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EOR300
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Contemporâneas
Autoria: Fabio Vizeu
Resumo
A partir da Teoria social Crítica de Jürgen Habermas, uma proposta que buscou evidenciar a
incongruência da racionalidade econômica no âmbito da interação comunicativa, este artigo
pretende apontar a comunicação sistematicamente distorcida dentro das organizações, de maneira
a refletir sobre uma dimensão da interação humana onde se evidenciam os diferentes matizes do
conflito no âmbito organizacional, bem como certos mecanismos discursivos para a dominação e
manutenção do poder. Para tanto, abordam-se os princípios da ação comunicativa e da ação
estratégica, e de que maneira esta última geralmente se manifesta nas interações sociais dentro
das organizações através do refinamento da distorção comunicativa. Parte-se da premissa de que
a racionalidade administrativa privilegia a comunicação orientada para o êxito, uma categoria que
processa a transfiguração do sujeito interlocutor em objeto teleológico, ou seja, um meio para se
atingir um propósito. Neste sentido, a distorção comunicativa se apresenta como um recurso de
poder cada vez mais requisitado no ambiente organizacional. Tendo em conta que este processo
se estabelece como uma manipulação de significados, a distorção comunicativa nas organizações
se manifesta em três diferentes esferas ontológicas da realidade social. Na conclusão,
apresentamos uma referência que pretende ser uma medida para a superação desta tendência à
comunicação sistematicamente distorcida nas organizações, a idéia dos espaços de fala.
Palavras-chave: Habermas; Teoria da Ação Comunicativa; Racionalidade Administrativa;
Comunicação organizacional sistematicamente distorcida.
1. Introdução
No contexto atual, a comunicação é um processo que passa a ter uma maior relevância,
especialmente dentro das organizações. Enunciada por muitos como a era da informação, o
período atual vislumbra novas formas organizacionais e certas tendências nas práticas gerenciais
que se sustentam na idéia de que o conhecimento é um valor maior na vida organizacional. A
gestão do conhecimento, uma especialidade cada vez mais presente nos quadros administrativos
das grandes corporações, se fundamenta entre outras coisas no desenvolvimento dos canais de
interação entre os membros da organização (SANCHEZ e MAHONEY, 1996), possível apenas
pela competência comunicativa. Considerando ainda que o fluxo de conhecimento necessário à
sobrevivência das organizações se viabiliza na medida que a identidade organizacional se
constitui coletivamente (DUGUID e BROWN, 2001), as organizações contemporâneas devem
ser entendidas como comunidades de discussão (TSOUKAS, 1996).
Neste cenário, a comunicação é entendida como uma competência gerencial fundamental.
Em seu pioneiro estudo que questionava o entendimento clássico das funções gerenciais,
MINTZBERG (1973) identificou o papel informacional como uma função chave do executivo
contemporâneo, seja para promover o contínuo fluxo de informações entre o ambiente e a
organização, seja para desenvolver o processamento interno de informações necessário para o
desenvolvimento dos objetivos organizacionais. Nesta espécie de re-configuração das funções
dos executivos na era de turbulência, o autor salienta a importância do gestor como um elo de
1
ligação entre os diferentes níveis e departamentos da organização, bem como um facilitador para
a otimização dos fluxos de informação e produção de conhecimento.
Em adição a essa perspectiva, BROEKSTRA (1998) lembra que a dimensão
conversacional das organizações contemporâneas se constitui a partir da autonomia exigida pela
flexibilização sistêmica do cenário atual. Baseado no paradigma cibernético, este autor considera
a interação discursiva um elemento constitutivo das organizações entendidas como sistemas
complexos, onde a construção de significados pela conversação permite o dinamismo de onde
emerge a autonomia da organização diante do contexto no qual está inserida.
Neste sentido, nada mais relevante do que observar o processo de comunicação
organizacional como um possível mecanismo articulador da pluralidade que caracteriza a
sociedade globalizada. Muito se fala que, com a intensificação da globalização, as interações se
configuram em um patamar de diversidade cultural (PICHE, 2004), o que implica uma maior
compreensão das representações e significados compartilhados por grupos culturalmente distintos
(MORGAN, 1996). Assim, em contextos competitivos globais, as organizações dependem da
capacidade comunicativa de seus membros não só para interpretar as distintas realidades culturais
postas lado a lado, mas também para possibilitar a própria interação plural e baseada na
tolerância.
Todavia, tendo em conta a lógica de dominação racional-instrumental vigente no mundo
capitalista, a comunicação organizacional também se configura a partir de um contexto
conflituoso, suportado por relações de poder que caracterizam a sociedade atual. Assim, nas
práticas de comunicação organizacional, também estão presentes as contradições da sociedade
capitalista, tais como a exploração da força de trabalho em nome do interesse econômico ou
mesmo o esvaziamento da ética e da moral pela valorização do lucro, do individualismo e do
consumismo. Na verdade, pode-se dizer que as práticas comunicativas da modernidade são
condicionadas pelo ethos do capitalismo (HABERMAS, 1987), uma dimensão que pode ser
expressa pela redução da razão à modalidade econômica (GUERREIRO RAMOS, 1989), que
tem por princípio o cálculo utilitário de conseqüências (WEBER, 2004).
Isto posto, este artigo pretende apontar a comunicação sistematicamente distorcida dentro
das organizações, de maneira a refletir uma dimensão da interação humana onde se evidenciam
os diferentes matizes do conflito no âmbito organizacional, bem como certos mecanismos
discursivos para a dominação e manutenção do poder. Partimos da perspectiva da teoria de ação
comunicativa do filósofo Jürgen Habermas, uma teoria que buscou evidenciar a incongruência da
racionalidade econômica no âmbito da interação comunicativa. Para tanto, HABERMAS (1987;
1989) propõe a resignificação da ação social racionalmente orientada, tendo em conta a
importância da competência lingüística na construção social da realidade.
Ou seja, considerando a linguagem como atributo essencial na construção de significados,
a comunicação é um processo que assume um novo patamar na compreensão da realidade
organizacional. Em outras palavras, grande parte do que é a organização pode ser definida pela
interação comunicativa entre seus membros e entre estes e os seus públicos externos, sejam eles
os grupos diretamente associados com a atividade fim (fornecedores, clientes e concorrentes) ou
outros grupos de interesse da sociedade aparentemente mais distantes (movimentos sociais e
ecológicos, entidades de classe, organizações governamentais, etc.). É a partir desta interação
comunicativa que as visões de mundo feitas por estes distintos grupos internos e externos são
(re)construídas. Tendo em conta que tais percepções orientam a ação social, podemos inferir que
a dinâmica da atividade organizacional cotidiana é essencialmente definida pelas interações
comunicativas das pessoas e grupos participantes.
Para dar conta da discussão central proposta neste artigo, primeiramente é necessário
abordar alguns elementos básicos da teoria de ação comunicativa de Habermas. Se tratando de
um corpo teórico denso (FREITAG, 1986; HERRERO, 1986), não será possível aqui expor todos
os seus elementos constitutivos. Optamos por tratar apenas aqueles necessários para a
compreensão da idéia de distorção comunicativa.
Apesar de controverso este entendimento, Habermas pode ser considerado um legítimo
herdeiro da Escola de Frankfurt (FREITAG, 1986). Isto porque, além dele ter sido discípulo
direto de Adorno e Horkheimer – os dois maiores expoentes deste grupo – Habermas se propôs a
tratar do foco original desta escola de pensamento. Todavia, diferentemente da opção pessimista
feita pelos idealizadores de Frankfurt, Habermas opta por verificar outras possibilidades da ação
social baseada na racionalidade, ainda não verificadas a luz das perspectivas filosóficas e
sociológicas que se desenvolveram ao longo do século vinte.
3. O acordo comunicativo
Para HABERMAS (1987), a ação racional é aquela que pode ser questionada é sustentada
por argumentos que fazem sentido para o nosso repertório compartilhado de significações.
Assim, os critérios de racionalidade são relativos à determinada comunidade lingüística, pois
somente os membros que compartilham de um mesmo conjunto de significados é que conseguem
perceber o sentido naquilo. Assim, matar é algo errado para os membros de uma comunidade que
compartilha das mesmas significações morais em relação à vida e a morte. Além disso,
dependendo do uso semântico que se faz desta palavra, ‘matar’ pode ter outro significado: matar
em legítima defesa não é errado.
Ou seja, a pretensão de validade de determinado ato de fala é relativa à determinada
cultura. Considerando o exemplo anterior, matar é algo certo ou errado (e isso, em determinadas
condições) para uma específica cultura. Neste raciocínio, quando falamos, baseamos nossos
argumentos em premissas que devem ser válidas para o nosso ouvinte, se não, nosso ato de fala
não terá sentido para ele (considerando que desejamos convencê-lo ou ajustar nossa ação coletiva
pela fala). Isso é facilmente observado no diálogo entre um adulto e uma criança: o adulto deve
levantar questões que correspondam ao nível de entendimento e validade da criança para que sua
fala tenha sentido. Eventualmente, o adulto irá fundamentar seu discurso em argumentos
estranhos a criança; porém, ele supõe que deveriam ser válidos para seu interlocutor. Caso haja
conflito de valores entre seus argumentos com a criança, ele tenta convencê-la por outros
argumentos supostamente compatíveis com o seu estágio moral e cognitivo.
Assim, HABERMAS (1987; 1989) propõe que o acordo comunicativo é a base da
racionalidade centrada na perspectiva lingüística da ação social. A possibilidade de que aja
argumentação sobre determinada questão e a aceitação do grupo de tais argumentos para
justificar a ação coletiva é aquilo que o autor denominou orientação para o entendimento, a base
da ação comunicativa plena. As referências analíticas da orientação para o entendimento são
denominadas pretensões de validade do ato de fala, um conceito desenvolvido pela teoria
habermasiana que foi inspirado nas perspectivas ontológicas das diferentes correntes sociológicas
do século vinte. A seguir, apresentamos as quatro pretensões de validade consideradas por este
autor:
a. o requisito de verdade proposicional, ou seja, a pretensão de que o falante diga ou se
refira a algo verdadeiro no mundo objetivo e/ou natural;
b. o requisito de sinceridade, o requisito pelo qual o falante pode fazer-se conhecer suas
intenções verdadeiras ao dizer algo;
c. o requisito de retidão, relativo a conformidade com as normas sociais (legitimidade social
de um ato de fala);
d. o requisito de inteligibilidade, para que falante e ouvinte possam chegar ao entendimento
comum sobre aquilo que está sendo dito.
Segundo HABERMAS (1989) estes quatro requisitos devem ser considerados quando
orientamos nossa fala para o entendimento: queremos nos fazer entendidos em relação a verdade
dos fatos que consideramos em nossa fala; quanto a intenção de nossas ações ou as de terceiros;
sobre a legitimidade das questões propostas em relação ao círculo social de referência; e em
relação a compreensão do que se diz. Resta-nos analisar como tais requisitos são burlados quando
a orientação do ato de fala não é o entendimento, mas sim o êxito da ação. Ou seja, de acordo
com os critérios ontológicos da racionalidade redefinida por Habermas (1987), nossos atos de
fala somente são racionais quando todos estes quatro critérios são atendidos. Quando isto ocorre,
dizemos que a orientação da comunicação é para o entendimento, ou seja, o falante orienta sua
fala para que o ouvinte entenda exatamente aquilo que ele acredita e sabe.
A orientação para o entendimento se estabelece quando queremos que o nosso interlocutor
entenda algo exatamente da mesma maneira que nós. Se acreditamos que é necessário agir de tal
forma devido a determinados acontecimentos (validade objetiva), que nos deixam apreensivos e
preocupados (validade subjetiva) e que tal ação se conforma aos valores morais e normativos da
sociedade em que vivemos (validade social-normativa), orientamos nossa ação para o
entendimento destes critérios. Assim, nossos argumentos serão baseados nestes acontecimentos,
sentimentos e normas sociais, supostamente tidos como válidos também pelos nossos
interlocutores.
Estes critérios de racionalidade comunicativa permitem a autonomia dos sujeitos porque
estes regulam sua vida social a partir das suas convicções e sem ferir as regras sociais da
comunidade em que vivem; ou seja, quando acreditamos que, se o outro sujeito souber e sentir o
que sabemos, ele irá agir da mesma forma que nós, e, assim, nos esforçaremos para nos fazer
entendidos, pois temos a convicção de que os mesmos argumentos que nos convenceram a agir
de tal forma serão suficientes para mobilizar a ação dos membros da comunidade cultural-
lingüística que pertencemos, sem ferir a autonomia destes sujeitos. Se nosso interlocutor tiver a
seu dispor argumentos sustentados nos critérios ontológicos de nossa comunidade cultural que
sejam suficientes para questionar os nossos próprios, podemos mudar nossa orientação inicial,
sem que sejamos constrangidos a faze-los (se fizemos, foi porque mudamos a nossa opinião pelo
conhecimento de novos argumentos que desconhecíamos mas consideramos válidos). É por este
motivo que Habermas (1987) reconceituou o critério de racionalidade a partir da suscetibilidade
de crítica e fundamentação de enunciados e proferimentos:
A racionalidade das emissões e manifestações [de um sujeito] se mede pelas
reações internas que entre si guardam o conteúdo semântico, as condições de
validez e as razões que, caso necessário, podem alegar-se em favor da validez
dessas emissões ou manifestações, em favor da verdade do enunciado ou da
eficácia da regra de ação. Estas considerações tem por objetivo a racionalidade de
uma emissão ou manifestação a sua suscetibilidade de crítica ou de
fundamentação. Uma manifestação cumpre os pressupostos de racionalidade se e
somente se encarna um saber falível, guardando assim uma relação com o mundo
objetivo, isto é, com os fatos, e resultando em acesso a um enunciado objetivo. E
um enunciado só pode ser objetivo se é feito por meio de uma pretensão
intersubjetiva de validez que para qualquer observador ou destinatário tenha o
mesmo significado que para o sujeito agente. A verdade ou a eficácia são
pretensões deste tipo. (HABERMAS, 1987, p. 25-26)
a. acesso ao processo de decisão, que não somente diz respeito a presença física do
participante no debate, mas também a possibilidade de falar e ser ouvido;
b. poder para influenciar o processo e seus resultados, tendo em vista que, a competência
discursiva somente pode ser considerada como autêntica se ela puder realmente ser
efetivada em termos de resultados;
c. interação construtiva facilitada por meio de estruturas adequadas, correspondendo aos
aspectos estruturais do debate (posição dos participantes no espaço físico, tempo de fala,
etc.);
d. interação construtiva facilitada por meio de comportamento pessoal, significando a
postura pessoal que facilita a confiança e a crítica construtiva, como por exemplo a
tolerância e a paciência;
e. acesso à informação, tendo em vista que em relação a certas questões somente alguns têm
acesso direto a informações e/ou conhecimento especializados;
f. análise adequada da informação, de maneira que esta não seja tendenciosa ou parcial (o
que envolve, quando necessário, um processo de tradução ou interpretação isento de
interesses particulares);
g. habilitação de condições necessárias para processos futuros, de maneira que sejam
aproveitadas em outras oportunidades as deliberações que possam ser utilizadas sem
nenhum comprometimento, de maneira a não empreender novos processos de discussão e
negociação.
Da mesma forma, mesmo naqueles espaços de fala que se procura desenvolver as
condições de favorecimento da fala livre, se o outro não for reconhecido como um igual – ou
seja, um membro pertencente à mesma comunidade legitimadora do espaço de fala – a orientação
para ação estratégica (comunicação sistematicamente distorcida) pode se estabelecer. Isso foi
observado no estudo de Vizeu e Bin (2008), onde foi investigado, a luz da teoria habermasiana, o
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República (CDES), uma
secretaria de apoio ao governo federal criada no primeiro mandato do presidente Lula. No CDES,
os autores observaram que, apesar das condições estruturais para o estabelecimento do espaço de
fala terem sido cumpridas, a comunicação orientada para o êxito nos debates predominava,
justamente porque não havia o reconhecimento do outro como um membro legítimo do fórum
e/ou da sociedade brasileira (supostamente representada pelos noventa membros do CDES).
Por fim, salientamos que a teoria habermasiana é apenas uma de muitas abordagens
existentes para se avaliar criticamente a questão da comunicação organizacional. Optamos por
apresentá-la por entender seu potencial enquanto uma perspectiva sociológica afiliada as
vertentes hermenêuticas, vertentes estas que têm observado o papel central da linguagem na
explicação da vida social. De resto, apesar de serem relativamente simples as bases do modelo de
gestão e organização orientado pela racionalidade comunicativa, na prática, este não se estabelece
de forma tão fácil. Ao contrário, é enorme o desafio para o gestor implantar esta nova referência,
especialmente por que ele é condicionado a viver sob a pressão do resultado, o que faz com que a
ação estratégica seja uma opção muito mais interessante no curto prazo. Contudo, se desejamos
realmente desenvolver sistemas de gestão éticos e que permitam a emancipação das pessoas
sujeitas a estes sistemas, a orientação racional-instrumental destes sistemas deve ser repensada.
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