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O PROBLEMA MENTE-CORPO

Jerry Alan Fodor


(1935-2017)
(Rutgers University)

Original: FODOR, J.A. (1981), “The mind-body problem”, Scientific American 244(1): 124-32, 148
(janeiro).

Disponível online em:


http://philosophyfaculty.ucsd.edu/faculty/rarneson/Courses/fodorphil1.pdf

O presente texto é uma reimpressão, com pequenas modificações, da tradução feita por Saulo de
Freitas Araujo (Universidade Federal de Juiz de Fora), disponível no sítio Filosofia da Mente no
Brasil: http://www.filosofiadamente.org/images/stories/textos/fodor.doc .

As páginas indicadas no centro do rodapé e as figuras correspondem ao original em inglês (cada


página do original cobre duas ou três páginas da tradução, que são distinguidas por “a”, “b” e “c”).
Uma numeração corrida da presente versão é apresentada à direita no rodapé, entre colchetes: [1]...

Reimpressão preparada por Osvaldo Pessoa Jr. para a disciplina


TCFC3 – Filosofia das Ciências Neurais, FFLCH-USP, São Paulo, 2014.
O Problema Mente-Corpo
Seria possível as máquinas de calcular sentirem dor, os marcianos terem expectativas e os
espíritos desencarnados pensarem? A moderna abordagem funcionalista na psicologia
levanta a possibilidade lógica de isso acontecer.

por Jerry A. Fodor

moderna filosofia da ciência tem se [ou comportamentalistas], afirmam que toda

A dedicado, em grande parte, à descrição


formal e sistemática das práticas bem
sucedidas dos cientistas. O filósofo não tenta
discussão sobre causas mentais pode ser
eliminada da linguagem da psicologia e subs-
tituída pela discussão dos estímulos ambien-
ditar como a investigação e os argumentos tais e das respostas comportamentais. Outros
científicos devem ser conduzidos. Ao invés materialistas, os teóricos da identidade,
disso, ele procura enumerar os princípios e defendem a existência de causas mentais e a
práticas que têm contribuído para a boa identidade dessas com eventos neurofisio-
ciência. A análise tem ajudado a tornar mais lógicos no cérebro.
evidente a natureza da confirmação, a estru- Nos últimos 15 anos, surgiu uma filosofia
tura lógica das teorias científicas, as proprie- da mente chamada de funcionalismo. Essa
dades formais dos enunciados que expressam filosofia, que não é nem dualista nem
leis e a questão da existência real das materialista, é o resultado de uma reflexão
entidades teóricas. filosófica sobre os desenvolvimentos da
Só muito recentemente é que os filósofos inteligência artificial, da teoria computa-
começaram a se interessar seriamente pelos cional, da linguística, da cibernética e da
princípios metodológicos da psicologia. As psicologia. Todos esses campos, conhecidos
explicações psicológicas do comportamento coletivamente como as ciências cognitivas,
referem-se, de maneira ampla, à mente e aos possuem em comum um certo nível de
seus estados, operações e processos. A abstração e uma preocupação com sistemas e
dificuldade filosófica surge quando procura- processos de informação. O funcionalismo,
mos determinar, em uma linguagem não que é uma tentativa de fornecer uma
ambígua, o que essas referências implicam. explicação filosófica desse nível de abstração,
As filosofias tradicionais da mente podem reconhece a possibilidade de sistemas tão
ser divididas em duas grandes categorias: as diversos como os seres humanos, as máquinas
teorias dualistas e as teorias materialistas. de calcular e os espíritos desencarnados
Segundo a abordagem dualista, a mente é uma poderem ter estados mentais. Segundo a visão
substância não-física. Para as teorias funcionalista, a psicologia de um sistema não
materialistas, o mental não é diferente do depende da matéria a partir da qual ela é feita
físico; na verdade, todos os estados, proprie- (células vivas, energia mental ou espiritual),
dades, operações e processos mentais são, em mas sim do modo como ela é arranjada.
princípio, idênticos a estados, propriedades, ‘Funcionalismo’ é um conceito difícil e uma
operações e processos físicos. Alguns das maneiras de entendê-lo é rever as
materialistas, conhecidos como behavioristas deficiências das filosofias dualistas e
materialistas que ele pretende substituir.

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O principal inconveniente do dualismo é o um organismo como sendo suas respostas
seu fracasso em explicar adequadamente a observáveis a estímulos, que seriam as
causação mental. Se a mente é não-física, ela verdadeiras causas do comportamento. Nos
não ocupa posição no espaço físico. Como, 30 anos posteriores, psicólogos como B.F.
então, pode uma causa mental provocar um Skinner, da Harvard University, desenvol-
efeito comportamental que tem uma posição veram as ideias de Watson, construindo uma
no espaço? Em outras palavras, como pode o elaborada visão de mundo, na qual o papel da
não-físico dar origem ao físico, sem violar as psicologia seria catalogar as leis que
leis da conservação de massa, de energia e do determinam as relações causais entre
momentum? estímulos e respostas. Segundo essa visão do
“behaviorismo radical”, o problema de

O dualista poderia responder que o


problema de como uma substância
explicar a natureza da interação mente-corpo
desaparece, uma vez que tal interação não
imaterial pode causar eventos físicos não é existe.
mais obscuro do que o problema de como um O behaviorismo radical sempre soou um
evento físico pode causar outro. Entretanto, pouco paradoxal. A ideia de causação mental
há uma diferença importante: existem muitos está profundamente arraigada em nossa
casos evidentes de causação física, mas linguagem cotidiana e na maneira pela qual
nenhum caso evidente de causação não-física. nós compreendemos nossos companheiros e a
A interação física é algo com que os filósofos, nós mesmos. As pessoas, por exemplo,
como todas as outras pessoas, têm que atribuem normalmente o comportamento a
conviver. A interação não-física, por outro crenças, ao conhecimento e a expectativas.
lado, pode ser apenas um artefato [efeito Brown coloca gasolina no tanque de seu carro
espúrio] da concepção imaterialista do porque ele acredita que o carro não andará
mental. Hoje em dia, a maioria dos filósofos sem ela. Jones escreve “achieve” ao invés de
concorda que nenhum argumento demonstrou “acheive” porque ele conhece a regra de
com sucesso por que a causação mente-corpo colocar o “i” antes do “e”. Mesmo quando
não deve ser considerada como uma espécie uma resposta comportamental está intima-
de causação física. mente relacionada a um estímulo ambiental,
O dualismo é incompatível também com os processos mentais frequentemente
as práticas dos psicólogos. O psicólogo aplica intervêm. Smith carrega um guarda chuva
frequentemente os métodos experimentais das porque o céu está nublado. O tempo, porém, é
ciências físicas ao estudo da mente. Se os apenas uma parte da estória. Aparentemente,
processos mentais fossem de um tipo existem também conexões mentais na cadeia
diferente dos processos físicos, não haveria causal: observação e expectativa. As nuvens
razão para esperar que esses métodos afetam o comportamento de Smith apenas
funcionassem no domínio do mental. Para porque ele as observa e porque elas o
justificar seus métodos experimentais, muitos induzem a uma expectativa de chuva.
psicólogos procuraram uma alternativa ao Os apelos a tais casos não afetam o
dualismo. behaviorista radical. Ele dispensa referências
Na década de 20, John B. Watson, da John a causas mentais, por mais plausível que
Hopkins University, fez a sugestão radical de possam parecer, considerando-as um resíduo
que o comportamento não tem causas de crenças ultrapassadas. Os behavioristas
mentais. Ele considerou o comportamento de

p. 125 (a)
radicais fazem a previsão de que à medida behaviorismo radical porque ele parecia ser a
que os psicólogos forem alcançando um única alternativa em termos de uma filosofia
maior entendimento sobre as relações entre materialista da mente. A escolha, como eles a
estímulos e respostas, eles reconhecerão a entendiam, era entre o behaviorismo radical e
enorme possibilidade de se explicar o fantasmas.
comportamento sem que sejam postuladas
causas mentais.
O mais forte argumento contra o Nocomeçaram
início dos anos 60, os filósofos
a duvidar que o dualismo e o
behaviorismo é que a psicologia não seguiu behaviorismo radical seriam as únicas
esse caminho, mas exatamente o oposto. À abordagens possíveis na filosofia da mente. Já
medida que a psicologia vem amadurecendo, que ambas as teorias não pareciam atraentes,
a estrutura de estados e processos mentais a estratégia correta poderia ser o
aparentemente necessária para explicar as desenvolvimento de uma filosofia materialista
observações experimentais vem se tornando da mente que aceitasse, entretanto, causas
cada vez mais elaborada. Particularmente no mentais. Assim, surgiram duas novas
caso do comportamento humano, as teorias filosofias da mente, a saber, o behaviorismo
psicológicas que satisfazem os princípios lógico e a teoria da identidade.
metodológicos do behaviorismo radical têm O behaviorismo lógico é uma teoria
se mostrado em grande parte estéreis, como semântica sobre o significado dos termos
seria de se esperar, caso os processos mentais mentalistas. Sua ideia básica é que atribuir um
postulados sejam reais e causalmente efetivos. estado mental (digamos, sede) a um
Muitos filósofos foram inicialmente organismo é o mesmo que dizer que o
atraídos para o behaviorismo radical porque, organismo está disposto a se comportar de um
apesar dos paradoxos e de todas as determinado modo (por exemplo, beber, se
dificuldades, ele parecia melhor do que o houver água disponível). De acordo com esse
dualismo. Uma vez que uma psicologia ponto de vista, toda atribuição mental é
comprometida com substâncias imateriais era semanticamente equivalente a um enunciado
inaceitável, os filósofos viraram-se para o do tipo “se-então” (denominada hipotético

O DUALISMO é a filosofia da mente que considera a mente como uma substância não-física. Ele
divide tudo o que há no mundo em duas categorias distintas: o mental e o físico. A principal
dificuldade do dualismo é o seu fracasso em dar conta adequadamente da interação causal entre o
mental e o físico. Não é evidente como uma mente não-física poderia gerar qualquer efeito físico sem
violar as leis de conservação de massa, energia e momentum.

p. 125 (a) [3]


comportamental), que expressa uma disposi- manifestação de uma disposição comporta-
ção comportamental. Por exemplo, o mental. Mais precisamente, a causação mental
enunciado “Smith está com sede” poderia ser é o que acontece quando um organismo tem
considerado equivalente ao enunciado uma disposição comportamental e a oração
disposicional “Se houvesse água disponível, iniciada pelo “se” do hipotético comporta-
então Smith beberia um pouco”. Por mental, que expressa uma disposição, é
definição, um hipotético comportamental não verdadeira. Por exemplo, o enunciado causal
inclui termos mentalistas. A oração iniciada “Smith bebeu um pouco d’água porque ele
pelo “se” do hipotético refere-se apenas a estava com sede” poderia ser considerado
estímulos e a oração iniciada pelo “então” faz semanticamente equivalente ao enunciado “Se
referência somente a respostas comporta- houvesse água disponível, então Smith
mentais. Uma vez que os estímulos e as beberia um pouco, e havia água disponível”.
respostas são eventos físicos, o behaviorismo De certa forma, eu simplifiquei muito o
lógico é um tipo de materialismo. behaviorismo lógico, ao assumir que toda
A força do behaviorismo lógico reside no atribuição mental pode ser traduzida por um
fato de que a tradução da linguagem único hipotético comportamental. Na verdade,
mentalista para a linguagem de estímulos e o behaviorista lógico afirma frequentemente
respostas fornece uma interpretação daquelas que seria necessário um conjunto aberto
explicações psicológicas em que os efeitos (talvez um conjunto infinito) de hipotéticos
comportamentais são atribuídos a causas comportamentais para indicar a disposição
mentais. A causação mental é simplesmente a comportamental expressa por um termo

O BEHAVIORISMO RADICAL é a filosofia da mente que nega a existência da mente e de estados,


propriedades, processos e operações mentais. O behaviorista radical acredita que o comportamento
não tem causas mentais. Ele considera que o comportamento de um organismo são suas respostas a
estímulos. O papel da psicologia é catalogar as relações entre estímulos e respostas.

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mentalista. A atribuição mental “Smith está frágil” é frequentemente considerada equi-
com sede” poderia também ser satisfeita pelo valente a algo do tipo “Se o copo sofresse
hipotético “Se houvesse suco de laranja alguma batida, então ele quebraria”. Do
disponível, então Smith beberia um pouco” e mesmo modo, a análise da causação mental
também por vários outros hipotéticos. Em feita pelos behavioristas lógicos é similar à
todo caso, o behaviorista lógico normalmente análise tradicional de um tipo de causação
não afirma que ele pode realmente enumerar física. O enunciado causal “O copo quebrou
todos os hipotéticos que correspondem a uma porque era frágil” é considerado equivalente a
disposição comportamental expressa por um algo do tipo “Se o copo sofresse alguma
termo mentalista. Ele apenas insiste que batida, então ele quebraria, e o copo sofreu
qualquer termo mentalista pode ser traduzido uma batida”.
por hipotéticos comportamentais. Ao identificar termos mentalistas com
disposições comportamentais, o behaviorista
modo pelo qual o behaviorista lógico tem lógico colocou os termos mentalistas no
Ointerpretado um termo mentalista – como, mesmo patamar das disposições não-
por exemplo, sede – baseia-se na maneira pela comportamentais das ciências físicas. Trata-se
qual muitos filósofos têm interpretado uma de uma mudança promissora porque a análise
disposição física, como, por exemplo, das disposições não-comportamentais repousa
fragilidade. A disposição física “O copo é sobre uma base filosófica relativamente

O BEHAVIORISMO LÓGICO é uma tese semântica sobre o que termos mentais significam. O
behaviorista lógico defende que termos mentais exprimem disposições comportamentais. Considere o
estado mental de estar com sede (thirst). O behaviorista lógico defende que a sentença “Smith está com
sede” pode ser tomado como sendo equivalente em significado a um enunciado disposicional “Se
houvesse água disponível, então Smith a beberia”. A força do behaviorismo lógico é que ele fornece um
relato da causação mental: a realização de uma disposição comportamental. Por exemplo, o enunciado
causal “Smith bebeu um pouco de água porque estava com sede” pode ser tomado como significando
“Se houvesse água disponível, então Smith a beberia, e havia água disponível”.

p. 126 (a) [5]


sólida. Uma explicação que atribui a quebra psicológicas que postule processos mentais:
de um copo à sua fragilidade é certamente sequências causais de eventos mentais. E é
algo que mesmo o materialista mais fiel pode exatamente essa interpretação que o
aceitar. Ao argumentar que os termos behaviorismo lógico não consegue fornecer.
mentalistas são sinônimos dos termos Tais considerações revelam uma
disposicionais, o behaviorista lógico fornece semelhança fundamental entre o
algo que o behaviorista radical não conseguiu, behaviorismo lógico e o behaviorismo radical.
a saber, uma explicação materialista da É bem verdade que o behaviorista lógico,
causação mental. diferentemente do behaviorista radical,
Em que pese tudo isso, a analogia feita reconhece a existência de estados mentais.
pelo behaviorista lógico entre a causação Entretanto, uma vez que o princípio
mental e a causação física só vai até aqui. O subjacente ao behaviorismo lógico é que as
behaviorista lógico trata a manifestação de referências a estados mentais, presentes nas
uma disposição como a única forma de explicações psicológicas, podem ser
causação mental, enquanto as ciências físicas traduzidas por hipotéticos comportamentais,
reconhecem outras formas de causação. Há o toda a discussão sobre estados e processos
tipo de causação em que um evento físico mentais torna-se, num certo sentido,
causa outro, como no caso da quebra do copo heurística. Os únicos fatos com os quais o
ser atribuída a uma batida por ele sofrida. De behaviorista está realmente comprometido são
fato, as explicações que envolvem a causação aqueles que dizem respeito a relações entre
entre eventos são presumivelmente mais estímulos e respostas. Nesse sentido, o
básicas do que as explicações disposicionais behaviorismo lógico é apenas uma versão
porque a manifestação de uma disposição (a semântica do behaviorismo radical. Embora o
quebra de um copo frágil) envolve sempre a primeiro ofereça uma interpretação da
causação entre eventos, e não vice-versa. No causação mental, a interpretação é
domínio do mental, muitos exemplos de pickwickiana [não usual]. Aquilo que de fato
causação entre eventos referem-se a um não existe, não pode causar nada. E o
estado mental causando outro. Para esse tipo behaviorista lógico, assim como o
de causação, porém, o behaviorista lógico não behaviorista radical, acredita firmemente que
fornece nenhuma análise. Como resultado, ele não existem causas mentais.
se vê obrigado a assumir a suposição tácita e
implausível de que a psicologia requer uma
noção de causação menos robusta do que Uma outra teoria materialista da mente, que
se apresenta como alternativa ao
requerem as ciências físicas. behaviorismo lógico, é a teoria da identidade.
A causação entre eventos parece ser De acordo com essa teoria, os eventos,
realmente bastante comum no domínio do estados e processos mentais são idênticos a
mental. As causas mentais ocasionam efeitos eventos neurofisiológicos no cérebro, e a
comportamentais em virtude de sua interação propriedade de estar em um certo estado
com outras causas mentais. Por exemplo, ter mental (tal como ter uma dor de cabeça ou
uma dor de cabeça causa uma disposição de acreditar que irá chover) é idêntica à
tomar aspirina apenas se houver também o propriedade de estar em um certo estado
desejo de ficar livre da dor de cabeça, a neurofisiológico. A partir disso, é fácil
crença de que a aspirina existe, a crença de compreender a ideia de que um efeito
que tomar aspirina reduz a dor de cabeça, e comportamental poderia, algumas vezes, ter
assim por diante. Uma vez que os estados uma cadeia de causas mentais. Isso acontecerá
mentais interagem para gerar o sempre que um efeito comportamental
comportamento, será necessário encontrar depender da sequência apropriada de eventos
uma interpretação das explicações neurofisiológicos.

p. 126 (b) [6]


A teoria da identidade do estado central A teoria da identidade fornece uma
reconhece a possibilidade de as causas explicação satisfatória do problema da
mentais interagirem causalmente sem gerarem referência dos termos mentalistas presentes
qualquer efeito comportamental, como, por nas explicações psicológicas e, assim, tem a
exemplo, quando uma pessoa pensa por um aceitação dos psicólogos que estão
momento sobre o que ela deveria fazer e insatisfeitos com o behaviorismo. O behavio-
então decide não fazer nada. Se os processos rista sustenta que os termos mentalistas não se
mentais são neurofisiológicos, eles devem ter referem a nada ou que eles referem-se aos
as propriedades causais dos processos parâmetros das relações estímulo-resposta.
neurofisiológicos. Já que esses últimos são Em ambos os casos, a existência das
presumivelmente processos físicos, a teoria da entidades mentais é simplesmente ilusória. O
identidade assegura que o conceito de teórico da identidade, por outro lado,
causação mental é tão rico quanto o conceito argumenta que os termos mentalistas referem-
de causação física. se a estados neurofisiológicos. Sendo assim,

A TEORIA DA IDENTIDADE DE ESTADO CENTRAL é a filosofia da mente que iguala eventos,


estados e processos mentais com eventos neurofisiológicos. A propriedade de estar em um dado estado
mental seria idêntica à propriedade de estar em um dado estado neurofisiológico.

p. 127 (a) [7]


ele pode assumir seriamente o projeto de força quanto em termos de plausibilidade. O
explicar o comportamento fazendo apelo às fisicalismo de eventos sustenta apenas que
suas causas mentais. todos os particulares mentais que calharam de
A principal vantagem da teoria da existir são neurofisiológicos, enquanto que o
identidade é que ela interpreta os construtos fisicalismo de tipos faz a asserção mais
explicativos da psicologia ao pé da letra, algo arrebatadora de que todos os particulares
que certamente toda filosofia da mente mentais possivelmente existentes são
deveria, se possível, fazer. A teoria da neurofisiológicos. O fisicalismo de eventos
identidade mostra como as explicações não descarta a possibilidade lógica de
mentalistas da psicologia poderiam deixar de máquinas e espíritos desencarnados terem
ter um sentido meramente heurístico, propriedades mentais. O fisicalismo de tipos
tornando-se um relato literal da história causal rejeita essa possibilidade porque nem as
do comportamento. Além disso, uma vez que máquinas e nem os espíritos possuem
a teoria da identidade não é uma tese neurônios.
semântica, ela é imune a muitos argumentos
que colocam o behaviorismo lógico em fisicalismo de tipos não é uma doutrina
dúvida. Um inconveniente do behaviorismo Oplausível sobre as propriedades mentais,
lógico é que a observação “John tem uma dor ainda que o fisicalismo de eventos esteja certo
de cabeça” não parece significar a mesma sobre os particulares mentais. O problema
coisa que o enunciado “John está disposto a com o fisicalismo de tipos é que a
se comportar de tal e tal modo”. O teórico da constituição psicológica de um sistema parece
identidade, contudo, pode conviver com o depender não de seu hardware, ou seja, sua
fato de que os enunciados “John tem uma dor composição física, mas sim de seu software,
de cabeça” e “John está em tal e tal estado isto é, seu programa. Por que o filósofo
cerebral” não são sinônimos. A asserção do deveria rejeitar a possibilidade de marcianos
teórico da identidade não é que esses constituídos de silício sentirem dor, desde que
enunciados significam a mesma coisa, mas o silício esteja adequadamente organizado? E
apenas que eles são considerados verdadeiros por que o filósofo deveria eliminar a
(ou falsos) pelos mesmos fenômenos possibilidade de máquinas terem crenças,
neurofisiológicos. desde que as máquinas estejam corretamente
A teoria da identidade pode ser programadas? Se é logicamente possível que
considerada ou como uma doutrina sobre marcianos e máquinas possam ter proprie-
particulares mentais (a dor atual de John ou o dades mentais, então estas últimas não podem
medo que Bill tem de animais) ou como uma ser idênticas a processos neurofisiológicos,
doutrina sobre universais mentais, ou independentemente do quanto estes possam
propriedades (ter uma dor ou ter medo de ser co-extensivos àquelas.
animais). As duas doutrinas, denominadas, O que tudo isso revela é que parece haver
respectivamente, fisicalismo de eventos [ou um nível de abstração, no qual as
de ocorrência, instância, espécime; token generalizações da psicologia encaixam-se
physicalism] e fisicalismo de tipos [type mais naturalmente. Esse nível de abstração
physicalism], diferem tanto em termos de

p. 127 (b) [8]


ignora as diferenças na composição física dos diz respeito ao caráter relacional das
sistemas aos quais as generalizações propriedades mentais. O funcionalismo
psicológicas se aplicam. Pelo menos nas aparentemente conseguiu resolver o dilema.
ciências cognitivas, o domínio natural da Ao enfatizar a distinção que a ciência da
teorização psicológica parece incluir todos os computação traça entre o hardware e o
sistemas que processam informação. O software, o funcionalista pode dar sentido
problema com o fisicalismo de tipos é que há tanto ao caráter causal quanto ao caráter
possíveis sistemas de processamento de relacional do mental.
informação com a mesma constituição A intuição por trás do funcionalismo é que
psicológica dos seres humanos, mas com uma o que determina o tipo psicológico ao qual um
organização física diferente. Em princípio, particular mental pertence é o papel causal do
todos os tipos de coisas fisicamente diferentes particular na vida mental do organismo.
poderiam ter o software humano. Individuação funcional é diferenciação com
Essa situação exige uma explicação respeito ao papel causal. Uma dor de cabeça,
relacional das propriedades mentais que por exemplo, é identificada com o tipo de
abstraiam-nas da estrutura física de seus estado mental que, entre outras coisas, causa
portadores. Em que pese as objeções que eu uma disposição para tomar aspirina em
apresentei anteriormente ao behaviorismo pessoas que acreditam que a aspirina alivia
lógico, ele estava pelo menos no caminho uma dor de cabeça, causa um desejo de se
certo, ao oferecer uma interpretação livrar da dor que se está sentindo,
relacional das propriedades mentais: ter uma frequentemente causa alguém que fala
dor de cabeça é estar disposto a exibir um português a dizer coisas como “Estou com dor
certo padrão de relações entre os estímulos de cabeça”, e surge a partir de excesso de
que se encontram e as respostas que se trabalho, fadiga ocular e tensão. Esta lista
exibem. Entretanto, se ter uma dor de cabeça presumivelmente não está completa. Mais
for isso mesmo, não há razão, em princípio, será conhecido sobre a natureza de uma dor
para que apenas as cabeças que são de cabeça, à medida que pesquisas em
fisicamente semelhantes às nossas possam psicologia e fisiologia descobrirem mais sobre
doer. De fato, de acordo com o behaviorismo o seu papel causal.
lógico, é uma verdade necessária que
qualquer sistema que tenha nossas funcionalismo elabora o conceito de
contingências estímulo-resposta também O‘papel causal’ de um modo tal que um
tenha nossas dores de cabeça. estado mental pode ser definido por suas
Tudo isso surgiu há 10 ou 15 anos atrás relações causais com outros estados mentais.
[meados dos anos 1960], como um sério Nesse sentido, o funcionalismo é
dilema para o programa materialista na completamente diferente do behaviorismo
filosofia da mente. Por um lado, o teórico da lógico. Outra grande diferença é que o
identidade (mas não o behaviorista lógico) funcionalismo não é uma tese reducionista.
estava certo no que diz respeito ao caráter Ele não prevê, nem mesmo em princípio, a
causal das interações da mente e do corpo. eliminação dos conceitos mentalistas do
Por outro lado, o behaviorista lógico (mas não aparato explicativo das teorias psicológicas.
o teórico da identidade) estava certo no que

p. 128 (a) [9]


O FUNCIONALISMO é a filosofia da mente baseada na distinção que a ciência da computação traça
entre o hardware do sistema, ou composição física, e seu software, ou programa. A psicologia de um
sistema como um ser humano, uma máquina ou um espírito desencarnado não dependeria do material
de que é feito o sistema (neurônios, diodos ou energia espiritual), mas do modo como esse material é
organizado. O funcionalismo não descarta a possibilidade, o quão remota que possa ser, de sistemas
mecânicos e etéreos terem estados e processos mentais.

p. 128 (b) [10]


A diferença entre o funcionalismo e o vários sistemas. A ilustração da página 131
behaviorismo lógico é trazida à tona pelo fato [cuja tabela está redesenhada abaixo]
de o funcionalismo ser totalmente compatível contrasta uma máquina de coca-cola
com o fisicalismo de eventos. O funcionalista behaviorista com uma mentalista. Ambas as
não ficaria desconcertado se fosse demons- máquinas liberam uma coca-cola por 10 cents
trado que os eventos cerebrais são as únicas de dólar. (O preço não foi afetado pela
coisas dotadas das propriedades funcionais inflação) Os estados das máquinas são
que definem os estados mentais. De fato, a definidos por referência aos seus papéis
maioria dos funcionalistas espera que esse causais, mas apenas a máquina da esquerda
será o rumo tomado. satisfaria o behaviorista. Seu estado único
Uma vez que o funcionalismo reconhece (S0) é completamente especificado em termos
que os particulares mentais podem ser físicos, de estímulos e respostas. S0 é o estado em que
ele é compatível com a ideia de que a a máquina está se, e somente se, dado uma
causação mental é uma espécie de causação moeda de 10 cents como entrada [input], ela
física. Em outras palavras, o funcionalismo liberar uma coca-cola como saída [output].
tolera a solução materialista para o problema
mente-corpo fornecida pela teoria da identi- máquina da direita tem estados
dade do estado central. É possível para o Ainterdefinidos (S1 e S2), que são
funcionalista afirmar tanto que as proprie- característicos do funcionalismo. S1 é o
dades mentais são definidas tipicamente em estado em que a máquina está se, e somente
termos de suas relações quanto que as se, (1) dada uma moeda de 5 cents, ela não
interações da mente e do corpo são liberar nada e passar para S2, e (2) dada uma
tipicamente causais, qualquer que seja a força moeda de 10 cents, ela liberar uma coca-cola
da noção de causalidade requerida pelas e ficar em S1. S2 é o estado em que a máquina
explicações psicológicas. O behaviorista está se, e somente se, (1) dada uma moeda de
lógico pode aceitar somente a primeira 5 cents, ela liberar uma coca-cola e passar
asserção, enquanto que o fisicalista de tipos para S1, e (2) dada uma moeda de 10 cents,
apenas a segunda. Como consequência, o ela liberar uma coca-cola e uma moeda de 5
funcionalismo parece capturar as melhores cents e passar para S1. S1 e S2 equivalem
características das alternativas materialistas conjuntamente às seguintes operações: se a
ao dualismo. Não chega a ser uma surpresa máquina recebe uma moeda de 10 cents,
que o funcionalismo venha se tornando cada libera uma coca-cola; se ela receber uma
vez mais popular. moeda de 10 e uma de 5 cents, ela libera uma
As máquinas fornecem bons exemplos de coca-cola e uma moeda de 5 cents; se ela
duas ideias centrais do funcionalismo: a ideia recebe apenas uma moeda de 5 cents, ela
de que os estados mentais são interdefinidos e aguarda uma segunda moeda de 5 cents.
a ideia de que eles podem ser realizados por

Máquina behaviorista Máquina funcionalista

Estado S0 Estado S1 Estado S2


Entrada de Libera uma Entrada de Não sai nada e Libera uma
10 cents coca-cola 5 cents vai para S2 coca-cola e
vai para S1
Entrada de Libera uma Libera uma coca e
10 cents coca-cola e mais 5 cents e vai
fica em S1 para S1

p. 129 (a) [11]


Uma vez que S1 e S2 são definidos por Alguns filósofos suspeitam do funciona-
enunciados hipotéticos, eles podem ser vistos lismo porque ele parece muito simples. Já que
como disposições. Entretanto, eles não são o funcionalismo permite a individuação dos
disposições comportamentais porque as estados através de seu papel causal, ele parece
consequências de uma entrada para uma permitir uma explicação trivial de qualquer
máquina em S1 ou S2 não são especificadas evento observado E, ou seja, ele parece
somente em termos da saída da máquina. Ao postular um “causador de E” [E-causer]. Por
invés disso, as consequências também exemplo, o que faz as válvulas de uma
envolvem os estados internos das máquinas. máquina abrirem? Ora, a operação de um
De acordo com a minha descrição das abridor de válvulas. E o que é um abridor de
máquinas behaviorista e mentalista de coca- válvulas? Ora, qualquer coisa que tenha a
cola, não há restrições sobre sua constituição propriedade, funcionalmente definida, de
física. Qualquer sistema, cujos estados causar a abertura de válvulas.
mantenham as relações adequadas com Na psicologia, esse tipo de problema
entradas, saídas e outros estados, poderia ser aparece frequentemente nas teorias que
uma dessas máquinas. Sem dúvida, é razoável efetivamente postulam homúnculos, com as
esperar que um tal sistema seja constituído de mesmas capacidades intelectuais que o teórico
rodas, alavancas e diodos (fisicalismo de queria explicar. Isso acontece, por exemplo,
eventos para máquinas de coca-cola), assim quando, para explicar a percepção visual,
como também é razoável esperar que nossas simplesmente postulam-se mecanismos psico-
mentes sejam comprovadamente neuro- lógicos que processam a informação visual. O
fisiológicas (fisicalismo de eventos para seres behaviorista tem frequentemente acusado o
humanos). mentalista, algumas vezes com razão, de
Em que pese tudo isso, a descrição do cultivar esse tipo de pseudo-explicação que
software de uma máquina de coca-cola não faz uma petição de princípio. Se os estados
exige logicamente rodas, alavancas e diodos, mentais funcionalmente definidos forem
da mesma maneira que a descrição do desempenhar um papel importante nas teorias
software da mente não exige logicamente psicológicas, essa acusação terá que ser
neurônios. Para o funcionalismo, uma respondida.
máquina de coca-cola com estados S1 e S2 A acusação não é de falsidade, mas sim
pode ser feita de ectoplasma, caso tal de trivialidade. Não pode haver dúvidas de
substância exista e seus estados tiverem as que é um abridor de válvulas que abre
propriedades causais adequadas. O válvulas, e é provável que a percepção visual
funcionalismo não exclui a possibilidade de seja mediada pelo processamento de
haver máquinas de coca-cola desencarnadas, informação visual. A acusação é de que tais
da mesma forma como também não exclui a possíveis explicações funcionais são meras
possibilidade de haver mentes desencarnadas. obviedades. O funcionalista pode responder a
Dizer que S1 e S2 são interdefinidos e essa objeção permitindo a introdução de
realizáveis por diferentes tipos de hardware construtos teóricos funcionalmente definidos
não significa, é claro, dizer que uma máquina apenas quando existirem mecanismos capazes
de coca-cola possui uma mente. Embora a de desempenhar a função e quando ele tiver
interdefinição e a especificação funcional alguma noção de como seriam tais
sejam características típicas dos estados mecanismos. Uma maneira de impor essa
mentais, elas não são suficientes para garantir exigência é identificar os processos mentais
a qualidade do mental. O que ainda falta é que a psicologia postula com as operações da
uma questão que será abaixo discutida. restrita classe de possíveis computadores,
chamados de máquinas de Turing.

p. 129 (b) [12]


Uma máquina
informalmente
de Turing pode ser
caracterizada como um
uma explicação psicológica como um
programa de uma máquina de Turing, o
mecanismo com um número finito de estados psicólogo assegura que sua explicação é
do programa. As entradas e saídas da máquina mecanística, muito embora ele não
são escritas em uma fita, que é dividida em especifique o hardware responsável pela
quadrados, cada um deles contendo um execução do mecanismo.
símbolo de um alfabeto finito. A máquina Existem muitos tipos de mecanismos
escaneia a fita um quadrado de cada vez. Ela computacionais além das máquinas de Turing.
pode apagar o símbolo de um quadrado e Assim, a formulação de uma teoria psico-
imprimir um outro em seu lugar. Ela pode lógica funcionalista na notação da máquina de
executar apenas as seguintes operações Turing oferece apenas uma condição
mecânicas: escanear, apagar, imprimir, mover suficiente para que a teoria seja mecanica-
a fita [para a esquerda ou para a direita] e mente realizável. O que torna essa condição
mudar de estado. interessante, entretanto, é que a simples
Os estados do programa da máquina de máquina de Turing pode realizar muitas
Turing são definidos somente em termos dos tarefas complexas. Embora as operações
símbolos de entrada e saída da fita, as elementares da máquina de Turing sejam
operações elementares e os outros estados do restritas, as interações das operações capaci-
programa. Cada estado do programa é tam a máquina a realizar qualquer compu-
funcionalmente definido, portanto, pelo papel tação bem definida sobre símbolos discretos.
que ele assume na operação geral da máquina. Uma importante tendência nas ciências
Uma vez que o papel funcional de um estado cognitivas é tratar a mente sobretudo como
depende de sua relação com outros estados e um dispositivo que manipula símbolos. Se um
também com as entradas e saídas, o caráter processo mental pode ser funcionalmente
relacional do mental fica preservado na definido como uma operação sobre símbolos,
versão máquina-de-Turing do funcionalismo. existe uma máquina de Turing capaz de
Já que a definição de um estado do programa realizar a computação e uma variedade de
nunca se refere à estrutura física do sistema mecanismos para operar a máquina de Turing.
que roda o programa, a versão máquina-de- Quando a manipulação de símbolos é
Turing do funcionalismo também preserva a importante, a máquina de Turing faz uma
ideia de que o caráter de um estado mental é conexão entre a explicação funcional e a
independente de sua realização física. Um ser explicação mecanística.
humano, uma sala cheia de pessoas, um A redução de uma teoria psicológica a um
computador e um espírito desencarnado programa para uma máquina de Turing é um
seriam todos uma máquina de Turing, se eles modo de exorcizar os homúnculos. A redução
operassem de acordo com um programa de assegura que não foi postulada nenhuma
uma máquina de Turing. operação além daquelas capazes de serem
A proposta é restringir a definição realizadas por um mecanismo conhecido. É
funcional dos estados psicológicos àqueles óbvio que o psicólogo normalmente não pode
que puderem ser expressos em termos dos especificar a redução para cada um dos
estados do programa de uma máquina de processos funcionalmente definidos em todas
Turing. Se esta restrição puder ser as teorias que ele leva a sério. Na prática, o
implementada, ela garantirá a compatibilidade argumento normalmente vai na direção
das teorias psicológicas com as demandas dos contrária: se a postulação de uma operação
mecanismos. Uma vez que as máquinas de mental é essencial para alguma explicação
Turing são dispositivos muito simples, elas psicológica, o teórico tende a supor que deve
são, em princípio, bastante fáceis de serem haver um programa para uma máquina de
construídas. Consequentemente, ao formular Turing que realizará a operação.

p. 129 (c) – 130 (a)


s “caixas pretas”, que são comuns nos o filtro vermelho por um verde e deixe o resto
A fluxogramas feitos pelos psicólogos, exatamente como estava antes. Alguma coisa
servem para indicar processos mentais relativa ao caráter de sua experiência se altera
postulados, que estão à espera de uma quando o filtro é trocado, e é esse tipo de
especificação em termos de uma máquina de coisa que os filósofos chamam de conteúdo
Turing. Mesmo assim, a possibilidade em qualitativo. Eu não me sinto inteiramente
princípio de tais reduções serve como uma confortável com essa definição do conteúdo
restrição metodológica sobre a teorização qualitativo, mas trata-se de um tema com o
psicológica, no sentido de determinar quais qual muitos filósofos não se sentem
definições funcionais serão permitidas e como confortáveis.
seria a situação de se saber que tudo aquilo A razão pela qual o conteúdo qualitativo
que possivelmente poderia exigir explicação representa um problema para o funcionalismo
já foi explicado. é evidente. O funcionalismo está compro-
Tal é a origem, a proveniência e a metido com a definição dos estados mentais
promessa do funcionalismo contemporâneo. em termos de suas causas e seus efeitos.
Mas quais são seus resultados? Essa questão Parece possível, no entanto, que dois estados
não é fácil de responder porque uma boa parte mentais possam ter as mesmas relações
do que está acontecendo atualmente na causais, diferindo, porém, em seu conteúdo
filosofia da mente e nas ciências cognitivas é qualitativo. Deixe-me ilustrar isso com o
uma exploração do alcance e dos limites das clássico enigma do espectro invertido.
explicações funcionalistas do comportamento. Aparentemente, é possível imaginar dois
Contudo, eu apresentarei uma breve visão observadores semelhantes em todos os
geral. aspectos psicológicos relevantes, com a única
Uma objeção óbvia ao funcionalismo exceção de que as experiências subjetivas que
como teoria da mente é que a definição possuem o conteúdo qualitativo do vermelho
funcionalista não se limita a estados e para um observador teriam o conteúdo
processos mentais. Catalisadores, máquinas qualitativo do verde para o outro observador.
de coca-cola, abridores de válvula, aponta- O comportamento de ambos não revela a
dores, ratoeiras e ministros da fazenda são, de diferença porque todos os dois vêem um
um maneira ou de outra, conceitos funcional- tomate maduro e um pôr do sol flamejante
mente definidos, mas nenhum deles é um como sendo de cor semelhante e chamam essa
conceito mental tal como dor, crença e desejo. cor de “vermelho”. Além disso, a conexão
O que é, então, que caracteriza o mental? E causal entre suas experiências (qualita-
seria possível incluí-lo em um modelo tivamente distintas) e seus outros estados
funcionalista? mentais também poderiam ser idênticas.
A visão tradicional na filosofia da mente Talvez ambos pensem na Chapeuzinho
afirma que os estados mentais distinguem-se Vermelho quando vêem tomates maduros,
por possuírem o que é chamado de conteúdo sintam-se deprimidos quando vêem a cor
qualitativo ou conteúdo intencional. Primeira- verde, e assim por diante. Parece que qualquer
mente, eu discutirei o conteúdo qualitativo. coisa que pudesse ser incluída na noção de
Não é fácil dizer o que é o conteúdo papel causal de suas experiências poderia ser
qualitativo. De fato, segundo algumas teorias, compartilhada por eles, e, apesar disso, o
não é possível sequer dizer o que ele é porque conteúdo qualitativo das experiências poderia
ele não pode ser conhecido por descrição, mas ser totalmente diferente. Se isto for possível,
apenas através da experiência direta. Apesar então a abordagem funcionalista não funciona
disso, eu tentarei descrevê-lo. Tente imaginar- para os estados mentais que possuem
se olhando para uma parede em branco conteúdo qualitativo. Se uma pessoa está
através de um filtro vermelho. Agora, troque tendo uma experiência do verde enquanto

p. 130 (b) [14]


outra está tendo uma do vermelho, elas acreditar que Galileo era italiano parece
certamente devem estar em estados mentais necessário haver uma relação ternária entre
diferentes. Enrico, uma crença e uma proposição, que é o
conteúdo da crença (a saber, a proposição que

Oque
exemplo do espectro invertido é mais do
um enigma verbal. A posse de
Galileo era italiano). Em particular, é uma
propriedade essencial da crença de Enrico que
conteúdo qualitativo é considerada como um ela refere-se a Galileo (e não a Newton, por
dos principais fatores para que um estado exemplo) e que ela é verdadeira se, e somente
mental seja consciente. Muitos psicólogos se, Galileo era realmente italiano. Os filósofos
inclinados a aceitar o quadro funcionalista não concordam sobre a maneira como essas
estão preocupados com o fato de o considerações se encaixam, mas há um acordo
funcionalismo não ter muita coisa a dizer geral de que as crenças envolvem
sobre a natureza da consciência. Os propriedades semânticas, tais como expressar
funcionalistas têm feito algumas tentativas uma proposição, ser verdadeiro ou falso e
ingênuas de convencer seus colegas e a si referir-se a uma coisa ao invés de outra.
mesmo de esquecerem essa preocupação, mas É importante compreender as propriedades
não têm obtido, segundo meu ponto de vista, semânticas das crenças porque as teorias nas
muito sucesso. (Por exemplo, talvez seja ciências cognitivas referem-se em grande
errado pensar que é possível imaginar como parte às crenças que os organismos têm.
seria um espectro invertido) No presente Teorias da aprendizagem e da percepção, por
momento, o problema do conteúdo qualitativo exemplo, são explicações de como o conjunto
representa uma séria ameaça para a afirmação de crenças que um organismo tem é
de que o funcionalismo pode oferecer uma determinado pelo caráter de suas experiências
teoria geral do mental. e de sua herança genética. A abordagem
No que diz respeito ao conteúdo funcionalista dos estados mentais não oferece,
intencional dos estados mentais, o por si própria, os insights necessários.
funcionalismo tem se saído muito melhor. De Ratoeiras são funcionalmente definidas, mas
fato, é aqui que se encontram as maiores ratoeiras não expressam proposições e não
realizações da ciência cognitiva. Dizer que são verdadeiras ou falsas.
um estado mental tem conteúdo intencional é Existe pelo menos uma outra coisa, além
dizer que ele tem certas propriedades de um estado mental, que tem conteúdo
semânticas. Por exemplo, para Enrico intencional: um símbolo. Assim como os
pensamentos, os símbolos parecem referir-se

p. 130 (c) [15]


a coisas. Se alguém diz “Galileo era italiano”, em um sistema (como o sistema nervoso)
sua afirmação, como a crença de Enrico, como um computador é levantar questões
expressa uma proposição sobre Galileo, que é sobre a natureza do código em que ele
verdadeira ou falsa, dependendo da pátria de computa e sobre as propriedades semânticas
Galileo. Esse paralelo entre o simbólico e o dos símbolos do código. Na verdade, a
mental subjaz à tradicional busca por um analogia entre mentes e computadores de fato
tratamento unificado da linguagem e da implica a postulação de símbolos mentais.
mente. A ciência cognitiva está agora Não existe computação sem representação.
tentando oferecer tal tratamento. A abordagem representacional da mente,
O conceito básico é simples, porém entretanto, antecede consideravelmente a
notável. Assuma que existem símbolos invenção do computador. Ela é um ancestral
mentais (representações mentais) e que os da epistemologia clássica, que é uma tradição
símbolos mentais tenham propriedades que inclui filósofos tão distintos como John
semânticas. Assim, ter uma crença envolveria Locke, David Hume, George Berkeley, René
a relação com um símbolo mental, sendo que Descartes, Immanuel Kant, John Stuart Mill e
a crença herdaria suas propriedades William James.
semânticas do símbolo mental que aparece na Hume, por exemplo, desenvolveu uma
relação. Os processos mentais (pensar, teoria representacional da mente, que incluía
perceber, aprender, etc.) envolvem interações cinco pontos. Primeiro, existem “Ideias”, que
causais entre os estados relacionais, tais como são uma espécie de símbolo mental. Segundo,
ter uma crença. As propriedades semânticas ter uma crença envolve acalentar uma ideia.
das palavras e sentenças que nós proferimos Terceiro, os processos mentais são associa-
seriam herdadas, por sua vez, das ções causais de Ideias. Quarto, as Ideias são
propriedades semânticas dos estados mentais como imagens. E quinto, as Ideias possuem
que a linguagem expressa. suas propriedades semânticas em virtude de
Associar as propriedades semânticas dos sua semelhança com aquilo que representam:
estados mentais com as dos símbolos mentais a Ideia de John refere-se a John porque ela se
é totalmente compatível com a metáfora parece com ele.
computacional porque é natural pensar o Os psicólogos cognitivos contemporâneos
computador como um mecanismo que não aceitam os detalhes da teoria de Hume,
manipula símbolos. Uma computação é uma embora mantenham muito de sua essência. As
corrente causal de estados computacionais e teorias da computação oferecem uma
os elos da corrente são operações sobre explicação muito mais rica dos processos
fórmulas semanticamente interpretadas, de mentais do que a mera associação de Ideias. E
acordo com um código de máquina. Pensar somente alguns poucos psicólogos ainda

p. 131 (a) [16]


DUAS MÁQUINAS DE COCA-COLA ilustram a diferença entre o behaviorismo (a doutrina de que
não há causas mentais) e o mentalismo (a doutrina de que há causas mentais). Ambas as máquinas
fornecem uma coca-cola por 10 cents e têm estados que são definidos por referência ao seu papel
causal. A máquina à esquerda é behaviorista: seu único estado (S0) é definido somente em termos da
entrada (input) e da saída (output). A máquina da direita é mentalista: seus dois estados (S1, S2) devem
ser definidos não somente em termos da entrada e da saída, mas também em termos um do outro.
Colocando de outra forma, a saída da máquina de coca-cola depende tanto do estado em que a
máquina está quanto da entrada. O filósofo funcionalista defende que estados mentais são
interdefinidos, como os estados internos da máquina de coca-cola mentalista [dime = 10 cents, nickel =
5 cents, change = troco].

p. 131 (b) [17]


pensam que a imagética é o principal veículo ideia atual é de que as propriedades
da representação mental. Entretanto, a ruptura Asemânticas de uma representação mental
mais significativa com a teoria de Hume é o são determinadas por aspectos de seu papel
abandono da semelhança como explicação das funcional. Em outras palavras, uma condição
propriedades semânticas das representações suficiente para ter propriedades semânticas
mentais. pode ser especificada em termos causais. Essa
Muitos filósofos, a começar por Berkeley, é a conexão entre o funcionalismo e a teoria
têm argumentado que há algo muito errado representacional da mente. A psicologia
com a sugestão de que a relação semântica cognitiva moderna espera fortemente que
entre um pensamento e aquilo a que o essas duas doutrinas possam se sustentar
pensamento se refere poderia ser uma relação reciprocamente.
de semelhança. Considere o pensamento de Nenhum filósofo está preparado para dizer
que John é alto. É claro que o pensamento é exatamente como o papel funcional de uma
verdadeiro apenas no que diz respeito ao fato representação mental determina suas
de John ser alto. Uma teoria das propriedades propriedades semânticas. Apesar disso, o
semânticas de um pensamento deveria, funcionalista reconhece três tipos de relação
portanto, explicar como esse pensamento causal entre estados psicológicos envolvendo
específico está relacionado a esse fato espe- representações mentais, que podem servir
cífico. De acordo com a teoria da semelhança, para estabelecer as propriedades semânticas
o processo do pensamento envolve a posse de das representações mentais. Os três tipos são
uma imagem mental que mostra John sendo relações causais entre estados mentais e
alto. Em outras palavras, a relação entre o estímulos, entre estados mentais e respostas,
pensamento de que John é alto e o fato de ele entre os próprios estados mentais.
ser alto é como a relação entre um homem Considere a crença de que John é alto.
alto e seu retrato. Presume-se que os seguintes fatos, que
A dificuldade com a teoria da semelhança correspondem respectivamente aos três tipos
é que qualquer retrato que mostre John sendo de relação causal, são relevantes na
alto deve mostrar também um monte de outras determinação das propriedades semânticas da
coisas a seu respeito: se ele está vestido ou representação mental envolvida na crença.
nu; se ele está deitado, em pé ou sentado; se Primeiramente, a crença é um efeito normal
ele possui uma cabeça ou não; e assim por de certas estimulações, tais como ver John em
diante. Um retrato de um homem alto que está circunstâncias que revelam sua altura. Em
sentado assemelha-se tanto a um homem segundo lugar, a crença é a causa normal de
sentado quanto a um homem alto. Na teoria certos efeitos comportamentais, como afirmar
da semelhança, não está claro o que é que que “John é alto”. Em terceiro lugar, a crença
distingue os pensamentos sobre a altura de é uma causa normal de outras crenças e
John dos pensamentos sobre sua postura. também um efeito normal de outras crenças.
A teoria da semelhança parece deparar-se Por exemplo, qualquer pessoa que acredite
com paradoxos a todo momento. A possibili- que John é alto, muito provavelmente
dade de se construírem crenças envolvendo acreditará também que alguém é alto. Ter a
relações com representações mentais seman- primeira crença é causalmente suficiente para
ticamente interpretadas depende claramente ter a segunda. E qualquer pessoa que acredite
de se ter uma explicação aceitável da origem que todos numa sala são altos e também que
das propriedades semânticas das represen- John está nessa sala, provavelmente acreditará
tações mentais. Se não é a semelhança que irá que John é alto. A terceira crença é um efeito
oferecer essa explicação, qual é a alternativa? normal das duas primeiras. Resumindo, o
funcionalista sustenta que a proposição
expressa por uma certa representação mental

p. 132 (a) [18]


depende das propriedades causais dos estados natureza das representações mentais, em áreas
mentais em que as representações mentais que vão desde a fonética até a visão
aparecem. computacional, sugerem que o conceito de
A concepção de que as propriedades representação mental é fundamental para as
semânticas das representações mentais são teorias empíricas da mente.
determinadas por aspectos de seu papel O behaviorista tem rejeitado o apelo à
funcional ocupa um lugar central nos representação mental porque ela contraria sua
trabalhos atuais dentro das ciências visão dos mecanismos explicativos que
cognitivas. Entretanto, essa concepção pode podem constar nas teorias psicológicas.
não ser verdadeira. Muitos filósofos que não Entretanto, a ciência da representação mental
têm simpatia pela virada cognitivista na está florescendo. A história da ciência mostra
psicologia moderna duvidam de sua que quando uma teoria bem sucedida entra em
veracidade, e muitos psicólogos provavel- conflito com um princípio metodológico, é
mente a rejeitariam com base nessa geralmente o princípio que é abandonado.
apresentação breve e rudimentar que esbocei. Assim, o funcionalista tem flexibilizado as
No entanto, mesmo em sua forma rudimentar, restrições behavioristas sobre as explicações
muita coisa pode ser dita a seu favor. Ela psicológicas. Provavelmente, não há maneira
legitima a noção de representação mental, que melhor de se decidir o que é metodologica-
vem se tornando cada vez mais importante mente permissível em ciência do que
para a teorização em todos os ramos das investigar o que uma ciência bem sucedida
ciências cognitivas. Os recentes avanços na requer.
formulação e no teste de hipóteses sobre a

p. 132 (b)

BIBLIOGRAFIA (p. 148)

Leitores interessados em mais explicações sobre os assuntos cobertos pelo artigo podem achar útil
a seguinte lista de publicações.

BLOCK, NED (org.) (1980), Readings in Philosophy of Psychology, vol. 1, Harvard University Press.
[Leituras em filosofia da psicologia]

FODOR, JERRY A. (1968), Psychological Explanations: An Introduction to the Philosophy of


Psychology, Random House Inc. [Explicações psicológicas: uma introdução à filosofia da
psicologia]

FODOR, JERRY A. (1975), The Language of Thought, Thomas Y. Crowell Co. [A linguagem do
pensamento]

PUTNAM, HILARY (1975), Mind, Language and Reality: Philosophical Papers, vol. 2, Cambridge
University Press. [Mente, linguagem e realidade: artigos filosóficos]

VENDLER, ZENO (1972), Res Cogitans: An Essay in Rational Psychology, Cornell University Press.
[Res cogitans: um ensaio em psicologia racional]

[19]

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