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Futuros plurais, Design emergente e Éticas ecológicas:

uma encruzilhada ativadora de tensões

Adson Pinheiro Queiroz Viana


adson.queiroz12@gmail.com

Grazielle Mendes Rangel


graziellemendesrangel@gmail.com

Edson José Carpintero Rezende


edson.carpintero@gmail.com

1. Introdução
Uma sociedade é composta por diversas narrativas e formas de experienciar
o tempo. No contexto ocidental capitalista em que nos encontramos, aprendemos a
ver o tempo como uma flecha: uma vez disparada, ela segue seu curso rumo a um
futuro desconhecido, para onde se dirige o progresso.
Essa perspectiva se contrasta com outras maneiras de entender o tempo, por
mais óbvias que possam parecer. Na natureza, por exemplo, o tempo é cíclico. As
estações se sucedem e se repetem, a cada fim sucede um recomeço. Por que,
então, enquanto sociedade, temos perpetuado as narrativas de progresso, em que
apenas a trajetória futurística e privilegiada importa?
Essa forma de apreender o tempo, valorizando o futuro e nos desconectando
do presente, é também uma prova de nossa desconexão com questões de fundo
mais complexo, como nosso próprio distanciamento da natureza. Essa dicotomia
homem/natureza é, ela própria, fruto de um modo de vida que coloca o homem
como centro da existência e, simultaneamente, isola-o em uma perspectiva
individualista, regida pelo progresso, orientada para um futuro que guarda um
mundo a cada dia mais ameaçado.
Quando se olha apenas pela configuração moderna, utópica e especializada,
promovida pelas elites obscurantistas, o que está presente ao redor, no aqui e
agora, se torna ofuscado. Isso porque se trata de um modo de viver baseado em
estruturas dicotômicas e quantitativas, que têm se provado a cada dia mais
insuficientes para dar conta da complexidade existente entre o ser humano e as
relações que ele pode estabelecer com o mundo em que o cerca. Essa lente
moderna é a responsável pela criação do mito utilitarista, pela transformação do
conhecimento em mercadoria e pela diminuição da capacidade de pensar e agir em
conjunto (LATOUR, 2019).
Um dos híbridos que compõem o mito moderno dispõe, de um lado, a
natureza e as “coisas” não-humanas, que são entendidas como entidades inferiores,
prontas para serem exploradas como recurso para beneficiamento dos interesses
humanos. Do outro lado, encontra-se a cultura e tudo aquilo que configura o
domínio soberano dos humanos, que são vistos como seres superdotados de
racionalidade e os únicos capazes de se auto-organizar e de integrar uma
sociedade (ACOSTA, 2016). Além do híbrido natureza/cultura, existem também as
dicotomias: global/local, direita/esquerda, progressista/conservador, ciência/política,
orgânico/inorgânico, vivo/não-vivo e humano/não-humano (LATOUR, 2020). Para
Bateson (1972), as estruturas híbridas geralmente determinam a não percepção das
interconexões entre os diversos sistemas, já que as qualidades intrínsecas das
coisas não contam, e são substituídas por quantidades traduzíveis. Esta
configuração acaba dificultando o enfrentamento dos problemas complexos
apresentados pela convergência das crises sociais, ambientais e econômicas.
É fato que a configuração moderna ainda influencia o conhecimento
científico, constitui a ética e a moral moderna/tradicional e promove as diretrizes
norteadoreas do mundo atual. Entretanto esta forma já não se mostra
suficientemente adequada para contornar o resultado complexo do projeto moderno
de (des)futuro que marginaliza grande parte da sociedade humana e que exalta
poucos indivíduos que, quase sempre, promovem percepções de mundo que não se
sustentam e são cada vez mais injustas (FRY, 2020; LATOUR, 2020). Também é
fato que a “terra viva” tem respondido ferozmente a esta espécie de cegueira híbrida
diagnosticada junto ao Antropoceno, mostrando que é capaz de se auto-organizar,
criando obstáculos às ações destrutivas do ser humano (STENGERS, 2015; TSING,
2019).
Nesse sentido, este artigo busca evidenciar que o futuro universal moderno é
produto do pensamento “racionalista” e das ações antropogênicas civilizadas, e
também busca enfatizar que os seres humanos precisam de processos e estruturas
para trazer clareza e consciência capazes de resgatar a capacidade de reconhecer,
manter, respeitar, as possibilidades plurais de pertencimento no mundo. Na busca
pelas possibilidades, este artigo apresenta uma cartografia, mediada pelo
pensamento estratégico, nomeada pelos autores de encruzilhada, que poderá
auxiliar outros projetistas na visualização de novos cenários mais coletivos e plurais.
A encruzilhada pode ser entendida como um dispositivo ativador de tensões para
negar o futuro moderno organizado pela tecnologia com processos autônomos, que
promove a autodestruição da vida e que excede a capacidade dos sistemas
naturais, quanto para instigar o pensamento crítico. Acredita-se que, deste modo,
pode ser possível iniciar um movimento de retirada das configurações modernas
das sombras, para que se tornem passíveis de revisão, e para que favoreçam a
proposição de outros futuros que ativam outras discussões. Para Fry (2020),
pesquisas que buscam recusar os futuros modernos apontados como dados, não
podem ser apenas descritivas. Devem ter como requisitos: o envolvimento de ação
crítica e recusa para representações simples, e, ao mesmo tempo, devem ser
explicativas, transformadoras e inclusivas.
Por isso, este artigo, além de se utilizar do procedimento de revisão que
relaciona futuros plurais, design emergente e éticas ecológicas, irá apresentar uma
cartografia não-tradicional (DELEUZE E GUATTARI, 1997), pois além de ser de
ordem qualitativa, se utiliza da lógica dedutiva para compreender alguns conceitos
que são utilizados como estratégia para se libertar da modernidade e evidenciar que
tudo está conectado e em constante movimento. Além disso, o processo de
organização sistêmica encontrado nos métodos qualitativos organiza as
complexidades que se apresentam como conjuntos heterogêneos dotados de
grande mobilidade. Para Prado Filho e Teti (2013), às informações complexas
cartografadas podem ser representadas por linhas de comunicação e de
(in)visibilidades, objetivação e subjetivação e de ruptura e fratura que se
correlacionam em constante movimento de mutação, renovação e atualização, e,
por isso, não é possível reproduzir um mesmo modo predeterminado de operação e
funcionamento para ambientes diferentes.

2. Querer Futuros
A modernidade foi um período que idealizou um futuro progressista e
sincrônico que vislumbrava a potencialização das diversidades e a criação de
futuros melhores para os seres humanos, por meio da ampliação dos pontos de
vista e do reconhecimento e consideração da variedade de seres, de culturas, de
fenômenos, de organismos e de pessoas (HUI, 2020; LATOUR, 2020). Entretanto,
este cenário utópico especializado, tecnológico, coletivo e brilhante resultou em uma
única percepção de mundo civilizacional repleto de crises sociais, econômicas e
ambientais. Ou seja, o presente é imperfeito, insustentável, desigual e distante das
promessas da modernidade sobre a qual a sociedade está fundamentada.
O futuro é agora e deve ser colaborativo e cocriativo para que as pessoas
consigam construir suas próprias histórias de vida. Pesquisas decoloniais têm
contribuído para a superação desse futuro utópico, e propõem bases
onto-epistêmicas para a transgressão do futuro colonial. Lang (2016) descreve
alguns pressupostos com base decolonial que transitam e compõem as práticas e
os saberes que promovem alternativas viáveis. São estas: colaboração,
convivencialidade, autonomia, autogestão, processos locais construídos
horizontalmente, respeito à diversidade, democratização da economia e da
tecnologia, criação de espaços sociais/comuns, soberania/autonomia alimentar,
solidariedade e reciprocidade.
Para superar o futuro que vem sendo proposto e as distinções teóricas
tomadas como dadas, Latour (2020) e Toren (2021) sugerem abandonar os
movimentos que favorecem as polarizações, já que, por serem aspectos um do
outro, em vez de separados e dialeticamente relacionados a fenômenos, não
capturam adequadamente nossas experiências cotidianas no mundo e nossas
relações com os outros. Além disso, Latour (2020) sugere mais duas coisas: a
primeira é a atração de movimentos (fazer-com, tornar-com e compor-com)
semelhantes aos dos terrestres (ou terranos) — humanos, símbolos vivos de
resistência, que não fazem separação entre mente e corpo e natureza e cultura, que
viveram o contexto de privação de suas terras de forma ainda mais violenta, nas
"grandes descobertas”, durante os processos de colonização européia nos países
do sul Global. A segunda, é uma reconfiguração das orientações tradicionais, ou
seja, a finalização de políticas exclusivamente humanas, feitas em e entre
sociedades civis. As questões sociais e ambientais não podem mais ficar
dissociadas (LATOUR, 2020).
De modo diferente da visão de mundo civilizacional, os terrestres entendem a
natureza como como um terreno de onde emergem os vários tipos de vida, ou
aquilo de que todos aqueles que estão ligados à terra, humano ou não, dependem
para sobreviver (LATOUR, 2020). Esse entendimento descolonizado tem atraído
todos aqueles que se sentem motivados a se associar e se articular para proteger
territórios que criam, reproduzem e ampliam as condições de vida de um terrestre.
Para Stengers (2015), é preciso politizar e conectar as ciências por meio de
novas práticas e um novo lugar, devendo estender-se ao ambiente, aos não
humanos e à Terra. Para esse resgate, Stengers propõe que a ciência deve entrar
no campo da política não apenas por questões éticas, mas porque a ciência é
produtora de verdades e de mundos. Com o reagrupamento da ciência com a
política, os objetos dinâmicos — humanos e não-humanos — determinam os signos
reunindo a boa vontade com a destruição do sentimento de impotência coletiva,
sobre o qual os interpretantes, eventualmente, estabeleceriam uma dinâmica capaz
de engajar “produtores de possibilidades’’. Desse modo, é possível repovoar um
mundo hoje devastado pela destruição das capacidades coletivas de pensar,
imaginar e criar (STENGERS, 2015).
Atraído por este movimento, Tony Fry (2020), filósofo do Design, questiona a
lógica estrutural da insustentabilidade constitutiva do mundo atual, e, por isso,
propõe o Defuturing para contrapor o que vem sendo feito e pensado
hegemonicamente e orientar o Design para construção de outros futuros possíveis.
Defuturar é uma nova filosofia capaz de auxiliar designers a entenderem os
impactos dos ideais modernos com elementos/considerações de um novo raciocínio
prático para atuação em projetos. Por meio das lentes dessa proposta filosófica é
possível confrontar o Design hegemônico e contestar a ilusão de futuro que vem
sendo proposta pelos obscurantistas.
Em outra publicação, mas no mesmo sentido de contraposição do Design
moderno, Fry (2018) propõe a libertação da hierarquia, linearidade, centralidade e
do poder excludente das epistemologias anglo-eurocêntricas. Também descreve
que é preciso valorizar as coexistências e os movimentos horizontais e comunitários
na busca por soluções, e confrontar o idealismo utópico do Design por meio de
práticas que rompem com a ideia de que o futuro será para poucos. Este
rompimento, que une a teoria e a prática, faz emergir o que o autor chama de
“sustain-ability” ou “sustentação”, isto é, aprender, trabalhar e melhorar
constantemente com aquilo que é vital para o "ser-ser" (FRY, 2020). Este se difere
do conceito de sustentabilidade por não se tratar de reformar os negócios para que
o capitalismo se aperfeiçoe, mas de superá-los. Além disso, o autor desafia a visão
dominante de que o Design é o grande solucionador de problemas e expõe que
esse tipo de visão/atitude complexifica ainda mais os problemas enfrentados
atualmente. Fry descreve, ainda, que é preciso que os projetos de Design se
fundamentem em saberes e teorias relacionadas ao pensamento decolonial, aos
estudos feministas e a outras cosmovisões continentais (não-europeias), já que
essas configurações têm auxiliado na construção e articulação de abordagens mais
inclusivas do conhecimento que abordam o poder criticamente.
Cientistas (eco)feministas têm produzido conhecimentos práticos e situados,
intrínsecos aos costumes, práticas, línguas e culturas, para resolver as falsas
dicotomias. Para Haraway (1988) o "conhecimento situado" é sobre considerar as
reivindicações do território. Faz com que os pontos de vista subjetivos sejam
considerados na produção científica. Cuidado e empatia foram valores centrais para
as mudanças sociais ao longo do século passado e são também parte integrante do
pensamento ecológico. Além disso, feministas negras, como Angela Davis (2016),
têm procurado abolir todas as formas de violência sexista e racista juntamente com
as estruturas sociais que reproduzem essas violências (capitalismo). Elas possuem
como objetivo a transformação da estrutura da liderança e da sociedade,
horizontalizando mulheres e homens de todas as raças e orientações sexuais
(BOEHNERT, 2018).
Boehnert (2018), rumo ao que chama de Ecoceno, também evidencia as
convenções indígenas, que contribuem ao trazer perspectivas diferentes das leis
modernas impostas como ideais, ao qual o povo deve se conformar. Suas
legislações descrevem um conjunto de decisões onde o direito e a natureza estão
ligados entre si, baseados em noções concretas do bem individual e coletivo, com
ideias de diversidade social e com ênfase na responsabilidade sócio-ambiental
(LAUDERDALE, 2007). Para os indígenas, a organização social e os valores
culturais são baseados no aprendizado das lições da natureza, pois possuem
formas de viver baseadas em práticas inclusivas e relacionais, criando um espaço
dialógico sem coerções verticalizadas. A reciprocidade é um valor baseado em uma
dinâmica relacional muito longa na qual somos todos vistos como "parentes" uns
dos outros". O parentesco é um conceito central nas epistemologias indígenas
(HARRIS; WASILEWSKI, 2004)
A inclusão das experiências e conhecimentos dos oprimidos dentro da
tradição epistemológica tradicional contribui para transformar as relações de poder e
tornar visíveis as necessidades e interesses daqueles que são úteis para um
movimento mais plural (BOEHNERT, 2018). Mas é fato que esse movimento de
produção científica e projetual, com aqueles que possuem uma boa relação com o
território que os circunda, é mais complexo, justamente por não ser possível utilizar
metodologias científicas e projetuais hierárquicas e/ou lineares consideradas por
séculos na história da humanidade. Outro dificultador deste processo refere-se à
maioria dos sujeitos civilizados que, por terem sido “modernizados”, não
reconhecem e nem compartilham o mesmo território. Isto dificulta a percepção das
associações com o ambiente que as circunda. De acordo com Latour (2020), os
movimentos ambientalistas foram os que mais se aproximaram dos movimentos que
estão ligados à terra, no entanto, eles nunca obtiveram êxito por buscarem se
utilizar de mecanismos modernos (sustentabilidade).
Então como é possível projetar futuros, agora que a onto-epistemologia
moderna, pela qual grande parte da sociedade foi influenciada por séculos, não faz
mais sentido? Acredita-se que não existem respostas prontas para essa pergunta. O
que se percebe são movimentos para a tomada de consciência sobre a situação
sociopolítica atual que percebem que o futuro exclusivamente antropocêntrico é
inviável, e que, por isso, precisam reconectar aspectos fenomenológicos das
dicotomias. Esses movimentos de tentativa de reconexão podem proporcionar
novas configurações que encontram na sua composição uma associação intrínseca
àqueles oprimidos: humanos, objetos, coisas, animais, microrganismos, rios,
sentimentos e tudo que lhes possibilita a sobrevivência. Operar essa
reconfiguração, que se opõe à dissipação da diversidade do mundo, implica na
repolitização do pertencimento de territórios, que tentam, diariamente, manter-se
contra os movimentos supremacistas.

3. Fazer design
O Design é amplamente reconhecido por sua cultura solucionista, que
sempre trouxe/trará algo à existência - material ou imaterial. É uma disciplina
formadora de como algo age: como, no e sobre os mundos. Seus resultados (objeto,
agência e processo) fluem e se transformam constantemente, e, por isso, estão
relacionados em um tempo e espaço específico. Mas à medida que estes
funcionam, ou não, o projeto têm consequências determinantes, pois estes são
constituintes ativos dos territórios, ou seja: “projetamos nosso mundo, enquanto
nosso mundo nos projeta'' (FRY, 2020, p. 5). Direção, força, poder, onipresença e
imposição são elementos que comunicam a cultura solucionista dessa disciplina que
quer estar em todos os espaços por um curto período de tempo. É um
conhecimento que, por estar inscrito em formas de poder, exerce operacionalmente
a tecnologia e está implicado em formas sociais, políticas e econômicas, propondo a
ressignificação de práticas, que pressupõem novos imaginários sociais, de leis, de
significados e de aspirações.
O Design também tem sido reconhecido, mais recentemente, pelo
entendimento de que a "inteligência coletiva" gera mais benefícios que a
"inteligência individual" (VASSÃO, 2020). Essa mudança pode ser percebida na
escolha dos gestores e empresários na criação dos seus produtos, saindo de
processos impositivos e arbitrários, para processos que envolvem a escuta das
necessidades dos usuários, como o design centrado no usuário/humano (HCD) e a
experiência do usuário (UX). Esse tipo de entendimento participacionista também
refletiu nas empresas, manifestando-se em práticas como o design thinking e o
design estratégico. Para este autor, os contratantes do serviço de design têm
perguntado à sociedade do que ela precisa, no entanto, a herança da sociedade
ainda reflete as práticas industriais catalisadoras do modelo econômico vigente
(VASSÃO, 2020).
Fry (2020) descreve que tanto a cultura solucionista como a participacionista
fizeram com que o Design estivesse universalmente em toda parte e permanecesse
intelectualmente em nenhum lugar. Os resultados práticos e intencionais realizados
por essa cultura projetual promovem o pluralismo do insustentável e a ocultação de
uma época antropocêntrica, maquiadora de um padrão de vida desejável, de
qualidade, de crescimento econômico e afins. Para Manzini (2016) e Fry (2020)
esse resultante ocorre devido à ausência de um amplo debate sobre a cultura
intrínseca ao Design e de uma visão clara de suas consequências.
Manzini (2016) descreve ser possível perceber o surgimento de um novo
Design que vai além de solucionismos e participacionismos. Este está orientado
para um pensamento holístico, e com prática voltada para soluções que não findam
mais em doação de formas, produtos, serviços e artefatos, mas sim em ferramentas
e métodos colaborativos. Entretanto, sabe-se que este novo resultado quase nunca
é colocado em debate. Devido a isso, as produções emergentes acabam se
enquadrando na limitada e reduzida cultura que promove soluções concentradas
apenas na funcionalidade com resultados práticos, tendo o designer como ator de
gestão/facilitador sem grandes contribuições.
Para ir além dos rótulos, Manzini (2016) propõe reflexões sobre a cultura no
Design e descreve outras mudanças percebidas no processo de transição dos
séculos dentro deste campo. A primeira delas diz respeito à transição de processos
lineares (orientados aos produtos) a processos sistêmicos (orientados ao ser
humano, ambiente, política, etc.) que retornam ao domínio da linguagem e do
pensamento. A segunda mudança evidenciada descreve a utilização de processos
de co-design, em que diversos atores são envolvidos no processo. A última
mudança descreve uma categorização triádica no design: design difuso, que relata
que todos podem fazer Design se combinarem senso crítico, criatividade e senso
prático; o design especializado, que possui habilidades e culturas específicas do
Design, e, por fim, o co-design, um Design resultante de natureza transdisciplinar
que inclui os dois tipos de design (difuso e específico).
Manzini, ao focar no Design específico, descreve que a sua cultura vai além
quando busca abraçar a complexidade e atender as reais necessidades das
comunidades. Quando o designer, ser subjetivo, possui análise crítica e reflexiva e
se associa à cultura da disciplina de produção de cenários e de critérios, torna-se
possível qualificar propostas em diversas escalas, por meio de conhecimentos,
valores, visões e criações que emergem nas correspondências entre os diversos
tipos de cosmopercepções existentes nas múltiplas categorias do design e nas
áreas transversais. Este entendimento de cultura do design, mais abrangente e
complexo, é a fonte de contribuição mais autêntica que os especialistas em design
podem oferecer para as inovações, pois, ao propor “projéteis”, torna-se possível
desencadear mudanças significativas na ideia de bem-estar ou nas qualidades que
o caracteriza.
A busca pela percepção ampla, integrada e conectada do contexto
investigado, é parte do processo de desenvolvimento de uma solução a partir da
perspectiva do Design. Ao buscar a percepção do todo, os designers podem
conectar saberes, disciplinas e atores que se articulam e colaboram entre si no
projeto de uma solução. Além disso, podem expor as disfunções da realidade,
contribuindo enquanto ciência para tornar o mundo complexo visível, legível e
direcionado à democratização dos saberes e dos conhecimentos (FRY, 2009b;
2020).
Pensar de forma sistêmica também permite a percepção das diversas
nuances de interferência de um fator em um sistema ou situação problemática,
abrindo campo de análise sobre em qual ponto, ou pontos, deve se concentrar a
atenção para resolução do desafio projetual. Além disso, é possível visualizar com
mais clareza quais recursos humanos ou materiais podem ser acionados ou usados
para compor uma determinada solução.
Essa nova maneira de refletir sobre o Design é importante para que os
designers compreendam a urgência que os territórios têm enfrentado. Neste
contexto, o novo design, com capacidade de promover a interação social,
articulando indivíduos com coletivos, insere-se no potencial com novo limite
multivetorial, baseado em uma ética ecológica e em um novo vir-a-ser ao final, além
dos limites não realizados do domínio produtivista.
O Design não pode assegurar futuros plurais sem romper sua subordinação à
razão instrumental, isto é, terá que escapar dos solucionismos e participacionismos
que produzem ideias, processos e objetos. O que o Design precisa é se tornar um
mecanismo de escolha direcional dos processos vivificantes, para que todos os
seres e territórios persistam. Antes disso, a primeira coisa que o designer precisa
fazer, após querer e conseguir sair da semiosfera produzida pela cultura industrial, é
resgatar e manufaturar a maneira de estar com o local onde moramos para que ele
e seu ser continue a existir. Esse “estar-com” é também um “fazer com cuidado”.
O maior obstáculo para emancipação desta cultura se baseia nas
prerrogativas modernas pré-determinadas, que, muitas vezes, impedem o
movimento de coletivização e compreensão de ideias vitais que contemplam
práticas colaborativas por meio de um pensar (ciência) e de um fazer (design) que
planeja cenários de libertação (CESHIN; GAZIULUSOY, 2020; MANZINI, 2016;
NORONHA, 2018).
Para o filósofo do Design Tony Fry (2005), é preciso conseguir distinguir as
necessidades boas (suporte para a vida) das ruins (destruição da vida). O Design
solucionista e participacionista pode ser redirecionado para fazer o trabalho de
ressignificação e tornar viável a maior quantidade de formas de vida ao longo do
tempo. Ele também pode atuar por meio da projeção de informação de impactos
biofísicos futuros sobre a “terra viva”, medindo a capacidade de sustentar todas as
formas de vida e articulando ideias e disciplinas para fazer algo que promova
consciências (FRY, 2005).
Em resumo, a cultura ressignificada propõe abandonar os processos de
causa e efeito encontrados na metafísica, que foca em processos e estruturas que
se correlacionam (clareza e consciência), para que se possa redesenhar aquilo que
precisa ser resgatado, reparado e restaurado. Para Fry (2020), esse redesign só
ocorrerá se houver conversas entre as diversas categorias do Design, e se houver
estímulos capazes de fazê-lo se aproximar e interagir com os mais variados
universos e disciplinas. O equilíbrio desejado para o enfrentamento do idealismo
será mais provável de ser alcançado por meio de abordagens e metodologias de
pesquisa e de projeto que estejam associadas a políticas de conservação da
natureza e favoreçam correspondências, ou seja, políticas que também considerem
o mundo material e espiritual do qual o ser humano faz parte (BENNETT, 2002;
BONNETT, 2010). Este esforço é um processo de aprendizagem social que inclui a
desaprendizagem de padrões de comportamento prejudiciais, valores e aspirações.
É fato que, apesar do reconhecimento dos conceitos que compõem esse
fazer e pensar decolonial-qualitativo-emergente, e da boa vontade, muitos designers
ainda carregam consigo uma cultura que se concentra apenas na funcionalidade
com resultados práticos ou na gestão/facilitação, pois, por muito tempo, o Design –
e a sociedade ocidental como um todo – foram ativos na lubrificação das rodas de
um sistema catastrófico, ou, mais precisamente, em uma ideia insustentável de
bem-estar (MANZINI, 2006).
A cultura científica-projetual-decolonial-emergente tem buscado se consolidar
por meio de práticas mediadas pelos espaços, lugares, mensagens e coisas
encontradas todos os dias, capazes de trazer maneiras particulares de ser,
conhecer e fazer. O Design pode desempenhar um papel no incentivo às pessoas a
usar sua imaginação e contar novas histórias sobre sua vida cotidiana. Isso
relaciona-se com um pensamento sistêmico e uma abordagem de múltiplas partes
interessadas que envolve comunicação, transmissão e variação entre projetos
(ESCOBAR, 2018).
Tham (2019) descreve como Design Sujo ou bagunça sangrenta (Dirty
Design or a bloody mess) o resultado da reunião de diferentes formas de
conhecimento que desafiam hierarquias epistemológicas, buscam
transdisciplinaridade e colaborações horizontais e desafiam verdades ou soluções
únicas. Para a autora, manter o Design sujo é uma afirmação de vida por ficarem
situados e próximos ao solo. As posições epistemológicas que têm buscado se
consolidar abraçam perspectivas que desafiam a linearidade e a conformidade
solucionista. São muitas as estratégias de pesquisa científica e metodologias
coprojetuais que podem ser associadas para transformar uma realidade por meio da
criação de condições para que os indivíduos tenham autonomia para agir em suas
próprias vidas e em comunidades, de modo a desenvolver a capacidade de serem
agentes de mudança. A prática de associação, se mobilizada, pode criar
infraestruturas e interfaces sociais e técnicas nas quais novas formas colaborativas
podem ocorrer, já que essa visão propõe a dissolução de hierarquias, a projetação
de modo inclusivo e a consideração dos pluriversos (DEL GAUDIO, 2017).

4. Pensar éticas
Após apresentar o “querer futuros” e o “fazer design”, esta seção propõe um
“pensar éticas” como forma de auxiliar na regeneração das pluralidades que vêm
sendo devastadas. De acordo com Santos (2012), o homem possui o privilégio de
ser o único do planeta Terra que consegue discernir as premissas necessárias para
estabelecer uma vida mediada pela ética. Para este autor, a ética possui relação
com os valores que cada indivíduo estabelece para si e para o outro. É também “a
ciência da moral, isto é, de uma esfera do comportamento humano” (VÁZQUEZ,
2010, p. 23). De acordo com Peter Singer (2006), a ética exige o alcance de um
juízo universalizável, capaz de superar as hierarquias humanas. Por meio dos juízos
éticos, as pessoas vão além de interesses e aversões pessoais, pois seus códigos
são criados para estabelecer convenções que definem os direitos e deveres que
regem a conduta entre os humanos.
A cosmovisão cartesiana, sobre a qual a ética tradicional está fundamentada,
possui fundamentos sexistas, racistas, colonialistas e ambientalistas, que não são
capazes de interpretar e responder aos problemas contemporâneos. Para o filósofo
alemão Hans Jonas (2006), esse julgamento é justificável devido a três concepções
intrínsecas a esta ética: o imediatismo, o antropocentrismo e a não consideração da
natureza não-humana. Além disso, as tecnologias têm se desenvolvido de forma
mais rápida que as convenções propostas pela ética tradicional. Só este problema já
assegura que as consequências não intencionais, características da modernidade,
não são investigadas e evitadas como deveriam (BOEHNERT, 2018; GIDDENS,
1990)
Para Santos (2012) a humanidade possui o dever ético e jurídico de resgatar
valores que possam equilibrar os interesses da sociedade e os limites da natureza,
comungando, responsavelmente, os recursos naturais para conservar as matrizes
biológicas da natureza e garantir a sobrevivência de um ambiente ecologicamente
equilibrado. Um movimento semelhante foi proposto por Bateson (1972), que
entendia ser necessário deslocar o eixo da “necessidade” do ser humano para a
“necessidade” da vida em si.
“Sugiro que os últimos 100 anos demonstraram empiricamente
que se um organismo ou um agregado de organismos se põe
a trabalhar com foco em sua própria sobrevivência e pensa
que essa é a maneira de selecionar seus movimentos
adaptativos, seu "progresso" termina com um ambiente
destruído. Se um organismo acaba destruindo seu ambiente,
ele de fato se destruiu a si mesmo” (BATESON 1972, p. 457,
tradução do autor).

Larrère (1997) expôs a possibilidade de se verificar três éticas distintas do


homem em relação à natureza, as quais foram vivenciadas em momentos históricos
distintos: i) a que coloca o homem no centro da natureza, em posição de
observação; ii) a que põe o homem no exterior da natureza, em posição de
experimentação e de controle. Esta fomenta que o ser humano deve considerar o
não-humano de forma indireta, já que essa não é objeto de direito e não possui
nenhum dever. No centro de valor está o modelo do bom uso (princípio da
precaução), prevalecendo não mais uma questão ética, e sim moral, direcionada a
deixar “patrimônios” para gerações futuras, e iii) a que reinscreve o homem na
natureza, sem dotá-lo de uma posição privilegiada. Esta inclui a biosfera, a natureza
e os seres vivos como merecedores de consideração moral por si mesmos e não
apenas enquanto servem aos interesses humanos. Conforme a autora, a primeira
posição é tipicamente grega, a segunda, incontestavelmente moderna, e a terceira é
a diz respeito às éticas ecológicas (biocêntrica ou ecocêntrica), bases da teoria
ecológica, que acreditam que os seres humanos possuem o dever de considerar o
“princípio da responsabilidade”.
A teoria ecológica oferece uma base para a renovação nas sensibilidades,
nas práticas transformadoras e nas múltiplas estratégias pensadas por aqueles que
combatem as injustiças ambientais. É com base nessa teoria que surge a proposta
de remediação diante das crises intelectualmente incoerentes descritas no início
deste texto. As “cosmopercepções” que derivam dessa teoria são formas mais
completas de sentir, de fazer e de pensar, que dialogam com éticas, movimentos e
identidades, descritas na seção anterior, sobre os quais o Design pode/tem
emergir/emergido, visando uma transição para sustentação de futuros plurais
(IRWIN et al., 2015)
De acordo com o filósofo ecológico Aldo Leopold (1997:1949) toda ética
possui a premissa de que os seres humanos são membros de uma comunidade de
partes interdependentes. Todos os seres possuem um tipo de valor que os pertence
por meio de sua própria natureza. É o valor que torna equivocado tratá-los como se
existissem apenas como meros meios para possibilitar ações humanas. É a partir do
bem do não-humano que o bem humano deve ser promovido ou protegido.
A partir desse entendimento comum, Leopold (1997:1949) descreve ser
possível perceber que éticas lúcidas tendem a preservar a integridade, a
estabilidade e a beleza da comunidade biótica. Logo, o homem torna-se elemento
de mesma importância que outros elementos da “terra viva”, o que inclui os solos,
as águas, as plantas, os animais, microrganismos e etc. Isto implica respeito por
seus companheiros e também respeito pela comunidade como tal. Estas éticas que
estão interessadas no respeito ao ambiente (ética ambiental, da terra, ecoética ou
ecofilosofia) buscam justificar e organizar comportamentos, atitudes e valores em
relação aos animais, aos seres vivos, a áreas biológicas, e à biosfera (PARIZEAU,
2007; SANTOS, 2012).
Embora pareça simples e coerente, em um mundo complexo, quanto mais
amplos são os limites da responsabilidade, mais difícil se torna aplicar essas éticas.
O “como” desta prática é o grande problema, pois tudo se torna mais complexo e
político com o afastamento dos processos industriais, com as deficiências existentes
nos vínculos comunicativos e com as consequências não intencionais (BOEHNERT,
2018).
As contribuições dos que resistem às opressões, para o debate sobre as
éticas baseadas na teoria ecológica, ajudam no entendimento, já que consideram as
relações e os parentescos e articulam os valores perdidos, como os de cuidado, de
amor, de amizade e de confiança apropriada, para respeitar as capacidades
regenerativas da natureza não-humana. Aqueles que pretendem viver o “como”
dessa ética precisam praticar essas contribuições. Não é coincidência que todas as
tradições que valorizam esse ethos situado e sensível ao cuidado sejam
marginalizadas no sistema econômico vigente, que extrai valor para a acumulação
de capital e recompensa o comportamento explorador (PLUMWOOD, 2002;
WARREN, 2001).
Outros pensadores ecológicos do sul Global, como Gudynas (2019), Escobar
(2016), Krenak (2019) e Acosta (2016), também defendem éticas lúcidas
fundamentadas em teorias ecológicas, pois entendem a terra como um sistema que
se ajusta, e que, para assegurar a qualidade de vida das pessoas, é preciso se
desvincular do atual consumismo devastador enfatizado pela ética antropocêntrica.
Além disso, denunciam que o desenvolvimento sustentável, com enfoque
ambientalista, que se diz “humanitário” e prega que só deve existir a conservação
da natureza se, e somente se, houver o benefício material para os seres humanos.
Este enfoque tem servido, principalmente, para que alguns Estados e corporações
se utilizem da conservação da natureza como discurso em defesa dos extrativistas
que acabam financiando a “redução da pobreza”. A bem da verdade, quando as
éticas ecológicas são marginalizadas, a ética antropocêntrica utilitarista, embora
oculta, passa a permanecer. Ética esta que reproduz a crença em um crescimento
econômico sempre expansivo, que serve à mercantilização dos elementos e
processos da natureza e que estimula a ilusão de que uma gestão financiada e
rentável garante a proteção ambiental.
A posição ecológica significa uma mudança de visão. Para Junges (2001) as
éticas ecológicas estão fundamentadas em convenções, mas também em afetos e
subjetividades que motivam a ação de acordo com o que é eticamente correto. Em
outras palavras, esta posição pretende criar atitudes e formar a personalidade moral
em relação ao ambiente. Uma visão estética da natureza não basta, pois o interesse
estético é mutável. A visão ecológica (ecocêntrica, biocêntrica, da terra ou do
cuidado) advoga a passagem de um valor estético para um valor ontológico da
natureza que fundamente a relação com ela (JUNGES, 2001).
Para Junges (2001), sair do impasse antropocêntrico não se trata de uma
alternativa, mas de uma conversão. A ética como disciplina não pode fugir do
princípio “antropotópico”, porque o agente moral da ética é o ser humano. Só ele
pode propor questões éticas e construir discursos. Mas, ecologicamente, é
necessária uma “desantropização” da ética, porque o seu objeto central de
consideração moral é a vida em suas relações. Nesse sentido, a natureza é
merecedora de consideração moral não só enquanto serve aos interesses humanos,
mas em si mesma por ser a matriz da vida.

5. Encruzilhada como dispositivo reflexivo


Esta seção busca propor uma cartografia dos conceitos apresentados nas
seções anteriores por meio de uma encruzilhada: uma forma de refletir sobre a
desconstrução de futuros modernos para construção de esperanças e coragens que
evitam as armadilhas da política razoável. Essa cartografia pode contribuir com a
construção de alternativas teóricas e metodológicas que abrangem conexões e
interdependências, tornando visíveis os universos silenciados pela cultura industrial
que evoca um único universo com objetos, nomes, imagens e localizações
plenamente aceitos. É um dispositivo que, ao ser adaptado, pode permear,
perpassar, tangenciar e atravessar os futuros por meio do “fazer design” e do
“pensar éticas” que consideram as subjetividades e o não-humano. Além disso, a
visualização do todo busca ativar pesquisas que considerem as atividades do
território de modo holístico (ambiental), e que haja correspondências em uma
postura atencional (social) com as teorias (educação) e práticas (dispositivos)
focadas nas subjetividades (mental) e se relacionem com atos imaginativos que
lançam as experiências por caminhos colaborativos.
A encruzilhada dispõe de três fases de remediação com constatações
objetivas e subjetivas: a inicial, com uma avaliação holística (ambiental), a
processual, uma avaliação formativa (social), e a final, uma avaliação somativa de
coragem (mental). Para iniciar a transição prática da encruzilhada é preciso duas
simples reflexões que antecedem a produção do conhecimento científico: (i) o
resultado da pesquisa trará benefícios para todos, ou maioria do sistema, ou irá
privilegiar poucos indivíduos? e (ii) estou pondo o meu conhecimento a serviço da
humanidade ou de uma ideologia, um partido, ou simplesmente uma instituição que
só visa a certos fins, como o lucro, por exemplo? Outras reflexões que também
podem estruturar pesquisas/projetos e promover futuros alternativos que visam a
regeneração social e contribuem para uma nova forma de fazer ciência, são: (i) a
autorregulação dos sistemas (abertos) existe no meu projeto?; (ii) existe uma
abertura para outras cosmovisões (pluriversos)?; (iii) o projeto entende o ambiente
como um meio para assegurar a qualidade de todos os seres da natureza? e (iv) o
projeto rompe com os limites disciplinares e vai além de produções de produtos e
serviços?

6. Conclusão
Este artigo partiu de uma tentativa de mostrar as falhas e os problemas das
perspectivas racionalistas que guiam a ideia do futuro moderno. As dicotomias que
separam o homem da natureza e o indivíduo de sua coletividade também alienam a
existência em vários sentidos. Ao propor uma vida pautada pelo progresso e pelo
futurismo, o presente — lugar de ação — se perde. Ao separar homem e natureza,
cria-se uma relação hierárquica em que aquele explora esta, ignorando-se o fato de
que se tratam de existências interdependentes. Ao separar a individualidade da
coletividade, a diversidade da vida desaparece, porque se privilegia apenas as
histórias dos vencedores — daí o machismo, o colonialismo, o racismo e tantos
outros sintomas da modernidade adoecida.
Identificados os problemas, o que se propõe é o retorno ao presente, por
meio da cartografia não tradicional da encruzilhada. Figurativamente, estar na
encruzilhada é estar em um entre-lugar; em uma situação que exige uma solução: é
hora de tomar caminhos. Nesse sentido, a imagem encruzilhada nos obriga a olhar
para o presente, e por essa primeira razão já desativa a ideia de futuro alienante do
progresso, começando a caminhar na direção de uma libertação da modernidade.
De dentro da encruzilhada, espaço de confluência de trajetórias e possibilidades,
levanta-se também a resposta às crises da modernidade: a necessidade de
reconhecer as capacidades de existências plurais e diversas no mundo. Isso implica
entender a importância de múltiplas histórias na construção de uma existência
benéfica para todos os seres da natureza, que contemplem visões distintas de
mundo.
É a partir daí que se vislumbra ideias como a do Defuturing, previamente
contempladas neste artigo, segundo a qual o futuro não pode ser para poucos, e só
faz sentido de existir se contempla a possibilidade de outros futuros, plurais e
diversos. Nessa esteira, a ideia de Sustainability propõe a extinção da divisão entre
o humano e natureza, e, principalmente, a hierarquização do homem frente à
natureza, explorada à exaustão pelo capitalismo, e maquiada por conceitos como o
de sustentabilidade, em que a natureza só deve ser preservada na medida em que
ainda é útil ou pode servir ao homem. Todas estas são proposições que se
relacionam com a encruzilhada enquanto dispositivo, pois partem da análise crítica
do presente para a elaboração de um ideal de futuro múltiplo, diverso, que pode
percorrer vários caminhos fora da modernidade.
Para isso, a crítica ao antropocentrismo é fundamental, pois aponta para a
necessária reconexão do indivíduo com seu semelhante e com a natureza que ele
habita e que se conecta com ele, como uma coisa só. Nesse sentido, o Design pode
operar a partir do momento de tomada de consciência e de análise crítica e reflexiva
por parte do designer, indivíduo de subjetividades, sem o qual a prática do Design
sequer existe. A partir desse momento, é possível fazer existir um Design que
contribua para a democratização dos saberes e dos conhecimentos, e que torne
possível, assim, a ascensão de novas narrativas, a repolitização dos territórios, a
ressignificação das culturas, o surgimento de histórias plurais, que contam sobre
aqueles que por tanto tempo foram vencidos, e não vencedores: as histórias não
contadas.
Os elementos que elegemos como objeto de crítica deste texto surgem como
sintoma da ética cartesiana, que por si só é antropocentrista, imediatista, alheia à
natureza não-humana. Acreditamos ser a hora de adotarmos novas éticas, que
contemplem a necessidade de vida, e não só do ser humano. Com as teorias
ecológicas, que propõem a vivência do homem em igualdade com a Terra Viva,
espera-se que o Design extrapole sua atuação com uma visão estética da natureza,
e se atente ao valor ontológico desta.
A encruzilhada pode ser tomada como um espaço de confluência de
possibilidades, de convergência de caminhos. E é dentro dela que este artigo parte
na direção de soluções múltiplas, mas guiadas por uma nova ética. Contra uma
visão de tempo alienante, voltada ao futuro e ao progresso, o que se propõe é a
prática do design regido por uma ética não-antropizada, capaz de gerar o futuro que
queremos: diverso, igualitário, voltado para a vida.

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