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sessenta e um

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Paul Scofield
em Rei Lear,
de Shakespeare,
enc. Peter Brook,
Royal Shakespeare
Company, 1962,
fot. Angus McBean.

A encenação e as idades do actor


Georges Banu

O que nos interessa aqui é a relação dos corpos com a idade, à leitura. Idade “fictícia” que se situa no cruzamento da
associada não a um destino de actor, mas ao trabalho de idade textual com a idade biográfica. É o resultado de uma
encenação. No teatro, mesmo em algum teatro contemporâneo, reflexão e de uma decisão do encenador que explora
em que a personagem não desapareceu, há papéis que conjuntamente os dois termos em presença: idade da
implicam um requisito etário mais ou menos explícito. A personagem e idade do intérprete. Serve-lhe de intermediário
sua importância não é, contudo, sempre igual. A idade é e por vezes opera casamentos inesperados que fazem sentido,
relevante somente na medida em que intervém e tem renovam uma leitura ou relançam uma carreira. A idade
consequências sobre o destino das personagens, reflectindo dramatúrgica é uma construção. Construção que se mostra
as marcas de uma idade e de tudo aquilo que a define, ainda sobre o palco. Pode surpreender ou desconcertar, pouco
que de uma maneira esquemática. A idade pode surgir importa, mas afirma sobretudo o trabalho sobre a relação
indicada nas didascálias ou, ainda, ser deduzida a partir da activa entre as premissas da ficção textual e as premissas
matéria do texto. Idade textual. da realidade física. Relação reflectida e integrada no projecto
O teatro faz-se com actores que têm uma realidade global do espectáculo onde as três idades se confundem!
física e que seguem um ciclo biológico com todas as
transformações que isso acarreta. Eles têm uma idade. Para Do desfasamento à coincidência das idades
o palco, a idade do actor é um dado inevitável. A idade, para A tradição europeia, para não falar dos excessos orientais,
retomar uma bela fórmula de Patrick Le Mauff, intervém mostrou-se durante muito tempo indiferente à conformidade
em relação aos dados de partida do corpo “como uma entre idade textual e idade biográfica. Os exemplos são
harmónica”. A idade é essa harmónica que encontra a sua numerosos e atestam a recusa em ter em linha de conta a
origem no actor e que se oferece à percepção do espectador. coincidência entre os dois termos: sobretudo quando se
Idade biográfica. O trabalho de encenação, sobretudo para tratava de um “monstro sagrado”, a idade biográfica do
uma certa categoria de textos, não pode furtar-se a esse intérprete não intervinha na atribuição do papel e menos
confronto: idade textual – idade biográfica. Todo o trabalho ainda na sua manutenção, apesar da incompatibilidade
de distribuição de papéis o tem em conta. flagrante com a idade textual. Entre a idade textual e a
O encenador joga com as duas idades e, por vezes, idade biográfica nenhuma coerência era imperativa. Podemos
propõe uma idade dramatúrgica, que ganha sentido e apela mencionar Sarah Bernhardt que, aos sessenta anos, interpreta
sessenta e dois

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Evelyne Istria
em Electra,
de Sófocles,
enc. Antoine Vitez,
Théâtre-Maison de la
culture de Caen, 1966,
fot. Guermanprez.
Lorenzaccio em travesti e Olga Knipper que, durante quarenta
anos, mantém o papel de Liubov, n’O cerejal. Isto era
motivo, por vezes, de reacções divertidas, mas sem que tal
implicasse o abandono do exercício de semelhante prática.
(Uma observação: na época, o desfasamento da idade
intervém apenas num sentido: um actor idoso pode
interpretar uma personagem jovem, mas nunca a um actor
em início de carreira se atribuirá um papel que ultrapasse
a sua idade). Trata-se de um desfasamento, de facto, que
poderemos designar como um desfasamento de experiência,
exercido fora de todo e qualquer programa estabelecido,
devido aos imprevistos de uma carreira, à notoriedade de
um actor ou às necessidades de uma companhia. Este
desfasamento faz, no entanto, sentido, na medida em que
dá mostras de uma confiança profunda na arte do actor,
capaz de se manifestar, apesar da inadequação da idade.
Não valorizamos nós, deste modo, até ao extremo, tanto a
arte quanto a aura do actor mítico? O palco impõe-se como
espaço do actor, onde ele reina para além de todos os admitir a distribuição do velho actor no papel de uma
constrangimentos da idade textual. Chegado ao topo da personagem jovem, o inverso também sucede, e o palco
sua arte, ele pode interpretar tudo. Afirma-se assim a recusa aos jovens actores o abandono da sua categoria
confiança na cena, como território do falso, que não se etária em nome da repulsa produzida pelo actor que
atravanca com reticências ligadas às exigências do verdadeiro, “compõe” a sua idade. O corpo inapropriado do actor
em nome das quais, mais tarde, esta antiga permissividade contradiz a biografia da personagem. O que se procura é a
será posta em causa aquando do advento da encenação, sua sobreposição e não a sua dissociação. Evoque-se, mesmo
cujos arautos, Antoine e Stanislavsky, não nos esqueçamos, assim, um exemplo raro. N’ O cerejal, encenado por Stéphane
reclamam para si próprios o naturalismo ou o realismo. Braunschweig, em vez de um jovem actor a “compor” a
A encenação dedicar-se-á, frequentemente, a reduzir velhice de Firs, o intérprete fazia-se acompanhar por uma
e a diminuir aquele desfasamento. Ela fará progressivamente marioneta de bunraku, o que lhe permitia “mostrar”, graças
da identificação idade textual / idade biográfica o seu a este duplo, o estado de decrepitude da personagem.
programa. O objectivo consiste em alcançar a aproximação Reencontrávamos aqui o princípio de várias “escritas”
máxima daqueles dois termos até que as duas idades acabem identificado por Barthes no bunraku, princípio que põe em
por se confundir. Através da busca desta coincidência, causa as práticas miméticas ocidentais. A velhice de Firs
formula-se o desejo da imagem unificada actor / personagem. era, naquele caso, teatralmente construída.
A arte do actor passa para segundo plano, porque o que se À arte do actor adquirida ao longo do tempo sucede a
procura doravante é um efeito de “verosimilhança”, fundado juventude do corpo, por vezes sem qualquer interrogação
sobretudo nesta “união” das idades. Isto é gerador de uma sobre o nível da sua arte. Foi o que Peter Stein e os actores
mutação extraordinária: Julieta passa a ser interpretada por da Schaubühne descobriram quando quiseram montar
uma actriz com a idade aproximada da personagem, deste Tchekov: demasiado jovens, eles decidem adiar o projecto.
modo fornecendo-se ao espectador um corpo novo no qual Para se prepararem, passam primeiro por Gorki. Tinham
personagem e intérprete se encontram reunidas numa compreendido que, ao querer praticar em excesso a
mesma idade. A encenação dedicar-se-á muitas vezes a coincidência das duas idades, era a própria arte do actor
essa prática. O choque da célebre Fedra, de Vitez, em 1975, que se arriscava a ser adulterada. Mas este é um caso à
não resultará ele, igualmente, do facto de Nada Strancar parte, porque podemos constatar que uma mutação se
ter aproximadamente a idade da personagem? Une-as a impõe: a substituição dos “papéis típicos”, cada vez mais
mesma juventude. O mesmo acontece n’ A disputa, de negligenciados, em proveito dos constrangimentos da
Marivaux, onde Chéreau faz a distribuição dos actores “idade”, cada vez mais respeitados.
conforme a sua proximidade à idade dos protagonistas.
O palco cultiva um certo “verismo”, onde podemos reconhecer O desfasamento dramatúrgico
uma verdadeira influência do cinematógrafo. Doravante, ao A assimilação das duas idades, uma vez generalizada, arrasta
actor está interdita uma circulação livre pelo repertório e consigo a exclusão do desfasamento. Ou, então, exige um
ele vê-se submetido aos critérios “temporais” que o uso deliberado: a utilização de um desfasamento que resulta
aproximam ou o afastam de certos papéis. Além do mais, de uma decisão deliberada, mostrada, produtora de sentido.
“o desfasamento suprimido” praticado pela encenação vai Consequência de uma leitura! Por exemplo: Lear, no célebre
arrastar consigo a recusa quase sistemática do trabalho de espectáculo de Peter Brook, é interpretado por Paul Scofield,
“composição”. A partir do momento em que se deixa de um actor então perto dos cinquenta anos. Brook explica a
sessenta e três

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Antoine Vitez e
Evelyne Istria
em Electra,
de Sófocles,
enc. Antoine Vitez,
Théâtre des Amandiers
de Nanterre, 1971,
mas antes um actor de uma certa idade, com alguma vivência fot. Nicolas Treatt.
e experiência. A experiência do actor entra em linha de conta.
Um outro exemplo: Peter Stein encena Júlio César e
atribui o papel de Brutus a um velho actor. A sua idade
intervém para legitimar e motivar o carácter inelutável da
conspiração: não é um Brutus imaturo aquele que se
empenha no projecto do assassinato, mas sim um Brutus
que chegou ao máximo da sua exasperação, um ser moral
revoltado com os desvios totalitários de César. Stein trabalha
com o desfasamento dramatúrgico.
Antoine Vitez, preocupado com a questão da idade,
colocou-a diversas vezes no centro dos seus espectáculos.
O caso de Electra é exemplar. Na terceira versão, a de Chaillot,
ele atribui o papel da rapariga a Evelyne Istria, uma actriz
de uma certa idade, que já interpretara o papel duas vezes,
por considerar, segundo os velhos costumes que lhe eram
caros, que os critérios da idade podem ser sacrificados em
nome de uma fidelidade partilhada: para ele, Evelyne será
para sempre Electra! O desafio consiste justamente em não <
fazer caso dos imperativos da idade, para impor uma Evelyne Istria
continuidade no papel, com tudo o que isso acarreta de em Electra,
persistência mnemónica e gosto pela convenção teatral. de Sófocles,
A isto junta-se a distribuição, que a muitos pareceu paradoxal, enc. Antoine Vitez,
do papel de Clitemnestra a Valérie Dréville, que era então Théâtre National de
aluna da escola. Vitez procede a uma reviravolta violenta Chaillot, 1986,
e, em nome de um projecto dramatúrgico, joga com as fot. Claude Bricage.
idades sem se submeter a exigências realistas: a mãe que
goza a vida e desabrocha sexualmente será aqui mais jovem
que a filha, que se instala no luto e parece pender para o
lado dos mortos. Através desta inversão flagrante, Vitez
encena a sua convicção: a idade dos corpos e a idade física
não têm de coincidir. O desfasamento dramatúrgico assume
aqui um valor exemplar.
Um outro exemplo em que a leitura das relações se
apoia essencialmente nas deslocações da idade. Vitez, em
Hamlet, inova, atribuindo o papel de Gertrudes a Madeleine
sua escolha. Em primeiro lugar, diz ele, o desejo de trabalhar Marion, actriz de uma certa idade, e o de Cláudio a Aurélien
com este actor, o que lhe permitia modificar a visão sobre Recoing, actor quase com a mesma idade de Hamlet. Esta
aquela personagem: já não um rei esgotado, mas antes um alteração produz uma verdadeira constelação de sentidos:
tirano cansado do poder, disposto a abandonar essa função, o par Gertudes – Cláudio explica-se pela diferença de idades
sem, contudo, abdicar dos seus privilégios. Para Brook, este e pelas suas implicações sexuais e impõe-se a Hamlet, o
Lear poderoso é necessário, antes de mais porque o encenador príncipe, como tão mais escandaloso quanto é certo que
faz dele um homem político inquietante, que decide aquele que ocupa o leito da sua mãe poderia ser seu irmão,
simplesmente delegar o poder, esperando poder continuar seu duplo. E a análise poderia ser ainda mais refinada. Esta
a tirar proveito dos privilégios associados a esse mesmo mutação não é senão o resultado de uma decisão de
poder. O intérprete, pela exposição da sua presença física, distribuição de papéis que contraria o que canonicamente
pelas suas explosões vocais e pela desmesura dos seus se impôs como imperativo da idade para o par Gertrudes
gestos, confirma a hipótese de Brook. O corpo surge como – Cláudio. As implicações deste desfasamento dramatúrgico
garante de uma leitura renovada: a idade do intérprete, adquirem uma importância decisiva.
distinta em relação à idade textual e à tradição cénica, serve O desfasamento seduz porque enriquece a abordagem
de base de trabalho. O encenador procede àquilo a que do papel, sem outro contributo para além do corpo do actor.
poderíamos chamar um desfasamento dramatúrgico, assim Como no Avarento, encenado por Andrei Serban, em que
renovando a abordagem do texto. Apesar disso, poderá o Harpagão, interpretado por Gérard Giroudon, actor
actor representar tudo, independentemente da sua idade? nitidamente mais jovem do que dita a tradição, torna
Brook não acredita nisso e para a personagem de Lear pareceu- plausível quer o casamento previsto quer a violência das
lhe adequado ter um actor não necessariamente octogenário, paixões. É um Lear às avessas, mas que não pretende ver-se
sessenta e quatro

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Martin Benrath
e Gerd Voss
em Júlio César,
de Shakespeare,
enc. Peter Stein,
Salzburger Festspiele, 1992,
fot. Ruth Walz.
privado desse poder. Combate com a energia de um homem
ainda fisicamente poderoso. Os exemplos podem multiplicar-
se: mais recentemente, para Anatol, a personagem frívola
de Schnitzler, a presença de Carlo Brandt trouxe um segundo
plano ligado à idade, capaz de dar conta tanto das suas
derrotas como da efemeridade das suas vitórias. Luc Bondy,
ao atribuir o papel de Anatol a um actor muito jovem, recusa
esta dimensão trazida por Carlo Brandt e torna a personagem
banalmente plausível: falta-lhe o desfasamento dramatúrgico.
Desfasamento que, é evidente, não pode libertar-se
integralmente de certas determinações impostas pela idade,
salvo em casos excepcionais, quando a encenação aceita o
risco deliberado de as ignorar.
Os desfasamentos praticados pela encenação adquirem
uma força particular na medida em que ela própria instaura,
mais ou menos, o reino da proximidade, se não mesmo o
da coincidência. Esta escolha vê-se hoje ligeiramente
corrigida, após a descoberta de que há uma percepção
> “histórica” da idade, que em épocas diferentes definiu de
Carlo Brandt e outra maneira uma personagem e a sua condição. Sabemo-
Zabou Breitman lo agora, a idade didascálica não é suficiente, é preciso que
em Anatol, nos reportemos também a estudos sobre a duração da vida
de Arthur Schnitzler, numa época precisa, sobre a relação com a idade em meios
enc. Claude Bacqué, sociais mais particulares, sobre a imagem da idade, e ter
Théâtre de l’Athénée, 2003, tudo isto em conta. É errado não se ter em conta aquilo
fot. Pascal Victor. que podemos designar como desfasamento de percepção.
Não olhamos da mesma forma para um homem de cinquenta
anos do tempo de Molière ou dos dias de hoje! O seu corpo
também difere, pratica uma outra higiene física, tem de si
próprio uma outra percepção e projecta o corpo de forma
diferente. É por isso que certos encenadores procedem a
uma “correcção” que se acrescenta ao sonho da coincidência
das idades, textual e biográfica. Trata-se de proceder a uma
avaliação dramatúrgica a fim de apreciar e integrar este Conservatório que segue o seu percurso fora da escola. Os
desfasamento de percepção das idades. Deixamos, assim, antigos alunos, depois de terem estudado em conjunto,
de projectar sobre corpos estranhos a imagem das nossas reencontram-se num lugar ou numa equipa. É o seu passado
idades... Nós não somos contemporâneos dos heróis. Quem e a sua idade que os une. Nos dois casos, é sempre uma
era jovem, quem era velho no seu tempo? E hoje? unidade geracional que é mostrada.
O papel da escola será decisivo para esta abordagem.
A unidade geracional Confirmam-no os trabalhos de Liubimov, Fomenko ou
No teatro dos anos 60, um grupo abordou em conjunto Dodine, todos encenadores-pedagogos que, num momento
uma peça e foi a homogeneidade das suas idades que se ou noutro, fundaram a sua prática teatral na base das
impôs. Tratava-se de mostrar o envolvimento comunitário equipas constituídas durante o processo de ensino. O “culto
de uma equipa, mais do que dissociar identidades e ainda da juventude” que vão desenvolver está muitas vezes ligado
menos de as relacionar com os papéis. O Living Theatre a um grupo que se impõe em conjunto, de maneira “coral”:
encena Antígona sem nenhuma preocupação relativamente A boa alma, de Liubimov, nos anos 50, Gaudeamus, de
aos diferentes níveis etários, porque o objectivo era contar Dodine, em 1990, os espectáculos de Fomenko, ainda hoje.
em conjunto aquela história, para fazer dela uma aventura O “culto da juventude” ganha um sentido polémico sobre
partilhada. O mesmo aconteceu com Trilogia antiga, encenada os palcos russos, dominados por uma verdadeira
por Andrei Serban: de imediato se percebe a indiferenciação gerontocracia, dupla da gerontocracia cultivada pelo poder
da idade. Esta coerência resulta, desde logo, de uma eleição soviético. A frescura dos alunos saídos da escola opõe-se
recíproca dos jovens membros reunidos em volta de um à tradição do desfasamento entre idade textual e idade
projecto de sociedade e/ou de teatro. Eles pertencem a uma biográfica longamente preservada em Moscovo e noutros
mesma geração. Uma outra hipótese encontra-se na origem locais. O problema surge a partir do momento em que este
desta coerência. Ela é, muitas vezes, o resultado de uma “efeito geracional” é mimado, memória de uma idade inicial
experiência pedagógica partilhada: uma turma do da qual não nos queremos afastar. É o que ameaça o célebre
sessenta e cinco

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Antígona,
de Bertolt Brecht,
a partir de Sófocles,
enc. Julian Beck,
Living Theatre, 1967,
fot. Agence de
Presse Bernand.

>
As troianas,
a partir de Eurípides,
enc. Andrei Serban,
Bucareste, 1990,
fot. G. Delahaye.

espectáculo Gaudeamus criado há mais de dez anos e que >


ainda continua a ser representado. Os jovens de antigamente Minetti em Fausto,
acabam por “mimar” a sua energia de outrora. de Goethe,
Os encenadores-pedagogos cultivam bastante esta enc. Klaus-Michael Grüber,
prática. Em França, Vitez, que foi o seu principal defensor, Freie Volksbühne, 1982,
conheceu alguns dos seus sucessos mais significativos fot. Ruth Waltz.
justamente graças à continuação dos trabalhos com alunos
saídos das suas aulas. A célebre Tetralogia de Molière
permanece como a demonstração mais deslumbrante: trata-
se de uma companhia de jovens actores que assumem todos
os papéis e que, para além das diferenças, afirmam a sua
identidade comum. Vitez desejava, deste modo, referir-se
à companhia de Molière e à juventude dos seus membros. tal como a de um autor, explica-se muitas vezes por este
A mesma abordagem generaliza-se em alguém como dado inicial da equipa.
Fomenko que, nos seus espectáculos, procede constantemente
à deslocação das diversas idades das personagens em direcção Literalidade da passagem das idades
a uma idade única, “geracional”, da distribuição de papéis. É Alguns papéis, pouco numerosos, implicam uma evolução no
uma mutação global que tem consequências sobre a tempo, uma travessia de vários períodos que, no conjunto,
abordagem de um autor e da percepção que temos dele. Mais constituem uma biografia. O que fazer? Optar pela fusão de
do que um desfasamento dramatúrgico, trata-se aqui de uma vários estilos de representação – é preciso, então, resignar-se
renovação integral que afecta a imagem de uma obra na sua a “compor” –, ou proceder a uma desmultiplicação dos
totalidade. (Em Fomenko, à força da repetição, esta prática intérpretes, de modo a que cada um deles represente uma
torna-se sistemática e por vezes perturba. Pode representar- diferente “idade” da personagem. Stein, para marcar fisicamente
se todo o repertório do mundo com uma turma do a evolução de Peer Gynt, utiliza cinco actores; Stéphane
Conservatório. Nivelam-se, deste modo, as diferenças de idade Braunschweig, dois. Na sua recente encenação de Fausto, Peter
em proveito de uma juventude eterna!) Stein distribui o papel de Fausto por dois actores, um jovem
Nos últimos tempos, o recurso a uma “unidade de trinta e pouco anos e um outro já sexagenário, para distinguir
geracional” explica-se sobretudo por motivos ligados à explicitamente, graças às suas diferenças físicas, as duas
contaminação do teatro por exigências coreográficas. Elas identidades da personagem de Goethe. Isto participa dessa
reclamam aptidões físicas e uma energia que conduzem devoção à coincidência entre a idade biográfica e a idade textual
alguns encenadores como Eric Lacascade a privilegiar a da personagem num dado momento do seu percurso. Maurizio
juventude dos intérpretes. É uma estética, tanto a sua como Scaparo, para As memórias de Goldoni, faz a personagem do
a de Stanislas Nordey, também ele dominado pela referência escritor ser representada primeiro por um actor jovem e, depois,
à dança, que reclama a homogeneidade da idade. por um actor mais velho. Sotiguy Kouyaté, para a representação
O princípio da unidade geracional permanece indissociável integral do ciclo de Édipo, começa por utilizar um jovem
da constituição de um grupo ou da persistência de uma intérprete, capaz de tornar plausível a sua relação com Jocasta,
turma de alunos. Trata-se sempre de um requisito que para, em seguida, aquando da passagem a Édipo em Colono,
ultrapassa a leitura da obra. Pelo contrário, a sua escolha, representar ele mesmo, actor de idade, assinalando o
sessenta e seis

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Gaudeamus,
a partir de Batalhões
de construção,
de Serguei Valadine,
enc. Lev Dodine,
Teatro Maly
de S. Petersburgo,
representação em Bobigny,
1992,
fot. Philippe Coqueux.

encerramento do ciclo trágico. Numa peça contemporânea, desta vez, Incêndios,


o autor libanês Wajdi Mouwad utiliza três actrizes, para chamar a atenção para
o percurso trágico de uma mãe violada, espoliada das suas crianças, a quem
chamam a “mulher que canta”. E não é que termina o espectáculo com as três
intérpretes reunidas, que em conjunto reconstituem o percurso temporal da
personagem? De uma certa maneira, em cada um destes exemplos, pretende-se
estabelecer uma relação plausível entre a idade textual do papel e a idade biográfica
do actor, com o apoio de uma solução de encenação. Para recuperar a expressão
“literal” do envelhecimento procede-se a uma sucessão de perfeitas
“correspondências” biográficas. Encena-se, deste modo, a passagem das idades,
essas “peles” das quais Peer Gynt se desembaraça ao longo de toda uma biografia.
Dois princípios distintos comandam esta prática: por um lado, o princípio
do verosímil, obtido graças à assimilação idade do actor / idade da personagem
e, por outro, o da construção “teatral”, que estilhaça a unidade física do papel
em proveito de uma distribuição múltipla de papéis. É o próprio estatuto do
teatro que encontramos deste modo: o verdadeiro / falso está em marcha.

A idade e a imagem mental do actor


Também o actor, através da sua biografia, segue um percurso em “estações”. E ele
tenta, frequentemente, retardar o máximo possível a passagem de uma para outra,
porque deseja prolongar a sua manutenção numa categoria de papéis que considera
ainda conformes à sua idade. Nada Strancar confessava querer “resistir o máximo”,
porque para um actor não só os ponteiros do relógio não andam para atrás, como
também os papéis já interpretados não voltam a ser-lhe distribuídos. Este pânico
imobiliza a transição e alguns actores tornam-se prisioneiros de uma “imagem
mental” que não é, certamente, uma função unicamente da idade, mas onde esta
intervém com um coeficiente importante. A “imagem mental” paralisa um actor.
Cabe ao encenador manipulá-la, quebrá-la, a fim de, talvez, engendrar um novo
actor, fruto desse doloroso combate. Veja-se o caso de Hughes de Quester: ele impõe-
se n’ A disputa, de Chéreau, ou n’ A gaivota, de Pintillé, para se imobilizar de seguida
numa espécie de “juventude” cada vez mais suspeita. Será preciso que Emmanuel
Demarcy-Motta o distribua explicitamente no papel do Pai de Seis personagens à
procura de um autor e desloque o seu jogo de representação para uma outra idade,
para que Quester ressuscite artisticamente. “Não voltes a tentar fazer de jovem entre
os jovens, nunca o conseguirás”, repetia-lhe incessantemente o encenador. O actor
muda de silhueta e assume o seu peso, um chapéu esconde o seu esforço desesperado
para dissimular uma calvície evidente, o andar modifica-se. Deste modo, uma vez
ultrapassada a “imagem mental”, o actor adquire uma verdade nova. Renascimento
do actor resultante de um acordo com a idade.
sessenta e sete

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Madeleine Renaud
em Dias felizes,
de Samuel Beckett,
enc. Roger Blin,
Compagnie
Renaud-Barrault, 1969,
fot. John Haynes.

Uma actriz romena, Ioana Craciunescu, incarnou durante momento do seu percurso. Algo que, durante algum tempo,
anos em Bucareste a imagem da mulher sedutora, da mulher funciona como uma ajuda, para, mais tarde, se converter num
“europeia” que, nas suas aparições, deixava supor que vinha obstáculo que alguns actores, com a ajuda dos encenadores,
sempre de um outro lugar. Ela exibia uma outra cultura do acabam por conseguir ultrapassar.
corpo, distinta da nativa, e, confortavelmente, os encenadores
cultivaram essa “imagem mental” que há muito deixara de A idade como “facto da memória”
se justificar. Foi preciso que uma mulher encenadora tomasse O trabalho sobre as idades conduz a uma outra abordagem:
consciência das mutações físicas da actriz e lhe atribuísse o o desfasamento que consiste em deslocar a distribuição de
papel da mãe em Rosa tatuada, de Tennessee Williams, para papéis para uma idade avançada. Deste modo, Vitez, que foi
que se assistisse à sua renovação. O encenador, nestes casos, o primeiro a representar Racine com actores muito jovens,
coloca-se na origem de uma transposição necessária, que o próximos da idade textual, ensaiou, mais tarde, uma reviravolta
actor sozinho é incapaz de realizar. completa: refazer todo o Racine com actores muito velhos! Ele
Um outro exemplo, mais complexo. Para o seu Hamlet, desejava reabilitar assim a antiga convenção indiferente à
K. Warlikowski atribui Gertrudes a uma actriz rechonchuda, concordância entre idade textual e idade biográfica. Convenção
idosa, “antiga beldade”. O espectador francês não pode tratada, esclareça-se, como “facto da memória”: devemos
senão ficar surpreendido, transtornado mesmo, com esta reencontrar já não “o verídico”, mas a lembrança “imaginária”
aparição tão deliberadamente grotesca. Na realidade, nesta dos tempos volvidos. Luca Ronconi, para surpresa geral, assinará
actriz, o espectador polaco reconhece aquela que foi em uma encenação de Três irmãs, de Tchekov, em que as três irmãs
tempos um verdadeiro ícone da jovem deslumbrante. são interpretadas por actrizes idosas, tal como antes acontecera
Warlikowski trabalha, assim, com a sua “imagem pública”, no Teatro de Arte de Moscovo. Também aqui se trata de uma
legível num país e não noutro. O espectador é, então, abordagem mnemónica.
convidado a avaliar os efeitos do tempo sobre o corpo de O encenador pode utilizar o velho actor como um facto
um actor e sobre a melhor maneira de lhe conceder uma da memória, memória do palco, atribuir-lhe um papel em nome
“dimensão” dramatúrgica, porque, ao atribuir este papel a da “imagem pública” construída através dos tempos. O actor
esta actriz, Warlikowski dava as suas indicações de leitura velho é assim mais do que um intérprete e é desse modo que
sobre a própria personagem de Gertrudes. o encenador o trata. Klaus Michael Grüber, quando monta o
Poderíamos fazer intervir a distinção, aqui pertinente, seu Fausto com Minetti no papel do protagonista, procede à
que Jouvet estabeleceu entre “comediante” e “actor”. No assimilação do sábio que envelheceu na sua biblioteca e do
caso do “comediante”, a passagem dos anos é menos visível, actor que atravessou cinquenta anos da história do teatro
ele assegura-a com mais desembaraço, enquanto que, pelo alemão. O mesmo estatuto tinha Madeleine Renaud n’ Os dias
contrário, para o “actor”, a idade pode trazer um excesso felizes: ela era o rosto de uma memória em acção. Na Roménia,
de presença ou tornar-se, noutras circunstâncias, uma Lucia Sturdza-Bulandra, que continuava a representar aos 90
desvantagem. Este sofre mais a experiência do tempo e anos, incarnava em si própria uma parte da história do teatro.
torna-a perceptível. Se o “comediante” representa, quase E era isso mesmo que o público se precipitava para ver. E, em
brechtianamente, na “terceira pessoa”, o “actor” representa Paris, quando Maria Casarés, célebre actriz do teatro e do
na “primeira pessoa”. A sua implicação biográfica é de uma cinema, regressa após uma longa ausência, é-lhe confiada a
outra natureza, não somente técnica, mas também existencial. representação, n’O conto de Inverno, do monólogo do Tempo.
Isto torna-o talvez menos flexível e, por isso, obrigatoriamente Ela era o Tempo. O actor idoso adquire o estatuto de um “facto
dependente da “imagem mental” elaborada num certo da memória” baseado numa “história” pessoal que ele incarna
sessenta e oito

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Arlequim servidor
de dois amos,
de Carlo Goldoni,
enc. Giorgio Strehler,
Piccolo Teatro de Milão,
1977,
fot. David Salle.

e que o público reconhece nele. Sem esse saber partilhado entre o palco e a sala,
só a sua velhice é perceptível. O actor idoso como “facto da memória” permanece
um “facto local”. Como saber de outro modo que a intérprete escolhida por
Heiner Müller para representar Madame de Merteuil em Quartett era uma antiga
personalidade do teatro hitleriano? O calafrio experimentado por um espectador
alemão era estranho ao público parisiense.
No Oriente, há um verdadeiro culto do actor idoso. Ele incarna tanto uma
memória como uma progressão da sua arte. “Ele vai morrer em breve, ele é
verdadeiramente grande”, diz-se. Isto supõe a aquisição de uma técnica e
simultaneamente a sua ultrapassagem, o seu esquecimento. O actor idoso está
“para além da técnica” e atinge as virtudes derradeiras do anonimato. Termo
derradeiro da memória.

O espelho das idades


Hoje em dia, são muitos os que procuram encontrar a beleza de um palco capaz de
reunir o arco-íris das idades, o palco como imagem da vida e dos seus contrastes.
Isto produz variedade e complexidade, assegura a circulação e o diálogo, porque a
própria vida é feita desta multiplicidade que poderíamos qualificar de “shakespeariana”.
Esta conjugação das idades impõe-se como uma resposta à institucionalização do
“culto da juventude”, por vezes abusivamente praticado. O palco é então o espelho
do Homem. Como numa alegoria medieval ou num monólogo de Jacques, o melancólico,
ele reúne todas as idades. De resto, esta reunião das idades pode parecer por vezes
uma confissão de filiação: o encenador escolhe actores de idades diversas que
correspondem ao seu próprio percurso. Ele reúne no palco, não explicitamente, uma
espécie de auto-retrato secreto. Poucos são aqueles que o conseguem detectar, mas
o encenador e a equipa sabem-no: isso une-os.
Relembremos, para encerrar esta reflexão, o espectáculo Arlequim, servidor
de dois amos, apresentado há uns anos na Ópera de Paris: o equilíbrio da
companhia, o ritmo, tudo nos remetia para a obra prima de Strehler. Mas só no
momento dos agradecimentos, quando os actores tiraram as máscaras, reconhecemos,
entre os alunos da escola do Piccolo, Ferruccio Soleri, o intérprete histórico de
Arlequim: o homem velho e os seus jovens parceiros.
E, para finalizar, um último exemplo, verdadeira alegorização das idades.
O grande mestre Kazuo Ohno em Argentina. O velho bailarino dança a memória
do jovem que ele foi quando experimentou o deslumbramento de uma mulher em
plena posse da sua arte. Num só corpo, três idades.

Tradução de Marta Brites Rosa.

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