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Outro aspecto que me parece importante é que com essa idéia de Latour
podemos entender o processo civilizatório como a junção do antes estava fora. Neste
sentido as externalidades passaram a ser consideradas como de responsabilidade de
todos, se isso é assim, a figura do catador pode ser vista como aquele individuo que
estabelece o elo entre esses dois mundos, o catador transforma as externalidades
negativas em positivas ou melhor em recursos naturais transformados. E com isto ajuda
a diminuir os impactos causados pelas futuras extrações dos insumos e também da
poluição na natureza.
O fato de eles serem milhares dentro do aterro, terem certa autonomia, na busca
da própria renda, estarem lastreados pelo Movimento Nacional dos Catadores de
Materiais Recicláveis (MNCR), lhes garantiria a legitimidade para se posicionarem
como construtores da sua própria imagem e de fazer com que pudessem ser respeitados
- não por direitos fundamentais e sim pelo poder de assalto da massa - pelos outros
atores nas mesas de negociação futuras.
Esse espaço dialogal pode ser descrito como o de relações entre interlocutores
em uma ação histórica compartilhada socialmente, isto é, que se realiza em um tempo e
local específico. O locutor enuncia em função da existência (real ou virtual) de um
interlocutor, requerendo deste último uma atitude responsiva, com antecipação do que o
outro vai dizer.
Esta é a matriz de onde partem as falas que vão ocupar esse lugar de vacância,
deixado pelo vazio expresso a partir do não-reconhecimento da fala do catador,
fenômeno este que mostra como é construída artificialmente sua incapacidade de se
passar por sujeito. A partir da “perda” de seu protagonismo, aparece a necessidade da
tutela por um outro, este sim, sujeito com capacidade para redizê-las, ou melhor,
inventá-las.
Podemos pensar também que o catador visto como objeto não é capaz de ser
reconhecido como um sujeito capaz de realizar demandas, uma vez que sua fala não é
levada em consideração pelos outros atores. Portanto, proferir certas palavras, em certas
circunstâncias, resulta em infelicidade porque os outros não têm a intenção de se
conduzirem de maneira legal, isto é, em suas falas aparece apenas o sentimento de que
os catadores não são partícipes do processo de discussão e negociação (Austin, 1990, p.
23).
Isto não significa que o catador tem de aceitar as escolhas que supostamente
“ajudou” a construir. Existe a real possibilidade de ele ser reconhecido como “sujeito” a
partir da sua capacidade de se construir, de formar uma auto-imagem nova de si e para
si, que seja resultado das suas práticas dentro do aterro, na cadeia produtiva da
reciclagem.
Por outro lado, a novidade da recente visibilidade que o catador passará a ter,
garantirá algum reconhecimento e interesse sobre sua realidade e representará uma
visão de sua importância e carência potencializada por esse paradoxo e pela
perplexidade causada pelas imagens do não-lugar, o lixão. Entretanto, tal visibilidade
momentânea do catador na mesa de negociações gerará também um efeito colateral,
pois suscitará o surgimento da ideologia do invisível - isto significa o aparecimento do
ponto cego, que aparece durante no debate. Quem tem poder pratica o “culto do
silêncio”, todos ficam invisíveis e encenam a “escuta interessada” das demandas do
catador (Garapon, 1996, p. 81).
Logo após, os atores retomam seus ofícios e dão carnadura à figura do catador
como maneira de neutralizar suas demandas construindo uma “nova” identidade,
artificial, para que um novo objeto se constitua no imaginário social. Surgem os
especialistas reconhecidos como “competentes” para essa tarefa. O resultado é um
pensamento técnico que afirma a necessidade de tirar todos os catadores do não-lugar,
mudando, se possível e preferencialmente, sua atividade, mantendo-o objeto (como um
objeto passível de ser absorvido pelo sistema produtivo formal) de uma política
inclusiva autoritária. Política essa que sabe o que é o melhor, ao invés de reconhecer a
importância da atividade do catador e acenar com a possibilidade de, em os
reconhecendo sujeitos, apoiar as condições necessárias para a realização da atividade
que já realizam, em melhores condições e resultados quantitativos e qualitativos,
quando tudo leva à implantação de um programa de coleta seletiva municipal feita em
parceria com os catadores e com o apoio da administração pública. Porém, o culto do
silêncio impede o assunto de ecoar e de vingar no debate.
Hhhhhhhh
Anexo
1
Era essa a ideia da tese que desenvolveria no mestrado da UFF.
O olhar sobre a maneira como o catador é percebido neste novo espaço de
negociação - para efeito da pesquisa chamado de mesa de negociação (como metáfora
da esfera pública) procurará definir a participação do catador na construção dessa
agenda política e verificará se há espaço para uma instância deliberativa dialógica em
que o “protagonismo” - vamos definir esse termo provisoriamente como sendo o catador
um participante ativo com capacidade de firmar compromissos e assumir
responsabilidades - dos catadores seja visível a partir do reconhecimento da categoria
pelos diversos atores com os quais ele interage e no qual seus interesses sejam
relevantes para a construção de um cenário futuro, dentro de um contexto marcado pela
contingência e pela incerteza.
Assim, o trabalho procurará averiguar como seria esse espaço e como seria
compartilhado entre os atores.
“Então essa preocupação, o que vamos fazer amanhã, já que há 30 anos fazemos esse
trabalho... um trabalho passado de pai para filho, como herança. A gente sabe fazer
bem esse trabalho, gosta de exercer esse trabalho. Num país que não gera trabalho e
renda, dificilmente a gente vai conseguir disputar uma vaga. A gente sabe que o
reciclado é um mecanismo de criar trabalho e renda”.
Questionado sobre qual seria a posição do Ministério Público, o promotor, se
mostrou surpreso com a situação. Passamos a reproduzir parte do debate:
Promotor: Ao trabalho dos catadores, porque hoje a ciência não admite a conveniência
da presença dos catadores em áreas de aterro...
Catador: Queria deixar clara que a discussão assim tá falando sobre o fechamento do
aterro de Gramacho, mas todo mundo tá falando assim da visão técnica do aterro, mas
todo mundo está esquecendo de falar do catador, até agora nem a prefeitura de Caxias
e nem a do Rio...”
Catador: Uma saída são os “Núcleos Descentralizados”, essa proposta já existe desde
2003, através de um plebiscito feito pela assistente social do aterro, Valéria Bastos:
quando do término do aterro qual seria a atividade que o catador do aterro queria
fazer: 10% queriam sair do aterro, 90% queriam continuar trabalhando no aterro com
materiais recicláveis. Por que é o que a gente sabe fazer, do dinheiro, as pessoas têm a
mania de ligar o lixo ao catador. Acho que já está mais que provado, pode ser que não
exista investimento, não existe um investimento na melhoria do trabalho e da qualidade
de vida do catador, o que poderia ser feito. As propostas nunca foram apresentadas ao
catador. As discussões devem ser em torno do catador. Se vão criar esses depósitos qual
seria o papel do catador, a gestão vai ser feita pelo catador?(...) O catador continua
fora desse processo. O governo federal abre editais, tem estimulado o trabalho com
resíduos com a inclusão do catador fazendo a coleta seletiva. A coleta seletiva tem que
ser entregue ao catador, tem uma frase que diz: “Coleta seletiva sem catador é lixo”.
A fala do representante dos catadores ilustra bem o seu sentimento sobre o rumo
daquela prosa:
“Eu acho que é sempre fingir que o catador não existe, começa uma conversa paralela
que visa não focar o protagonista da história que é o catador, sempre a discussão tenta
jogar o catador pro lado, qualquer discussão que tenha entre os técnicos dos resíduos
sólidos nenhum deles...”.