico e outras questões re-
tes pedidos de seus amigos e diante ferentes ao poema específico.
○
○
Pressupostos da
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exegese de Calvino
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ram origem a esses trabalhos foi o por Deus e eles não tinham condi-
○
○
150
○
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○
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○
clara e forte para Calvino que ele sam o texto bíblico e influenciaram
REVISTA
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chega a dizer que a Bíblia foi ditada a sua redação e até mesmo o seu
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○
por Deus. Porém, não se deve pen- ensino.
○
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sar que Calvino tomava a expres-
○
são “ditada por Deus” como o fize-
Princípios da
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
ram os fundamentalistas séculos
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exegese
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mais tarde. A análise do método
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exegético e mesmo a leitura dos Calvino tinha alguns princípios
○
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comentários e sermões em que o de trabalho que não são explicitados
○
○
reformador de Genebra expõe os ○ em nenhum texto específico, mas
textos bíblicos, mostra que ele não
○
seu labor exegético considera ques- tário a um texto bíblico deveria pri-
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○
o lado humano.
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151
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deveria estar clara e concisa para que como quando indica que 2 Pedro
○
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fosse facilmente entendida. não poderia ter sido escrita pelo
○
○
Entretanto, é preciso salientar mesmo autor de 1 Pedro, dadas as
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008
○
○
que a brevidade que ele defendia não diferenças entre o vocabulário e es-
○
pode ser confundida com demasia- tilo literário de ambas as epístolas.
○
CALVINO
○
da simplificação ou superficialida- Os escritores do Antigo Testa-
○
VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS
○
de no trato do texto bíblico. Simpli- mento, porém, viveram na escuri-
○
○
cidade de ensino não pode ser en- dão, pois ainda não havia se levan-
○
○
tendido como pouca profundidade tado o Sol de justiça. Eles viveram
○
○
na análise e no uso dos instrumen- na fé e esperança, mas limitados
○
tos de pesquisa. pelo fato de estarem ainda sob uma
○
○
○
○
religião obscura e incompleta. As-
2. O princípio de buscar de- sim, o propósito e a intenção des-
○
○
intenção do autor que escreveu de- da. Reconhecendo que Davi era o
○
○
era considerada tão essencial à in- de que o rei belemita era autor de
○
○
terpretação bíblica que os exegetas todos eles. Ele percebia por trás de
○
○
Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão
tos podem ajudar a reconhecer se futuro, ele entendia que o autor dos
○
um texto foi ou não escrito pelo re- salmos não aplicaria referências
○
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152
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○
○
○
Na verdade, com relação aos 4. O princípio de análise
REVISTA
○
salmos, Calvino se preocupou mais lingüístico-gramatical e literária.
○
○
com as circunstâncias históricas em
○
○
que cada salmo foi escrito do que O significado empregado pelo
○
com a autoria especifica das uni- autor de uma passagem bíblica ao
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
dades. escrevê-la, é chamado de significa-
○
○
do original, ou significado simples.
○
○
3. O princípio de que a Bíblia Para se chegar a ele, é necessário um
○
○
explica a própria Bíblia. conhecimento sólido das línguas
○
○
○
originais, grego e hebraico. Esse co-
Calvino considerava que um tex- nhecimento é necessário porque o
○
○
instrumento privilegiado para a ex- que esse significado era incerto, ele
○
ria, ele conseguia estabelecer rela- salientar o sentido literal dos textos
○
○
ções entre diferentes textos bíblicos. bíblicos que para isso chega a dizer
○
Nestas relações ele não firmava as- que esses textos – ou seu sentido li-
○
○
sociação de idéias, mas procurava a teral – foram ditados por Deus. Po-
○
○
tes. Portanto o estudo da Bíblia de- iremos tratar mais adiante. Não há,
○
○
153
○
○
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○
○
○
cia no início de alguns salmos como, sesse referir. Calvino não aceitava
○
○
por exemplo, os salmos 38, 70 e esse sentido alegórico do Antigo
○
○
100, uma palavra que estava relaci- Testamento. Para ele, o Antigo Tes-
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008
○
○
onada com o conteúdo daquele sal- tamento deveria permanecer em si
○
mo. Assim, salmos que apresenta- mesmo e não ser dissolvido em
○
CALVINO
○
vam conteúdo semelhante tinham espiritualidade atemporal e
○
VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS
○
no seu cabeçalho a mesma palavra. descontextualizada.
○
○
Calvino entende que entre os
○
○
5. O princípio de análise das israelitas do Antigo Testamento e os
○
○
metáforas e alegorias. cristãos há uma similaridade. E que,
○
apesar da similaridade, entre os dois
○
○
Mas não só na observação do sig- ○
○
grupos, porém, há uma lacuna que
nificado das palavras se baseava a precisa ser transposta por uma trans-
○
○
tido alegórico. Esse método enten- sentido das palavras e das figuras de
○
○
medida que se entende as pessoas, cias e as razões pelas quais esses ter-
○
○
ações, objetos, etc. e que são como mos foram aplicados. Para isso, o
○
○
154
○
○
○
○
○
○
compreender o contexto histórico preende também o sacerdócio, o
REVISTA
○
dos textos bíblicos, especialmente os cerimonial, a profecia e até a mo-
○
○
do Antigo Testamento. narquia) é Cristo, não era inadequa-
○
○
Em seu comentário aos Salmos do reconhecer nela o Senhor. Por
○
é notória a preocupação pela inves- isso Calvino aceita, ao contrário da
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
tigação das diferentes instituições alegoria, a interpretação tipológica
○
○
cultuais em que determinados sal- que reconhece nos textos do Anti-
○
○
mos deveriam ter sido empregados. go Testamento tipos de Cristo, do
○
○
Calvino relacionou alguns deles a Espírito Santo e da igreja anterior-
○
○
instituições como “assembléia sole- ○
mente já estabelecidos por Deus.
ne”, “pública ação de graças” e ou- Calvino não nega a realidade histó-
○
○
de, pois nele está toda a verdade. Moisés ser um tipo de Cristo, e al-
○
○
Isso não significa que Cristo será guns poucos outros. Qualquer ten-
○
○
o critério que explica todos os tex- tativa de detalhar muito essas ima-
○
○
tos ou que todo o Antigo Testamen- gens era rechaçada até com ironia.
○
○
Salmo 1º
○
155
○
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○
○
○
propriamente sobre a introdução, a espaço e analisa com mais cuidado e
○
○
qual Calvino chama de Dedicatória. detalhadamente, é a primeira.
○
○
O comentário aos Salmos foi escri- Demonstrando a importância
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008
○
○
to entre 1553 e 1557 e Calvino con- conferida à intenção do autor, a pri-
○
siderou esta uma tarefa muito difí- meira frase de seu comentário diz
○
CALVINO
○
cil. Mas a sua introdução contém que o salmista queria afirmar que
○
VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS
○
uma bela surpresa. Mais do que dis- tudo estará bem com aqueles que
○
○
cutir questões metodológicas, por servem a Deus e que buscam incan-
○
○
exemplo, o reformador faz uma bre- savelmente estudar a lei do Senhor.
○
○
ve autobiografia e relaciona muitas Este texto serve para incentivar os
○
passagens do livro à suas experiên- filhos de Deus a perseverar na fé
○
○
cias pessoais. Chega a se colocar ○
○
mesmo em meio ao escárnio e des-
como um seguidor de Davi, a quem prezo dos muitos que consideram a
○
○
como o autor de muitos salmos, tido. Para Calvino, o Salmo 1º. mos-
○
afirmando que, fosse quem fosse o siva dos verbos e dos substantivos
○
○
quele poema logo no início não fora faz uma análise detalhada dessas
○
○
Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão
rio que é o de fazer dele uma espé- com seu significado particular, e
○
cie de prefácio. O Salmo 1º. ali co- mais com o sentido no texto e sua
○
○
locado serve para lembrar a todos aplicação. Para isso, faz uma dife-
○
○
v.3; v.4 e v.5-6. Para ele a parte mais mos, lança mão dos termos
○
○
importante, à qual ele dedica mais hebraicos para explicar que não vê
○
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156
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○
a mesma graduação crescente nos vo digno de Deus. Da submissão
REVISTA
○
substantivos que qualificam os pe- amorosa nasce o desejo de contínua
○
○
cadores. Nesse sentido, o meditação na Lei do Senhor.
○
○
reformador é de extrema honesti- No comentário à segunda e à ter-
○
dade para com o texto hebraico. ceira partes do salmo, Calvino ana-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
Afirmar o mesmo incremento no lisa as metáforas destes dois
○
○
grau de impiedade dos personagens versículos com ponderação, evitan-
○
○
deste primeiro verso seria perfeita- do exageros e relações que o texto
○
○
mente aceito exegeticamente e de não apresenta. Ele cita outros dois
○
○
grande interesse para a aplicação ○
textos bíblicos (Sl 37.35 e Jr 17.6)
feita pelo comentarista. Mas Calvino para melhor explicar as metáforas.
○
○
por outro lado não fica em uma aná- Na análise da última parte,
○
○
lise superficial, sem buscar o senti- Calvino comenta que o ímpio pode
○
○
culo, salienta o lado positivo da lei, texto faz referência. Deste modo,
○
Senhor. Calvino não interpreta a lei presença de Deus. Por isso, o ímpio
○
○
aqui apresentada como mandamen- terá o seu fim de perdição a seu tem-
○
escravidão. Pelo contrário, a lei, ex- não extraem, eles mesmos, qual-
○
○
Antigo Testamento, era para ele, a damentos do Senhor, mas o Pai mi-
○
○
157
○
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○
Conclusão bíblicos foram escritos por pessoas
○
○
que foram influenciadas por seu
○
Calvino empreendeu um inten-
○
contexto histórico, que escreveram
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008
○
so trabalho de estudo e exposição
○
segundo determinadas intenções e
○
da Bíblia. A importância que ele con-
que nas suas linhas deixaram suas
○
CALVINO
○
marcas.
○
VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS
○
Calvino se dedicou tanto à tare-
○
esse exercício e das diversas formas
○
fa de estudar e expor o texto bíblico
○
que usava para sua exposição.
○
porque cria que ali havia algo mais
○
Para esta tarefa ele se utilizou dos
○
que um livro qualquer, algo mais
conhecimentos mais aprofundados
○
que uma oportunidade para satisfa-
○
que estavam à sua mão. Ele buscou
○
○
zer a vaidade dos eruditos. Na ver-
um retorno ao texto trabalhando-o ○
○
○
○
○
○
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
○
○
CALVINO, João. O livro dos Salmos. São Paulo: Edições Paracletos, 1999.
○
GREEF, Wulfert de. “Calvin as commentator on the Psalms”, in: McKIM, Donald K. (ed.) Calvin and
○
PARKER, T.H.L. Calvin´s New Testament Commentaries. 2a. edição. Louisville, Westminster/John
○
Knox, 1993.
○
PUCKETT, David L. John Calvin´s Exegesis of the Old Testament. Louisville: Westminster/ John Knox,
○
1995.
○
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158
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REVISTA
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TEOLOGIA E SOCIEDADE
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“ ○
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Calvino fazia tanta questão de
○
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interpretação de sentido
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desvinculado de sua
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humanidade”.
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Sermão
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SERMÃO
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Jubileu de Calvino
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À semelhança das massas po-
○
Maurice Gardiol
○
Leitura bíblicas pulares presentes em Jerusalém
○
○
a) Deuteronômio 15.7 no dia de Pentecostes, nós tam-
○
○
b) Lucas 16.19-31 ○
bém podemos perguntar: qual é
Gardiol∗
c) Atos 2.1-13 o significado para hoje, no con-
○
○
lência e injustiça?
○
○
os pobres na marginalidade. O
○
referentes à celebração dos 500 anos do soas mas, ao mesmo tempo, con-
○
160
○
○
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○
REVISTA
reconciliação, que destrói as barrei- e o “bom” delineados por ele em seu
○
○
ras do ódio e da discriminação. projeto. O Espírito é aquele que nos
○
○
Calvino, fiel à mensagem do permite realizar esta obra comum
○
evangelho, fundou o Hospital Ge- de sabedoria. Ele liberta do rigor da
○
○
TEOLOGIA E SOCIEDADE
ral de Genebra para atender às ne- Lei, mas nos torna responsáveis pela
○
○
cessidades dos empobrecidos e ofe- elaboração de uma ética que com-
○
○
recer acolhida aos sem-teto de seu bine visão e missão em relação à
○
○
tempo. No entanto, ele também criação. Em conseqüência, Calvino
○
○
atuou considerando as causas da insiste no fato de que o mandamen-
○
pobres. Em contrapartida, ele abriu dos da parte que lhes é devida. Nes-
○
vens a fim de lhes oferecer meios nal de sua providência, privar al-
○
○
especiais para adquirir novos conhe- guém de seu trabalho com o propó-
○
○
tos que no seu entender, deveriam como pessoas a quem Deus confiou
○
○
teza de que somente a graça nos sal- Ao redistribuir uma parte de suas
○
○
va, sua Lei continua a ser o pedagogo riquezas, ainda que por meio de
○
○
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○
○
○
○
○
○
○
SERMÃO
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○
que, por avidez ou desconfiança, ção e nada atribui a si mesmo... Esta
○
○
esconderam o maná. Assim, a pro- pessoa, digo eu, é abençoada...”
○
visão cuidadosa de Deus para aten- Estas poucas reflexões nos en-
○
○
der sua necessidade de alimento corajam a refletir sobre a maneira
○
○
apodreceu em suas bolsas (cf. de considerarmos nossa riqueza e
○
○
Êxodo 16). nossa pobreza. Entretanto, ao mes-
○
○
No entanto, Calvino não consi- mo tempo, elas nos levam a per-
○
guntar sobre o atual funcionamen-
○
dera que os pobres sejam justifica-
○
dos em todas as suas palavras e atos to da economia, suas motivações e
○
○
simplesmente por causa de sua po- propósitos.
○
○
próprio Deus aquilo que ele reser- do lemos que a saúde e a economia
○
○
que nada somos. Aquele que se jul- Pelo contrário, estamos envolvidos
○
○
162
○
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○
○
do qual todos, ricos ou pobres, se- Estes exemplos e muitos outros
REVISTA
○
remos vítimas um dia. ao nosso redor, não são sinais de que
○
○
Mesmo assim, todas as informa- o Espírito do Pentecostes continua
○
○
ções que recebemos não farão sen- soprando? Esta é exatamente a di-
○
tido se nos desanimam ou nos cul- reção a ser seguida. De nada adian-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
pam. Bem ao contrário, devemos tará reclamar dos custos dos encar-
○
○
ouvir as palavras bíblicas que nos gos sociais se nossas empresas não
○
○
lembram também a força que te- levam suas responsabilidades mais
○
○
mos para agir. a sério, pelo menos concordando em
○
○
Há uns trinta anos, os pastores ○
manter os postos de trabalho dos
André Biéler e Lukas Vischer junta- menos capacitados que no entanto,
○
○
ração de Berna. Aqueles que aderi- mesma forma como busca resulta-
○
○
mente, outros membros de nossas tral de uma ética que coloca a co-
○
○
163
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○
○
○
“
○
○
SERMÃO
○
○
○
○
“...Senhor
“...Senhor,, que te agrades em assistir
assistir--
○
○
nos com o teu Espírito Santo a fim de
○
○
que possamos estar aptos a exercer
○
○
○
nossa profissão e chamado com
○
○
fidelidade, sem qualquer fraude ou
○
○
engano; que possamos da nossa parte
○
○
seguir antes a tua direção que
○
○
satisfazer nossa cobiça por mais ○
○
generosidade e liberalidade.”
○
○
○
○
○
○
○
○
PÁGINAS 160 A 164, 2008
○
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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Presbiteriana, 1990.
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164
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