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A forma do utensílio: acaso ou analogia?

Conference Paper · August 2011

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Rodolfo Caesar
Federal University of Rio de Janeiro
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XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Uberlândia - 2011

A forma do utensílio: acaso ou analogia?

Rodolfo Caesar
Escola de Música - UFRJ

Resumo: Desenvolvimento de uma pesquisa sonológica visando a relação entre visualidade,


iconografia e escuta, enfocando o estetoscópio, primeiro instrumento auscultador e precursor do
microfone. A forma cilíndrica denotaria não-casualmente uma relação entre erotismo, moralidade e
interpretação distanciada. O nascimento da semiologia coincidiu com uma des-corporificação
cartesiana implicada no distanciamento entre corpo-objeto e mente-sujeito. O propósito desse texto é
ampliar o alcance dessa relação para encaminhar uma crítica sobre a ausência de claros limites entre o
que seria uma experiência perceptiva do tipo ‘sinal físico’ e uma de tipo erotizado ou emotivo.

Palavras chave: microfone, estetoscópio, semiologia, sonologia, escuta

A tool’s shape: hazard or analogy?

Abstract: Development of a sonological research into the relations between visual, iconographic and
listening instances, focusing the esthetoscope, first auscultation device and forerunner of the
microphone. The cylindrical shape would imply a non-casual relation between eroticism, morality and
distanced interpretation. The birth of Semiology coincided with a disembodied cartesian distancing
between body-object and mind-subject. The purpose of this paper is to delve into this relationship in
order to address a critical view on the absence of a clear perceptual separation between a ‘physical
signal’ and an emotional or eroticized stimulus.

Keywords: microphone, esthetoscope, semiology, sonology, listening

1. Hipótese
Os sons fonográficos (em geral e na música eletroacústica) fixavam-se (Chion
1991) em sulcos na superfície de discos, mais tarde em partículas imantadas da fita
magnética, e atualmente se abrigam nos micro-sulcos para leitura e gravação a laser, HD,
SSD, etc. Quando não sintetizados, os sons provinham - e ainda provém - de gravações já
existentes ou especificamente realizadas para a produção em curso. Em ambas situações
empregam-se materiais sonoros captados inicialmente por via mecânica, a que se somou,
mais tarde, tecnologia eletro-eletrônica. O microfone, ferramenta captora de sons, veio a
desempenhar na música um papel significativamente erotizado, ainda hoje implicado em sua
forma cilíndrica, sonora e visualmente aproveitada por cantores lânguidos. Acredito haver
algo digno de atenção na função e no formato desse objeto, que aponta para momentos
críticos na época da cristalização das ciências modernas e da música. Hoje ‘re-sensualizando’
o som, o microfone devolve à escuta um toque corporal que havia sido afastado por seu
ancestral, o estetoscópio. Do grego στήθος, sthétos – peito e σκοπή, skopé – exame).
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O microscópio e o telescópio, e mais tarde o microfone têm a função de encurtar


distâncias. Sem cumprir exatamente essa função (cf. a seguir), em fase pré-elétrica o
estetoscópio desempenhou missão diagnóstica auxiliando a Medicina no processo de
consolidação de sua Semiologia, a primeira disciplina semiótica de caráter científico. Um
percurso entre fatos e analogias pode levar-nos a arriscar a hipótese que semiologia, erotismo,
pudor e teoria musical encontraram-se associados desde os tempos mecânicos da primeira. O
método escolhido para elaborar essa hipótese será comparar os estados contemporâneos da
moral e do conhecimento à época da invenção do estetoscópio, e a situação atual da escuta.

2. A Semiologia Médica
Manuais de Medicina e médicos são unânimes em apontar a origem do termo
Semiologia a Émile Littré, no Dictionnaire de la langue française, de sua autoria, publicado
em 1863. Uma consulta ao dicionário indica que, para Littré, o termo não era novidade, nem
invenção sua:

SÉMIOLOGIE
"(sé-mi-o-lo-jie) s.f.
Terme de médecine. Partie de la médecine qui traite des signes des maladies. Du
grec, signe, et, doctrine." (Littré 1863)

Para Ferrater-Mora:

“Na Antiguidade a palavra ‘semiótica’ foi usada frequentemente para designar a


parte da medicina que se ocupava de interpretar os sinais das doenças, abarcando a
diagnose e a prognose. Assim por exemplo, encontramos em Galeno a expressão
semiotikhe tekhne)" (Ferrater-Mora 1994)

Em sintonia com as demais ciências no séc. XIX, para a formulação de


diagnósticos a Medicina firmou uma importante etapa relacionando-se com as novas
tecnologias: o uso de mediadores da percepção. Diferentemente das lentes de aumento, que
ampliavam o objeto visual, o estetoscópio lançou o observador em situação acusmática,
aproximando-o do objeto sonoro, que, sem o apoio verificativo da visualidade, devia ser
interpretado conforme indícios meramente acústicos. A semiologia acusmática da medicina
veio re-colocar o observador na mesma caverna nietzcheana, - aquela que, segundo o
filósofo, teria sido o berço da escuta musical (Nietzsche 1881)1 – a mesma que, no século
seguinte, revestiria de penumbra a escuta eletroacústica. Evidentemente médicos não usavam
o estetoscópio para uma escuta musicista, porém este objeto os conduz ao mesmo exercício
de source-bonding (Smalley 1994).2 O que seria essa junção-à-fonte medical senão uma
transposição da noção aristotélica de causa & efeito ajustada para a escuta?
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3. O primeiro estetoscópio
Até inicios do séc. XIX, os médicos faziam o exame baseado na escuta colando a
orelha no corpo do doente. O procedimento foi alterado nos primeiros anos do século XIX.

‘O estetoscópio foi inventado em 1816 quando um jovem médico francês chamado


René Théophile Hyacinthe Laënnec examinava uma jovem paciente. Encabulado
por ter de comprimir sua orelha contra o peito dela (o método chamado
Auscultação Não-mediada) - pois este era o método usado pelos médicos daquela
época - Laënnec lembrou-se de um truque, aprendido quando criança, para escutar
sons transmitidos por via sólida. Enrolou algumas folhas de papel, colocando uma
ponta em seu ouvido, a outra no peito da jovem. Deliciado, descobriu que os sons
não apenas eram conduzidos pelo cilindro de papel, como também chegavam ‘alto
e claro’. O primeiro manuscrito documentando auscultação ‘mediada’ através do
estetoscópio é de março de 1817, quando Laënnec anotou o exame de Marie-
Melanie Besset, de quarenta anos.’ (Rackow 1998)

A origem do estetoscópio não deixa dúvidas quanto ao embaraço cum desiderium


proveniente da iminência de um delicado contato entre dois corpos.

‘A objeção de Laënnec à auscultação não-mediada toca claramente em fronteiras


de decoro e embaraço: o estetoscópio pode escutar até através das roupas das
pacientes e libera doutores do sexo masculino do embaraço (awkwardness) de
tocar em peitos de mulheres. O bourgeois decorum...’ (Sterne 2006)

O nascimento da semiologia médica coincide, portanto, com o estabelecimento


dessa separação entre o peito do paciente e a escuta do médico. Consagrava-se, assim, uma
experiência efetiva de separação entre corpo e mente: o corpo do objeto de estudo e a mente
do pesquisador (Sterne 2006).

O primeiro embrião do microfone concentrava a atenção na pele do tímpano do


ouvinte, anulando todo o ambiente e demais percepções, impelindo a experiência humana um
degrau adiante no especialismo da cultura ocidental, sem destoar da nascente noção de
música autônoma. E evitando aquele toque resistido e eventualmente sublimado pelo médico.
A forma do primeiro estetoscópio é não somente funcional, pois sugestiva:
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Fig. 2: Estetoscópio monaural. Primeiro modelo, 1816.

Talvez algum pesquisador venha a investigar por que razão Laënnec foi pintado
em afresco na Sorbonne (por Theobold Chartan) em cena na qual o paciente é do sexo
masculino. A posição do estetoscópio, no quadro, também é rica de insinuações, permitindo-
nos inferir possível lapso psicanalítico.

Fig. 3: Laënnec examina um paciente com seu estetoscópio: lapso do artista?

4. O estetoscópio moderno
A medicina e a semiologia médica buscaram patamar mais pudibundo livrando-se
do sugestivo cilindro, chegando finalmente ao desenho do chamado estetoscópio binaural,
usado em tempos atuais. Somente um renovado esforço pelo decoro justifica a transformação.
O novo formato não propicia significativa melhoria acústica: no que concerne a escuta não há
exploração efetiva da suposta binauralidade sugerida no novo artefato. (Só pode haver
experiência binaural de fato quando dois captadores mantém a individualidade de sua
informação até a chegada aos ouvidos, o que não é o caso dos estetoscópios binaurais, que
levam às duas orelhas, por caminhos separados, o sinal acústico de um só captador). A
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binauralidade do nome refere-se unicamente ao empenho simultâneo de ambas orelhas para a


auscultação. A vantagem só pode ser o maior isolamento do ambiente.

Outra interpretação possível, voltando à analogia visual e ao lapso psicanalítico,


permite identificar uma semelhança entre esse novo objeto e a redução gráfica, para fins
medicais, do aparelho reprodutor feminino.

Fig. 4: O estetoscópio binaural

Fig. 5: O sistema reprodutor feminino

Seria apenas por acaso que desta vez o instrumento abandona sua forma fálica
para se assemelhar ao aparelho reprodutor feminino? Qual seria o objetivo oculto desse
lapso? Estaria a engenharia médica já marcando passos à espera do início de uma ‘era da
reprodutibilidade técnica’?

Hoje em dia os estetoscópios são utilizados também para distinguir médicos de


enfermeiros e demais profissionais do ramo. Graças a sua forma, usa-se o objeto pendurado
em volta do pescoço, possivelmente estando aí mais uma explicação para a adequação do
binaural: é nos ombros dos médicos que pesa o ônus da semiose.
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5. O microfone
Com certeza o “bourgeois decorum” dos médicos da época desempenha papel
importante, tendo quase certamente coadjuvado na introdução, para a música, do conceito de
organicidade ( (Dahlhaus 1989), ainda muito caro à Análise Musical. Mas por que razão um
instrumento de escuta devolveria tanta carga simbólica para os dias de hoje?

Eletrificado, o microfone evoluiu rapidamente até atingir formas inequívocas:

Fig. 8: Microfone cardioide.


Conhecido recurso eletroacústico recuperado pela Bossa Nova, o close-miking
consistiu na aproximação da cápsula do microfone à boca do locutor, para que o volume da
voz pudesse ser registrado com maior isolamento do ambiente, com reforço do efeito de
proximidade (aumento de amplitude das frequências graves) dos microfones cardioides, cuja
curva de representação do pólo de sensibilidade reproduz o grafismo de uma glande:

Fig. 9: Curva cardioide.


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Assim se pode dirigir ao ouvinte um cochicho, uma insinuação de sensualidade


distanciada, uma promessa de falar da boca-para-a-orelha, como se fosse para um único
interlocutor. O close-miking - na música popular e na música contemporânea - permite aos
cantores que sussurrem em alto e bom som. Como conseqüência desse recurso permite-se
também uma espécie de ‘re-aproximação’ entre o ‘som puro’ (entendido como sinal acústico
‘não-referencial’) e o som como experiência estética sensual. Trata-se, portanto de uma
experiência acústica que faz questionar a possibilidade de experiências perceptivas
desnudadas de afecção, e questiona, ainda, a possibilidade de uma écoute réduite conforme
essa expressão schaefferiana tem sido falseadamente vulgarizada pelo mundo da música
eletroacústica.

A operação conceitual batizada de écoute réduite por Pierre Schaeffer, quando


alçada à condição de estética, cumpre missão distanciadora em grau potencializado pela
eletro-eletrônica. Mas como expressar o erotismo de um som segundo o exercício da escuta
reduzida? A voz do próprio Pierre Schaeffer, descrevendo uma das tentações de Santo Antão,
na obra de Michel Chion, é conhecida:

Áudio: excerto de ‘La tentation de Saint Antoine’ (1984), (Chion 1991)


Como classificar a expressão de Pierre Schaeffer dentro do estreito quadro morfo-
tipológico que ele mesmo criou? (Schaeffer 1966) Onde, no quadro morfo-tipológico, está a
caixa para o objeto sonoro ‘sensual’?

O ouvinte acusmata volta, então, a obter o prazer pela escuta re-sensualizada,


penetrando em todos os recônditos da intimidade de sons microfonados a pequena distância.
Mas agora está solitário, compartilhando esse isolamento que lhe chega como se fosse através
de um estetoscópio.

Referências
Chion, Michel. “La tentation de Saint Antoine.” La tentation de Saint Antoine / La Ronde.
Comp. Michel Chion. INAC2002, INAC2003. 1991.
—. L'art des sons fixés, ou la musique concrètement. 1a Ed. Fontaine: Métamkine, 1991.
Dahlhaus, Carl. The idea of absolute music. Tradução: Roger Lustig. Chicago: The
University of Chicago Press, 1989.
Ferrater-Mora, José. Dicionário de Filosofia. Barcelona: Editora Ariel, 1994.
Littré, Émile. Dictionnaire de la langue française. Paris: Hachette, 1863.
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Nietzsche, Friedrich. Morgenröthe. Gedanken über die moralischen Vorurtheile. Chemnitz:


Verlag von Ernst Schmeitzner, 1881.
Rackow, Eric. “The monaural esthetoscope.” Medical Antiques Online. 1998.
http://www.antiquemed.com/monaural_stethoscope.htm (acesso em 21 de Março de
2011).
Schaeffer, Pierre. Traité des objets musicaux. Essai interdisciplines. Paris: Ed. du Seuil,
1966.
Smalley, Denis. “Defining timbre, refining timbre.” Contemporary Music Review (Harwood)
10 part 2 (1994): 35-48.
Sterne, Jonathan. The audible past. Cultural origins of sound reproduction. Durham, EUA:
Duke University Press, 2006.

1 'O ouvido, este órgão do medo, só alcançou tanta grandeza na noite e na penumbra de cavernas obscuras e
florestas, bem de acordo com o modo de viver da era do receio'...'Na claridade do dia o ouvido é menos
necessário. Foi assim que a música adquiriu o caráter de arte da noite e da penumbra.' 'Nacht und Musik - das
Ohr, das Organ der Furcht, hat sich nur in der Nacht und in der Halbnacht dunkler Wälder und Höhlen so reich
entwickeln koennen, wie essich entwickelt hat, gemaess der Lebensweise des Furchtsamen, das heisst, des
allerlängsten menschlischen Zeitalter, welches es gegeben hat: im Hellen ist das Ohr weniger nöthig. daher der
Charakter der Musik, als einer Kunst der Nacht und Halbnacht.' Morgenröth, (1881), aforisma 250. (Nietzsche
1881, 125)
2 ‘The natural tendency to relate sounds to supposed sources and causes, and to relate sounds to each other
because they appear to have shared or associated origins.’ (Smalley 1994, 36)

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