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ARLEY FRANÇA

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ÍNDICE

PARTE PRIMEIRA | NO MUNDO ESPIRITUAL.................................04


PARTE SEGUNDA | NO MUNDO DOS HOMENS.............................253
PARTE TERCEIRA | DESCOBERTOS.................................................421

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“Dois meses após a vitória dos anjos.”

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PARTE PRIMEIRA

NO MUNDO ESPIRITUAL

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CAPÍTULO 01

Sexto Céu – tempos atuais

Haziel e Caliel estavam em cima de uma rocha olhando o


horizonte. Os olhos rubros de Caliel encaravam Haziel com
imponência. Apesar da cor, ainda eram amigáveis. Apesar do brilho
guerreiro, ainda tinham seu brilho inocente de um guardador. Sua lira
estava presa à cintura, cintilando seu rubi central, igual aos de sua
sandália. Sua armadura peitoral ainda lampejava seu dourado. Sua saia
de tecido leve esvoaçava com o vento. Suas asas estavam
desabrigadas.
O anjo louro vestia a tradicional roupa branca angelical. Esta
que cobria apenas algumas partes do corpo. O ombro direito ficava à
mostra, juntamente com o peito e dorso direito. As pernas musculosas
ficavam evidentes a partir da coxa. Nos pés calçava uma sandália de
couro marrom. Como as de Caliel, suas asas também estavam
expostas.
– Caliel, Haziel! Posso ir aí?
Os dois anjos olharam para baixo e avistaram Aron os
encarando com seus novos olhos azuis, resplandecentes.
– Venha! – Caliel gritou e gesticulou com a mão.
Aron subiu o pico correndo. Quando chegou acima do monte,
mesmo antes de cumprimentar os anjos, vislumbrou a imensidão
divina do Sexto Céu. Algo que já tinha feito muitas vezes.

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Milhares de legiões de anjos plainavam dentre as nuvens
brancas como algodão. O céu azul claro tinha um brilho próprio. O
solo era colorido em milhares de tons, sendo que o predominante era o
rosa. No meio do terreno infinito, corria um grande rio também
infinito, prateado. Este que seguia cortando o solo até o fim do
horizonte, onde começava a raiar uma gigante estrela branca. Muito
maior do que o Sol terrestre.
– Chegaram a uma conclusão? – indagou Aron sorridente, mas
seu cenho franzido demonstrava certa preocupação.
Caliel sorriu e encarou Aron por três segundos, antes de colocar
a mão em seu ombro e dizer:
– Ao dormir da estrela branca!
O humano arregalou os olhos e olhou para Haziel. O louro
inclinou a cabeça sorridente.
– Então é amanhã?
– Vamos dizer que sim! – afirmou o anjo que agora era metade
guardador, metade guerreiro. – Temos apenas que falar com alguém
antes.

***
Haziel, Caliel e Aron entraram no grande salão de mármore azul
claro. O templo de Bariel. O primeiro comandante estava sentado em
seu robusto trono branco, ao final do tapete dourado que cortava o
salão. Seus cabelos prateados agora tinham um tom azulado devido às
paredes da construção. Três pilares de cada lado seguiam do começo
até o final do grande salão, com cerca de trezentos metros de
comprimento. Sua altura também era grande, tanto quanto um prédio
humano com vinte andares. Entre uma viga e outra, próximos às

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paredes, posicionavam-se dois anjos guerreiros, totalizando oito no
enorme espaço. Ambos tinham armaduras semelhantes, prateadas.
Única coisa que as diferia eram as pedras na cor de seus olhos que
ficavam no centro do peitoral.
Rapidamente os três alcançaram o primeiro comandante,
atravessando o grande tapete dourado. Sua feição era séria. O trio
meneou a cabeça quase que juntamente.
– Digam – disse Bariel diretamente.
Haziel deu um passo à frente fazendo com que suas lustrosas
asas balançassem.
– Senhor! Temos permissão para prosseguir com o plano após o
dormir da estrela branca?
Bariel penetrou seus olhos nos de Haziel, abaixando as
sobrancelhas. Um momento de silêncio pairou no salão.
Um pouco atrás, Aron sentia um formigamento na cabeça.
Caliel, ao lado, podia ver seus lábios tremendo.
– Fique calmo, Aron. Vai dar tudo certo! – disse o ruivo,
cochichando.
– É o que eu espero! – Aron estreitou os olhos. – Por que ele não
fala nada?
– O Primeiro gosta de fazer suspense. – O sorriso de Caliel foi
tão maravilhoso que Aron se tranquilizou no mesmo momento.
Depois de quase um minuto, Bariel indagou:
– Como vocês pretendem fazer isso?
Gesticulando com as mãos, Haziel contou nos dedos ele, Daniel
e Caliel para chegarem ao inferno. Para isso utilizariam o poder de
esconder a energia de Caliel. Bariel franziu as sobrancelhas e abriu
mais o olho direito.
– Você acha que vale a pena arriscar tudo?
Aron apertou os punhos nesse momento e disse com tom alto:
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– É claro que vale a pena arriscar!
Bariel se levantou do trono e deu alguns passos à frente, ficando
a apenas dois metros de Aron.
– Só se dirija a mim quando eu lhe perguntar algo, humano.
Aron apertou mais forte os punhos, mas ficou calado após Caliel
colocar a mão em seu peito.
– Perdoe-o Primeiro. Ele não sabe como agir. Creio que seu
desespero nesse momento seja insuportável.
Bariel deu-lhes as costas e começou a andar para a lateral do
salão dizendo:
– Façam o que quiseram, mas saibam que não aprovo isso. Uma
missão é uma missão. Duas? – Ele entrou em uma porta de pedra com
cerca de quatro metros de altura, batendo-a forte em seguida.
– Pelo menos conseguimos, depois de dois meses. – Aron
apontou, com a cabeça, para a porta onde passou Bariel.
– O primeiro comandante é difícil, mas ele entenderá a
importância disso uma hora – disse Caliel.

***
Não muito longe dali, próximo ao palácio central.
– Daniel! – alguém o chamou.
Enquanto ele organizava sua nova roupa, que inclusive estava
odiando, tentando prender aqui e ali, respondeu:
– Diga, Barrattiel.
– Você vai mesmo para o inferno?
– Por que me pergunta isso? – Olhando fixamente para
Barrattiel, Daniel parou o que fazia.
– Me sinto ansioso sobre isso!

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– Como ansioso?
O grandalhão respirou fundo, deu a volta na fonte central de
águas coloridas e chegando mais próximo de Daniel, disse:
– Eu tenho medo de perder vocês nessa. – Ele tinha o olhar
triste. – Como podemos saber que isso de esconder a energia de Caliel
ajudará vocês também?
Daniel se aproximou mais dele, tendo que inclinar um pouco a
cabeça para cima. Colocando a mão em seu ombro, soltou:
– Eu prometo que acabarei com mais chifrudos do que o
necessário em sua homenagem. E se a nossa energia não puder ser
escondida – Daniel respirou fundo –, teremos que ser mais cautelosos,
para inibi-la o máximo possível.
Barrattiel sorriu, evidenciando seus olhos escuros e jogou Daniel
para cima algumas vezes.
– Tá bom, tá bom. Pode parar!
Barrattiel colocou Daniel no chão, mas continuou esbanjando
sua felicidade.
– Acho que eu quero ir também – disse ele pulando, socando o
próprio punho.
– Não! Temos que ser cautelosos e você se conhece. – Daniel
tentava prender um lacre da veste que havia se soltado quando
Barrattiel o jogou para cima. – Por que isso não fica preso? –
resmungou.
– Daniel! – entrou correndo, naquela parte do pátio, um anjo
guerreiro com a aparência de um menino de dezessete anos. – Tenho
uma mensagem de Mazarak. – A pele clara, os cabelos negros e os
olhos azuis os faziam parecer um felino.
– Aladiah! – Com os olhos arregalados, Daniel pediu que ele
dissesse.
– Ele vai ao inferno com vocês.
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Barrattiel estapeou as mãos de emoção, assustando os outros.
Eles o olharam fazendo com que seu rosto ficasse rubro.
– Vocês não podem me julgar. Mazarak é uma grande ajuda –
disse o grandalhão um tanto tímido.
– Não, não podemos, Barrattiel. – Daniel deu um risinho e
depois se dirigiu a Aladiah: – Como você recebeu essa mensagem?
– Ele está fora do grande portão. – O anjo de aparência jovem
apontou com o dedão para qualquer lugar.
Daniel arqueou as sobrancelhas e expôs as asas, explodindo o ar
em volta, deixando os outros dois anjos para trás.

***
Daniel percorria o Sexto Céu a toda velocidade, deixando
apenas vultos de grandes monumentos e nuvens para trás. Muito
longe, tão longe quanto a Lua da Terra, Daniel visualizou a titânica
entrada para o Sexto Céu. Não parecia possível, mas ele aumentou sua
potência no voo e disparou com uma velocidade cem vezes maior do
que de uma nave humana. Nas regiões celestes, os anjos obtinham
muito mais poder. Quanto mais próximos de Deus, maior sua pujança.
Após alguns minutos, ele começou a se aproximar do portal,
uma grande construção arqueada de mármore. Milhões de pedras
preciosas rodeavam sua casca. Luzes coloridas lampejavam por toda a
estrutura. Seus dois pés estavam presos a uma imensidão de nuvens,
que por seus movimentos, pareciam vivas.
Ele seguiu em direção ao grande arco que cada vez parecia
maior à sua aproximação. Quando plainava sob a construção, podia
ver que ela se erguia a milhares de quilômetros de altura. Naquele
momento, lembrou-se de quando as milhares de legiões angélicas,

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com milhares de anjos cada, entravam por aquela porta, após vitórias
em batalhas sangrentas. Os clamores eram estridentes. Sempre.
Após atravessar os quilômetros que sustentavam aquela
estrutura colossal, ele avistou Mazarak. O duque de Lúcifer plainava
com suas asas negras sobre as nuvens vívidas.
– Vejo que o guardião te entregou meu recado. – O duque
repuxou um breve sorriso.
Daniel se aproximou do irmão de espírito e lhe deu um abraço.
Mazarak lhe retribuiu.
– Por que você não foi até mim?
– Você sabe por quê! – O anjo com asas negras baixou as
sobrancelhas e se virou.
Daniel plainou dando a volta em seu corpo e ficou novamente de
frente para ele.
– Você sabe que é bem vindo para vir aqui quando quiser, ou
mesmo para ficar aqui.
– Eu não enxergo dessa maneira.
– Então como você enxerga, irmão?
Duas rajadas leves das asas negras antes que Mazarak dissesse:
– Eu fiquei exilado por mais de cem mil anos por culpa deles.
Daniel ficou mudo e Mazarak acrescentou, cortando o assunto:
– Afinal. Você vai querer a minha ajuda?
Daniel abriu um sorriso e colocou a mão no ombro do irmão.
– Sempre, irmão. Sempre! – Inclinando a cabeça um pouco para
baixo, Daniel indagou: – Vem comigo?

***
A estrela branca ocupava o centro do Céu. Haziel, Caliel e Aron
se dispunham sobre um tapete de grama verde. Alguns animais

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rodopiavam no ar e brincavam por todos os lados. Um chamou a
atenção de Aron. Era um coelho com asas. As asas eram grandes e em
vez de penas, tinham pelos brancos. Súbito, Aron sentiu um grande
tremor, quase como um terremoto. Ele arregalou os olhos encarando
Caliel, assustado. Ambos os anjos riram. De repente, uma grande
criatura submergiu do tapete de grama. Era uma grande baleia azul.
Ela subiu e caiu como se estivesse no mar, explodindo terra para todos
os lados. Mas logo os destroços se integraram, transformando o solo
novamente em um tapete de grama verde.
– O que é isso? – gritou Aron, assustado.
Os anjos se puseram a rir ainda mais.
– Uma baleia terrestre, Aron. – disse Caliel, rindo.
Nesse momento, Hariel explodiu o solo ao lado do humano com
sua aterrissagem “delicada”. Isso o fez cair para trás. Então todos
começaram a rir sem parar.
Um momento se passou.
– Como vocês vão fazer isso? – indagou a loura, dirigindo-se a
Haziel.
– Partiremos daqui a seis estações da estrela branca, minha irmã.
– Não é mais fácil você dizer seis horas? – resmungou Aron
enquanto se levantava, emburrado.
– Irão apenas você, Caliel e Daniel? Barrattiel não irá?
Aron gritou do fundo que também iria, mas ninguém lhe deu
atenção.
– Barrattiel não vai, mas quanto a irmos apenas nós três, creio
que não – disse o louro, olhando para cima.
Hariel olhou juntamente para o local e eles puderam avistar
Daniel se aproximando. Mazarak voava ao seu lado rajando suas
plumas negras.

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Ambos pousaram, assustando Aron novamente. Mas dessa vez o
humano não caiu. Logo Daniel disse:
– Temos reforço.
Haziel deu dois passos e parou na frente de Mazarak, colocando
a mão em seu ombro.
– Um grande reforço – disse o louro, sorridente.
Naquele momento Aron teve um pensamento: Daniel e Mazarak
eram idênticos. A não ser pelo fator dos olhos, das asas e pelas
tatuagens no corpo do duque. Olhando Hariel, reparou que ela era
idêntica a Haziel, mas que era apenas sua versão feminina. Ele achou
isso fabuloso, principalmente no mundo angelical. Nunca imaginou
que isso pudesse acontecer também naquele mundo. Não que ele
pensasse nisso antes de tudo acontecer.

***
Os olhos do humano lampejavam mais do que o costume
naquele momento. Estava sentado sobre uma grande rocha que se
erguia no meio de um morro verdejante. Sua mente estava no lugar
que pelos últimos dois meses visitou todos os dias. Pôde ver, acima de
sua cabeça, um grande bando do que pensou serem aves. Essas
criaturas dançavam, formando sincronias incríveis e belas. Só quando
uma delas desceu em rasante e plainou como um beija-flor, alguns
centímetros na frente de seu rosto, que ele percebeu que se tratava de
miniaturas de gatos coloridos. Os olhos mais esbugalhados do que o
normal o encaravam amigavelmente. A pupila escura que ia de uma
ponta a outra nos olhos naturalmente nos felinos, nesse animal com
asas tinha o formato diferente. Assemelhava-se ao desenho de uma
estrela feito por uma criança.

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– Belos animais né, Aron! – O anjo ruivo se sentou ao seu lado,
esticando a mão para acariciar o animal alado. Este que lhe lambeu o
dedo e bateu as asas para se juntar ao seu grupo.
Aron abriu um sorriso um tanto sem graça. Caliel percebeu uma
lágrima escorrendo do olho direito do humano. Ele a pegou e a
observou.
– Isso foi uma das principais ferramentas para salvarmos o
mundo.
O humano contraiu os lábios e respirou fundo. Então Caliel
indagou:
– O que você tem, Aron? Posso sentir que não está bem! – O
ruivo tinha os braços entre as coxas enquanto as balançava, encarando
Aron.
– Saudades, Caliel! Eu sinto saudades! – Uma breve pausa,
enquanto o humano observava os animais alados se afastando. – Eu
não sei quanto a vocês, mas nós humanos, sentimos muito a ausência
de nossos entes queridos.
Caliel sorriu e disse:
– Você lembra que eu te disse uma vez que nós somos muito
mais parecidos do que você imagina?
Aron concordou com a cabeça. Caliel arregalou os olhos sem
tirar o sorriso do rosto e acrescentou:
– Eu não retiro isso. Eu sei muito bem o que você está passando
– uma pausa –. Tá, não muito bem. Mas entendo.
– Tudo bem. Eu posso concordar que você – Aron apontou para
Caliel – pode ser parecido com os humanos. Mas Bariel não é! Caso
fosse, não levaria dois meses para permitir a missão.
– Eu também compreendo esse seu sentimento. Mas pense que
são duas missões em uma e uma delas teve que esperar a outra

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concretizar o início da execução para avançar. – Caliel olhou para a
frente e os dois ficaram observando o horizonte.

***
Hekamiah mantinha a sua mesma armadura. Apenas uma
robusta ombreira no ombro esquerdo. Mas parecia mais viva do que
antes. O símbolo vermelho em seu abdômen foi trocado por um da cor
dourada. A calça branca do mesmo tecido leve, agora estava limpa.
Suas espadas com dentes disformes estavam em suas costas, presas no
couro divino.
O anjo estava na frente de seu aposento, sentado, com as asas
guardadas. Um grande banco de granito branco absoluto o recolhia
como um abraço. Olhando à frente, ele avistou Hariel se aproximando,
balançando suas asas para trás e para frente. Logo a loura chegou e
disse:
– Preciso conversar com você, Hekamiah.
– Diga, Hariel. – O anjo se levantou e beijou sua mão,
sorridente.
Ela meneou a cabeça e agradeceu a gentileza.
– Você acha que as especulações são verdadeiras?
– Eu sinto que sim!
– Temos que nos preparar então. – Ela piscou duas vezes
rapidamente.
– Hariel, eu sempre estou preparado!
– Ótimo! Eles partirão em três estações da estrela branca.

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CAPÍTULO 02

– Já estamos na última estação da estrela branca – disse Haziel,


enquanto fitava o astro. – Estão todos preparados?
– Sim! – disse Daniel.
Mazarak assentiu com a cabeça.
Aron chegou arrastando uma espada muito desajeitadamente,
tentando levantá-la.
– Sim! – disse o humano.
Os anjos o olharam um pouco reprovando-o.
– Aron, não sei nem porque te deixo ir. Por favor, faça apenas o
que nós mandarmos – disse Haziel.
O humano meneou a cabeça. Caliel se prostrou na sua frente,
indagando:
– Você tem certeza disso? – O anjo tinha um olhar preocupado.
– Tenho. Não quero que ela se assuste com vocês.
– Ela não se assustará, Aron.
Barrattiel, que nesse momento já tinha se juntado ao grupo, deu
uma risadinha.
– É! Tendo em vista o que ela já deve ter visto lá... – disse o
grandalhão.
Aron o fulminou com o olhar. Barrattiel baixou o seu,
escondendo o sorriso em seguida.
– Tome cuidado, Haziel – disse Hariel se aproximando,
abraçando o irmão de espírito.
Barrattiel abraçou os dois irmãos de espírito com seu grande
corpo.

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– É, tome cuidado, Haziel.
– Como faremos isso? – indagou Mazarak, enquanto suas asas
balançavam ao vento fraco.
– Por que todos perguntam isso? – indagou Aron.
Ignorando a pergunta de Aron, Haziel falou para os outros:
– Creio que tenhamos que fazer da forma mais difícil para não
chamarmos atenção. – O anjo respirou fundo, depois olhou para o
humano. – Aron, nós, os guerreiros de Deus, não conseguimos
esconder nossas energias como Caliel pode. Teremos que anulá-la
como pudermos.
– Eu não sabia esse lance da energia. Para mim está tudo ok. – O
humano prendeu o dedo indicador ao dedão, fazendo um gesto
parecido com uma rosca.
– Como seria essa forma mais difícil? – indagou o duque de
Lúcifer.
– Teremos que voar daqui até a constelação de Scorpius.
– Isso não será possível! – Mazarak tinha os seus olhos
arregalados.
Haziel sorriu e disse:
– Teremos uma grande ajuda que devemos a Yesalel.
Nesse momento, uma luz brilhou forte meio ao Céu que naquela
parte onde observavam, começava a escurecer. Todos os anjos
sorriram. Menos Aron e Mazarak que olharam desconfiados.
Rapidamente Aron caiu na real e também alargou o sorriso,
empolgado.
– Pegasus e Mitra! – disse Aron em tom alto.
Caliel o encarou, sorridente.
– Quem? – indagou Mazarak.
– Nossa carona. Você verá. – Caliel lhe deu uns tapas nas costas,
alargando um grande sorriso.
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Mazarak franziu as sobrancelhas e voltou a encarar os seres
aproximando-se. Logo ele vislumbrou o grande cavalo branco alado e
o gigante leão branco com asas, correndo sobre uma energia colorida.
A pujança em suas patas era de tamanha grandeza que a velocidade
chegava a ser irreconhecível para os anjos.
Mas o que ninguém esperava era a presença da terceira criatura.
Um gigante dragão branco. Suas asas claras brilhavam como a estrela
branca. Seu corpo era forte como de um dinossauro poderoso. As
patas da frente eram tão robustas quanto as traseiras. O gigante rabo,
com quase o dobro do tamanho de seu corpo, era forrado com
espinhos pontudos. Quando os animais pousaram, deu para ver que o
dragão era quadrúpede.
Aron se surpreendeu, pois achou que já tinha visto de tudo. A
fera era imponente, mas seus olhos eram amigáveis. Tais como os de
um cão. Quando os animais se aproximaram, Aron reparou que o
grande dragão o encarava fixamente. Isso o fez virar o rosto, sem
graça.
Mazarak se aproximou do leão e lhe acarinhou a juba. O animal
roncou e esfregou a grande cara nos ombros do duque de Lúcifer.
– Eu já escolhi minha carona – disse Mazarak, apontando o leão
com o queixo.
Daniel se aproximou e os dois subiram no grande leão, com
saltos.
– Vamos? – Caliel chamava Aron, esticando a mão. Um sorriso
no rosto.
Aron assentiu e seguiu o anjo, que foi em direção ao Dragão. O
humano hesitou alguns passos, mas continuou. Caliel o ergueu pelos
ombros e voou até os cinco metros acima, colocando Aron nas costas
do monstro branco. Enquanto Caliel se assentava um pouco mais
atrás, Aron escutou.
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– Olá, Aron! – O Dragão olhava para ele, mas não abria a boca.
– Meu querido amo me enviou para cuidar especialmente de você.
Surpreso, Aron perguntou na própria mente.
– Quem é seu amo?
– Lúcifer. – O dragão pareceu sorrir e logo ergueu voo,
juntamente com os outros.
Haziel, sozinho, tomou a dianteira ocupando as costas de
Pegasus, o súdito de Rafael.
Hariel e Barrattiel ficaram olhando, enquanto os três animais
explodiam a luz e seguiam na direção de Scorpius. A constelação
infernal.

***
O grupo com animais, um duque do submundo, humanos e
anjos, viajava pelo espaço sideral em velocidade que se chamada de
descomunal, ainda seria como um mero grão de areia em comparação
a magnitude do universo. Não existia uma palavra para distinguir suas
velocidades. Estrelas menores ou muito maiores que o sol da terra
eram deixadas para trás como casas, ao passar de um carro numa
estrada.
Aron já tinha viajado rápido acima das costas daqueles mesmos
seres, mas não como naquele momento. Uma gigante estrela azul
chamou muito a atenção do humano, enquanto eles a contornavam.
Poderosas ondas magnéticas se formavam em sua casca, como um
mar azul em fúria. Suas ondas podiam ter o tamanho da Terra, ou de
mil Terras. A luz do astro era tão forte que o corpo de todos quase
sumia meio a uma claridade.

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Mais um disparo e a estrela virou apenas um ponto brilhante. A
imensidão de luzes coloridas do Universo ficava para trás, formando-
se em linhas tênues, difusas.
Caliel apontou a Via Láctea para Aron, que a vislumbrou
emocionado. Foi apenas mais uma luz que ficou para trás. Um brilho
vermelho despontou de uma parte negra do Universo. Todos, menos o
humano, estreitaram os olhos por entenderem de se tratar de Scorpius,
a constelação infernal.
Existia uma grande distância entre a constelação de Scorpius e a
constelação de Orion, a constelação celestial. Uma era a luz. A outra
era a pura residência das trevas.
O vermelho da constelação, quanto mais próximo, mais
brilhante era. Apesar da luz avermelhada, o terror emitia daquele
lugar. Quando próximos da nebulosa, tanto quanto a Terra do Sol,
deu-se para avistar os relâmpagos flamejantes se distribuindo pelas
estrelas coloridas, malignas. A velocidade agora era cautelosa para os
limites celestiais.
Após não muito mais de uma hora, chegaram a Scorpius.
Passavam ao lado de sua primeira estrela à vista. Uma gigante
vermelha, explosiva em gazes. Os animais diminuíram mais a
velocidade e todos repararam bem naquela enorme estrela tenebrosa.
Com certeza, já estava nos últimos milhões de anos de sua vida.
Saíram rapidinho de lá e começaram a seguir para um lado mais
escuro. Uma titânica faixa negra que separava bilhões de estrelas. A
impressão era de estarem seguindo para uma garganta tão profunda
quanto todo o universo.
Após alguns minutos se aproximando, começaram a ver grandes
meteoros e meteoritos orbitando corpos maiores daquela região. Em
muitos casos aconteciam choques poderosos, emitindo uma grande
luz. O mais impressionante é que todas as bolas eram de fogo. Todas
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eram vermelhas, como rochas flamejantes. Queimavam como se
tivessem uma atmosfera, para alimentar seu combustível.
Um pouco afastado da constelação em que estavam, mas ainda
assim vizinha, Caliel apontou uma luz brilhante para que Aron
olhasse. Então o anjo disse:
– Aquela é a cidade da luz que te disse.
Aron olhou fixamente, atento à beleza da luz longínqua e
indagou:
– A cidade de Lúcifer?
– A antiga cidade de Lúcifer. Agora quem cuida dela é
Beelzebuth. – O ruivo alargou o sorriso.

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CAPÍTULO 03

A pequena legião se aproximava da grande garganta. Quanto


mais próximos, mais parecia um abismo sem fundo, cortado no meio
do universo. Aquele rasgo poderia chegar a milhões de quilômetros de
diâmetro. No meio dele era só escuridão, mas contornado por estrelas
de todas as cores. As predominantes rubras da região enchiam os
olhos de todos.
Na entrada da escuridão, muitos relâmpagos tenebrosos
explodiam por todos os lugares. A impressão era de estarem meio a
uma colisão tempestuosa. Uma tão poderosa que nunca poderia ser
vista na Terra. Tempestades de relâmpagos cortavam a negridão como
garras poderosas. Aron nunca tinha presenciado algo tão satânico.
Haziel já tinha visitado o inferno duas vezes. Uma contra a
vontade. Não imaginava que ele pudesse estar ainda mais tenebroso
no que antes. Baal e alguns dos duques tinham perecido. Sem
Cerberus, com certeza encontrariam outro guardador do portão
principal. Mas quem?
Eles continuaram avançando meio aos fios de relâmpagos
cortantes. Naquele ambiente o som não se propagava. Ao externo à
energia que envolvia todos, não se ouvia nada. Luzes brilhavam aos
bilhões. Mas não emitiam nenhum sinal de força. O som é um
elemento importante na imponência de algo – pensou o anjo louro.
Os animais percorreram aquele ambiente hostil o mais rápido
que puderam. Ao final, alguns raios começaram a se chocar contra
eles. Repentinamente, o número de relâmpagos começou a crescer aos
montes. Como meteoros fustigando a Terra na criação, os raios
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fustigavam a legião e os mantinham presos como por cordas
brilhantes. Isso os fez começar a perder velocidade. Logo estavam
fazendo força para avançar poucos metros. Os raios criaram uma
esfera de energia tenebrosa em volta de todos, formavam uma barreira
de relâmpagos. As forças se contrapunham de uma maneira que a luz
celestial envolvente de todos começou a pulsar.
Haziel estreitou os olhos e explodiu as asas. Plainou por cima do
cavalo alado e explodiu sua áurea reluzente. Ela queimava como uma
poderosa fogueira a um milhão de graus. Subitamente ele avançou
para frente da barreira tenebrosa e começou a fazer força, juntamente
com os animais. Nitidamente percebeu-se um rompimento na pujança
infernal.
Daniel explodiu sua áurea e avançou com a potência de uma
bala vezes mil. Com o choque do corpo do anjo, a barreira se partiu,
implodindo todos para dentro do inferno.
Eles chegaram a uma imensidão completamente negra.
Nenhuma luz brilhava naquele lugar, a não ser pela luz dos celestes.
Eles plainaram naquele ambiente mudo, sem cor, por alguns minutos.
– Você reconhece este lugar, Haziel? – indagou Daniel.
Haziel balançou a cabeça em negativas e depois encarou o anjo,
estreitando os olhos.
– Isso aqui está muito diferente – disse o louro.
Súbito, todos perceberam um movimento muito veloz na direita.
Um segundo depois na esquerda. Tudo ficou calmo. De uma hora para
outra, uma titânica criatura avançou contra todos pelas costas. A
iluminação dos seres celestiais mostrou quando uma boca com pelo
menos cinquenta metros tentou os engolir. Com uma reação
espetacular dos animais, eles se impulsionaram para frente e fugiram
do abate. Haziel quase não conseguiu e foi arranhado nas costas por
uma das grandes presas do monstro. Quase instantaneamente a ferida
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começou a cicatrizar. Depois de sua demonstração de pujança ao lado
de Daniel, na grande batalha contra os infernais, era nítido o maior
poder do celeste, agora. O processo de cicatrização não demorou mais
de cinco segundos, então Haziel mergulhou no breu atrás da fera.
Nenhum dos compostos da legião tentou impedi-lo, pois conhecendo o
anjo louro, sabiam que não seria possível impedi-lo.
Tudo ficou calmo por um longo momento. Nenhum som, ou
movimento. Subitamente uma explosão irradiadora tomou conta do
titânico ambiente. Uma luz dourada partiu para cima, vindo cerca de
um quilômetro abaixo. Ela subiu como uma seta gigante, chocando-se
contra um teto negro como petróleo. Os animais conseguiram desviar
muito velozmente. De repente Haziel apareceu segurando uma calda.
Só a calda, que era o que dava para ver naquela escuridão, tinha pelo
menos cem metros. O corpo da besta sumia no breu, onde a luz
própria dos celestes não alcançava.
– Tudo sob controle! – exclamou Haziel. – Em seguida largou a
calda, fazendo com que o corpo negro do monstro despencasse para
sempre.
Muito calmamente o anjo plainou até Pegasus, que o recebeu
novamente em suas costas. Dessa vez Haziel não guardou suas
branquíssimas asas.
– O que foi isso? – indagou Aron a Caliel. Seus olhos estavam
arregalados.
– Não tenho a mínima ideia – disse Caliel, com seu olhar
penetrante na negridão.
Todos continuaram avançando com mais cautela e atentos a
qualquer novidade. Haziel liderava o grupo, seguindo na frente com
Pegasus. Tinha seus ouvidos em prontidão, ouvindo quilômetros à
frente. O negro era tão absoluto que qualquer coisa poderia aparecer
do nada, em um raio de cem metros.
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Depois de muitos minutos avançando, os animais pararam
bruscamente. Mas não sua luz. Esta que parecia ser sugada por algo na
frente. O movimento era idêntico ao de uma estrela ao ser sugada por
um buraco negro. A luz ia seguindo adiante como se estivesse sendo
arrancada dos celestiais. Eles começaram a fazer força para trás. Seus
corpos começaram a se mover contrapostos ao redemoinho negro
sugador.
Mais uma vez, Haziel estreitou seus olhos e plainou por cima de
Pegasus. Daniel dessa vez o seguiu e parou ao seu lado, também
encarando o buraco negro. Haziel o encarou. Daniel meneou a cabeça.
Em seguida, os dois explodiram suas áureas o mais forte que puderam
e seguiram em direção ao redemoinho. Quando eles iam
desaparecendo meio ao holocausto, todos puderam ver uma grandiosa
luz estourando do centro, como se uma bomba atômica tivesse sido
acionada. Mazarak tinha seus braços cruzados. Espontaneamente
explodiu as asas negras e avançou. Alguns metros à frente, ele parou
abruptamente encarando Caliel e Aron, e em seguida seguiu na mesma
direção que os outros dois.
No meio do caminho, Mazarak parou novamente ao avistar
Haziel e Daniel disparados do meio do abate central. Quando os anjos
se aproximaram, Daniel berrou para que ele os seguisse.
Repentinamente, o céu negro foi rasgado por uma luz poderosa. Tal
como a de uma supernova. O estrondo foi agigantado, impulsionando
os anjos e o duque para a frente. Os animais perceberam a onda de
choque e dispararam na direção contrária.
– O que tá acontecendo? – gritou Aron.
– Haziel é louco! – respondeu Caliel aos berros. – O que ele
aprontou agora? Não adiantou nada termos nos escondido até aqui.
Acho que isso alarmou o inferno inteiro. – O ruivo tinha um ar de
decepção na voz.
25
– Todos estão bem? – indagou Haziel, enquanto se aproximava
com Daniel e Mazarak.
Caliel respondeu com outra pergunta:
– O que vocês fizeram lá?
– Para falar a verdade, nada. De repente, tudo explodiu –
respondeu o louro.
Daniel frisou apenas um dos olhos, ficando mudo.
– Vamos! – disse Haziel, mergulhando no ar em direção ao
antigo buraco sugador.
Caliel teria hesitado, mas os animais partiram em direção a
Haziel. Mazarak e Daniel foram em seguida, voando sem ajuda dessa
vez. Mitra seguia ao lado de Pegasus esbanjando luz em suas asas.
Aron nunca tinha presenciado um momento furioso de Caliel.
Nunca imaginou que um tom de voz daqueles poderia um dia partir do
ruivo.

***
No Sexto Céu, Hariel sobrevoava um grande lago cristalino. Os
agigantados pinheiros que se erguiam contornando a borda refletiam-
se na água. Ali estava chovendo, mas não era uma chuva de água.
Parecia mais como se uma energia azul despencasse das nuvens, quase
azuladas acima. Um metro antes de tocar a água, esses pontos de luz
desapareciam como neve ao se aproximar de uma grande fogueira.
Após algumas centenas de quilômetros cortando o vento a toda
velocidade, a mulher anjo chegou ao seu destino e avistou centenas de
anjos em treinamento. Estavam distribuídos sobre uma grande arena
esférica, completamente branca. Estava erguida sobre um montante de
nuvens claras.

26
Quando mais próxima, Hariel percebeu que os anjos ali eram
jovens aprendizes, sendo que o mais velho não tinha mais de cem mil
anos. Yesalel deslizava dentre os corredores de anjos, ensinando
técnicas de combate. Um anjo alto, forte, com a pele negra andava ao
lado dele. Tinha na cabeça, como elemento principal de suas vestes
claras, uma coroa gregoriana de penas douradas.
A loura pousou cautelosa perto de Yesalel e se aproximou.
– Olá, Hariel! – disse o comandante, sorridente. Os braços
estavam cruzados atrás do corpo. O anjo estava vestido com sua
tradicional roupa, clara, de tecidos leves.
Hariel meneou a cabeça ao Segundo e em seguida se dirigiu ao
anjo negro:
– Olá, Kamael. Quanto tempo! É um prazer revê-lo. – A loura
meneou a cabeça.
O anjo também meneou a dele e em seguida esboçou um
grandioso sorriso, mostrando seus belos dentes branquíssimos.
– O prazer é meu, Hariel! Eu e o comandante estávamos
conversando sobre a nossa vitória. Soube que os guerreiros do Pai
foram poderosos e sobressalentes aos nossos irmãos caídos – uma
breve pausa, então ele repuxou mais os lábios. – Soube o que Haziel
fez para salvar a todos.
– Muito obrigada! – disse a loura. – O momento de tensão foi
grande, mas logo o superamos. – Olhando para Yesalel: – Vim aqui
justamente tratar de assuntos complicados.
No mesmo momento, Yesalel percebeu do que se tratava. Sua
feição mudou para séria, apenas aguardando o que sairia da boca de
Hariel. Então ela não hesitou e logo perguntou:
– As especulações são verdadeiras, comandante?

27
Yesalel respirou fundo enquanto lampejava seus olhos verdes
como esmeraldas. Quando ele ia falar, Kamael deu um passo à frente,
encarando Hariel. Ele olhou para Yesalel e disse:
– Permita-me conversar com ela, comandante?
Yesalel meneou a cabeça e saiu de lado a fim de instruir mais
alguns aprendizes. Kamael encarou Hariel, explodindo suas lindas
asas brancas com três metros cada uma.
– Siga-me! – Ele sorriu.
A loura já tinha as dela expostas. Então apenas as balançou e
subiu seguindo o anjo negro. Logo estavam emparelhados, voando em
velocidade cautelosa. Kamael olhou para Hariel e gesticulou com a
cabeça para o mesmo lado que virou, descendo em rasante.
O campo verde abaixo era agigantado e contornado por flores
multicoloridas que pareciam dançar ao vento. Aqui e ali tinham
grupos de anjos reunidos, conversando, ou divertindo-se entre si.
Todos trajavam suas tradicionais vestes claras angelicais. As solas de
seus pés tocavam o chão ao se locomoverem pela grama verdejante.
Grandes pinheiros de cor rosa preenchiam o fundo do campo.
Os dois pousaram e mantiveram suas asas abertas. Caminhavam
juntos enquanto Kamael observava a natureza, contagiado. Ao
passarem pelo primeiro grupo de anjos, onde todos também tinham
suas coroas de folhas, mas destes eram prateadas, foram
cumprimentados com meneios de cabeças. Alguns disseram:
– Meu Príncipe!
– Obrigado, meus irmãos – retribuiu Kamael, meneando a dele.
Era claro que todos naquele lugar adoravam kamael. Era óbvio
também o motivo disso. O anjo era tão divino e seu brilho interno tão
forte quanto o da princesa Auriel – pensou Hariel, enquanto
caminhavam.

28
– Porque me trouxe aqui, Kamael? – indagou Hariel, talvez um
pouco hesitante na voz.
O anjo negro sorriu grandiosamente. Antes de responder, eles
passaram por uma flor de cores difusas, brilhantes. Ainda não tinha
desabrochado. Kamael deslizou seus dedos por suas pétalas unidas e
instantaneamente elas começaram a se abrir, emitindo um brilho tão
forte quanto a áurea de um anjo.
– Eu amo esse lugar! – O anjo abriu os braços olhando para
cima. – Não te trouxe aqui por nenhum motivo específico. Porém, o
que temos para conversar é sério. Nada melhor do que em um lugar
como este.

29
CAPÍTULO 04

Após atravessarem o véu de luz que ficou no lugar do buraco


sugador, a pequena legião se deparou com a primeira cidade infernal.
Primeiramente avistaram um titânico muro que se erguia a milhares de
metros. Obviamente ele não impediria a passagem deles, mas teriam
que ser cautelosos, pois não poderiam de nenhuma maneira serem
vistos.
Percorreram os longos quilômetros na vertical, contornando a
parede escura do muro. Aron reparou que em muitos lugares, grandes
rachaduras cortavam a rocha em rasgos, onde o menor deveria ter
duzentos metros de comprimento.
Em pouco menos de um minuto, chegaram ao final do muro,
onde se deu para avistar de fato a grande primeira cidade infernal.
Nesse momento, Haziel estreitou os olhos e suas íris brilharam como
duas estrelas. Daniel se aproximou dele colocando a mão em seu
ombro.
– Fique calmo, irmão!
Haziel franziu as sobrancelhas e deixou que a luz em seus olhos
se apagasse. Respirou fundo, cerrou os olhos e olhou para Daniel.
– Obrigado! – disse Haziel, meneando a cabeça.
Mazarak apenas observou a situação, afastado alguns metros. Os
outros estavam impressionados demais com a podridão que
acompanhava aquele lugar sombrio, para repararem na reação de
Haziel.
O anjo louro, que naquela missão liderava a pequena legião,
observou com atenção todas as possíveis presenças demoníacas. Não

30
percebendo nenhuma, mergulhou para o lado da cidade, onde o solo se
encontrava a apenas quinhentos metros abaixo.
Todas as construções, vias e sítios eram escuros e talvez
pudessem ser considerados um tanto sem cor. A espiritualidade
maligna daquele lugar parecia extinguir a alegria de quem estivesse
ali. Sem alegria, aos poucos a vida se tornava cinza.
O mais afetado era Aron, que sempre com um sorriso bobo no
rosto, agora tinha seus olhos azuis resplandecentes, lacrimosos. Nunca
se sentiu deprimido na vida. Caliel nunca permitiu isso. Mas naquele
momento, o ruivo não percebia o sentimento do humano, pois ele
próprio era afetado pela tristeza daquela cidade demoníaca.
Eles voaram até certa região e pousaram acima de uma grande
montanha. Tão grande que dava para ver a cidade inteira. Grandes
construções pontiagudas com paredes disformes. A impressão era de
estarem meio a um titânico cupinzeiro, onde cada construção tinha sua
própria aparência. Umas eram mais arredondadas, outras eram agudas,
com espinhos verticais por todos os lados e de todos os tamanhos,
entre um e cinco metros cada um. A menor construção, para conter
espinhos daquele tamanho, tinha no mínimo vinte metros. Isso fez
com que os guerreiros pensassem no tamanho das criaturas que
compunham aquela cidade.
– Creio que seja melhor vocês voltarem – disse Haziel, para
depois se virar, encarando os três animais. Em seguida se dirigiu a
Caliel: – Creio que seja melhor levarem Aron daqui.
– Não! – Aron quase caiu do Dragão, mas se ergueu com Caliel
o ajudando. Sua espada foi abaixo. – Isso não! – O humano tinha os
olhos esbugalhados, lampejando como uma lâmpada.
Caliel respirou fundo.

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– Ele tem razão, Aron. – Os olhos rubros do ruivo encararam
Aron entristecidos, isso por saber que ele jamais concordaria com
aquilo.
– Fique do meu lado. Você não é meu anjo da guarda? –
resmungou Aron.
Caliel revirou os olhos e se levantou, andando sobre as escamas
brancas do dragão. De costas para o humano, começou a falar:
– Aron! – uma breve pausa. – Eu sempre tento fazer as coisas da
melhor maneira, para que você fique confortável. Mas saiba que essa é
uma situação de risco, em que podemos nenhum de nós sair com vida
daqui. Eu acabo de me dar conta que não sei por que permiti isso.
Se Aron tivesse raios de calor que saíssem de seus olhos,
naquele momento Caliel estaria frito. Ele não acreditava no que estava
ouvindo. Não acreditava que seria tirado de lá a força. Ele só queria
tirar a esposa daquele lugar horrível, se é que ela estava ali.
Ele tem razão, Aron – uma voz ecoou na mente de Aron. Era o
grande Dragão, virando a cabeça para trás, encarando-o com olhos
amigáveis. – Pense simplesmente, caso aconteça algo com você,
quando sua esposa for resgatada, o que ela passará de sofrimento?
Aron não compreendeu muito bem como foi convencido tão
facilmente, mas percebeu que o grande animal tinha razão no que
dizia. Ele meneou a cabeça ao grande dragão branco e quando voltou
sua atenção para Caliel novamente, ele dizia:
– Você me compreende, Aron?
Sem hesitar, Aron respondeu:
– Compreendo!
Caliel ia começar a falar novamente, mas ao raciocinar sobre a
resposta do humano, balançou a cabeça e virou para trás, encarando-o.
– Eu compreendo, Caliel. Vamos sair daqui. Quanto mais
rápido, melhor!
32
O ruivo coçou a cabeça sem ao menos compreender a repentina
maturidade de Aron. Mas feliz por ter resolvido facilmente.

***
Hariel e Kamael desfilavam por um dos campos verdejantes do
Sexto Céu. A loura não dizia, mas estava um tanto ansiosa para a
conversa vindoura.
– As especulações são verdadeiras – disse o príncipe.
No mesmo momento, os olhos azuis da loura cresceram e se
arregalaram, brilhando como duas estrelas.
– Se são realmente verdadeiras, como faremos com a situação?
O anjo negro levou as mãos para trás, cruzando-as entre si.
Subitamente um pequeno pássaro azul, com olhos amarelos, pousou
em seu ombro. Ele levou a mão até o animal e o acariciou. O pássaro
só parecia querer isso, pois logo bateu as asas e voou.
– Seu irmão de espírito está averiguando isso agora.
Estupefata, Hariel indagou:
– A missão não foi preparada para salvarmos a alma da humana?
– De repente ela parou seus passos, levando as mãos à cintura.
O príncipe também parou e se virou.
– Não, Hariel. Podemos dizer que estamos aproveitando a
missão também para isso.
Kamael olhou para cima a tempo de ver gotículas de luz
despencando do alvo céu. Hariel também olhou para cima, assim
como todos os anjos naquele campo. Logo todos foram inundados
pela exuberância da luz divina que ocupava aquelas regiões do Sexto
Céu. Essas chuvas eram tradicionais em certos lugares e em apenas

33
algumas regiões. Quando os anjos as recebiam, sentiam a verdadeira
mão do Pai lhes acariciando.
Subitamente um anjo, com vestes claras e coroa prateada,
pousou com calma ao lado de Kamael e Hariel.
– Chavakiah! – exclamou o príncipe. – A que lhe devo o prazer?
– Olá, meu príncipe! – O anjo meneou a cabeça. – Guerreira! –
Meneou também para Hariel.
A loura reparou enquanto gotículas de luz banhavam os longos
cabelos escuros do anjo. Sua boca, com lábios fartos, movimentou-se
para começar a dizer:
– O planejamento está íntegro, meu príncipe.
– A arcanjo nos enviou o pergaminho? – indagou Kamael,
interrupto.
O sorriso de Chavakiah se alargou, então ele disse:
– Na verdade, ela veio trazer pessoalmente.
Os olhos do príncipe se arregalaram. Em seguida, ele encarou
Hariel, pedindo-lhe licença. Ao se aproximar do anjo de cabelos
compridos, ele colocou a mão em seu peito, dizendo:
– Obrigado, meu general! – O príncipe alçou voo,
desaparecendo meio às gotículas douradas.
Quando o corpo de Kamael desapareceu por completo,
Chavakiak mencionou algo que deixou Hariel surpresa.
– Se a resposta que Haziel trouxer for positiva, creio que
teremos o maior avanço celestial da história.

***
Yesalel e Bariel estavam sentados em volta de uma grande mesa
branca redonda. Próximos um do outro, cada um ocupava um trono

34
prateado, afastados não mais de um metro. No centro da mesa, erguia-
se uma estátua angélica de tamanho real, também branca. De uma
jarra que ela segurava, água era cuspida, para assim cair em um ponto
para retomar seu ciclo novamente. Um lustre de ágatas pendia de onde
era para ser o teto, preso por uma fina corrente dourada que subia até
se perder de vista. O solo espelhado de mármore branco refletia
qualquer coisa no salão.
– Veja bem, Primeiro. O Príncipe da casta das potências está
ligado direto a Uriel. Ele me disse que se as especulações forem
verdadeiras, além dos guerreiros, enviarão também milhares de
batalhões potenciais.
– Os arcanjos concordam com isso? Isso já está formalizado? –
Bariel tinha seus olhos prateados penetrados no segundo comandante.
– Não sei se todos eles concordam. Mas Uriel, eu sei que sim.
Até onde eu sei, o documento estava em produção, prestes a ser
executado.
Bariel se levantou e arrastou sua mão pela clara mesa. Em
seguida deu alguns passos, contornando a esfera. Yesalel ficou
sentado, observando-o.
– Creio que não estejam raciocinando com clareza. Eles podem
ter dons grandiosos, mas não tem a nossa força de combate, os
guerreiros.
– Eu concordo, Primeiro – afirmou Yesalel. – Eu pensei que
podemos ter inúmeras baixas, se isso prosseguir. – O segundo
comandante se levantou e se aproximou de Bariel. Inclinando a cabeça
para cima, olhou direto nos olhos do primeiro e disse: – Temos que
resolver essa situação depressa, pois acho que Haziel retornará com a
resposta positiva.

35
CAPÍTULO 05

Caliel, Aron e os animais se afastavam cada vez mais do grande


muro. A primeira cidade infernal era deixada para trás a toda
velocidade. Com a pujança depositada em seus espíritos, os animais
atravessaram o lugar onde encontraram o buraco sugador e em seguida
o portal negro – lugar em que Haziel derrotou o monstro gigante. Isso
não demorou mais de vinte segundos. Voavam a uma grande
velocidade, a fim de não encontrar nenhuma figura desagradável no
meio do caminho. Afinal, não tinham nenhum puro guerreiro com
eles. A não ser por Caliel que carregava nas veias, além do sangue dos
guardadores, também o sangue dos quatro querubins de Deus.
– Caliel! – gritou Aron, segurando na área do pescoço do
dragão.
– Diga, Aron.
– Antes de voltar para o Sexto Céu, eu gostaria de passar em um
lugar.
– Eu sei! – O ruivo sorriu.
Aron viu o sorriso quando olhou para trás e pegou ele mexendo
os lábios para dizer:
– Estamos indo para lá.

***
Os dois anjos e o duque observavam a região, plainando acima
da montanha, meio a nuvens escuras. Escondiam seus corpos e sua
energia o máximo que podiam. De repente, Daniel se achou burro por
36
não pensar antes em guardar suas asas, inibindo ainda mais suas
energias. Eles poderiam seguir a trajetória a pé. Ele disse isso aos
outros dois. Tudo bem que isso realmente só poderia funcionar com
eles, pois Mazarak já tinha sua energia afetada pelo submundo,
vizinho do inferno. Mesmo assim, o duque escondeu suas asas negras
e todos desceram o pico correndo e pulando sobre as pedras.
Haziel seguia na frente com a destreza de um felino vezes dez.
Os outros dois o acompanhavam, pulando e soltando pequenas pedras
com seus pés, ao se chocarem com certas partes da montanha.
Súbito, um grande precipício inclinado apareceu na frente do
louro, deixando-o no vazio, sem poder tocar o solo com os pés. Seu
corpo começara a despencar, mas com um movimento espetacular, ele
segurou na rocha apenas com uma das mãos e puxou seu corpo de
volta. É claro que se ele caísse, poderia explodir suas asas.
– Está tudo bem aí? – Daniel freava e olhava, enquanto Haziel
retornava do abismo.
– Vamos, não podemos perder tempo. – Haziel saltou uns dez
metros para a direita, caindo sobre uma parte plana da montanha como
um gato e começou a correr para baixo novamente.
Os outros dois o acompanhavam com a mesma destreza, na
retaguarda. Em questão de alguns minutos, todos tocavam o solo de
onde se erguia a montanha. Isso não os fez parar de correr, pois
naquele momento, era mais do que necessário se esconderem. Assim,
correram serpenteando por pequenas rochas que se erguiam a quatro
metros de altura. Correram até alcançarem a proximidade de cerca de
duzentos metros da primeira via que abria a cidade. Até aquele
momento, nenhum deles tinha sentido ou visto alguma presença
demoníaca.
Sorrateiramente, eles correram até a primeira rua, que com uma
largura não maior do que três metros, parecia mais uma viela. Com
37
passos rápidos, começaram a percorrê-la, passando por moradas que
se enfileiravam parede com parede, dando aspecto de estarem
percorrendo por entre dois muros de três metros cada um. Além da
falta de cor e de luz, o que dava o aspecto mais sombrio naquele
momento era a névoa que cobria abaixo de seus joelhos.
Janelas disformes, mais parecidas com buracos, distribuíam-se
pelos muros das moradias de o que quer que fossem os demônios que
as ocupavam. De uma coisa todos ali sabiam, sua aparência, com
certeza, fazia jus ao lugar.
Passado um pouco mais de um quilômetro, a viela não parecia
ter fim. Única coisa que mostrava que não estavam correndo em
círculos era a grande construção titânica em forma de pirâmide, que se
erguia após os próximos quilômetros. Perfurando a primeira camada
de nuvens escuras, tinha aparência tenebrosa, com paredes escuras e
desniveladas.
– Eu reconheço essa construção – disse Haziel.
Os dois irmãos de espírito prenderam suas atenções no louro,
ainda assim correndo a toda velocidade. Haziel acrescentou:
– Essa é a cidade de Andras.

***
A grande construção, com aparência total gregoriana, era
avistada por Kamael enquanto ele se aproximava do centro das
potências celestes no Sexto Céu. A grande construção tinha a exata
aparência do Partenon na Grécia, mas com pelo menos dez vezes seu
tamanho original.
Elevando-se por cima de um tapete verde que brotava das
nuvens alvas, o chão da grande construção já recebia os primeiros

38
passos do príncipe celeste negro. Kamael andava com postura imperial
sobre o corredor central que ao final abrigava seu trono de cristal. Ao
lado do trono, uma figura com majestade mil vezes superior a dele o
aguardava, segurando um objeto. Com a pele brilhando como ouro, a
grande mulher asiática o observou se aproximando, com um grandioso
sorriso.
– É um grande prazer revê-lo, Príncipe Regente das Potências
celestes do Sexto Céu.
No mesmo momento, Kamael parou e se ajoelhou, abaixando a
cabeça em reverência.
– Por favor, levante-se, meu caro irmão.
Levantando-se, o príncipe penetrou seu olhar nos olhos da figura
que brilhavam como duas pedras de berilo vermelho. Ela se
aproximou, mexendo com majestade suas belas curvas.
– Arcanjo! – disse o príncipe.
A grande mulher abriu um sorriso e parou na frente do anjo
negro, que com dois metros e dez de altura, não ficava muito atrás da
mulher arcanjo.
– Tu sabes do que se trata a minha visita? – O sorriso dela era
contagiante.
Os olhos amarelos, como de uma pantera do príncipe, brilharam
como duas estrelas nesse momento. Ele reparou no objeto na mão da
mulher arcanjo e viu que se tratava de um pergaminho. No mesmo
momento, soube que a aceitação do Sétimo Céu estava pronta. Se
Haziel, o guerreiro celestial, retornasse do inferno com a resposta
positiva, sua legião se organizaria junto aos guerreiros, no avanço.
Isso o deixava aturdido, pois apenas na queda de seus irmãos caídos,
todas as legiões angelicais participaram do abate sangrento. Isso já
fazia pelo menos, no mínimo, cento e cinquenta mil anos.

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– Se me permite dizer uma coisa, Uriel... – As sobrancelhas do
anjo estavam baixas.
– Quando quiseres. Fiqueis à vontade, meu caro irmão. – A
quase divindade, mesmo com o pergaminho em mãos, algo que
chegava a perturbar o príncipe, deixava-o admirado com tamanha luz
exuberante.
– Eu sei que o que segura em mãos é a aceitação do Sétimo Céu
em relação ao avanço.
A mulher arcanjo inclinou a cabeça para que o príncipe
continuasse. Ele prosseguiu:
– Já faz muitos milênios que não vejo um movimento assim no
Sexto Céu. Tudo isso é pelo fato de que os doze podem estar presos e
sendo condenados por entidades demoníacas, ou tem algo maior
acontecendo?
– Meu caro irmão – uma breve pausa da asiática ocupante do
Sétimo Céu –, com sua inteligência, creio que já sabeis que os doze
realmente estão lá.
O príncipe meneou a cabeça em positivo. Então a mulher
arcanjo acrescentou:
– Se as escrituras divinas estiverem corretas, como em 100% das
vezes, a energia dos tronos está sendo utilizada para criar algo pior do
que tudo que já vimos. Nossos irmãos do Sexto Céu sabem que o
Sétimo Céu não é a favor de como as coisas têm sido resolvidas nos
últimos milênios. Porém, não há outro jeito.

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CAPÍTULO 06

O planeta azul ocupava sua posição em determinado sistema


solar da Via-Láctea. Os animais, o anjo e o humano se aproximavam a
toda velocidade, vendo a grande esfera ficar cada vez maior. Em
alguns pontos, ainda podia-se ver manchas escuras decorrentes da
guerra, que manchavam a bela paisagem, sobrepondo-se a belas cores.
Mas em sua maior parte, na sua majestade imperial, o planeta Terra
tinha sua fusão de cores cintilando aos olhos do grupo. Sem sombras
de dúvidas, de todos os planetas conhecidos pelo ruivo, aquele era o
qual ele mais admirava.
– Minha casa! – sussurrou o humano.
Caliel observou enquanto Aron vidrava seu olhar no seu próprio
planeta, cada vez mais próximo. O ruivo alargou seu sorriso cintilando
os olhos rubros.
– Saiba que sinto como se fosse também a minha, Aron.
O humano olhou para trás e alargou um sorriso tão maduro que
Caliel chegou a se surpreender. Ele esperava algum tipo de comentário
irônico, ou engraçado, mas não um sorriso daquele tipo. Aquilo o
deixou feliz, com um sentimento semelhante ao de um pai ao ver seu
filho crescer.
As primeiras camadas da atmosfera terrestre começavam a ser
ultrapassadas. Nenhum efeito era exercido sobre os corpos dos
presentes, pois estavam todos desmaterializados, inclusive Aron, que
naquele momento ainda não sabia disso.
Logo já sobrevoavam um continente que naquela região se
parecia com uma plantação de brócolis gigantes. As árvores

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entrelaçadas, sem espaços, formavam um grande tapete fofo e verde
escuro, abaixo de todos. Os animais partiram em direção a uma
montanha cônica, pousando levemente na sua mais alta elevação.
Imediatamente, Caliel explodiu as asas e segurou Aron, pulando no
solo marrom abaixo. Os três bichos os encararam, como se se
despedindo. Em seguida explodiram a luz em volta, em uma
velocidade colossal e sumiram no espaço em um ponto de luz.
– Estamos de volta! – disse o ruivo se posicionando de frente
para onde o sol se punha. Ele observou por um tempo, até que Aron se
posicionou ao seu lado. – Vamos. Venha. Segure no meu pescoço.
Não temos muito tempo para que você volte ao seu estado normal. –
Dando um sorriso, Caliel acrescentou: – E eu tenho que manter meu
estado atual.

– Como assim, voltar ao meu estado normal? – indagou Aron,


surpreso. Ele já imaginava sobre o que o ruivo falava. Mas essa era
sua reação espontânea.
Caliel alargou o sorriso, colocou a mão no ombro de Aron e
disse:
– Você não está materializado, meu amigo.
– Isso quer dizer que ninguém pode me ver? – O humano tinha a
feição completamente surpreendida. Tão óbvio, mas ainda não tinha
passado por sua cabeça.
– Exato. – Caliel soltou uma piscadela.
Aron pulou em seu pescoço e logo o anjo disparou alçando voo,
sobrevoando o grande matagal verdejante. Caliel parecia ter um radar
acoplado à sua mente, pois atravessaram aqueles três mil quilômetros
em tempo recorde, para o ruivo. Não passando de mais de uma hora
de viagem.

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Chegavam à costa brasileira, passando por cima da areia clara.
As casas estavam intactas naquela região. Tal como quase todo o país,
que não fora atingido pela guerra. Apenas era nítida a sombra
avassaladora que dominava a região deixada por Baal. Apesar de
terem conseguido tirar todos os humanos do transe maligno, o planeta
ainda estava contaminado por algo. Algo que não era bom.
Caliel sobrevoava em linha reta, com Aron segurando em seu
pescoço. O humano só não sentia dor nos braços, pelo fato de o anjo
lhe transmitir uma energia, anulando esse tipo de sentimento. O ruivo
calculava que Aron tinha no máximo uma hora, até que seu corpo
carnal juntasse suas moléculas, trazendo à tona a matéria novamente.
Depois de um bom tempo sem dizerem nada, Caliel teve uma
lembrança ao avistar a grande cidade de São Paulo.
– Você se lembra uma vez que me perguntou por que Haziel te
salvou e não eu?
– Não! Quando eu te perguntei isso?
– Quando você pôde me ver pela primeira vez! – O anjo
suspirou.
– Eu não lembro! – Aron franzia as sobrancelhas.
Caliel deu uma risada e lampejou seus olhos rubros.
– Não tem problema. Deixa para lá.
– Não. Eu quero saber! Por quê? – Nesse momento, Aron
apertou mais forte o pescoço de Caliel.
Caliel olhou com o canto do olho para trás e começou a falar:
– Creio que você ainda não saiba disso. Mas existem alguns
anjos que além de não poderem ser vistos, também conseguem anular
sua energia sem que algo, ou alguém o note.
– Caliel, sinceramente, eu não tenho a mínima ideia do que você
esteja falando. – Aron tinha um tom de desinteresse na voz.

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Em vez de ficar triste, Caliel ficou feliz, pois isso o fez pensar
que o humano, que antes fazia perguntas atrás de perguntas, agora
realmente amadurecia rapidamente aos seus olhos. Desvirtuando o
assunto sem que Aron percebesse, Caliel apontou uma região.
– Estamos chegando! – disse o ruivo.

***
A grande construção se erguia como um monstro a não mais de
um quilômetro de Haziel, Daniel e Mazarak. Percorreram alguns
quilômetros por entre aquela viela, sem ao menos escutarem algo,
sentirem, ou virem nem que fosse um inseto demoníaco. Inclusive,
esses insetos já foram pragas devastadoras em várias épocas da
humanidade. Sua maior Era foi na época em que o Egito imperava.
– Espere! – Haziel parou bruscamente e semicerrou seus olhos.
Daniel espreitou logo atrás, juntamente com Mazarak. Um vulto
negro atravessou de um lado ao outro da viela, a não mais de cem
metros deles. Com reação espontânea, Daniel e Mazarak encostaram-
se no muro. Mas não Haziel. O louro disparou como uma bala,
movendo suas pernas com destreza. Logo ele desapareceu no breu. Os
irmãos de espírito escutaram um baque surdo, entreolharam-se e
avançaram. Rapidamente começaram a enxergar a silhueta de Haziel
segurando uma criatura pelo pescoço, erguendo-a do chão cerca de
trinta centímetros.
– Haziel, espere! – Daniel parou a um metro do louro. O que viu
o assustou. No rosto de Haziel estava estampada uma cara de ódio.
Não normal, como em uma ofensiva, em uma batalha. Mas sim de
ódio puro. Os olhos de Haziel começavam a iluminar o local,
despejando uma luz, que em vez de azulada como suas íris, eram

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douradas como fogo. – Haziel! – Daniel gritou mais alto,
arrependendo-se instantaneamente. – Precisamos dele. – O anjo
sussurrou nas costas do louro.
As chamas nos olhos do anjo começaram a se anular e logo se
transformaram na mesma luz azul de sempre. Haziel abaixou o
demônio, mas continuou segurando seu pescoço, só que com menos
força. Não fazia muito tempo que ele conhecia aquele sentimento. Há
apenas cem anos, essa chama se acendeu em uma pequena brasa, mas
naquele momento tomava o tamanho de um monstro.
Mazarak ficou de canto na espreita, observando Haziel. O duque
estava pasmo com o que viu. Escutou muitas histórias místicas
enquanto ficou na Terra por mais de cento e cinquenta mil anos.
Aquela cena o fez se lembrar de uma frase que um antigo sábio dizia:
O guerreiro nos abraçará com a sua luz e se unirá aos anjos do
apocalipse para o fim. A frase não estava clara para ele, mas a
sensação sobre o talvez entendimento fez seu estômago doer.
Pela primeira vez Daniel reparou de verdade no demônio, vendo
as escamas cobrindo inteiramente seu corpo verde escuro. Tinha total
aparência reptiliana, mas do tamanho de um humano. Sua calda tinha
mais de um metro e pequenos chifres saíam acima de seus olhos
amarelos.
– O que você acha de uma troca?
O demônio remexeu os olhos e disse, gaguejando:
– É... É cla... Claro. O que vocês têm para mim? – Ao final da
frase ele sorriu, mostrando seus dentes amarelos e pontiagudos.
Antes que Daniel respondesse, Haziel segurou o pescoço do
demônio com mais firmeza novamente e o bateu contra o muro,
fazendo cair poeira.
– Você nos diz onde está Andras e nós o deixamos viver.

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Daniel o olhou espantado. O demônio mais ainda. Suas mãos
que seguravam no antebraço do anjo, foram imediatamente para frente
de seu rosto, envolvendo-o em um abraço em si, escondendo seus
olhos. O pavor do diabo era evidente.
– Eu digo! Eu digo!
No mesmo momento, Haziel alargou a pegada e foi soltando o
pescoço da besta aos poucos. Livre, o demônio engoliu a saliva que já
amontoava em sua boca e respirou fundo.
– Diga! – o anjo louro berrou.
Na mesma hora, Daniel e Mazarak olharam para todos os lados,
atentos, caso Haziel tivesse despertado atenção com sua agressividade.
– Tá bom! Ele está em uma reunião na torre de Abbadon.
– Abbadon está morto. Yesalel o matou! – retrucou Haziel.
– Sim, Abbadon está! – Diante do olhar enfurecido do anjo, o
demônio disse: – Mas Andras é o novo marquês do inferno.
Haziel abriu o longo sorriso e encarou o demônio por um breve
momento. Esse momento foi o suficiente para que o coração do
infernal quase parasse.
– Você vai nos levar até ele – disse Haziel.

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CAPÍTULO 07

Caliel e Aron sobrevoavam a zona leste da cidade de São Paulo.


Poucos, mesmo assim Aron os via perambulando pelas ruas. Humanos
com aparência frágil, talvez em decorrência da guerra e da invasão
espiritual.
Grandes monstros automatizados percorriam a grande avenida
Marginal que ligava todas as zonas da cidade. Dava-se para ver que
por onde ele passava, o solo ficava mais limpo, sem destroços, ou
resíduos. São Paulo começara a se reerguer novamente. Isso fez com
que o humano sentisse certo alívio. Talvez o planeta estivesse
voltando ao normal. Mas obviamente demoraria alguns bons anos para
voltar ao que era antes. Mas o que Aron não sabia naquele momento é
que o caos estava apenas começando.
Aron reparou no grande parque do Piqueri, no bairro do
Tatuapé. Este estava devastado. A impressão era de que algum grupo
passou por lá destruindo tudo. Os balanços estavam arrancados das
correntes. Os canos de metal, utilizados por malhadores, estavam
tortos e amassados. A vegetação destruída e pisoteada. A grande via
principal, antes forrada com pequeninas pedras peroladas, agora era
um grande rastro de barro vermelho.
Eles continuaram avançando, passando pela Penha e enfim
chegando ao bairro de Aron, no Cangaíba. O rio Tiquatira, que cortava
a via Carvalho Pinto no meio, dividindo as duas vias, estava
praticamente seco, deixando aparente o lixo antes submerso. Inúmeros
pneus, pedaços de móveis e até uma geladeira, Aron identificou dentre
os destroços. Mas nesse momento a visão do humano identificou algo

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que o contentou. Sua casa se erguia intacta em uma das ruas que saía
da avenida.
– Saudades de casa? – perguntou o ruivo.
O humano apagou o sorriso do rosto, esperou um pouco e disse:
– Na verdade tenho saudades de estar em casa com Sun! A casa
propriamente dita, não vale nada sem ela.
– Fique tranquilo. Tenho certeza de que Haziel e os outros terão
êxito na missão e assim daremos um jeito de resgatá-la.
– Que assim seja! – replicou Aron.

***
Haziel e os outros três percorriam a viela andando e após apenas
duzentos metros, o infernal pediu para que eles o acompanhassem
para dentro de uma daquelas moradias. Ele abriu a porta, mas todos
hesitaram antes de entrar. Então ele disse:
– Vocês não querem encontrar Andras? – O demônio fez uma
breve pausa, com os músculos onde seriam suas sobrancelhas,
levantados.
Haziel fechou a feição e seguiu o demônio. Os outros dois
fizeram a mesma coisa, mas Daniel ficou na porta com a mesma
entreaberta para caso aquilo fosse uma cilada. Ainda bem que não era.
Eles viram quando o infernal lhes entregou três túnicas pretas que lhes
cobriam o corpo todo. O pequeno cubículo não tinha cama, mesa ou
qualquer objeto, a não ser por furos que se assemelhavam a pequenos
túneis, com raios aproximados de um metro. Um pequeno monte de
túnicas se erguia no canto da sala escura.

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Os quatro saíram novamente para a viela sombria. Apenas o
demônio estava despido. Os outros estavam escondidos atrás dos
pesados tecidos negros.
A grande, porém, estreita via, que não parecia ter fim, no final
das contas deu em um grande sítio aberto. O solo era avermelhado e a
poeira flutuava alguns centímetros acima do chão. Cerca de dois
quilômetros à frente, perfurando as nuvens, erguia-se a grande torre
em forma de pirâmide. Relâmpagos tenebrosos trovoavam em volta da
titânica construção.
Em determinado momento, o vento começou a soprar mais forte
e uma chuva torrencial despencou, fustigando a trupe com gotas
ardentes. A água encontrava suas peles tão fortemente que tinham a
sensação de estarem meio a uma tempestade de areia com grãos
gigantes. Mas aquilo não era nada para os celestes e nem para o
duque. Apenas o demônio sofria, porque além de ser fraco e
miserável, estava despido, deixando a água encontrar sua pele sem
proteção.
De uma hora para a outra, o cheiro da região começou a se
alterar, entrando pelas narinas de todos como um gás de um ácido
poderoso, que parecia rasgar suas entranhas. De uma hora para outra,
estalos começaram a disparar do demônio quando cada gota de água
encontrava a sua pele. Fumaça subia de cada colisão, como se fossem
gotas de ácido. O diabo começou a berrar em agonia. Perdendo todas
as forças, despencou no chão ainda aos gritos. O trio apenas o
observava se estrebuchando enquanto sua pele derretia.
Haziel reparou nas vestes de Daniel e viu que o tecido grosso
começara a se desfazer.
– Corre! – berrou o louro enquanto já jogava terra para trás,
dando seus primeiros passos.

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Daniel e Mazarak saíram em disparada atrás de Haziel, enquanto
as primeiras gotas de água começavam a atravessar suas vestes. Os
tecidos fumegavam como algo entrando em combustão. Uma grande
parte se desfez na veste de Mazarak e logo o líquido começou a entrar
com mais pujança por aquela região. Encontrando a pele do duque,
imediatamente começou a derretê-la acima do ombro. Isso fez com
que ele desse um grito lacerante. Daniel o olhou assustado, mas ambos
continuaram correndo com toda a sua pujança.
Ainda faltava pelo menos um quilômetro para chegarem a um
lugar acampado, mas a roupa de Mazarak não esperaria tudo isso. O
plano do demônio de escondê-los do inferno por de baixo daquelas
túnicas, agora ia por água abaixo, literalmente.
Vendo o desespero do irmão enquanto o rombo crescia cada vez
mais, Daniel não se conteve e teve uma reação atípica. Em um
movimento muito rápido, enquanto corria, puxou a túnica de seu
corpo e a colocou sobre Mazarak. Nesse mesmo momento explodia
suas alvas asas. O grito de dor veio em seguida, mas seus olhos cor de
fogo brilharam e ele alçou voo, disparando como uma bala, em
sentido ao local acampado.
Mazarak não teve tempo de fazer nada, a não ser gritar o nome
do irmão, enquanto ele desaparecia fumegante meio a chuva torrencial
de ácido.
– Vamos. Rápido! – disse o louro, evidenciando sua pressa para
encontrar Daniel. Algo que Mazarak provavelmente tinha igual, ou
mais que ele.
Eles ganharam terreno e em menos de um minuto atravessaram
a região. A túnica de Haziel já começava a se desfazer. Quando eles
chegaram, ambos avistaram o que parecia ser uma caverna.
Imediatamente, locomoveram-se ao local na expectativa de se
protegerem e de encontrarem Daniel. Afinal, aquele era o lugar
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coberto mais próximo que viram. Quando atravessaram para dentro do
ambiente seco, um relâmpago forte rasgou o céu e iluminou a caverna
por um breve momento. Naquele momento, eles puderam ver o que
acharam ser a silhueta de Daniel.
– Daniel? – Mazarak chamou o irmão sem poder enxergar um
palmo à sua frente.
– Aqui! – A voz de Daniel não soou tão confiante.
Gotejamentos por todos os lados podiam ser ouvidos. Além
disso, nada. Eles se aproximaram de onde julgaram vir a voz do anjo.
Em passos cautelosos, aproximavam-se. Súbito, mais um relâmpago
que iluminou tudo, inclusive Daniel, que se encontrava a não mais de
dois metros dos dois. O que ambos viram, rasgou seus peitos de dentro
para fora. O silêncio total assolou o ambiente. Daniel tinha centenas
de bolhas vermelhas explodidas por todo o corpo. Seu aspecto era de
um animal com robustas escamas.
– Já começou a cicatrizar. – Daniel quebrou o silêncio.
– Isso é grave! – disse Mazarak, aproximando-se dele.
– Nada que não posso lidar – retrucou Daniel. – Eu preciso
apenas de tempo.
Todos repararam que a chuva ácida parava de cair e se
transformava em uma fina garoa. Haziel se aproximou da saída, dando
para ver apenas sua silhueta. Em seguida esticou a mão, medindo o
líquido que caía do céu. Este não o queimou.
– Uma coisa que não temos é tempo! – disse Haziel e sem
esperar muito, o louro acrescentou: – Esperem aqui. – Ele envolveu
duas túnicas em volta de si por precaução e saiu da caverna.
O duque e o outro anjo não tiveram o que fazer, a não ser
esperar.

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CAPÍTULO 08

O humano já se desprendia do pescoço do ruivo, enquanto ainda


estavam cerca de um metro do chão. Aron caiu abaixado, mas logo se
levantou e correu até seu portão de grades verticais brancas.
Reparando que o ferro do portão se encontrava torto, provavelmente
por um arrombamento e provavelmente já aberto, tentou empurrá-lo.
Mas desmaterializado, sua mão o atravessou. Logo ele próprio
atravessou as grades e se adentrou, pisoteando o piso frio alaranjado
da garagem. Locomoveu-se até o portão de madeiras entrelaçadas na
diagonal, que inclusive encontrava-se escancarado, entrando no
comprido quintal que antes era forrado com inúmeras plantas. Dentre
todas, uma em especial lhe prendia a atenção. Era uma orquídea que
ficava acima da porta da cozinha ao final do quintal. Como todas as
outras plantas, agora jazia um vaso com plantas secas, pendurado e
preso por uma corrente fina e enferrujada.
Naquele momento, Caliel reparou que enquanto encarava a
planta morta, Aron voltava ao seu estado normal. Pequenas luzes azul-
fluorescentes brilharam em uma névoa em volta dele. Em seguida se
juntaram, solidificando-se na forma de seu corpo. Por um momento a
luz brilhou forte como uma estrela, transformando-se em uma silhueta
branca azulada, para depois se apagar, deixando o corpo de carne e
osso de Aron no lugar de seu espírito, que agora estava bem guardado.
Tudo isso aconteceu enquanto ele dava três passos. Ele próprio não
percebeu a ação.
Caliel continuou avançando e viu quando ele tentou atravessar a
porta de aço da cozinha. Instantaneamente, Aron bateu forte com o

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nariz na janela de vidro retangular, com molduras de aço. Um filete de
sangue vermelho claro escorreu de seu nariz. Sentindo uma dor
alucinante, olhou para trás a fim de avistar Caliel, mas o que viu
foram apenas as plantas mortas por todos os lugares, com estrelinhas
brancas dançando aqui e ali. Seus olhos se arregalaram quando ele não
enxergou o ruivo. Por um momento se sentiu estranho, talvez
abandonado. Mas o que ele não sabia é que os olhos rubros de Caliel o
encaravam, já entendendo que voltando ao normal, não o enxergaria
mais. A não ser se ele também se materializasse. O que Caliel viu a
seguir o espantou mais do que quase tudo que passara nos últimos
meses.
Aron sentiu um toque frio na cabeça.
– Levante as mãos e vire-se calmamente! – um sussurro de uma
voz masculina atrás do humano.
Ele começou a se virar sem pressa, encontrando diante de si um
homem também na casa dos trinta anos, com descendência que não
soube definir, a princípio, qual era. Seu rosto tinha uma barba negra,
que crescia sem ser aparada, por pelo menos dois meses. Os olhos
fixos em Aron não tinham o brilho de que um assassino precisava para
puxar o gatilho. Mas eram sérios. Aron sabia que aquela arma, com
cano duplo, poderia lhe fazer um grande estrago.
– Quem é você? – indagou o homem.
Aron respondeu sem hesitar.
– O dono dessa casa!
O homem sorriu, mostrando seus dentes sujos.
– Nada tem dono hoje em dia.
Caliel começara a entrar em desespero e estava prestes a se
materializar. O risco que Aron corria era grande e ele não poderia
jamais deixar que uma bala fosse disparada daquela arma.

53
***
Haziel percorria uma vila da cidade de Andras. Sua túnica
cobria seu corpo angelical sem deixar nenhum vestígio de sua origem.
Pela primeira vez, desde que chegou ao inferno, avistou um pequeno
grupo de demônios horripilantes. Nenhum deles era maior do que o
anjo. Mas todos eram asquerosos. Quando Haziel passou por eles, a
cerca de cinco metros de distância, fora encarado por todos eles. Ele
não sentiu um pingo de medo ou hesitação por ser descoberto, pois
naquele momento nem ele sabia o que ele próprio desejava. Talvez ser
descoberto para lutar contra o inferno inteiro?
Mais à frente, ele avistou o que parecia ser uma linda humana
com cabelos longos, louros. Vestia uma minissaia que chegava a
mostrar um pedaço das nádegas. Sua bota brilhante passava da altura
dos joelhos, chegando ao meio das coxas grossas. Na parte de cima
não vestia nada. Seria uma linda humana se não fossem pelos seus
dois chifres pequenos que se erguiam acima da testa. Ela encarou
Haziel com seus olhos vermelhos como lava de vulcão. Nos lábios,
tinha um sorriso típico de prostitutas humanas. Aquela era uma
prostituta infernal, das mais bonitas.
Ela se aproximou do anjo sem ao menos saber sua origem e se
posicionou na sua frente, impedindo sua passagem. Haziel levou as
mãos ao capuz e os fechou mais, abaixando a cabeça, anulando sua
feição atrás da sombra. A mulher demônio procurou o olhar do anjo
com os seus, dizendo:
– Não seja tímido, gatão – uma risadinha. – Você não gostaria
de uma brincadeira?
Haziel tentou se esquivar, dando um passo ligeiro para o lado.
Mas ela segurou em seu braço. Impaciente, o anjo louro levantou a

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cabeça e a encarou com seus olhos azuis resplandecentes. Na mesma
hora, a mulher demônio o soltou e se afastou com a cabeça baixa. Isso
fez com que Haziel apertasse os passos.
Em cinco minutos, ele já enxergava o grande muro que separava
a torre piramidal da vila principal da cidade. Atrás do muro, duas
torres bem menores se erguiam, cada uma de um lado do portão
principal de aço escuro, afastadas quase duzentos metros uma da
outra. Acima de cada torre, passeavam dois guardas espreitando por
todos os lados. Haziel reparou em suas peles vermelhas, brilhantes
como fogo. Todos eram muito semelhantes, com exceção de suas
alturas que se diferenciavam um pouco. Enxergando os soldados
apenas do peito para cima, Haziel não conseguia distinguir se
possuíam algum tipo de armamento poderoso. Em seguida, contornou
a muralha da torre piramidal, enxergando mais oito torres de guardas.
Não possuía um plano elaborado, mas tinha ideia do que fazer.
Em menos de dez minutos, Haziel já enxergava a entrada do
túnel onde tinha deixado Daniel e Mazarak. Logo ele atravessou para
o lado escuro e sem esperar ao menos um segundo, chamou o nome
dos outros dois que o aguardavam, calados.
– Estamos aqui! – disse Daniel e daquela vez sua voz pareceu
mais firme.
Sem enxergá-los, Haziel começou a falar:
– Visitei as áreas próximas à grande pirâmide. Tem oito torres
com dois guardas em cada, guardando o terreno atrás dos muros que
abrigam a construção. Tenho um plano para passar por eles, mas
teremos que fazer isso juntos.
O louro explicou o plano aos outros dois e eles concordaram de
primeira. Daniel se surpreendeu com Haziel bolando um plano, ao
invés de chegar quebrando tudo.

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CAPÍTULO 09

O homem apontava o cano da arma para o rosto de Aron que


começara a suar frio, sendo que nem calor estava. Seus braços
começavam a doer enquanto o homem o encarava com aquele sorriso
que antes Aron tinha distinguido como sagaz, mas que agora brilhava
com um ar um tanto inocente. Depois de dois minutos o encarando, o
homem deu um passo para trás e desceu a arma uns dez centímetros,
depois baixando-a instantaneamente.
– Venha, entre.
– Com licença! – Aron tinha um tom sarcástico na voz,
encarando o homem com os seus olhos arregalados. Passou por ele
ainda com as mãos erguidas.
Antes de fechar a porta da cozinha, o homem olhou uma última
vez para fora do quintal e puxou a porta de aço. Em seguida, abaixou a
arma e desengatilhou-a, colocando o objeto em cima da mesa de
madeira.
O cheiro de sua casa estava forte como nunca ele tinha sentido
enquanto ocupou aquele lugar. Misturava-se com cheiro de humano,
álcool, cigarro e sexo. Não conseguiu imaginar que tipo de mulher se
submeteria a estar com um homem daquele, em um lugar como
aquele. O piso de duas cores da cozinha estava sujo. Quase não podia
ser visto por estar coberto por uma fina camada de poeira preta. Em
alguns pontos, essa se misturou com líquidos, transformando-se em
pegajosas massas brilhantes. A pia metálica da cozinha estava
relativamente igual ou pior do que o chão. Inúmeras latas de cerveja

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empilhadas, formando o que parecia ser uma cidade medieval. Aron
pensou que o homem teve bastante tempo para fazer aquilo.
Quem é você? – indagou Aron, enquanto o homem, ansioso,
olhava pela janela do fundo da cozinha.
O homem não respondeu imediatamente, primeiro indo até o
outro lado da cozinha, entrando em outro cômodo por uma porta
vermelha escura. Em poucos segundos ele saiu, dizendo:
– Meu nome é Hector. Creio que não tenhamos muito tempo
para sair daqui.
Caliel assistia a cena se desenvolvendo, recostado no freezer.
Ainda um pouco desconfiado, começava a se tranquilizar. Mas tinha
que se manter atento, porque naqueles dias tudo poderia acontecer.
Apesar de terem vencido a primeira batalha da guerra do apocalipse, o
mundo estava e passava por um momento sombrio como nunca
passou.
– Você pode me dizer o que está acontecendo aqui? – Aron
puxou uma cadeira e se sentou, sem tirar os olhos do homem.
– Com certeza! – Hector o encarou, depois passou as mãos na
cabeça, amassando os cabelos para trás.
– Estou esperando.
– Eu sei! – gritou o homem.
Aron se assustou com o repentino tom da voz. Hector respirou
fundo e disse:
– Venha comigo! – O homem contornou a mesa de madeira e
seguiu para o fundo da cozinha, de onde saía o corredor que ligava a
casa toda.
Aron se levantou imediatamente e também contornou a mesa.
Hector estava parado na frente da primeira porta do corredor, que
levava até o porão. Empurrando-a com uma das mãos, abriu-a e
começou a descer os degraus da escada. Aron hesitou, olhou para os
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lados e começou a descer. Não sabia por que estava fazendo aquilo,
mas queria saber o que estavam aprontando na sua própria casa.
Caliel não estava acreditando no que Aron estava fazendo. O
risco que ele corria naquele momento era colossal. O ruivo desceu
atrás dele apenas dois degraus acima, sem tirar os olhos de seu
guardado.
Quando Aron desceu o último degrau e olhou pela porta que
dava na parte interna do porão, aterrorizou-se com o que viu e por um
momento quis correr de volta.

***
Os anjos e o duque percorriam sorrateiramente contornando a
muralha que abrigava a torre piramidal, pelo seu lado direito. O trio se
confundia com sombras. Mesmo com elas em trapos, estavam quase
anulados pelas túnicas negras. Passaram pela primeira torre das três
que ficavam daquele lado e depois pela segunda, sem serem notados.
Quando chegaram à terceira, eles se dividiram, indo cada um para um
lado e o plano entrou em ação.
Daniel estava encostado no muro, na mesma direção da última
torre. Ele retirou a túnica, deixando que ela caísse no chão úmido.
Súbito, explodiu suas asas brancas e andou uma dezena de metros para
a frente. Nesse momento, sua energia já tinha sido percebida e os
guardas espreitavam a região como gaviões. Quando fora avistado
pelos soldados, viu que eles abriram suas asas de morcego e desciam
de encontro a ele. Como ele previra, um deles, provavelmente o líder
da dupla, descia alguns metros na frente do outro. O anjo alçou voo,
subindo não mais de dois metros de altura e manteve uma velocidade
cautelosa, para que os infernais o alcançassem.

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Os demônios de pele escarlate cortavam o vento a toda
velocidade. Quando se aproximaram ao ponto de ficaram a dez metros
de Daniel, o anjo se virou e fez uma coisa que eles não previram. Por
estar fugindo, acharam que lidavam com algum celeste de baixo poder
e não contavam que lidavam com Daniel. O primeiro fora
desintegrado por um só golpe da mão direita do anjo. O segundo freou
imediatamente, mas naquele momento fora cortado em dois por um
poderoso golpe da perna de Mazarak.
Acima da muralha, Haziel observava sorridente o desempenho
dos irmãos de espírito lutando juntos. Pulava o muro de vinte metros
de altura, ainda vestindo sua túnica. O anjo não era mais do que um
vulto negro na noite escura. Com um salto, ele pousou no terreno
interno e começou a correr dentre a sombra da torre, a toda
velocidade.
Fora da muralha, algo aconteceu que Daniel e Mazarak não
contavam. Pelo fato de a energia de Daniel ser grandiosa, sua
emanação alcançou mais longe do que eles imaginavam e uma
pequena horda demoníaca se locomovia voando a toda velocidade em
sentido aos celestes. Subitamente eles foram alcançados e só viram as
duas dezenas de infernais na hora que eles chegaram, freando no ar.
Todos plainavam, envolvendo os dois em um círculo demoníaco. Os
irmãos de espírito sabiam que aquilo poderia piorar e muito
rapidamente. Então se entreolharam e antes que qualquer infernal
dissesse algo ou atacasse, investiram juntos.
Ambos retiraram suas espadas das bainhas, enquanto partiam
para os seus primeiros alvos. O ataque dos irmãos foi tão rápido que
sete demônios despencaram, destroçados, sem que antes pudessem se
mover. Daniel e Mazarak pararam no ar juntos e se viraram para a
meia esfera de demônios que tinha sobrado. O celeste e o duque
tinham sorrisos idênticos, sendo que seus traços eram idênticos.
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Apenas se diferenciavam porque seus olhos brilhavam em um como
fogo e em outro como esmeralda.
Os demoníacos estavam espantados com a reação de seus
inimigos. No rosto, tinham um olhar covarde, demonstrando o medo
presente em seus corações malignos. Eles viram quando novamente os
irmãos se mexeram para atacar e alguns mais rápidos, explodiram o ar
em todas as direções, os cinco mais lentos foram destroçados pelas
mãos dos heróis.
– O que fazemos agora? – indagou Daniel, enquanto eles viam
os demônios escapando para todos os lados.
Mazarak o encarou por alguns segundos e deu de ombros.

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CAPÍTULO 10

Haziel conseguiu chegar aos limites das paredes da torre


piramidal sem ser notado. Percorria por suas laterais a caminho da
entrada principal com a destreza de um roedor sobrenatural. Faltavam
cem metros quando ele avistou quatro guardas plantados na frente da
grande porta que dava acesso à parte interna da torre. Imediatamente
ele parou e se recostou na parede. Um plano começou a se formar em
sua cabeça, mas logo ele percebeu que este não ia se desenvolver tão
rápido quanto ele precisava que fosse. Então tirou a túnica de volta de
si e explodiu na direção dos guardas.
Chegando quase como um trovão, com uma mão acertou o
queixo do primeiro guarda, quebrando seu pescoço. Enquanto isso,
com o outro braço, ele tirava a espada prateada da bainha. Com
velocidade descomunal, a lâmina desceu em diagonal, cortando os
dois seguintes guardas em dois. O golpe seguinte veio a partir de um
giro no ar, onde seu corpo rodopiou como um pião, caindo com a
lâmina em cima do quarto guarda, que mais veloz, teve tempo de
colocar seu robusto escudo na frente do corpo. O golpe foi tão
poderoso que uma onda de choque irradiou daquele ponto, jogando o
guarda a centenas de metros. Um quinto guarda surgia naquele
momento e este também foi arremessado a alguns metros do anjo, pela
força do impacto. Haziel avançou em sua direção em passos calmos
enquanto guardava a espada na bainha. O demônio colocou a mão no
chão como primeiro esforço para se levantar e quando abriu os olhos,
viu os pés do anjo apenas alguns centímetros de seu rosto. Isso o fez

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se virar para a frente em um movimento felino. Sem misericórdia,
Haziel lhe desferiu um chute tão poderoso que arrancou sua cabeça.
Satisfeito, Haziel avançou rumo à porta. Dividida no meio, ele a
empurrou abrindo as duas partes. Agora já estava dentro da torre e o
que via diante de si era um grande salão com pé-direito duplo, onde só
o primeiro andar tinha cerca de sete metros de altura. Ao final do
gigante salão, uma escada, com vinte metros de comprimento e cerca
de quarenta degraus, ligava os dois andares. Era completamente
decorada com um tapete persa vermelho. Combinava com a decoração
do lugar que erguia quatro robustos pilares alaranjados, estes que
seguravam o segundo andar. Um lustre de cristal, com pelo menos
cinco metros, ficava no meio do salão.
O anjo percorreu os duzentos metros em passos quase rápidos,
até que chegou à escada. Pisoteou o primeiro degrau, sentindo o macio
do tapete. A marca de seu pé ficou nos pequenos pelos coloridos.
Quando estava no meio da escada, avistou duas figuras que o
deixaram estupefato.

***
O coração de Aron pulava, enquanto ele via uma mulher e um
homem presos no meio do porão, iluminado apenas por uma janela
estreita perto do teto. Atrás deles, tinha um grande armário que antes
era a despensa de Aron. Agora devia funcionar como abrigo de ratos e
baratas. A empresa de eletricidade que abastecia a cidade toda ainda
não tinha voltado às suas operações. Então quem vivia ali, permanecia
parecido com quem vivia em 1800 d.C.
– O que você está fazendo? – O tom de voz de Aron era de
alerta. – Você está mantendo dois reféns na minha casa?

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Naquele momento, a mulher virou o rosto para Aron, encarando-
o com os olhos arregalados. Tentava dizer algo por baixo do pano
apertado que envolvia a sua boca. O homem mantinha a sua cabeça
baixa.
– Você não entendeu – Hector apontou com o queixo para o
casal. – Eles são meus sequestradores. Eu! – Ele tocou o próprio peito.
– Eu estava preso nesse cubículo.
A mulher começou a se debater nesse momento, acordando o
homem que estava amarrado a ela. Ele parecia um pouco
desorientado. Murmurava coisas por baixo de seu pano e cambaleava
a cabeça para lá e para cá.
Caliel percebeu que Hector falava a verdade, mas Aron não
acreditou em uma só palavra do que ele disse. Mesmo assim preferiu
ficar na dele, pois aquele homem parecia e poderia ser extremamente
perigoso.
– Vamos, que te contarei a história com detalhes. – Hector se
virou para subir a escada que levava ao andar de cima e gesticulou
com o queixo para que Aron fosse à frente.
Hesitante, ele o fez.
Após fecharem a porta, os dois humanos se sentaram nas
cadeiras de madeira em volta da mesa na cozinha. Antes eram seis no
total, mas naquele momento tinham três inteiras e uma quebrada. Aron
não tinha a mínima ideia do que tinha acontecido com as outras duas.
– Enfim! Digamos que nosso mundo está uma bela de uma
merda! – disse Hector, enquanto limpava as unhas com as suas
próprias.
Aron não soube o que responder, pois tinha certeza de que
passou coisas completamente diferentes do que aquele homem tinha
passado. O olhar triste em seus olhos demonstrava muito bem isso.

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Pela primeira vez, Aron reparou nos hematomas e cortes em seu
corpo.
Caliel também reparara nisso. O ruivo sabia que ali na frente de
Aron se encontrava um homem bom e honesto. Nesse caso, sua
preocupação tinha se esvaído em relação a Aron. Observando bem
Hector, ele sentia uma imensa vontade de ajudá-lo, mas sabia que
quebraria uma das mais valiosas regras para manter a humanidade
estabelecida.

“Nunca ajude quem não for seu guardado.”

Obviamente o ruivo entendia isso muito bem, pois se todos os


guardadores começassem a proteger a todos os humanos, ao invés
apenas a aqueles escolhidos, muito rapidamente as mortes parariam de
acontecer em um enorme número e a superpopulação viria à tona.
– Você se lembra em qual velocidade as coisas aconteceram? –
indagou Hector.
Não sabendo novamente o que responder, Aron saiu dizendo:
– Posso te dizer que de onde eu estava não percebi como as
coisas se desenrolavam mundo afora. – Nesse momento, Aron
embaralhou em sua mente diversas imagens dele e de Sun na ilha.
– Pois é! – uma longa respiração com o olhar baixo. – Não sei se
o holocausto total durou mais do que dez dias. – De repente um brilho
em seu olhar, quando ele encarou Aron com um sorriso. – Você bebe?
– Não, obrigado!
Hector se levantou e abriu o armário que ficava suspenso em
uma das paredes da cozinha. Inevitavelmente Aron achou o homem
folgado. Mas logo recompôs suas ideias, talvez sentindo até um pouco
de dó do homem. De lá, ele tirou uma garrafa de Bourbon, fazendo

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com que Aron se indagasse de onde aquilo tinha surgido. Dele que
não era. Provavelmente ele nem poderia comprar aquela bebida.
– Onde você conseguiu isso? – indagou Aron, apontando a
garrafa.
Hector deu um belo trago de gargalo e respondeu, também
apontando a marca da bebida:
– Isso? Onde mais eu conseguiria isso? – Ele tinha os braços
abertos, segurando a garrafa com uma das mãos. – Em um mercado
oras.
Aron olhou para os lados e se levantou, aproximando-se de
Hector.
– Dá isso aqui! – Ele tirou a garrafa da mão do homem, girou
sua tampa e se serviu de um belo gole.
Caliel se espantou imediatamente ao vê-lo fazer aquilo. Aron
nunca foi de beber. Talvez por esse motivo, quase soltou a garrafa e
começou a regurgitar, quase expulsando tudo o que tinha em seu
estômago. Se bem que nada tinha lá. Seus olhos azuis quase saltavam
de seu crânio.
Hector pegou a garrafa de Aron e se serviu de um gole ainda
maior do que o anterior. Em seguida, tampou a garrafa e começou a rir
incontrolavelmente.
Aron tinha facilidade em fazer amizade. Talvez por este motivo,
já se entretinha e bebia com um homem que nunca tinha visto na vida
antes dos últimos vinte minutos e que ainda mantinha duas pessoas
reféns no porão. Apesar de tudo isso, ele não enxergava maldade nele.
Não satisfeito, pegou a garrafa novamente da mão de Hector com uma
mão e com a outra recolheu uma caneca que estava em cima da mesa.
Ele a cheirou e encheu o recipiente com a bebida. Com um gole só,
virou os quase duzentos ml para dentro de seu estômago. Mais um
ataque de mal estar, só que dessa vez ele estava preparado. Quando se
65
recompôs e olhou para Hector com seus olhos arregalados, este lhe
retirou a garrafa da mão e o saldou.
– Ao novo mundo! – disse Hector. Uma breve pausa enquanto
limpava de sua barba negra a bebida que tinha escorrido. – Agora me
conte sua história, homem.
Aron já começava a demonstrar os primeiros sinais de
embriaguez. Seus passos saíram um pouco desordenados quando ele
seguiu na direção da cadeira para se sentar.
– Dá mais um pouco disso aqui. – Ele esticou a mão para
Hector, que lhe serviu a garrafa. Imediatamente virou mais alguns
goles no gargalo e em seguida encheu a caneca. – Eu estava
precisando mais disso do que imaginava! – falava com um sorriso no
rosto, enquanto encarava o rótulo da garrafa. – Sente-se meu amigo,
vamos conversar.
Caliel o observava com seus olhos rubros arregalados. Muito
rapidamente Aron já estava bêbado e muito simpático. Algo que não
era acostumado a fazer: beber muito. O anjo se mantinha atento para
qualquer situação, pois sabia que a bebida levava os humanos a
fazerem coisas inusitadas. Ainda seria pior se um humano na situação
de Aron se metesse com o álcool.

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CAPÍTULO 11

A garrafa já tinha 20% do seu conteúdo inicial. Hector falava


sem parar, mas Aron estava longe, não prestando atenção no que o
homem dizia. Sua mente velejava na mais profunda escuridão.
Primeiro pensou em Sun e no lugar onde provavelmente seu espírito
habitava. Em seguida, pensou em Caliel, mas dessa vez o pensamento
saiu alto.
– Não é possível que Caliel tenha ido embora.
No mesmo momento, os olhos rubros do anjo se arregalaram.
Hector indagou:
– Quem?
– Desculpe! Pensei alto. – Aron deu uma risadinha sem graça.
– Você está com alguém?
– Estou, ou melhor, estava. Não sei onde ele se meteu.
Hector abriu um sorriso e levantou a garrafa de Bourbon.
– Melhor, assim sobra mais para nós – disse, servindo-se de um
gole.
Percebendo o olhar baixo e pensativo de Aron, Hector
perguntou:
– Quem é essa pessoa?
– Pessoa? Hum! É um amigo muito antigo.
– Bom! Um brinde ao seu amigo desaparecido. – Hector saldou
a garrafa e virou o restante da bebida até sua última gota. – Nesses
tempos, não tem nada melhor do que isso! – Hector encarava o
emblema da bebida. – Espere um pouco, tenho algo para nós. – O
homem arrastou a cadeira para trás e se levantou. Em seguida,

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cambaleante, dobrou o corredor que ia para o porão, mas que também
ia para a sala.
No mesmo momento, Caliel aproveitou para tentar chamar a
atenção de Aron. Com a força de seu pensamento, derrubou a caneca
que antes o humano usava para ingerir a bebida. Com o líquido quase
até a boca no recipiente, molhou toda a sua calça. Isso foi o suficiente
para que ele se levantasse bruscamente. Mas não raciocinando bem,
nem ao menos notou a parte sobrenatural da ação.
Hector retornou segurando outra garrafa com líquido amarelo.
Ele reparou em Aron em pé, passando a mão no molhado.
– Puta, cara! O banheiro é aqui do lado.
– Eu sei onde o banheiro fica. A caneca caiu em cima de mim.
– Pena eu não ter outra roupa para te emprestar. Tenho apenas
essa. – Hector sorria enquanto esticava sua regata branca em trapos,
suja. – Olhei seu guarda-roupa, mas acho que levaram tudo.
– Vou tomar um banho – disse Aron, já deslizando para o
mesmo corredor que também abrigava o banheiro.
Hector gritou.
– Ainda não tem energia. Mas se você não demorar no banho,
creio que não se congelará – uma risada alta do homem. – Ah! A água
também não está cristalina, mas dá para o gasto.
– Obrigado! – gritou Aron, com sarcasmo.
Ele entrou no banheiro e tentou ligar a luz como reflexo. Em
seguida, deslizou para o boxe e abriu o chuveiro antes de tudo, como
sempre fazia. A água caiu gélida acertando seu antebraço, fazendo
com que seu corpo inteiro desse uma tremeleada súbita. Sua cor estava
amarela, tal como Hector quis descrever. Logo ele tirou a roupa e se
adentrou na água sem hesitar. A essa altura, seus olhos já haviam se
acostumado com a meia luz que entrava pela janela, deixando o
ambiente praticamente claro.
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Caliel se mantinha no canto do cômodo, pensando em uma
maneira de avisar Aron que ele estava ali. Como um flash, uma ideia
preencheu sua mente. Ele andou até a pia e se concentrou. Em
seguida, tocou o registro da torneira e tentou virá-lo. Sem problema
algum, a água jorrou. Em seguida, ele levou o dedo à testa e fechou os
olhos. Naquele momento sua concentração era voraz, tendo em vista o
que planejava executar. Subitamente um vapor começou a subir da
água que esquentava na medida em que o anjo utilizava seu poder.
Muito rapidamente o espelho já se encontrava fosco, úmido, com uma
fina camada de vapor impregnado. Caliel concentrou sua energia na
ponta de seu dedo indicador e escreveu.

“Aron, estou com você. Jamais se esqueça disso.”

Ao terminar o banho frio e muito rápido, Aron abriu a porta de


alumínio do boxe. Olhou a toalha que escorria do metal preso à parede
e preferiu não a pegar, pois seu aspecto estava horrível. Ele tocou o
piso do banheiro com seus pés descalços. Com o corpo pingando,
pegou a roupa que tinha deixado amontoada em cima do vaso
sanitário. Levou-as até o nariz e as cheirou. O cheiro estava ótimo,
como cheiro de água. Ele as vestiu e deixou que seu corpo se secasse
no tecido branco da camiseta e da calça.
Quando acabou de se vestir, voltou sua atenção para o espelho a
fim de arrumar o cabelo. Lá estava a mensagem de Caliel. Aron
começou a alisar os cabelos para trás com as mãos e nem ao menos
percebia a mensagem.
Isso começou a deixar Caliel impaciente. Se Aron saísse de lá
sem ver a mensagem, qual seria sua próxima oportunidade? Em um
movimento rápido, o anjo concentrou sua energia novamente no dedo
indicador e riscou abaixo das palavras “estou com você”. O traço
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sendo criado subitamente fez com que Aron pulasse para trás,
soltando um grito.
Hector correu até a porta do banheiro e deu alguns murros na
porta.
– Ei, está tudo bem?
– Está! Está! – respondeu Aron.
– Foi sua imagem no espelho? – Aron escutou a gargalhada de
Hector. – Bicho! Cê é feio, mas não é pra tanto. Estarei lá abrindo a
garrafa de tequila.
– Certo. Já estou indo. – Aron se aproximou do espelho e tocou
as gotas que já escorriam das letras feitas pelo anjo. Imediatamente ele
percebeu que Caliel estivera com ele o tempo todo. – Caliel? – uma
pausa - Tá! Ok! Eu sei que você está aqui.
Novamente ele viu as letras se desenvolverem no espelho.

“E sempre estarei.”

– Eu sei! Obrigado, meu amigo! – disse Aron.


TUM. TUM. TUM – três murros na porta.
– Com quem você está falando? Está ficando doidão? – Hector
gritava de trás da porta.
– Estou cantando – respondeu Aron, não tão confiante.
– Puta! Só tem louco agora nessa merda de mundo! – Hector
saiu resmungando.

***
– O que vocês estão fazendo aqui? – sussurrou Haziel.

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Daniel e Mazarak tinham feição ansiosa e não demonstravam
querer perder tempo naquele lugar.
– Fomos descobertos. Temos que agir o quanto antes e sair
desse lugar o mais rápido possível. – Daniel segurou no antebraço do
louro e logo todos saíram em disparada, percorrendo o largo corredor
que seguia até os fundos do segundo andar, de onde os irmãos de
espírito tinham vindo.
O tapete persa preenchia cada região do solo, afundando-se no
breu que acompanhava os fundos, local para onde o trio seguia.
– Como vocês chegaram aqui? – Haziel tinha os olhos
arregalados enquanto corria.
– Entramos voando muito rápido e passamos por uma fenda no
terceiro andar.
– E os guardas nas torres?
– Não tem mais guardas nas torres. Todos vieram atrás de nós.
– Deixaram os muros desprotegidos?
– Não. Quando entrávamos na torre, vimos que outros guardas
já ocupavam o lugar dos anteriores.
Rapidamente o trio corria meio ao breu, não dando para
enxergar um palmo às suas frentes.
– Vou iluminar esse lugar – disse Haziel, pensando que como já
tinham sido descobertos, não teria por que não utilizarem seus divinos
poderes. – Subitamente ele explodiu sua áurea dourada, brilhante
como fogo.
Imediatamente Daniel viu uma oscilação não tradicional em seu
tom, que ficou mais brilhante. Mas não deu muita importância para
isso, pois o que eles viram em suas frentes fizeram-nos parar
imediatamente, já retirando suas espadas das bainhas.
Estavam em um grande salão com o teto abobadado se erguendo
a cerca de duzentos metros de altura. Isso não era tudo. Em volta
71
deles, reuniam-se pelo menos quinze demônios. Cada um tinha uma
aparência completamente diferente da do demônio ao seu lado.
Nenhum tinha aparência frágil. O menor deles, com não mais de um
metro e meio, tinha a aparência mais intimidadora dentre eles. Tinha
a cabeça lisa como uma bola de boliche. Os olhos eram repuxados e
vermelhos brilhantes como lava na sua mais alta temperatura. A boca
era larga e com dentes de tubarão que surgiam dos lábios superiores.
A pele era branca como algodão, com rajadas negras como de tigres.
Suas garras eram enormes em todos os dedos do corpo. Um grande
rabo com aproximadamente dois metros e duas asas de morcego com
três metros cada uma completavam sua aparência maléfica.
O maior deles fazia parte de uma casta que os anjos já tinham
enfrentado centenas de vezes. Com quase três metros de altura, o
demônio tinha a pele vermelha e cascuda. Grandes chifres negros se
erguiam de sua cabeça, combinando com seus olhos profundos como
um poço sem fundo.
Diferentemente dos angelicais, que não chegavam a se dividir
em mais de dez castas, os demônios eram milhares. Na sua evolução
interrupta e veloz, multiplicaram-se sem nenhuma ordem de raça,
sendo criados e geridos entre si. Diferentemente dos anjos, não eram
só criados, mas eles próprios também tinham o dom da procriação, tal
como a raça humana.
Os dois anjos e o duque sabiam que aqueles eram os mais
poderosos tipos de demônios, depois dos duques infernais. O trio até
poderia passar por eles, mas com certeza pagariam com algo. Eles
eram encarados pelos olhares satânicos sabendo que o primeiro ataque
poderia acontecer a qualquer momento. Todos os três já tinham
destravado suas espadas em mãos, prontos para se defenderem do
ataque fatal.

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Subitamente as luzes no grande salão foram se acendendo uma a
uma, até que todas iluminavam o recinto como com vinte luas em seu
mais alto brilho. Uma grande porta de aço, pintada em tons de
amarelo, destacou-se ao fundo quando foi aberta. Uma figura
imponente e intimidadora entrou no salão quase que desfilando. Era
negra como uma sombra gigante, com quase três metros de altura. Seu
corpo delgado lhe dava um charme não encontrado em outro demônio.
Suas grandes asas negras de dragão balançavam a cada passo. Seus
olhos rubros, brilhantes eram a única cor em todo o seu grande e
magro corpo.
Sem pressa alguma, ele se aproximou. Os demônios que
rodeavam o trio abriram a esfera para que o infernal negro como a
noite passasse.
Daniel fitou Haziel e reparou enquanto ele apertava o próprio
punho. A qualquer momento, o anjo poderia sair de si e provocar algo,
onde todos poderiam vencer e sair de lá com vida. Mas as
probabilidades não demonstravam isso. Além do mais, não estavam ao
menos perto de Deus. Sendo assim, suas forças estavam reduzidas ao
menos pela metade. A não ser por Mazarak que continha poder total.
O demônio alto estava na frente do trio os encarando. Fazia isso
por pelos menos um minuto, até que Haziel indagou:
– Quem é você?
– Não me reconhece, meu caro irmão?
– Não me chame de irmão!
– Vamos com calma. Para que demonstrações de desapego? –
Ele repuxou os lábios em um sorriso, mostrando suas presas
pontiagudas, brancas. – Temos muito que conversar.

73
CAPÍTULO 12

Aron voltou para a cozinha com a sua roupa quase encharcada.


– Você não sabe se secar não? – O homem soltou uma
gargalhada e em seguida virou um dos copos de tequila que tinha
preparado. O outro ele empurrou para Aron.
Aron levantou as mãos, dizendo:
– Passo. – Depois empurrou o copo de volta para Hector.
Este que o olhou com reprovação.
– É! Quem não aguenta, bebe leite – disse, antes de virar o copo
e pegar a garrafa, enxugando cada gota de seu recipiente.
Aron ficou impressionado, pois nunca presenciou alguém beber
tanto e continuar em pé. Nem os que caíram na sua frente por causa de
bebida tinham bebido o que aquele homem bebeu e por alguma força
que Aron, como piada, considerou “sobrenatural”, ainda se mantinha
de pé. Ou melhor, sentado. Sua cabeça estava cambaleante e seus
olhos baixos. Ele tentou dizer algo levantando o indicador, mas Aron
não entendeu nada e só concordou com a cabeça. Logo o humano de
Caliel percebeu que ele não duraria muito tempo, então resolveu
ajudá-lo a levantar-se a fim de levá-lo ao quarto. Rapidamente, ele já o
deitava na cama e puxava um lençol sujo para cobri-lo. Hector disse
mais algumas coisas indescritíveis com um sorriso estampado no rosto
e depois se virou, afundando seu rosto em um dos antigos travesseiros
de Aron.
Sem perder tempo, Aron encostou a porta do quarto e se
locomoveu até a porta do porão. Conhecendo seu guardado, Caliel
sabia exatamente o que ele pretendia fazer e sabendo que aqueles

74
humanos lá embaixo não eram flor que se cheirasse, o ruivo ficou um
tanto ansioso.
Aron tentou mover a maçaneta da porta, mas ela não se movia.
Ele não sabia que Caliel estava ao seu lado fazendo força contrária,
concentrando-se com todas as forças. O humano fez toda a força que
podia, mas aquela maçaneta parecia estar presa por solda. Sem
pestanejar, nem medindo possíveis consequências, Aron deu um passo
para trás, encostando-se à parede do corredor e deu uma solada na
porta. Imediatamente ela se abriu, explodindo madeira do batente para
todos os lados. O barulho foi alto, fazendo com que o humano fosse
até o quarto para ver se Hector se mantinha dormindo. Estava como
uma pedra, apenas balançando o lençol com sua respiração que
inchava e desinchava seu pulmão. Seu ronco fez com que Aron se
lembrasse do ronco do pai que era colocado para fora do quarto por
sua mãe quase sempre, aos berros. Aquela lembrança o fez sorrir.
Caliel também sorriu diante do sorriso do humano.
Aron voltou ao corredor fazendo com que o sorriso no rosto de
Caliel se apagasse. Em seguida desceu as escadas, pisoteando cada
degrau com cuidado. O breu quase total e os degraus altos não
combinavam. Chegando quase ao final da escada, deparou-se com a
janela que dava no quartinho onde seu pai guardava ferramentas e
coisas velhas, quando era vivo. Muitas vezes entrou naquele lugar,
aventurando-se com cada objeto, martelo, ou com até mesmo
máquinas antigas reprodutoras de filmes. A poeira do ambiente e a
meia luz lhe davam a sensação de estar em um lugar sombrio. Coisa
que ele adorava quando era criança.
Quando ele voltou a si, a mulher o encarava com os olhos
arregalados. Ela tentou falar algo, mas o pano preso a sua boca não
deixou sair mais que meros sussurros congestionados. Aron hesitou,

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mas andou até ela e puxou o pano para baixo. Imediatamente ela
começou a falar:
– Me solte. Esse homem é perigoso! – Ela olhava para a entrada
que dava na escada. – Rápido, antes que ele venha.
– Acredite em mim. Ele não virá!
– O que você fez? – Um breve sorriso apareceu em seus lábios.
– Nada! Digamos que ele pegou no sono – respondeu Aron,
alargando seu sorriso irônico. – O que está acontecendo aqui?
– Esse homem é pirado. Eu e meu namorado estávamos
procurando água potável, apenas para beber. Algo que ainda não se
encontra em lugares afastados do centro. Vimos uma luz de vela na
janela que dá na garagem e na mesma hora soubemos que tinha
alguém aqui. A sede era tanta que não nos importávamos mais que
tipo de gente nós encontraríamos. Queríamos apenas saciar o que nos
matava.
Suas sobrancelhas estavam baixas. Isso fez com que Aron
sentisse uma tremenda pena dela. Seus lábios carnudos estavam secos
e rachados. Aron sentiu um impulso brutal em querer soltar a moça,
mas algo o impediu, dizendo-lhe que aquilo não era uma boa ideia. O
homem, ainda atordoado, movia sua cabeça de um lado para o outro
em murmúrios. Percebendo isso, o impulso de Aron foi mais forte do
que ele pôde controlar e logo já desamarrava as mãos da moça, presas
às mãos do homem.
Uma vez livre, em pé, a mulher começou a desamarrar as mãos
do homem. Instantaneamente Aron começou a ajudá-la, pois o nó
estava mais duro do que o dela. O homem se viu livre, levando a mão
até a mordaça, puxando-a para baixo. Aron os olhava, sorridente. O
homem olhou para ele limpando as mãos úmidas nas calças e disse:
– Obrigado! – um grande sorriso se alargou.

76
Nesse momento Aron estranhou que de cambaleante, ele ficou
bom em um estalo. Em seguida viu sua mão se aproximando de seu
rosto. Súbito, tudo ficou escuro depois da pancada no queixo.

***
Os dois anjos e o duque eram escoltados pelos demônios até a
porta amarela ao final do salão. Haziel estava quase a ponto de
explodir. Isso era nítido aos olhos de Daniel que o conhecia tão bem,
preocupando-se. Quebrando as expectativas, não foi isso que Haziel
fez até eles chegarem ao cômodo vizinho. Lá eles encontraram uma
grande porta dupla, moldada com algum tipo de mineral sólido.
Quando o demônio negro e alto se aproximou, instantaneamente cada
uma das partes correu para um lado, deixando aparente um ambiente
esférico com não mais de vinte metros de raio. O teto era abobadado,
erguendo-se a quase dez metros de altura. O piso de mármore tinha o
desenho de uma estrela de doze pontas.
– Agora é comigo, meus rapazes. – O demônio escuro se dirigia
ao restante da horda.
Todos menearam a cabeça para ele. Os anjos e o duque
observavam a cena se desenrolando, tentando de alguma maneira
entender o que acontecia ali. Uma coisa era fato. O demônio estava
ficando sozinho com três poderosos guerreiros.
– Depois de vocês. – O grande demônio se curvou
educadamente para que o trio entrasse no cômodo.
Hesitantes, eles se entreolharam. Haziel tomou a frente e deu o
primeiro passo. Logo os três estavam dentro, sendo seguidos pelo
demônio. Daniel olhou para trás, tendo tempo de ver a porta se
fechando, dividindo-os da pequena horda demoníaca. Os anjos e o

77
duque tiveram quase o mesmo pensamento. Aquele poderia ser um
poderoso demônio, para ficar no meio de três criaturas divinas,
podendo ser massacrado de uma hora para outra.
De repente o sorriso se apagou do rosto do demônio e sua feição
ficou séria.
– Vocês realmente não se lembram de mim? – ele encontrou
Mazarak com os olhos. – Nem você, Mazarak? – Subitamente os
olhos do demônio se preencheram de um azul tão forte que
imediatamente todos na sala deram um passo para trás.
– Não pode ser! – disse o duque de asas negras, dando mais um
passo para trás, arregalando ainda mais os olhos. – Como?
O negro demônio colocou as mãos para trás e soltou uma curta
risada.
– Diferentemente de você, meu caro duque do submundo, que
foi salvo pelos humanos e por Lúcifer, eu caí e não consegui! – os
olhos do demônio se perderam em um ponto na parede.
Todos escutaram um estalo. Repentinamente, o cômodo
começou a se mover para cima como um elevador. Estavam em um
elevador. No maior que já estiveram, pois além dali, só tinham
presenciado tal tecnologia na Terra.
– Estão surpresos com o elevador? Não se esqueçam de que nem
todos os demônios têm asas – ele abriu um sorriso.
– Todos acharam que você estava morto, Dariel – disse
Mazarak, ainda espantado.
– Mephisto conseguiu me derrubar e arrancar a minha
espiritualidade divina, mas não conseguiu tirar a minha vida –
retrucou o demônio.
– Seu irmão de espírito gostaria muito de saber que você está
vivo. – Daniel estreitou um dos olhos. – Por acaso, ele sabe?

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– É claro que não! Ninguém sabe. – O demônio lhes deu as
costas, fechando os olhos. Em seguida se virou novamente. Seus olhos
tinham voltado ao rubro. – Não quero que ele me veja assim. Conto
com vocês para que ele nunca saiba. Preciso que Bariel continue
achando que perdeu seu irmão, enquanto ele ainda era um lindo anjo.
Estou me mostrando a vocês apenas pelo fato de que o que tenho para
dizer é de importância máxima.
A atenção do trio se voltou totalmente ao demônio e quase sem
interrupções escutaram o que ele tinha a dizer.
– O céu inteiro deve estar se perguntando onde está o restante
dos tronos de Deus. Como vocês devem imaginar, eles estão aqui.
Mas esse não é o verdadeiro problema que vocês vão enfrentar. – O
demônio fechou ainda mais a feição. – Dois duques estão utilizando
sua energia para criar algo muito pior do que qualquer um de nós já
viu.
– Quem são os duques? – indagou Mazarak.
– Os únicos ainda vivos. Astaroth e Leviatã.
– Leviatã é um nojento! – disse Daniel.
Mazarak foi o que mais se surpreendeu com resposta de Dariel,
pois tinha visto diante de seus olhos, Lúcifer restaurar Astaroth. Nesse
momento vieram as quatro bombas, juntamente com as palavras de
Dariel.
– Eles estão criando quatro anjos infernais com um poder
inimaginável. A cada três tronos fundidos com um espírito infernal,
um deles vai ser criado.
– Temos que voltar imediatamente – disse Haziel, logo voltando
a atenção a Dariel e indagando: –Você, por um acaso, sabe nos dizer
algo sobre o espírito da humana?
– Sim! – O anjo caído balançou a cabeça. – Seu espírito ainda se
encontra preso ao corpo aqui no inferno e ele é o elemento principal
79
para que isso possa estar acontecendo. Ainda existe algo que eles não
estão dizendo. Mas eu descobrirei.

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CAPÍTULO 13

Caliel observava, agoniado, enquanto o casal subia a escada do


porão, com a mulher segurando Aron pelas pernas e o homem pelos
braços. Já no corredor, observaram a porta do quarto em que se
encontrava Hector entreaberta e olharam no outro ponto da casa
vislumbrando a porta do quarto principal, totalmente aberta. Foi para
lá que seguiram. Colocaram Aron desacordado na cama e com uma
fita daquelas potentes, amarraram suas mãos e amordaçaram sua boca.
Em seguida eles saíram, levando a fita junto. Caliel ficou
observando seu guardado sem poder fazer absolutamente nada, pois a
força daquela fita quando colada, era colossal. Caso não estivesse
colada, ele poderia fazer algum tipo de força para estourá-la, mas
nesse caso, o toque tinha que ser minucioso. Sendo assim, nem se
concentrando com sua maior força, ele conseguiria puxar a fita pelo
lado espiritual. Outra coisa é que apesar da situação, ele tinha que
seguir regras. Não poderia se materializar enquanto Aron não passasse
real risco de morte.
O casal retornou ao quarto segurando Hector do mesmo jeito.
Mas ele estava acordado. Caliel pensou que se não fosse pela situação,
a cena do homem amordaçado com a fita, quase expulsando seus
globos oculares de tão arregalados, seria engraçada.
O homem e a mulher os colocaram ao lado de Aron, que naquele
momento começava a despertar. Seu queixo estava vermelho e um
pouco inchado. Ele piscou duas vezes antes de abrir os olhos
totalmente, para ver Hector o encarando com os olhos arregalados. Foi
aí que Aron percebeu que estava preso, igualmente ao seu novo

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amigo. Ambos viraram as cabeças e vislumbraram o casal os
encarando, em pé ao pé da cama.
– Um já era bom, mas dois é bom demais! – disse o homem com
um sorriso satânico nos lábios. Era um homem troncudo, com mais ou
menos quarenta anos de idade. A pele morena, o sotaque e a cabeça
um tanto achatada deixavam evidente sua origem nordestina.
A mulher inclinou um pouco para o lado, com os braços
cruzados e sussurrou para o homem. Não fez questão de diminuir o
tom da voz para que os dois amordaçados não escutassem.
– Quanto será que vale o do branquelo?
– Não sei o quanto vale, mas sei que literalmente vamos
arrancar dinheiro dele.
– Como você é burro! O cara caga dinheiro agora? Literal!
Haha... Vamos fazer isso aqui mesmo?
– Não. Vá lá, arrume a mesa de jantar. Temos que dormir nessa
cama. – O homem levantou as sobrancelhas duas vezes e desferiu um
tapa na bunda da mulher, enquanto ela já saía.
Ela deu um pulo para a frente e se virou com um sorrisinho no
rosto. O homem disse:
– Isso é por me chamar de burro e você entende o que eu quis
dizer com literal.
A moça colocou as mãos na cintura e depois saiu do quarto.
Caliel a seguiu e viu quando ela jogou tudo que estava na mesa da
cozinha de qualquer jeito no chão, varrendo os objetos com os braços.
– Está tudo bem aí? – um grito do quarto.
– Está! Estou só limpando a mesa.
Ela foi até o quarto colado à cozinha e pegou o lençol preso à
cama. Em seguida o colocou na mesa.
– Pode trazer o primeiro – ela gritou.

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O homem sorriu encarando Hector e pegou suas pernas,
puxando-o de qualquer jeito. Quando seu tronco despencou da cama,
sua cabeça bateu no chão. O carpete verde amorteceu a pancada,
mesmo assim ele sentiu uma dor aguda que percorreu sua cabeça
inteira, até os olhos.
Hector foi arrastado até a cozinha e quando chegou lá, começou
a se debater ao ver o lençol sobre a mesa. Subitamente, sentiu o chute
no rosto com a botina preta do homem e foi amortizado
instantaneamente. Aturdido, escutou quando o homem pediu à mulher
que o ajudasse a erguê-lo. Eles o fizeram, colocando-o em cima da
mesa. Em seguida, o homem pediu à mulher que encontrasse uma faca
afiada em uma das gavetas. Hector queria reagir, mas estava
impotente.
Caliel já sabia o que se desenrolaria na cozinha nos próximos
minutos e sabendo que seu guardado seria o próximo, tentava
desesperadamente achar uma maneira de libertá-lo. Aproveitando que
Aron estava de bruços, concentrou toda a sua energia nas duas mãos e
começou a puxar a fita presa nos braços de Aron.
Sentindo a pressão da fita, instantaneamente Aron sabia o que
estava acontecendo naquele momento. Caliel nunca pôde ser abusivo
assim na vida do humano, para não deixar qualquer evidência de sua
existência. Mas depois de tudo o que passaram juntos, ele podia fazer
o que bem entendesse. A pressão aumentou, fazendo com que Aron
grunhisse de dor. Caliel parou na mesma hora. Mas Aron balançou a
cabeça várias vezes. Isso fez com que o anjo entendesse que era para
continuar. Caliel deu um sorriso de satisfação e continuou
pressionando a fita com todas as forças que podia transferir para o
mundo carnal. Mesmo com isso, não foi o suficiente para que a fita
esticasse para que Aron se movesse o suficiente para soltá-la.

83
Súbito, um murmúrio de agonia forte e abafado, pela fita, na
boca de Hector, ecoou pela casa toda. Nesse momento, Aron arregalou
os olhos e começou a remexer seu corpo o mais forte que podia, a fim
de amolecer o elástico da fita. Mais um murmúrio, esse foi mais
desesperador. Caliel sentiu o impacto da voz do humano no próprio
coração e sua concentração aumentou cem vezes. Com um forte
puxão, ele conseguiu descolar a fita, dando folga para que Aron, com
apenas mais um pouco de esforço se visse livre. Em seguida Aron
puxou a fita da boca, sentindo uma dor alucinante e depois a puxou
dos pés.
Sem hesitar, Aron se levantou da cama e correu rumo à cozinha
para salvar seu novo amigo do que é que fosse. Nessa trajetória,
sentiu-se a pessoa mais burra do mundo e pôde ver que poderia
realmente confiar naquele outro humano, pois aparentemente ele falou
a verdade sobre tudo.
Quando Aron chegou à cozinha, viu algo que o deixou enojado e
um tanto desesperado. Hector jazia na mesa, desacordado. Com
certeza pelo fato de ter sentido uma dor alucinante quando o casal
abriu sua barriga para retirar seu rim. Um corte escuro de mais ou
menos quinze centímetros percorria a lateral de sua barriga. O homem
acabava de depositar o órgão em uma bandeja esférica de metal.

***
O duque, os anjos e o demônio subiam o elevador que já se
mantinha em movimento há quase cinco minutos, sem atingir seu
destino.
– Onde você está nos levando? – indagou Haziel.

84
– Peço que vocês tenham calma, pois aonde estamos indo, as
coisas podem sair do controle rapidamente - uma breve pausa. –
Vocês foram capturados, mas temos que bolar um plano para que
vocês escapem dessa com vida.
– Quem vamos ver?
Ignorando a pergunta de Haziel, porque o tempo era curto, o
demônio disse:
– Lembrem-se. Eu estou do lado de vocês.
Nesse momento eles sentiram a velocidade do elevador diminuir
bruscamente, escutando um clique em seguida. Mais um clique, um
pouco mais forte, demonstrando que estava travado. Logo as duas
portas escorreram cada uma para um lado. Eles deram de cara com
duas figuras que jamais imaginaram encontrar ali. Subitamente Haziel
foi empurrado com brutalidade por Dariel, saindo do elevador em
passos rápidos e caindo de joelhos. Daniel e Mazarak o olharam com
os olhos arregalados, assim sendo retirados também a força.
– Que agradável surpresa!
Mazarak e Daniel respiraram fundo, completamente surpresos
ao verem de onde surgia a voz. Além disso, Mazarak também sentiu
uma imensa sensação de traição.
A voz veio acima de Haziel que pôde ver duas botas de couro
próximas, a menos de um metro de distância. Ele percorreu o corpo da
criatura com os olhos, passando por sua calça branca. O peito estava
coberto com um colete apertado, também branco. Suas asas brancas
eram tão belas quanto às dele próprio. Se ambos fossem humanos,
poderia se dizer que poderiam ser primos de tão parecidos. Apenas os
olhos do outro eram rubros como sangue, com apenas um ponto negro
representando a pupila.

85
– Astaroth! – praguejou Haziel, apertando um dos punhos no
chão, arrancando e estilhaçando rocha. Ele ia se levantando, quando
foi parado pelo pé do duque, forçando seu ombro para baixo.
– Eu não disse que você podia se levantar – disse Astaroth,
chegando a alterar um pouco o tom de voz.
Mesmo Haziel sabia que nunca poderia enfrentar Astaroth no
inferno sem perder a própria vida. Provavelmente até na Terra
aconteceria dessa forma. Enfrentar Pruflas era uma coisa. Enfrentar
Astaroth era algo colossal. Além do mais, não tinha nenhum
guardador com ele, como teve na luta contra Pruflas, onde Caliel o
recompôs de total poder, mesmo fora de seu habitat. Enfrentar
Astaroth era uma tarefa talvez mortal até para Bariel, enfrentando-o na
Terra, um lugar entre o céu e o inferno. Na região de Astaroth, Haziel
não passava de um coelho nas mãos de um lobo. Esses pensamentos
fizeram com que Haziel se mantivesse abaixado. Mas isso não o
impediu de sentir uma fúria corroendo seu peito.
– É isso mesmo. Fique aí onde é o seu lugar, no chão – disse o
outro duque com aspecto reptiliano.
Com os olhos queimando em fúria, Haziel ameaçou se levantar
novamente. Isso fez com que Leviatã corresse para trás de Astaroth.
Então Haziel voltou à sua posição inicial, mas ficou tremendo de
raiva, prestes a explodir o lugar com sua grande energia. Veias
saltavam pelo seu pescoço, testa e membros. Astaroth percebeu,
criando certas expectativas, mas logo se tranquilizou quando Haziel
foi se controlando.
– Leviatã! Busque as correntes que você vai me ajudar mais do
que ficando aqui, falando merda – disse Astaroth, imponente.
Nesse momento, um turbilhão de imagens inundou a mente do
anjo, repassando cada dia dos cem anos que passou no inferno.
Qualquer coisa poderia acontecer, mas de uma ele sabia, nunca mais
86
ficaria preso, nem que fosse apenas por um dia, naquele lugar. Haziel
estava de joelhos no chão, apoiando suas palmas abertas no solo frio.
Única coisa que Daniel e Mazarak podiam ver, afastados alguns
metros, era o corpo do louro tremeleando em fúria. Daniel sabia que
toda a situação já tinha passado fazia tempo de todos os limites de
Haziel. Uma luz azul se acendeu à frente de seu corpo. Os irmãos de
espírito deduziram que se tratava da íris do celeste pulsando, mas logo
sua tonalidade começou se alterar para dourado, iluminando o lugar
cinco vezes mais do que a energia azul iluminou. Em seguida, Haziel
apoiou um dos pés no chão e começou a se levantar.
Astaroth nunca tinha visto os olhos de um guerreiro brilharem
daquela forma. Só tinha visto quatro criaturas com o brilho tão
intenso. Inclusive, na época em que ainda era um anjo, ele foi um dos
únicos a se aproximar do trono de Deus e vislumbrar a imagem dos
quatro querubins do trono sagrado. Além dele, dos arcanjos e dos
vinte e quatro tronos, apenas Bariel, Yesalel, Beelzebuth, Baalberith,
Auriel, Kamael e mais alguns príncipes celestiais tiveram esse
privilégio.
– Eu nunca permitirei isso! – disse o demônio de olhos rubros. –
Eu nunca permitirei que vocês invadam meu reino e se sintam à
vontade. – Ele tocou o próprio peito. – Quem dita as regras aqui sou
eu!
O movimento de Astaroth foi tão rápido que nenhum dos
celestes pôde ver. Haziel foi acertado com um golpe tão poderoso da
perna direita de Astaroth que ele foi arremessado e seu corpo penetrou
na rocha como ferro quente no isopor. Imediatamente Daniel disparou
na mesma direção em que o corpo do anjo foi arremessado. Astaroth
ameaçou segui-lo, mas Mazarak se colocou na sua frente, abrindo com
imponência suas asas negras e lampejando seus olhos verdes.

87
Dariel estava afastado a apenas cinco metros de distância,
observando a ação do combate que se sucederia. Dois duques
poderosos. Um da Cidade da Luz e o outro do inferno. Ele já tinha
escolhido seu lado, mas não poderia entrar no combate, pois queria se
manter infiltrado, a fim de atualizar o outro lado sobre o avanço do
plano inimigo. O alto demônio negro deu alguns passos para trás,
porque não queria levar algum golpe de nenhum daqueles dois.

88
CAPÍTULO 14

Sem hesitar, Aron avançou para cima do homem, com a reação


de um bravo herói. O homem chegou a levantar a lâmina, mas Aron
segurou em seu braço e começou a forçá-lo para trás.
A mulher avançou para cima de Aron, puxando seu braço. Isso
fez com que ele começasse a perder a força. Quase travada, a faca do
homem iniciou seu avanço na direção do rosto dele. Foi nesse
momento que a agilidade do ruivo em benefício a Aron fez brilhar
uma energia vermelha em sua mão, restaurando todas as forças de seu
guardado e depositando toda a energia necessária para que Aron
reagisse. Em um movimento, tal como de um lutador de artes
marciais, Aron puxou o braço do homem em direção ao próprio corpo,
usando o seu braço que se flexionava para trás, para acertar uma
cotovelada no rosto da mulher. Em seguida, quando a faca quase já o
acertava, ele desviou para o lado e deixou que o homem encontrasse a
parede atrás dele. Seu corpo bateu, mas antes ele colocou a mão na
frente, protegendo a cabeça.
A mulher estava desacordada no chão. O homem com a faca
olhou para Aron, furioso. Lambia os lábios enquanto o suor escorria
em sua testa. Os dois braços estavam abertos, sendo que um deles
segurava a faca.
– Vem bonitão! Pode vir – disse Aron, se posicionando. Nunca
foi bom de luta. Mas com Caliel ao seu lado, estava confiante de que
aquela luta ele ganharia.
O homem avançou como uma fera em direção a Aron e diferente
do que ele imaginava, não conseguiu segurar o impacto e os dois

89
foram arremessados ao chão, com Aron batendo as costas com muita
força, sendo que o homem caiu em cima dele. Aron só não sofreu
nenhum trauma porque Caliel, mesmo que pouco, conseguiu
amortecer a queda. Mesmo assim, o humano arfava para tentar puxar o
máximo de ar que podia. Seus pulmões contraídos, fora de foco, não
deixavam que esse ar entrasse. Caliel acendeu sua luz vermelha,
desobstruindo as vias respiratórias de Aron. Nesse momento, o
humano puxou uma grande quantidade de oxigênio. Foi exatamente
nessa hora que viu a faca se aproximando com velocidade de seu
rosto. Colocando a mão na frente, parou o movimento e começou a
disputar força com o homem.
Caliel observava, disponibilizando o máximo de força que podia
para Aron, mas o homem, em cima, levava vantagem e aproximava
cada vez mais a faca do rosto do guardado de Caliel. A situação já
tinha saído do controle do anjo fazia tempo e naquele momento ele
começou a cogitar a materialização. Essa não era a melhor opção, pois
levaria muitas horas para poder se desmaterializar novamente. Sem
opção, teria que fazer aquilo, ou veria a morte de Aron nos próximos
segundos. Em seguida viu algo que lhe deu esperanças.
Aron empurrava o braço do homem com todas as forças,
enquanto com a outra mão tentava penetrar os dedos em seus olhos.
De repente levou um soco que o desnorteou. Isso o fez perder a força,
virando uma presa fácil. Sentiu a primeira fisgada no pescoço.
Subitamente escutou o barulho de uma pancada seca e o homem
despencou em cima dele. Quando abriu os olhos, vislumbrou a
imagem de Hector segurando um porrete. A aparência do homem era
horrível, enquanto ele segurava o machucado que escorria sangue aos
montes por entre seus dedos. Hector despencou de joelhos, deixando
que o porrete caísse, enquanto seus olhos seguiam Aron. O guardado

90
de Caliel empurrou o homem mau para o lado e se arrastou até o
indiano a fim de ampará-lo de qualquer maneira possível.
Hector tinha no rosto uma cara de dor aguda. Tinha os olhos
fechados e mordia os dentes enquanto flexionava o machucado.
Soltava alguns grunhidos. Aron tentou falar com ele, mas naquele
momento o homem parecia estar alheio ao mundo externo à sua
cabeça.
Olhando o sangue de Hector abundante por todos os lados, Aron
calculou que ali poderia ter pelo menos um litro de sangue espalhado.
O homem gemia de dor enquanto sua pele se empalidecia cada vez
mais. Aron pensou que nos próximos minutos ele poderia morrer. Ele
sabia que um corte daqueles poderia sangrar muito, mas aquele
parecia estar expulsando todo o sangue de Hector. Como um
açougueiro, o homem com a faca, provavelmente pegou alguma
artéria importante.
De repente Hector parou de gemer. Aron fitou seus olhos e viu
que ele desmaiara, deixando que sua mão caísse no chão. Nesse
momento, um formigamento subiu pela sua cabeça. Ele não sabia por
que tinha gostado tanto daquele homem. Ao olhá-lo no chão, teve a
sensação de que o conhecia há anos. Ainda não sabia como, mas sabia
que tinha que salvá-lo de alguma maneira. Então fez a única coisa que
estava ao seu alcance naquele momento.
– Caliel, por favor, salve-o!
O humano tinha um dos olhares mais tristes que o anjo já tinha
visto nele. Caliel queria salvar Hector, mas não poderia quebrar aquela
regra tão preciosa. O que poderia desencadear se fizesse aquilo? Até
onde sabia, nunca tinha ouvido falar de alguma história em que um
guardador salvou a vida de outra pessoa que não fosse seu guardado.
– Caliel! Me dê atenção. Por favor, se materialize. Salve meu
amigo. – Lágrimas começaram a correr pelo rosto de Aron.
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Vendo o desespero de seu guardado, apesar da regra, Caliel
pressentiu que aquela era a coisa certa a se fazer e fechou os punhos e
os olhos. Feixes de uma luz rubra começaram a dançar em volta de
seu corpo, assim materializando sua forma carnal. O brilho em volta
de seu corpo começava a diminuir, mas ele já se aproximava de
Hector, fazendo com que o brilho das suas mãos se intensificasse cem
vezes mais. Aron abriu um sorriso contagiante, fazendo com que
Caliel também sorrisse, enquanto se abaixava perto deles dois.
– Aron, afaste-se! – pediu Caliel.
Aron se arrastou um metro para trás e ficou observando
enquanto Caliel colocava uma mão no peito e a outra sobre o corte de
Hector. A energia brilhou ainda mais forte, soltando lampejos
minúsculos de energia. Uma fina camada translúcida de luz varreu o
corpo de Hector, saindo dos pontos de onde o anjo o tacava. A luz
pulsava radiante, enquanto Caliel murmurava algo, com seus olhos
fechados.
Ele ficou nessa cerca de dois minutos, até que a cor de Hector
começou a voltar ao normal. Isso fez com que Aron sentisse um alívio
descomunal. A energia, em volta do indiano, começou a se dissipar e
Caliel retirou as mãos. No lugar do corte tinha apenas uma marca um
tanto mais escura.
– Vamos deixá-lo dormindo até que eu possa voltar ao meu
estado normal – Caliel disse enquanto se levantava.
– Quanto tempo isso vai levar?
– Cerca de vinte e quatro horas.
– O que faremos enquanto isso?
O anjo sorriu e disse:
– Não sei! – Ele deu de ombros. – Leia um livro.

92
CAPÍTULO 15

– O que aconteceu com você, irmão? Pensei que você tinha


escolhido o lado certo! – disse Mazarak com o olhar decepcionado.
– E escolhi. Este lado! – Astaroth apontou o chão. – O lado
oposto à humanidade.
– Saiba que eu jamais ficarei de mãos atadas, caso você tente
algo contra qualquer um deles dois. – Mazarak apontou com a cabeça
na direção de Haziel e Daniel, ao fundo do salão.
– Eu conto com isso! – Astaroth fechou os punhos e lampejou
seus olhos rubros como sangue.
Em uma só explosão, Astaroth explodiu o vento na direção de
Mazarak, juntamente com sua áurea maléfica. Em poucos milésimos
de segundos, atingia com um poderoso murro os dois braços cruzados
do duque na frente do corpo. Uma grande onda de choque irradiou
daquela região, varrendo tudo no salão.
Nesse momento, Dariel aproveitou a distração total no ambiente
e se esquivou para dentro de uma sombra, sorrateiramente,
desaparecendo completamente.
Com o outro braço, Astaroth tentou acertar mais um soco em
Mazarak. Mas este segurou sua mão, prendendo-a quase no mesmo
momento que prendeu a mão que disparou o primeiro soco. Afinal, os
dois socos foram tão rápidos que toda a ação não durou mais do que
noventa centésimos de segundo. Astaroth puxou com muita força seus
braços de volta, trazendo junto às mãos do duque que as seguravam
com todas as forças. O movimento foi imprevisível para Mazarak, que
foi levado junto com suas mãos e acabou recebendo uma poderosa

93
joelhada no abdômen, sendo arremessado ao teto do salão, a vários
metros de altura. Suas costas bateram, espremendo suas asas negras,
quebrando uma grande quantidade de rocha que caiu juntamente com
seu corpo. Ágil, o duque da luz caiu em pé, enquanto era acertado por
grandes pedaços de pedra que para ele, tinham o mesmo efeito de uma
chuva para um humano.
As luzes verdes nos olhos de Mazarak se acenderam como duas
lanternas e ele partiu para cima de Astaroth como um míssil. Daniel
viu quando os corpos se chocaram, varrendo novamente o salão com
uma onda de choque ainda mais poderosa do que a anterior. Haziel
caminhava ao seu lado, mancando com a perna direita. Estava coberto
com poeira. Ambos pararam afastados a vinte metros da luta e ficaram
observando os movimentos espetaculares dos guerreiros, enquanto
eles atacavam, defendiam-se e contra-atacavam.
Mazarak defendeu um poderoso soco do duque do inferno, mas
este o jogou para trás, fazendo com que ele arrastasse com os pés
rasgando o solo, até próximo de onde estavam Daniel e Haziel.
Olhando para o lado, ele viu o irmão de espírito o observando com os
olhos arregalados.
– Saiam daqui! – disse o duque da cidade da luz.
Nesse momento foi acertado por mais um murro poderoso, mas
que também conseguiu defender. Isso o afastou de Daniel e Haziel
quase quinze metros. Astaroth passou ao lado deles dois e os
encarando, disse:
– Vou acabar com ele e depois com vocês dois. – Astaroth
correu, puxando sua espada da bainha. Com um salto, caiu em cima de
Mazarak impulsionando sua lâmina contra ele com todas as forças.
Mazarak foi ágil e teve tempo de tirar sua espada da bainha,
recebendo o ataque em sua lâmina. O choque foi tão poderoso que
eles abriram um buraco no solo, ultrapassando os quase dois metros de
94
rocha sólida que separava aquele andar do inferior. Ambos
despencaram vinte metros para baixo, enquanto suas espadas se
chocavam no ar.
Entre um movimento e outro, Mazarak investiu nas asas e
subitamente seu corpo foi jogado para trás. Astaroth também rajou as
suas e avançou como um tigre para cima dele, sem dar ao menos
algum tempo para que ele reagisse. A fúria do demônio era grandiosa
e parecia não ter limites. Estava ficando evidente que Mazarak não
seria páreo para ele. Se comparada, a luta seria semelhante à de um
lobo saudável, contra um raivoso.
Haziel já tinha se recuperado nesse momento e junto com
Daniel, acompanhava o combate o mais perto que podia, plainando
abaixo do buraco aberto no andar superior. O louro olhou para cima e
viu Leviatã espreitando, escondido atrás de uma pedra. Seus olhos
encontraram os do anjo e então ele correu o mais rápido que pôde.
Haziel disparou na sua direção a fim de arrancar-lhe informações.
Daniel olhou a tempo de ver o grande rabo do duque reptiliano
desaparecendo meio aos destroços. Ele deixou que Haziel fosse atrás
dele, sumindo pelo buraco no teto e ficou observando seu irmão de
espírito.
Daniel não estava suportando mais e queria ajudar Mazarak,
então fez o que qualquer irmão faria pelo outro. Disparou em direção
ao combate e com um golpe de ombro, arremessou Astaroth contra o
muro da torre tão fortemente que um rombo do tamanho de um ônibus
foi aberto.
– O que você está fazendo? – indagou Mazarak.
– Eu vim te ajudar!
– Ele vai te matar!
– A você também! – retrucou Daniel.

95
– Saia daqui, Daniel e tire Haziel daqui também, antes que seja
tarde. Estou com poder total. Posso me virar.
– Eu não te deixarei sozinho com esse monstro!
Os dois irmãos de espírito plainavam lado a lado, imponentes.
Apesar de ambos serem da luz, um parecia das trevas, com sua pele
um tom mais moreno e suas asas negras.
– Que bonitinho! – Astaroth estava em pé sobre a moldura do
buraco aberto por seu corpo. Atrás dele, uma grande paisagem infernal
corria por todas as direções. O vento soprava forte como em uma
tempestade prestes a estourar seu poderoso tornado. – Você não quer
deixar seu irmãozinho sozinho? Não tem problema. Aqui tem bastante
para dois.
– Saia daqui, Daniel – o tom da voz de Mazarak soou nervosa. –
Em seguida, ele avançou para cima de Astaroth, segurando sua espada
prateada.
Novamente Astaroth foi jogado para fora do buraco. Logo
Mazarak já estava em cima dele, manejando sua espada com toda
destreza possível. Astaroth defendia cada golpe com dificuldade.
Daniel assistia ao combate e percebeu quando Haziel parou ao
seu lado.
– Conseguiu alguma coisa? – indagou Daniel.
– Eu não consegui localizá-lo.

***
Aron procurava algum livro que ainda não tinha lido, na estante
de sua sala. Os livros ainda estavam intactos, pois quase ninguém se
interessava por leitura, deixando-os como objetos que serviriam
apenas para coletar poeira. Ele escolheu um livro que Sun sempre

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falava o quanto era maravilhoso, mas ele nunca se interessou em saber
de fato o que a história lhe traria de benefício. O nome “A cabana” e o
enredo não lhe atraiam. Mas o momento que o mundo passava
atualmente fazia total sentido ele se deparar com aquela obra. Ele se
esparramou no sofá, lendo a primeira linha da primeira página que
dizia:

“Quem não duvidaria ao ouvir um homem afirmar que passou


um fim de semana
inteiro com Deus e, ainda mais, em uma cabana? Principalmente
naquela
cabana.”

Ao ler essas linhas, ele soube no mesmo momento que devoraria


aquela obra nas próximas horas.
– Boa leitura! – disse Caliel.
Aron abaixou o livro e avistou Caliel encarando a capa, em pé,
na frente dele.
– Você conhece?
– Não só conheço, mas sei que o autor teve influência divina
para criar a obra.
Aron arregalou os olhos, tendo uma vontade insaciável de
devorar a leitura. Conhecendo seu guardado, Caliel apenas sorriu e
disse:
– Boa leitura! – O ruivo saiu e se deslocou até o quarto que saía
da cozinha, a fim de averiguar o estado de Hector.
O humano estava bem, mas uma coisa incomodou Caliel. O
homem parecia chorar enquanto dormia. Chegando mais perto, Caliel
percebeu que além de chorar, ele murmurava algo.

97
-...teve que me deixar. Eu te procurei! Procurei-te em todos os
lugares possíveis. Eu não te encontrava. As coisas. As sombras. Ai
meu Deus! As sombras... Depois veio a escuridão. Por que você não
me esperou para irmos juntos? Por quê? Você não devia ter feito
aquilo. Ainda mais sem mim!

Caliel estava tão vidrado no que escutava que foi se


aproximando cada vez mais dele, ficando a apenas quase dez
centímetros de distância. Subitamente o homem abriu os olhos e
levantou o tronco em um impulso. As duas cabeças se chocaram,
fazendo com que Hector soltasse um berro. Sem hesitar, Caliel
colocou a mão em sua cabeça, emitindo um brilho, fazendo com que o
corpo de Hector entrasse em relaxamento extremo, para assim
adormecer como um urso ao hibernar no inverno. Caliel se arrependeu
de não ter feito aquilo antes.
Aron chegou no quarto correndo, olhando Caliel quase em cima
de Hector. Então ele perguntou:
– Está tudo bem aí?
– Está! Está sim! – Caliel olhou com o canto do olho para trás.

***
Daniel reparou enquanto as duas mãos de seu irmão de espírito
começaram a brilhar em verde esmeralda, para assim ele puxar a arma
para cima e descer com um poderosíssimo golpe, acertando a arma do
duque do inferno. Nenhum deles imaginou que isso aconteceria, mas a
arma de Astaroth se espatifou em milhares de micro pedaços.
Desarmado, Astaroth se sentiu impotente, diante de alguém tão
poderoso. Mazarak segurou a empunhadura da espada com mais força

98
e em seguida a arremessou para trás, na direção dos dois celestes.
Daniel a amparou e viu quando o irmão disse encarando Astaroth:
– Eu luto com honra!
O duque louro do inferno riu e retrucou:
– Isso não é honra, é burrice! – Sem perder tempo, Astaroth
cerrou os punhos e quando partia para cima de Mazarak, escutou um
grito que o deixou mais alerta e empolgado, do que com aquela luta
que considerava entediante. No mesmo momento, ele parou e
vislumbrou Leviatã no contorno do buraco na torre que fora aberto
com seu corpo, quando Daniel quase o nocauteou. O demônio
reptiliano apontava uma direção no horizonte.
– Está aberto! – Leviatã gritou mais uma vez, fazendo Astaroth
ter certeza de que tinha escutado corretamente.

Na linha de visão de Astaroth, ele via Mazarak a vinte metros.


Depois mais trinta metros até chegar a Daniel e Haziel. Trinta metros
atrás dos anjos, estava Leviatã, apoiando sua mão escamosa na parede
destruída. A queda para Leviatã que não tinha asas, dali poderia ser
fatal, pois se caísse, percorreria quase duzentos metros abaixo, apenas
batendo os braços como fonte de energia para impulsioná-lo para
cima. O resultado seria mortal. Vendo que Astaroth tinha entendido o
recado, assim como todos ali, ele pulou para dentro da construção,
desaparecendo no breu. Astaroth virou o rosto na direção apontada por
Leviatã e partiu como um míssil na mesma direção. Mazarak foi atrás
dele, alcançando a mesma velocidade. Haziel e Daniel os seguiam
como podiam.
A fúria de Mazarak o empenhou de uma forma que ele se
aproximou ao ponto de pegar o calcanhar de Astaroth. O duque lhe
desferiu um chute que acertou sua cabeça. Mas ele não largou a
pegada. Astaroth deu mais um chute, mas desse ele esquivou.
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– Me solte, maldito! – O tom de voz de Astaroth era odioso.
Mazarak puxou o pé do duque com força, nivelando-se a ele.
Em seguida, acertou-lhe um soco no rosto. Mas não conseguiu colocar
tanta força para nocauteá-lo.
Voavam a toda velocidade em sentido ao ponto de luz que nesse
momento já dava para se ver exatamente o que era. Um portal para a
Terra.
Astaroth segurou o braço de Mazarak, acertando-lhe dois
murros. Um acertou seu ombro, o outro acertou de raspão seu rosto.
Em um humano, aquele soco de raspão seria parecido como se um
ônibus o acertasse. Mas para Mazarak foi exatamente como um soco
de raspão. Aquilo fez Astaroth se enfurecer ainda mais, parando de
considerar a luta entediante e passando a considerá-la chata.
Eles avançaram juntos, trocando murros poderosos. Nenhum dos
dois caía, aguentando as pancadas, como dois bravos guerreiros.
Quando chegaram ao portal, uma grande luz os foi envolvendo
enquanto eles se batiam. Entravam em um túnel de luz dourada,
emoldurado por rochas de tom marrom, que iam se afunilando, até
chegarem a ficar em um raio de não mais de cinquenta metros.
Continuaram avançando e vislumbraram um túnel disforme de
proporções titânicas. Subitamente, desapareceram no meio da luz e
foram cuspidos dentre a atmosfera terrestre. Entrando daquela forma
no planeta, instantaneamente foram materializados nas suas formas
carnais. Ao menos perceberam a alteração e continuaram se
esmurrando, descendo em direção à Terra como um meteoro.

100
CAPÍTULO 16

O centro da cidade de São Paulo estava cheio de pessoas se


movimentando pelas ruas, calçadas e estabelecimentos, naquele dia.
Em uma rua em especial, homens de uniformes, que iniciavam novos
trabalhos em suas novas vidas, subiam e desciam de uma escada
cortada por um corrimão de metal. Uma lanchonete na esquina,
decorada com uma lona azul, estendendo sua sombra até o final da
calçada, atendia aos clientes que entravam pelo menos dois a cada
minuto. Sem eletricidade, utilizavam velas para deixar o ambiente
mais agradável. Duas mulheres, uma ruiva e uma loura, enfeitadas
com chapéus da mesma cor da roupa creme, atravessavam a rua
enquanto conversavam e riam. Táxis brancos estavam estacionados
dos dois lados da rua. Pareciam estar ali há meses, tendo em vista o
estado de cada carro.
O clima daquela manhã estava frio, talvez um pouco pesado.
Uma pequena névoa, quase imperceptível, pairava sobre a cidade. Os
carros estacionados estavam cobertos por uma fina camada de água,
baixando ainda mais a temperatura do metal frio. O asfalto úmido
brilhava.
De pé, em cima de um muro com aproximadamente um metro e
meio, que compunha o cercado de um prédio, tinha um menino magro
com bochechas salientes. Os olhos castanhos e estreitos fitavam o céu
com uma das mãos acima das sobrancelhas.
– O que está olhando, garoto?
Sem desviar o olhar, o garoto respondeu ao homem jovem e
negro que segurava uma mochila:

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– Olhe! – disse ele, apontando um ponto no céu.
O homem olhou na direção e se espantou com o que viu. Outras
pessoas observaram sua reação e também direcionaram seus olhares.
Em alguns segundos, quase todos na rua olhavam naquela direção.
O ponto brilhante descia como um meteoro, implodindo várias
vezes por segundo. A velocidade era assombrosa. Logo o pânico
tomou conta de todos. Quando a ruiva, acompanhada por sua amiga
loura, soltou o primeiro grito, a multidão começou a se locomover
para todos os lados, apavorada. Os berros de terror eram assombrosos.
O homem com a mochila começou a correr. Olhando para trás,
percebeu o garoto ainda na mesma posição. Ele voltou e o chamou. O
pequeno estava concentrado e não o escutava. Então o homem
depositou a mochila no chão e subiu no muro, chacoalhando o garoto.
– Vamos, garoto! O que está fazendo?
O menino o olhou com olhos inocentes.
– Venha comigo – disse o homem pulando para a calçada. Ele
esticou o braço para o garoto. – Pule!
Sem hesitar, o menino pulou em seus braços. Ele o colocou no
chão e eles começaram a correr juntos.
A rua já tinha ficado deserta, a não ser pelos veículos pequenos
e grandes. Alguns estavam atravessados na horizontal. A bola de fogo
se aproximou com velocidade descomunal e rasgou o asfalto, criando
um grande rastro escaldante por onde passou. Arremessando carros
aos metros. A rua tremeleava como um mar em fúria, diante do
impacto.
Muitas das pessoas, curiosas, voltaram ao local correndo a
tempo de ver explosões poderosas sendo emitidas da cratera. Em
segundos, dezenas de pessoas observavam o que nenhum deles
acreditava ser realmente o que via.

102
Um de frente para o outro, dentro da cratera, imponentes,
estavam duas criaturas se encarando. O moreno tinha asas pretas e
olhos verdes. Nas costas tinha uma tatuagem entre as asas. Cobrindo
apenas a parte de baixo do corpo, estava vestido com uma calça preta
em trapos. Os pés estavam descalços. O louro também tinha seus pés
descobertos. As vestes também estavam em trapos, como as do outro.
Os olhos eram completamente rubros, com apenas um ponto preto no
centro representando a pupila. Suas asas eram brancas e belas.
Os humanos os observavam estupefatos. Quem vislumbrava
aquela cena, agora teve certeza de que o mundo se encontrava meio ao
apocalipse, pois como diziam as escrituras sagradas: anjos desceriam
do céu. Um deles, o louro, abaixou a cabeça com os olhos
enraivecidos e apontou suas pupilas na direção dos humanos.
– Não pense nisso, Astaroth – disse o moreno.
Súbito, o louro disparou em suas direções. Mas o anjo de asas
negras colocou o braço na frente de seu peito, parando o avanço
abruptamente. Ainda segurando o louro, o anjo moreno rodou seu
corpo e o chocou contra o metal de um grande ônibus. O automóvel
ameaçou tombar, mas voltou ao seu eixo.
– Saia daqui, Mazarak. Isso já está ficando chato! – Astaroth
tinha seus dedos encravados nos músculos do antebraço de Mazarak.
Aplicando força nos punhos, o louro começou a girar o braço do
moreno, torcendo-o. Mazarak soltou um grunhido de dor, mas não
cedeu e girou seu corpo juntamente com seu braço, desprendendo-o.
Em um movimento espetacular, colocou o antebraço de baixo do
pescoço de Astaroth e o bateu novamente no ônibus, com força. O
metal começou a afundar onde estava sendo forçado.
A população que assistia ao espetáculo aumentava a cada
minuto. Alguns mais cautelosos viam o que se passava e corriam dali,
para lugares seguros. O menino de aproximadamente dez anos que
103
tinha corrido com o homem negro, surgiu do meio da multidão para
assistir ao combate.
Astaroth segurou novamente o antebraço de Mazarak. Dessa vez
suas mãos começaram a brilhar, rubras. Fumaça começou a sair da
pegada e Mazarak deu um pulo para trás, vendo o desenho das mãos
de Astaroth em seu braço, fumegante. Quando ele voltou o olhar para
o caído, viu que entre suas mãos, que estavam na altura do peito,
formava-se uma esfera incandescente. Isso o fez se lembrar da esfera
de Haziel e Daniel. O ponto de luz brilhava e aumentava aos poucos
sua massa. Ele ameaçou se aproximar de Astaroth, mas o louro fez
sinal de negativas com a cabeça, mostrando um olhar perturbador.
Astaroth segurou a esfera de luz rubra com apenas uma mão e com um
movimento circular rápido a arremessou contra o público. Muitos
nesse momento gritaram e tentaram fugir, mas deu tempo apenas para
se locomoverem não mais do que dois passos.
A explosão foi eminente, subindo como um cogumelo
escaldante. O raio da explosão percorreu mais de dez quarteirões em
tempo recorde. Prédios inteiros caíram. Alguns foram desintegrados.
Pessoas mais afastadas do núcleo da detonação que não morreram
imediatamente foram soterradas por escombros, esperando serem
salvas, ou pela própria morte.
Mazarak despertou meio a muita poeira, que também revestia as
vigas de aço dispostas sobre seu peito. A primeira reação foi cuspir o
pó que estava impregnado em sua boca, como nos olhos e no corpo
inteiro. A segunda reação foi colocar as vigas de lado como se fossem
pequenos pedaços de madeira. Levantando-se a seguir. O mar de
destruição que avistou a sua frente o deixou angustiado. Sem esperar
nada mais, ele alçou voo e desapareceu dentre as nuvens como um
míssil.

104
***
Aron estava adormecido no sofá com o livro aberto sobre o
peito. Com um sobressalto, ele se levantou, no mesmo momento em
que Caliel passava por ele, seguindo para a porta que dava na parte
externa da casa. Com um salto, Caliel pousou sobre o teto da casa,
sem muito medo de ser visto, sendo que o mundo estava pelo menos
70% mais vazio. O que ele viu, chacoalhou sua mente, caindo na real
exatamente naquele momento, de que ainda estavam no meio de uma
guerra. Pior ainda, Aron continuava sendo o único humano com o
elemento azul na alma, pois nenhum dos que voltaram do transe
maligno, tinham esse elemento. Achou-se muito burro por não pensar
naquilo antes. Isso os fazia alvo de qualquer coisa, a qualquer
momento. Muitos quilômetros ao longe, um grande clarão crescia,
fazendo até aquele pedaço da terra tremelear. Caliel não sabia, mas
aquilo era o resultado do poder destrutivo de Astaroth.
– O que você está fazendo aí? – indagou Aron, enquanto olhava
o anjo do quintal.
– Suba aqui, rápido – disse o ruivo.
Aron subiu em cima de uma caixa de concreto com um metro e
meio de altura. Lugar usado para guardar o botijão de gás e algumas
plantas verdejantes, mas que naquele momento estavam secas e
mortas. Com mais um pulo, ele segurou na ponta do muro que dava no
teto da casa. Raspando seus pés na parede, segurando a parte de cima,
logo já tinha seu abdômen preso entre o teto e parede. Com mais um
impulso no braço, colocou o primeiro pé na parte de cima, em seguida
ficando totalmente em pé. Ele deslizou até Caliel, vislumbrando a
poderosa luz que naquele momento começara a se dissipar, deixando
apenas um anel de nuvens no céu.

105
– O que aconteceu? – indagou Aron, estupefato.
– Eu não sei. Mas creio que não é momento para uma guerra
humana. Então...
– Então, o quê?
– Tem algo grande acontecendo! – disse o ruivo, sem tirar os
olhos do ponto da detonação.

***
Haziel e Daniel estavam parados diante do vórtice que daria na
Terra.
– Onde essa entrada vai dar? – indagou Daniel com ar ansioso
na voz.
– Eu não tenho a mínima ideia – respondeu o louro. – Seja o que
o Pai quiser. Vamos!
Daniel estreitou os olhos e sem perder tempo, entrou na fenda
juntamente com Haziel. Ambos foram materializados do outro lado do
portal, plainando a mais de trinta quilômetros de altura. Olhando
abaixo, Haziel avistou um rastro de destruição e desceu em rasante.
Daniel o acompanhou.
Eles percorreram vários quilômetros, até chegarem a um ponto
onde consideravam perfeito para que vissem a destruição abaixo com
nitidez, ao mesmo tempo em que não pudessem ser vistos por
humanos.
– Mazarak! – Daniel tinha as sobrancelhas baixas.
– Tenho certeza de que ele está bem! – disse Haziel.
– Mas como?
– Posso sentir! – respondeu o louro, encarando a destruição com
olhar enraivecido.

106
Daniel o olhou um tanto assustado, pois nem ele podia sentir o
próprio irmão de espírito naquele momento. Como Haziel podia?
– Venha. Vamos! – O louro começou a sobrevoar a cidade,
procurando alguma pista do duque da luz.
Daniel fazia o mesmo, seguindo ao seu lado, observando por
todos os lados como um gavião.
Subitamente, Haziel sentiu uma espécie de pontada aguda na
cabeça. Em seguida, sua mente foi levada quase na velocidade da luz a
uma região acima da última camada das nuvens. Lá ele visualizou
Mazarak flutuando, rajando suas asas negras, com seus olhos
fechados. No mesmo momento, ele soube onde o irmão de espírito de
Daniel e duque da cidade da luz no submundo, estava.
– Eu sei onde ele está! – disse o louro, disparando em seguida
como uma bala para onde seu coração mandava.
Daniel o seguiu na mesma velocidade. Ambos subiam na
diagonal fervorosamente, cortando as nuvens a toda velocidade.
Redemoinhos eram formados por seus corpos, puxando nuvens como
funis. Quando explodiram a última camada de nuvens, puderam ver
Mazarak na mesma posição que Haziel tinha visto em sua mente, a
não mais de um quilômetro de distância. Em menos de cinco
segundos, pararam ao lado do duque, fazendo com que ele percebesse
suas presenças e saísse de sua concentração, abrindo os olhos.
– Astaroth vai acabar com o planeta. Não podemos perder
tempo. Temos que encontrá-lo o mais rápido possível. – Mazarak
tinha saído de seu transe, mas continuava olhando na mesma direção
que antes seus olhos fechados apontavam.
– Temos também que avisar o Sexto Céu que a resposta é
positiva. – Olhando o próprio corpo, Haziel acrescentou: – E
estaremos todos materializados pelo menos pelas próximas vinte
horas.
107
CAPÍTULO 17

Uma grande legião de potências se reunia no maior campo


aberto do Sexto Céu. O solo era como um carpete de grama, mas a cor
de suas folhas era azul como o Céu. Este se estendia por milhares de
quilômetros, ocupando cada metro quadrado com uma potência em
prontidão. O número de anjos chegava a mais de centenas de dezenas
de milhares. Todos tinham suas asas abertas, fazendo com que o chão
azul claro quase se fundisse a elas, como as nuvens alvas ao céu.
Kamael subia o mais alto pico na região. A natureza abria
caminho para que o príncipe deslizasse montanha acima com
facilidade. Afinal, muitas vezes ele gostava de caminhar, sem ao
menos abrir suas asas, como um mero mortal.
Chegando ao final da montanha, ele parou e fitou a multidão
abaixo. Um gigante braço de folhas verdes se ergueu abaixo de seus
pés. Este se esticou, levando-o quase duzentos metros à frente,
fazendo com que ele ficasse em cima da multidão, como em uma
passarela suspensa. Kamael agachou com um sorriso nos lábios.
– Obrigado, meninas! – Ele tocou as folhas verdes que
compunham o gigante braço.
As folhas se chacoalharam por um breve momento, parecendo
compreender o gesto de gratidão do príncipe das potências celestes.
Em seguida, o grande anjo negro se levantou, mostrando seus lindos
dentes brancos, em um sorriso cativante para o público.
– Meus caros irmãos – começou ele, fazendo com que de algum
jeito sua voz percorresse os milhares de quilômetros
instantaneamente, com todos os ocupantes do tapete azul, podendo

108
escutá-lo com nitidez. Para isso ele utilizava o vento para levar o som
emitido de seu interior –, obrigado por estarem presentes neste dia, em
uma chamada importante de última hora. Recebi a notícia de Uriel de
que os guerreiros saíram do mundo onde se encontram nossos irmãos
caídos.
Um grande coro se ergueu, com todas as potências dizendo em
uníssono:
– Que a arcanjo seja louvada!
– Obrigado, meus irmãos – retrucou o príncipe. Continuando,
ele acrescentou: – Sabendo disso, os guerreiros enviarão uma missão
para resgatar a resposta de nossos irmãos. Caso seja positiva, quero
que todos estejam aqui presentes para o que virá a seguir.
Um silêncio pairou sobre a estupenda, gigantesca região.
Ninguém soltou um só ruído, até que Kamael prosseguiu:
– Como todos devem saber, metade dos tronos podem estar
presos no inferno. Caso isso seja positivo, nós nos reuniremos com os
nossos irmãos guerreiros e avançaremos com o maior exército já visto
na história da guerra entre o céu e o inferno. É claro que nenhum de
vocês é obrigado a seguir para essa missão e quem decidir ficar no
Sexto Céu, não sofrerá nenhum tipo de julgamento.

***
Caliel viu quando três anjos cortavam o céu pelo mundo
espiritual. Isso o fez ter certeza de que algo estava realmente
acontecendo. Aron não pôde ver, pois naquele momento estava
capacitado apenas para ver o mundo carnal.
– Tem algo realmente acontecendo! – repetiu o ruivo.

109
– Vamos. Temos que entrar. – Caliel pegou Aron pela cintura e
saltou com ele rumo ao chão do quintal.
Aron reclamou quando caíram com um baque no chão. Caliel o
colocou em pé e os dois entraram pela porta da cozinha. O anjo parou
no meio do cômodo, virando Aron para ele.
– Eu preciso saber o que está acontecendo – disse Caliel com os
olhos lampejantes. – Mas eu não posso te deixar sozinho.
– Não tem problema – retrucou Aron. – Ninguém sabe que
estamos aqui. Só tem o Hector, mas na atual situação não acho que ele
me fará mal.
– Hector é um bom sujeito. Mas em relação ao resto, estamos
vulneráveis. – Caliel segurou nos ombros de Aron. – Aron, eu preciso
que você fique aqui, enquanto eu vou descobrir o que está
acontecendo. Não demorarei mais de meia hora. Você tem que ficar
aqui dentro, sem dar nenhum sinal de vida.
Aron meneou a cabeça sem tirar os olhos de Caliel. Seu olhar
maduro deixou o anjo confortável para ir fazer o que pretendia. Ele
saiu pela porta da cozinha e com um salto, subiu até o telhado da casa.
Em seguida, explodiu as asas e se agachou, colocando uma das mãos
com o punho fechado no solo. Olhando para cima, sério, seus olhos
rubros lampejaram e com uma rajada nas asas o mais forte que pôde,
subiu como uma bala, em direção às nuvens. O vulto foi tão rápido,
que quase nenhum humano, se o avistasse, poderia identificar sua
natureza.
O ruivo subiu com velocidade máxima pelo próximo minuto e
meio e disparou na mesma direção que tinha visto o trio celestial
seguindo. Materializado, podia sentir o vento frio açoitando seu corpo
com a umidade que naquele momento parecia mais densa do que o
normal. As nuvens passavam pelo anjo, como enormes chumaços de
algodão, que se desconfiguravam ao passar por seu corpo. Nunca tinha
110
experimentado tal velocidade, sendo que não a possuía, antes de
Rafael lhe aplicar uma injeção de energia dos querubins. Após uns
quatro minutos de voo livre, Caliel avistou o trio plainando no ar a não
mais de dois quilômetros de distância dele. Espaço que percorreu em
menos de dez segundos.
Quando chegou, deparou-se com dois guerreiros e uma potência.
Dos dois guerreiros, um era muito familiar para ele. Barrattiel fitava
algo abaixo, com seus olhos enfurecidos. O outro guerreiro também
fitava o mesmo lugar, mas com esse irmão, ele não tinha a intimidade
que tinha com Barrattiel. Era Hekamiah. Tiveram uma missão juntos
há um pouco mais de dois mil anos e agora, trabalharam juntos para
salvar Aron da ilha. Fora isso, eles não tiveram muito contato, durante
os milhões de anos de convivência. Mas um respeitava muito o outro.
A potência que estava junto com os dois guerreiros era um anjo muito
respeitado em todo o Sexto Céu. Era o general de Kamael, o ilustre
Chavakiah.
Todos viram quando Caliel, em carne e osso, parou bruscamente
a cinco metros de distância. No mesmo momento todos arregalaram os
olhos, por pensarem que estava com Haziel e Daniel, mas ali ele
estava sozinho. Outra coisa é que era nítido que estava materializado,
pois ambos o enxergavam com uma cor opaca.
Ao olhar do ruivo, por eles estarem no mundo espiritual, ele os
enxergava como se estivessem dentro de uma piscina, com suas ondas
tremulantes. Sabia quando alguém estava olhando para ele, mas não
podia ver com nitidez seus olhos, nem escutar sua voz.
– Preciso que ao menos um de vocês se materialize – disse
Caliel.
Os três não o escutaram e apenas dois deles puderam ler os seus
lábios.
– O que ele está dizendo? – indagou Barrattiel.
111
– Ele quer que um de nós se materialize – explicou Hekamiah.
Sem perder tempo, mostrando que era realmente o aprendiz de
Haziel, pela súbita reação, Barrattiel forçou os punhos, dizendo:
– Deixa comigo! – Em seguida seu corpo dançou com feixes de
luz e logo tomou sua forma carnal.
– Obrigado, Barrattiel. – Caliel passou a mão nos cabelos ruivos.
– Você sabe me dizer o que está acontecendo?
– Você não está vendo? – Repentinamente o olhar do anjo
grandalhão se fechou quando ele olhou para baixo.
Caliel seguiu seu olhar e ao ver a destruição, uma dor aguda
balançou seu coração. Sabia que muitos dos humanos que ele tanto
amava tinham perdido sua vida naquele holocausto.
– Como aconteceu isso? – O ruivo indagou com lágrimas nos
olhos.
– Não sabíamos que isso tinha acontecido, até chegarmos aqui.
Viemos em missão para resgatar a resposta de Haziel sobre os tronos.
Ele entrou no planeta por uma passagem aberta por entidades das
trevas, logo automaticamente se materializou. Então viemos, pois os
comandantes não poderiam esperar todas as horas seguintes, até que
ele pudesse voltar.
– Não entendo!
– A missão de vocês tinha dois sentidos. Um, descobrir algo
sobre o espírito da humana e a principal, que era descobrir se os tronos
se encontravam no mundo das trevas.
– Eu pensei que tínhamos ido apenas para resgatar o espírito de
Sun. – Nesse momento o ruivo se deu conta que fora manipulado
anteriormente, para que tirasse seu guardado do inferno. Ele sentiu um
pingo de raiva, mas logo entendeu que Haziel devia ter levado ordens
de Bariel, para que fizesse aquilo. Então sua decepção em relação ao
primeiro comandante floresceu pela primeira vez.
112
– Todos nós pensamos isso. Mas fomos avisados alguns
instantes depois que vocês partiram.
– Bom. Certo! Eles precisam localizar Haziel – disse Caliel,
apontando Hekamiah e Chavakiah. – Deixei meu humano sozinho.
Tenho que retornar. – Olhando nos olhos de Barrattiel, ele indagou: –
Você vai fazer o quê?
O grandalhão olhou em volta. Voltou o olhar para o ruivo
novamente, mostrou as palmas e deu de ombros, respondendo:
– Eu vou com você.
– Ótimo! Era exatamente isso o que eu esperava. – O ruivo
voltou o olhar para os outros anjos desmaterializados. – Encontrem
Haziel. Nós estaremos na residência onde o humano tem como sua
morada, na zona leste dessa cidade. Estaremos lá aguardando por
qualquer novidade.
Caliel viu quando os dois anjos menearam suas cabeças e
partiram adiante, em busca de Haziel. Ele meneou a cabeça para
Barrattiel e os dois partiram, rumo à morada do humano.

113
CAPÍTULO 18

Astaroth pousou em um telhado de uma construção quadrada,


moldada com tijolos vermelhos, que se erguia a quase dez metros de
altura. Pelo menos, mais dez dessas mesmas construções se erguiam
ao lado da que o duque das trevas pousara, em um terreno que parecia
ser uma grande indústria, antes do apocalipse. Estreitos corredores
com solo de concreto separava os prédios.
Com seus olhos rubros, o duque avistou uma figura que
considerou nojenta. Um humano com aparência suja repousava
recostado no alambrado que contornava o terreno. Tinha uma touca,
daquelas ligadas a blusões, caída sobre os olhos, para tampar a luz do
sol. Os braços repousavam sobre o peito em movimento, com as mãos
entrelaçadas.
O demônio guardou as asas e saltou, com a destreza de um
felino, caindo ao lado do mendigo, quase não fazendo nenhum ruído.
Ele bolou um plano, dando um passo em direção ao humano
dorminhoco. Mas seu plano foi por água abaixo, quando ele chutou
uma das latas de cerveja juntamente às dezenas de outras latas,
rodeando o mendigo.
Nesse mesmo momento, o homem acordou completamente
assustado, puxando a touca para cima. Viu à sua frente a figura de um
homem muito alto, louro, com as vestes em trapos. Quando sua visão
se focou, ele se apavorou, pois reparou em seus olhos rubros como
sangue. O grito efusivo, como um desesperado pedido de socorro,
veio em seguida. Logo viu o homem alto avançando para cima dele,
como um leão e tudo ficou escuro.

114
Astaroth segurava a cabeça do mendigo pelos cabelos sebosos,
encarando seus olhos mortos, enquanto o sangue caía abundante no
chão.
– Como vocês são feios! – exclamou o duque das trevas,
jogando a cabeça de qualquer jeito para o lado.
Em seguida, ele tirou a roupa do corpo do mendigo e começou a
tirar a de seu corpo, que caía no chão rapidamente. Uma camiseta
preta, que ficava folgada no mendigo, caiu nele deixando-o parecido
com um bailarino. A calça jeans chumbo ficou tão apertada quanto
ficava em um caubói. Do blusão preto ele gostou. Este que caía até a
altura de sua virilha. Os sapatos não serviram em seus pés, então ele
saiu dali descalço, pisoteando o sangue cristalino no chão, deixando
grandes pegadas.

***
Após alguns minutos, Caliel pousava no teto da casa, com
sutileza. Barrattiel não foi nada sutil, caindo quase como um meteoro.
O teto cedeu, juntamente com ele e Caliel. Por sorte, Aron não se
encontrava nos limites da sala, pois se estivesse, naquele momento
estaria morto. Os anjos se levantaram meio aos escombros. Barrattiel
já quase se inclinava, quando avistou Aron os encarando com os olhos
do tamanho de uma laranja.
– Humano! – O grandalhão sorriu, levantando a mão e
abanando. – Olá!
– O que aconteceu? – Aron se aproximou segurando o mesmo
livro que lia anteriormente.
– Pergunte ao Sr. Cuidadoso, aí! – disse o ruivo, enquanto se
limpava da poeira branca.

115
Barrattiel respondeu, alisando a própria cabeça:
– Foi sem querer! – Mostrou as palmas, dando de ombros. – E
como eu ia saber que esse teto não ia aguentar?
Caliel respirou fundo.
– Tá! Tá bom! – Ele revirou os olhos e se aproximou de Aron. –
Tem mesmo algo acontecendo, Aron. Um grande pedaço do Centro
foi completamente dizimado.
Aron não demonstrou nenhum tipo de medo, ou apavoramento.
Confiava sem dúvida nenhuma de que os celestes dariam conta do que
quer que fosse. Ele deu de ombros e saiu dizendo:
– Eu vou ver se vocês não acordaram Hector com isso.
– Ele não acordou – disse o ruivo, confiante.
– Eu acho que vocês acordaram até o Papa com esse barulho –
retrucou Aron, que parou e se virou. – Se ele ainda estiver vivo, é
claro. – Depois saiu novamente rumo ao quarto onde dormia o outro
humano.
Caliel ficou observando seu guardado se afastar, até sumir,
entrando no quarto que saía da cozinha, ao final do corredor. Aron
estava amadurecendo de uma forma como ele nunca viu nenhum de
seus guardados amadurecer, em toda a sua vida. Isso o estava
apavorando.
Aron estava quase petrificado, ao lado cama. Hector não estava
lá.
– Caliel! – gritou Aron.
Rapidamente o ruivo já colocava sua cabeça para dentro do
quarto.
– Hector sumiu! – disse Aron, encarando Caliel com seus olhos
assustados.
O anjo respirou fundo e deslizou até a porta do porão. Esta se
encontrava meio aberta. No mesmo momento, ele soube que Hector
116
estava lá embaixo em busca da mulher que retirou seu rim. Isso o
apavorou imediatamente, pois se ele fizesse algo mortal a ela,
mancharia sua alma para sempre. Afinal, a mulher estava amarrada,
sem poder nenhum de reação.
– Rápido, Aron. Ele está lá embaixo. Impeça-o de fazer alguma
besteira, se não ele vai trazer o mau diretamente até nós.
– Mau, diretamente até nós? – O humano estava confuso.
– Vai logo!
Aron desceu as escadas do porão, deparando-se com Hector em
pé, na frente da mulher. O homem demonstrava sentir um pouco de
dor ainda, mas Aron se assustou realmente quando viu uma faca em
sua mão e essa estava gotejante de sangue.
– O que você fez?
Hector se virou para Aron, deixando sua faca cair no chão,
manchando-o de vermelho.
– Ela nos mataria se tivesse a oportunidade pela terceira vez.
Aron fez uma cara de decepcionado, mas sabia que não tinha o
que fazer. Nesse caso, andou até o novo amigo e o abraçou de lado,
para ajudá-lo a subir a escada que dava no andar de cima.
– Vamos! Eu tenho uns amigos para te apresentar.

***
Em cima de uma montanha, os dois celestes e o duque da luz
conversavam, tentando achar uma forma de localizar Astaroth. O
duque do inferno poderia estar em qualquer lugar daquele gigante
globo. Para localizá-lo, eles precisavam de alguma ajuda de cima, de
algum celeste poderoso o suficiente para lhes dar a direção certa, ou
seja, precisavam da ajuda de um arcanjo.

117
– Gabriel seria de uma grande ajuda, agora – disse Haziel,
fitando o horizonte que se abria em um titânico mapa à frente da visão
de todos.
Os três escutaram um movimento entre as folhas verdes, a uns
dez metros de distância. Voltaram seus olhares e avistaram um leão da
montanha saindo da vegetação. Mazarak se deslocou até o animal e
esticou a mão para acariciá-lo. O animal o lambeu e esfregou a cabeça
em suas mãos.
– Nós não estamos mais no Brasil – disse o duque, virando a
cabeça para o irmão de espírito e para Haziel. – Lá não existe esse tipo
de animal.
– Onde estamos? – indagou Daniel.
– Creio que na América do Norte – respondeu o duque de asas
negras.
– Isso aqui não parece nem um pouco com a América do Norte –
retrucou Haziel.
Daniel se levantou e pegou uma pedrinha no chão, jogando-a
penhasco abaixo.
– Nada mais é como antes. – Seus olhos cor de mel lampejaram
em seu tradicional tom de fogo.

118
CAPÍTULO 19

– Não temos tempo a perder. Temos que localizá-los o mais


rápido possível – disse Hekamiah, enquanto ele e Chavakiah se
locomoviam pelo lado espiritual. – Você poderia pedir ajuda da
natureza?
– As coisas não funcionam assim – respondeu o general das
potências celestes. – Mas você me deu uma grande ideia!
Hekamiah o encarou, satisfeito e seguiu-o, sem questioná-lo por
nenhum momento. Afinal, ele era um general. Apesar de não ser seu
comandante, ainda assim, possuía um conhecimento
astronomicamente maior do que o dele. O guerreiro era sábio, então
sabia quando tinha que ficar na sua, apenas seguindo as diretrizes de
um terceiro.
Em algumas dezenas de minutos, eles sobrevoavam um sítio
imenso, com gigantescas montanhas se erguendo por todos os lados. O
gelo as tingia de branco, dando-lhes aspecto de picolés gigantes. No
mesmo momento que pensou nisso, Hekamiah percebeu que seguiam
rumo à maior montanha de todas. O Pico do Everest. Os dois anjos
logo pousavam acima do monte.
– Hekamiah, como você sabe, nós, anjos potências, interagimos
com as forças da natureza. Mas apenas alguns de nós temos controle
sobre as quatro forças. Os poucos que atingiram a sabedoria total,
interagindo com todas elas, receberam o dom de não só interagir, mas
também se fundir a qualquer uma delas.
– Eu ouvi sobre isso. Apenas quatro de vocês interagem com
todas elas, correto?

119
– Sim! O príncipe Kamael, Menadel, Aniel que hoje é um de
nossos irmãos caídos e eu. – Uma breve pausa, enquanto o general
forçava um sorriso. – Creio que se me fundir às forças do vento que
percorrem o globo, saberei instantaneamente onde eles se encontram.
Mas terei que me materializar para isso.
– Certo, ficarei em minha forma para que quando os
encontrarmos, eu possa voltar e passar a notícia.
O general meneou a cabeça, com Hekamiah meneando a dele
em seguida. Chavakiah andou até a beira da montanha, que dava em
um abismo, e abriu os braços. Seus cabelos negros, que caíam até a
altura da cintura, começaram a esvoaçar, formando-se na exata forma
em que o vento incolor percorria. Uma luz forte brilhou em torno do
anjo, retirando completamente sua cor e se apagando em seguida. No
lugar dele, ficou exatamente sua silhueta, mas como se tivesse
moldado em vento. As ondas que formavam seu corpo balançavam
como linhas brancas em um desenho animado mal feito.
Como uma onda elétrica, conectando todos os neurônios de um
cérebro, uma onda conectou o anjo potência a todas as moléculas
presentes no vento terrestre. Como um predador farejando sua presa, a
mente do anjo percorreria cada canto do planeta na velocidade da luz,
visualizando cada cena, ou imagem em vultos muito rápidos.
Era a primeira vez que Hekamiah via tal demonstração de poder,
pois os guerreiros e potências, em toda a história, nunca se reuniram
em missões, pois essas se divergiam completamente em estilos, sendo
que uma controlava as forças do mal e a outra, as forças da natureza.
Subitamente, o general começou a retornar à sua forma. Sua pele
marrom como a de um índio americano, foi voltando ao normal,
juntamente com suas vestes claras. Nos últimos instantes, uma luz
brilhou em torno de seu corpo novamente, deixando no lugar, seu

120
corpo em carne, osso e sangue. Nesse momento, ele se virou para
Hekamiah, já o enxergando em linhas trêmulas.
– Eu sei onde eles estão!

***
Aron subia a escada do porão, deixando com que Hector
apoiasse o corpo nele. Sentia naquele indiano a mesma coisa que
sentia em seu amigo Iago, na infância. Os olhos dos dois brilhavam
com o fogo da verdade.
Iago era uma ótima pessoa. Um amigo para contar em todas as
horas, independente de qual fosse o motivo. Era verdadeiro e não
tinha medo de magoar ninguém, sempre sincero quando abria a boca.
Nem sempre isso era bom, mas pelo menos qualquer um saberia as
verdadeiras intenções de Iago, sempre. Nessas poucas horas que
estava com Hector, Aron já podia enxergar isso em seus olhos.
Faltando cinco degraus para chegarem ao andar de cima, Hector
levantou a cabeça. O que viu, deixou-o muito assustado. Um homem
enorme, forte como um touro e com cara de mau, que passou,
encarando-os.
– Desce. Rápido! – sussurrou o indiano.
Aron abaixou as sobrancelhas, parando os passos e encarou
Hector.
– O que foi?
– Tem um cara enorme aí em cima.
Aron deu risada.
– Venha! Vamos! O grandalhão é Barrattiel. Um dos amigos que
quero lhe apresentar.

121
– Com que tipo de gente você anda? – indagou Hector, soltando
um gemido de dor em seguida, pressionando a ferida cicatrizada por
Caliel. Foi exatamente nesse momento que ele percebeu a ferida
fechada. Achou que estava delirando, então não deu muita atenção
para aquilo, naquele momento.
Aron contraiu os lábios, abrindo um pouco mais os olhos.
– Você nem imagina.
Hector o encarou, mas não falou nada. Logo eles pisaram no
andar de cima. Olhando para a esquerda, o indiano viu um ruivo de
branco prostrado na porta do quarto, com os braços cruzados. Este o
cumprimentou com um sorriso, mas o que Hector não deixou de
reparar foi em seus olhos castanhos, quase vermelhos. Nunca tinha
visto olhos daquela cor, em humanos. Lembrou-se dos olhos de alguns
roedores, como coelhos, mas os daquele homem eram lindos.
Considerou-se uma mulherzinha em pensar naquilo, mas não pôde
evitar. Outra coisa é que aqueles olhos, de qualquer maneira, não eram
estranhos para ele.
Dois passos ao lado, o grandalhão que vira passar na frente do
corredor o encarou com a mesma cara, mas esta logo se transformou
no sorriso mais inocente que Hector tinha visto em toda a sua vida.
Naquele momento, ele sentiu que seria muito amigo daquele homem.
Só achou estranhas suas vestes, um tanto antiquadas. Lembrou-se de
gladiadores, pois naqueles tempos, tudo era possível. Cada louco com
a sua mania – pensou ele.
– Hector. Esse é Caliel e esse é Barrattiel. Confio neles com a
minha vida.
Barrattiel se aproximou do indiano, impondo seus dois metros
de altura e um de largura a apenas cinquenta centímetros dele e lhe
envolveu em um abraço, tal como de um urso. Hector se sentiu

122
constrangido, mas bem, ao mesmo tempo. O grandalhão não pereceu
se sentir nem um pouco constrangido ao se afastar.
– É um prazer te conhecer, Hector – disse ele, estendendo a mão
para que o indiano a apertasse.
Hector esticou a mão hesitante, mas ao tocá-la, Barrattiel
envolveu sua outra grande e forte mão, sobre a mão do humano. Nesse
momento, ele sentiu uma espécie de proteção que não sentia desde...
na verdade, não se lembrou de sentir algo parecido com aquilo, nunca
em sua vida.
Sentindo seu corte, Hector gemeu e levou a mão sobre a cicatriz,
observando ali, onde tinha um pouco mais de luz. Caliel percebeu e
ficou um pouco na expectativa. Hector encarou os três, parecendo ter
três pares de olhos e indagou, desconfiado:
– Vocês sabem como aconteceu essa cicatriz repentina?
– É... – Aron fitou os olhos de Caliel com os seus esbugalhados
e puxou o braço de Hector. – Venha. Você precisa descansar.
– Mas...
– Venha! Você está delirando. – Aron o acompanhou até o
quarto e o colocou na cama, cobrindo-o com o lençol encardido.
Aron voltou até a cozinha e disse em tom baixo:
– Que situação! – Nesse momento ele respirou mais forte,
entortou a face e respirou de novo, prestando mais atenção. – Vocês
estão sentindo esse cheiro?
– Que cheiro? – indagou Barrattiel.
– Sim! É de putrefação. O corpo do homem já começou a se
decompor. – respondeu Caliel.

123
CAPÍTULO 20

O clima, na antiga cidade do inferno, que antes era habitada por


Abbadon e por Andras, oscilava como ondas no mar. De manhã,
poderia estar calor como num verão quente ao seu extremo. No
mesmo dia à tarde, poderia estar nevando e à noite chovendo ácido.
Naquele momento estava frio como no ártico. Quinhentos metros
abaixo da terra gélida, Leviatã estava em uma sala comunal. Tão
extensa quanto uma grande cidade e tão alta quanto um prédio com
cinquenta andares. As paredes disformes demonstravam o ambiente
esculpido na rocha. Era um titânico cubo espaçoso, aberto, abaixo do
solo. Era utilizado para fazer experiências infernais há milhares de
anos. O local nunca fora descoberto por forças celestes. Nem ao
menos desconfiaram de sua existência.
Doze tubos, com um líquido viscoso amarelado, estavam ligados
à parede. Cada um deles abrigava o corpo moribundo de um dos
tronos de Deus. Canos transparentes, flexíveis, com o diâmetro de não
mais de quinze centímetros saíam da parte de cima de cada abrigo. As
três primeiras mangueiras se afunilavam até entrarem por um furo na
parede. Depois as três seguintes que saíam dos próximos três tubos
também se afunilavam, entrando por mais um furo. Assim como as
próximas duplas de três.
Leviatã andava de um lado para o outro, afagando a barbicha. Se
é que aqueles pelos sebosos abaixo do queixo podiam ser chamados
assim. Eram mais parecidos com aquele tipo de vegetação podre que
fica abaixo da água dos rios. Dois outros demônios andavam ao seu

124
lado. Ambos tinham aparência felina, com pequenos chifres retorcidos
que saíam ao lado das orelhas.
– Os corpos estão basicamente prontos – disse o demônio que o
acompanhava à direita.
– Sim, mas agora eles não passam de bestas ambulantes. Não
serão muito mais do que os humanos quando possuídos pelos
diabretes. – O duque esfregou as duas mãos. – Temos apenas que
esperar o que Astaroth tem a nos trazer.
– A lenda de que precisamos das almas corretas é verdadeira?
– Sim! Esse é o único empecilho da missão. Mas Astaroth é um
duque, um dos mais poderosos e o mais inteligente. Tenho certeza de
que terá êxito. Além do mais, ele pesquisou e estudou bastante sobre
suas vítimas. A primeira delas, ele já deve ter encontrado, pois se
tratava de um líder mexicano. Fácil!
O demônio da esquerda limpou, com a mão, os pelos negros de
seu antebraço, tirando uma pequena nuvem de poeira.
– Creio que tenhamos começado uma corrida contra o tempo.
Pelo menos ainda ninguém descobriu o que estamos fazendo.

***
Dariel estava sentado diante de seu enorme espelho, em seu
quarto, com pé direito duplo. Encarava seu próprio reflexo, com tanto
ódio que seus olhos lampejavam como sol com suas tempestades
solares. Em um súbito movimento, ele se levantou e esmurrou o vidro,
fazendo-o se estilhaçar, para depois explodir em milhares de
minúsculos fragmentos prateados, que voaram por todo o cômodo.
Ele pegou um pedaço de aço com um formato estranho, parecido
com uma caneta. Em seguida pegou uma folha de couro claro.

125
Segurando o aço como uma caneta, levou até a folha. O metal brilhou
como se estivesse sendo aquecido a milhares de graus e o demônio
começou a escrever. A cada letra desenhada, a folha de couro
fumegava.
Ao acabar de escrever, enrolou a folha e a prendeu com uma fita
vermelha, deixando acima do móvel. Foi até seu guarda-roupa no
estilo clássico e de dentro, tirou um casaco que quando colocou, caiu
até seus joelhos. Ele levantou a gola do casaco até onde ela permitia e
colocou um chapéu, escondendo sua negridão atrás das sombras.
Ele saiu do reino sem ser notado e começou a caminhar sobre o
gelo claro que caía sem parar sobre a estrada que ligava a cidade que
habitava a outra. Suas enormes asas eram inúteis, sendo que seu tecido
estava deteriorado, sendo impossível levantar voo.
Dariel se enquadrava nos mais poderosos infernais existentes.
Mas nunca lutou contra seus irmãos celestiais. Sempre se manteve
atrás dos bastidores, apenas acompanhando angustiado o desenvolver
da guerra eterna. Sempre sentiu uma grande saudade do irmão de
espírito. Mas ao invés desta amenizar com o tempo, nos últimos
milhares de anos, ela começou a se tornar insuportável. Após a
mutação que sofreu na queda, nunca teve coragem de se apresentar na
frente dos anjos novamente. Até se mostrar para o duque da luz e aos
outros dois celestes, todos achavam que ele estava morto.

O vento o fustigava com todas as forças, mas ele seguia em


frente, pois era tão poderoso que poderia mudá-lo de direção, se
quisesse. Enquanto ele se locomovia pelos quilômetros para chegar a
outra cidade, começou a se lembrar da época em os anjos não eram
separados por castas. Não existiam os guerreiros de Deus, pois não
existia o mau para ser controlado. Também não existiam os
guardadores, pois ainda não existiam os humanos para serem
126
guardados. Apenas as potências, os arcanjos e os querubins tinham
dons especiais, pois estavam moldando o universo. As potências, que
na época não eram chamados assim, eram criados com o dom de
controlar a natureza, em todo o cosmos. Dariel sempre admirou estes
anjos, pois estar perto de algum deles era tão maravilhoso que dava
para se sentir abraçado pela natureza. Fazia tempo que não tinha esse
sentimento deslumbrante. Sentia saudades disso também.
Quase duas horas depois de enfrentar aquele vento gélido, ele
começou a vislumbrar uma mancha negra um quilômetro à frente. No
mesmo momento, soube que estava chegando à cidadela. Um
movimento em seu lado direito, afastado cem metros, chamou sua
atenção. Sua silhueta pareceu ser de uma carroça sendo puxada por
dois monstros demoníacos, indo para o lado de onde ele veio. Ali ele
conseguia enxergar melhor, pois o gelo não caía mais, tendo como
obstáculo apenas a escuridão desértica.
Em determinado momento, ele pisou em uma ponte que
considerou asquerosa. Seus trilhos eram de ossos humanos
entrelaçados, ligados a dezenas de milhares de crânios enfileirados
que percorriam até o final da ponte. Percorreria sobre aquelas caveiras
pelo menos pelos próximos trezentos metros. Aquilo era algo
repugnante ao demônio. Não conseguiu deixar a náusea de lado, até
que chegasse ao solo firme.
Mais alguns metros e ele chegou a uma vila com árvores
retorcidas que continham em seus galhos garras enormes. Elas o
seguiam, parecendo observá-lo por onde ele passava. O solo era
úmido, com grupos de fungos aqui e ali. Cabanas desordenadas
estavam erguidas por todos os lados. Algumas não tinham mais de um
metro e meio de altura, já outras, chegavam a ser monumentais
construções, decoradas, erguendo-se a mais de vinte metros de altura.

127
Dariel continuou andando sorrateiramente, sem levantar suspeita
de que estava ali. Observou uma fogueira queimando ao lado de uma
das últimas barracas e entrou como uma enguia por uma porta da
última construção da vila, que se erguia a quase vinte metros do chão.
O alto demônio viu uma escada de trilhos, presa na vertical. Esta
entrava por um buraco esférico no meio do teto e ligava os três
andares da construção. Ele pensou que um demônio mais gordo jamais
passaria por aquele buraco. Começou a subir e logo já passava a
cabeça para o primeiro andar. Antes de continuar, ele espreitou o raio
do cômodo. Não viu mais do que alguns quadros de anjos no estilo
renascentista, presos à parede. Aquela imagem o deixou satisfeito,
então ele prosseguiu para o próximo andar. Antes de chegar ao andar
superior, pôde sentir um aroma familiar. Transpassando sua cabeça
pelo buraco, viu uma densa vegetação, com mais de centenas espécies
de plantas verdejantes e coloridas. Tais como muitas que via no Céu
há centenas de milhares de anos. Dariel ficou ali por quase dois
minutos, apenas respirando, de olhos fechados, aquele ar que tanto
amava. Quando abriu os olhos, um ar de decepção assolou seu
coração. O ambiente era agradável, mas o cubículo não era o Sexto
Céu que tanto gostaria de estar novamente.
Ele prosseguiu e quando chegou ao próximo e último andar,
escutou uma voz familiar que veio de trás de sua cabeça.
– Estava esperando por você, meu caro irmão!
– Chegou a hora, irmão! Voltaremos para o nosso lar de uma
maneira ou de outra.

***

128
Astaroth percorria a cidade do México, sorrateiro, andando pelas
sombras. A noite caíra sobre o lugar. Sem energia elétrica e com a Lua
se escondendo por trás de nuvens escuras, o duque do inferno não era
mais do que uma sombra ambulante. Contornava uma comprida
passarela azul, que se dobrava no meio, mudando de direção e se
dobrava de novo dez metros à frente, mudando novamente de direção.
O louro observava cada canto, ou fresta que algum verme
humano poderia se esconder. Sabia que estava no lugar certo, mas não
tinha a mínima ideia de como encontrar o humano correto. De uma
coisa ele sabia, que precisava de informações.
Quando ele acabou a passarela, viu um bando de humanos
queimando lixo em volta de uma lata de aço. Antes do apocalipse,
aquele lugar era provavelmente algum tipo de escola infantil, mas
agora se tornara um habitat de pessoas hostis, abrigando mendigos,
drogados e bêbados. Ele caminhou até o grupo, infiltrando-se no meio
deles. Alguns o observaram e se afastaram, temerosos. Outros o
encararam, imponentes.
– Ei grandão. O que você quer? – Um jovem careca, com a pele
um pouco escura e olhos puxados, aproximava-se de Astaroth
manejando um canivete.
O duque do inferno apenas virou a cabeça um pouco para ele,
mantendo-a baixa, sem encará-lo nos olhos.
– Quem é o seu líder? – indagou o duque.
O jovem riu, olhando para os amigos, agitando para que eles
também entrassem na mesma onda. Então ele se aproximou de
Astaroth mais ainda e ficou frente a frente com ele.
– Ce tá me tirando do sério, cara. O que você quer, porra?
O demônio inclinou a cabeça e o encarou nos olhos, com os seus
rubros como sangue.
– Quem... É... O... Seu... Líder?
129
O homem se afastou tão rápido que acabou caindo no chão. Mas
logo se levantou, já correndo e gritando:
– Corre! Corre!
Astaroth apenas os considerou mais miseráveis ainda, enquanto
os observava correndo para longe. Não perderia seu tempo,
eliminando um a um apenas por diversão. Quando resolveu seguir em
frente, a procurar por outro grupo, apenas uns trinta segundos depois,
ele escutou:
– Ei, meu irmão! É você que tá tirando meus moleques?
O duque parou e ficou imóvel, sem olhar para trás. O homem
acrescentou.
– Olha pra mim, safado!
Nesse momento, ele respirou fundo e se virou, deparando-se
com um homem negro, do seu tamanho em altura e corpo. Ele se
aproximou, ficando nariz a nariz com ele e indagou:
– Quem é o seu líder?
– Eu sou meu líder. – A feição do homem era de puro ódio,
encarando Astaroth com as suas sobrancelhas juntas.
– Ótimo! Venha comigo. – Astaroth segurou em seu pulso e o
puxou, fazendo-o descompensar para a frente.
O grande homem puxou seu braço de volta e quando o duque se
virou para pegá-lo novamente, ele cuspiu em seu rosto, tirando uma
arma da cintura, apontando para o rosto de Astaroth. O duque das
trevas entortou a feição, deixando que uma faísca de raiva se
acendesse em seu peito. Ao mesmo tempo, começou a controlá-la,
pois tinha que levar aquele homem vivo. Então ele puxou novamente
o braço do homem que segurava a arma. Um tiro foi disparado, ao
mesmo tempo em que um dos garotos avançou para cima dele,
acertando-lhe uma facada nas costas. A faca se estilhaçou em três
pedaços e o chumbo do tiro ficou preso entre seu nariz e olho. Logo
130
soltou a cápsula com o dedo, deixando que ela caísse no chão. Estava
destruída. Ainda segurava o braço do homem negro que nesse
momento o olhava com os olhos arregalados.
– Quem é o seu líder?
Sem hesitar, o homem respondeu em gaguejos.
– Eu te mo... Mostro!

131
CAPÍTULO 21

Kamael percorria um corredor tão comprido quanto o viaduto de


Millau. Segurava o pergaminho, entregue a ele por Uriel. O corredor
era contornado com inúmeros pilares lisos, brancos como algodão,
que sustentavam o teto da construção. O piso era de mármore branco,
com pedras com cinquenta metros de diâmetro cada uma. O teto
abobadado era adornado com pedras preciosas de todas as cores,
iluminando o lugar com seus brilhos cintilantes.
Após alguns minutos, o anjo chegou a uma sala com quase um
quilômetro de extensão. Por ela, anjos de todas as castas,
perambulavam. Um anjo que não via há pelo menos uma centena de
anos, chamou sua atenção, pois o cetro que segurava agora, não era o
mesmo que segurava há um século, fazendo com que o príncipe se
deslocasse até ele, antes de chegar ao seu destino.
– Omael, como é bom vê-lo novamente, meu irmão.
– Meu caro príncipe das potências, eu retribuo a gratidão – disse
o anjo, levantando seu cetro de cristal, ornado com pedras brancas,
cintilantes.
– Vejo que foi presenteado com outro cetro – disse Kamael, com
seu sorriso cativante.
Omael também alargou seu sorriso e apontou o seu cetro para
toda a sala, dizendo:
– Veja que não foi apenas o meu, meu caro príncipe. Todos os
nossos irmãos dominações foram presenteados com novos cetros por
Uriel.

132
– Fico feliz com isso! – respondeu Kamael, olhando por cima do
ombro de Omael. – Você viu Bariel por aqui?
– Sim, ele está ao fundo da sala, com Yesalel e Metatron.
– Metatron está aqui? – Nesse momento Kamael arregalou os
olhos.
– Está sim – respondeu o anjo dominação, tranquilamente.
– Então deixe-me ir, que assim resolverei duas situações em um
só lugar. Obrigado, meu irmão. Foi um grande prazer revê-lo.
– O grande prazer foi meu, meu caro príncipe das potências
celestes.
Kamael prosseguiu as centenas de metros que levavam até o
final do salão, segurando o pergaminho em mãos. Faltando uns
duzentos metros, reparou na princesa Auriel reunida com o restante
dos tronos. A felicidade que inundava o rosto da princesa em todas as
vezes que Kamael a viu, naquele momento, estava ausente. O príncipe
pensou que faria o possível para resgatar os tronos, se eles estivessem
realmente no inferno.
Ao fundo do salão, ele viu alguns anjos reunidos. Exatamente os
que ele procurava. Yesalel e Bariel estavam em pé, de frente para um
robusto trono ocupado pelo rei dos anjos e primeiro anjo, Metatron.
– Olá, meus caros comandantes dos guerreiros divinos. Olá, meu
caro rei, comandante de todas as castas angelicais, de todos os céus.
O trio meneou a cabeça ao príncipe negro. Ele se sentiu
satisfeito com o sorriso em seus lábios e começou a falar:
– Meu rei, eu pensei em algo que pode nos caracterizar, também
como guerreiros celestiais. Assim poderemos ter certa vantagem, se a
resposta for positiva e assim tivermos que avançar.
– Diga, Kamael – pediu o enorme rei, inclinando a cabeça para a
frente, amassando sua enorme barba negra.
Kamael meneou a sua.
133
– Quando todos nós fomos criados, não tínhamos diferença, a
não ser pelo fato de que as potências foram criadas com o dom de
manipular a natureza, para dar vida ao planeta.
Todos o escutavam concentrados em suas palavras.
– Quando a primeira rebelião estourou, alguns anjos foram
escolhidos para lutar a favor do trono de Deus e assim foi concedido
algo para que crescesse a fúria guerreira em seus corações. A espada!
Yesalel puxou um sorriso de canto. Então ele viu o príncipe
dizer algo que nem ele, o segundo comandante dos guerreiros
celestiais, sabia que sairia de sua boca.
– Tempos extremos pedem atitudes extremas – continuou o
príncipe negro. – E se pedíssemos uma ordem divina, para que os
arcanjos manipulassem uma arma tão poderosa quanto a espada,
depositando nela também os elementos da natureza? – Ele puxou um
sorriso. – Creio que isso nos transformará em outro grau dos
guerreiros de Deus.
– Entendo sua ideia, meu caro príncipe das potências celestiais.
– O rei se levantou, esticando seu corpo com três metros de altura. Sua
careca refletiu o brilho das pedras preciosas que ornavam o teto
abobadado do enorme salão. – Mas nesse caso perderíamos as
potências celestiais, pois os guerreiros têm outra índole, transferindo
isso para a sua casta.
– Eu pensei nisso! – retrucou o príncipe. – Por isso peço que
enviemos apenas metade das potências para essa guerra, se houver
uma.
– Não só aceito, mas acho esplêndida essa ideia – disse o rei,
saudando o príncipe.
– Obrigado, meu rei. – Kamael meneou a cabeça e se virou para
Bariel. – Comandante, este é o pergaminho enviado por Uriel, dando a
aceitação do Sétimo Céu, para que possamos unir nossas tropas.
134
– Príncipe das potências – começou Bariel –, assumo que eu
estava preocupado com o problema de vocês avançarem conosco. Mas
dessa forma, creio que isso resultará em uma excelente vitória celeste.
Obrigado por se disponibilizar e aos nossos irmãos, dessa forma, para
essa guerra.
– Meu caro comandante, saiba que eu nunca me perdoaria se
ficasse de braços cruzados, com os nossos irmãos tronos presos no
inferno.

135
CAPÍTULO 22

Haziel, Daniel e Mazarak sobrevoavam a região dizimada por


Astaroth, dezenas de quilômetros acima, para não serem percebidos
por olhos humanos. Nesse exato momento, Daniel pensou que desde
que o avião foi inventado, há cerca de cem anos, não podiam
sobrevoar o planeta materializados, pois poderiam avistá-los
facilmente. Fato que aconteceu algumas vezes, mas eles foram
confundidos com alienígenas. Haziel não pensou nisso, pois nesse
tempo da evolução, estava preso no inferno. O louro, ao menos,
preocupava-se com mudanças. Gostava de cumprir suas missões com
êxito, voltar para casa e saborear os valores do Sexto Céu, por séculos
inteiros.
Àquela altura, Astaroth já tinha se locomovido para bem longe
dali, tornando-se uma tarefa quase impossível encontrá-lo naquele
planeta enorme.
Ao longe, Mazarak avistou duas figuras se aproximando. Uma
estava materializada, a outra não. Em alguns segundos, já paravam
junto ao grupo.
– Hekamiah! General! O que fazem aqui? – indagou Haziel.
– Fomos informados que vocês já tinham saído do inferno e que
já podiam ter notícias sobre os tronos.
– E temos! – respondeu Haziel. – Não só sobre os tronos. A
resposta é positiva, eles estão presos. Mas há algo pior. Suas energias
estão sendo utilizadas para criarem algo que estão denominando de
anjos das trevas – uma breve pausa. – Serão quatro no total.

136
Chavakiah abaixou a cabeça, lembrando-se de que uma vez leu
nas escrituras sagradas que quatro cavaleiros surgiriam das trevas e
trariam o holocausto final à humanidade.
– As coisas estão acontecendo de acordo com as escrituras –
disse o general, olhando para baixo com os olhos arregalados. Em
seguida ele encarou Hekamiah, desmaterializado do mundo carnal,
tremulante. – Hekamiah. Rápido! Siga para o Sexto Céu e informe os
comandantes de que a resposta é positiva. Mas tem algo mais
importante. Diga que a lenda dos quatro é verdadeira.
O anjo guerreiro leu os lábios do general das potências celestes e
alçou voo, desaparecendo em um ponto de luz, atravessando um dos
portais celestiais que conhecia naquela região. Esta era a forma mais
fácil de chegar a qualquer lugar, mas a energia utilizada era de
tamanha grandeza que todos os ocupantes sobrenaturais da região
sentiriam que alguém havia chegado. Naquele caso, era a coisa que
Hekamiah mais queria.
Hekamiah saiu por um portal próximo à grande construção
arqueada que dava acesso ao Sexto Céu. Como já esperava, fora
recebido por Aladiah que já o aguardava em prontidão.
– Olá, guerreiro. Você trouxe a resposta?
– Sim. É positiva!
Os olhos azuis do anjo jovial se arregalaram resplandecentes.
Nesse momento, Hekamiah disparou com a velocidade de um jato
vezes dez, atravessando muito rapidamente os milhares de
quilômetros até a titânica cidadela nomeada de Ônix, a primeira do
Sexto Céu, seguindo a partir do Grande Arco.
Logo ele já pousava na enorme ponte que dava na porta de
entrada do salão, onde milhares de anjos, de todas as castas, estavam
reunidos. Ele entrou pela porta de cristais arqueada e seguiu pelo
corredor ornado com pedras preciosas, por todo o seu teto abobadado.
137
Percorreu o longo corredor, até chegar ao cômodo grandioso. Lá ele
viu inúmeros anjos, cada um com sua forma, fazendo jus à sua casta.
O primeiro que se deparou foi um anjo da casta das virtudes. Este
anjo, desta casta, era diferente dos anjos das demais castas. Este em
específico tinha uma pele em que sua textura simulava rochas claras
lapidadas, pelo excesso de brilho. A predominância era da cor branca,
mas algumas manchas alaranjadas, opacas apareciam aqui e ali de vez
em quando, sumindo em seguida, para depois aparecer em outra
região de seu corpo. Os olhos eram brancos como duas esferas de
cristal. As asas eram duas silhuetas moldadas com vento, que
oscilavam para lá e para cá, formando-se apenas de vez em quando na
sua forma real, para depois voltar a oscilar.
– Meu caro irmão, você sabe onde se encontra o meu
comandante?
A virtude o encarou com seus olhos imponentes e apontou para
o fundo do salão, sem emitir um som. Hekamiah meneou a cabeça.
– Obrigado, Asaliah! – Em seguida partiu para aquela região.
Suas asas balançavam vorazmente a cada passo, dado com certa
velocidade.
Quando Hekamiah chegou, vislumbrou a imagem de Bariel,
Yesalel, Kamael e de Metatron. Ao ver o rei, ajoelhou-se no mesmo
momento, abaixando a cabeça.
– Meu rei!
– Por favor, levante-se, filho! – disse o enorme anjo, mexendo
sua grande barba negra.
Quando Hekamiah se levantou, encarando o quarteto sorridente,
com seus olhos entristecidos, todos anularam seus sorrisos
imediatamente, pois sabiam o que viria a seguir. Mas o que nenhum
deles imaginava é que a notícia já esperada viria acompanhada com
uma bomba nuclear.
138
***
– Caliel se encontra na antiga morada do humano, na zona leste
de sua cidade.
– O que Caliel faz na Terra?
– Deve ser coisa do humano! – Haziel se virou e olhou o
horizonte. – Eles estão no Brasil. Estão materializados?
– Sim! – Chavakiah tinha os olhos estreitos.
– Algo deve ter acontecido – disse o louro, virando-se para
Daniel. – Vou encontrá-los.
Daniel inclinou a cabeça para a frente, dizendo:
– Vamos continuar atrás de Astaroth. Qualquer novidade,
daremos um jeito de te avisar.
– Vocês estão atrás de Astaroth? – Chavakiah se espantou. – O
que ele está fazendo aqui?
– Nós não sabemos. Mas coisa boa não pode ser! – disse Daniel,
apontando para a região devastada.
– Meu Pai! – disse Chavakiah, espantando-se ainda mais. Ele
ficou mudo por alguns instantes, apenas vislumbrando a imagem da
destruição que ainda não tinha percebido atrás de si. – Eu sei uma
forma de encontrá-lo!
– Ótimo! – disse Haziel. – Qualquer novidade, deixem-me a par.
– Em seguida ele explodiu o vento a toda velocidade, rumo ao Brasil.

***

139
Aron e Hector desciam escada abaixo o corpo do homem que
antes tentara matar os dois. Ambos estavam incomodados com o
cheiro de morte que começavam a sentir, vindo do corpo.
Rapidamente o colocaram deitado, ao lado da mulher morta, ainda
amarrada na cadeira. A pele da moça estava mais branca do que a do
homem, apesar de estar morta há muito menos tempo. O impulso
infeliz do coração, tentando bombear sangue para o cérebro, através
da carótida, fez com que quase todo o sangue de seu corpo se
extinguisse, até que ela estivesse morta e quase seca. Todo o líquido,
quase seco naquele momento, era pisoteado pelos pés dos homens.
Enojados, eles sentiram um tremor, acompanhado de um estrondo no
andar de cima. Nesse momento, correram em sentido ao barulho,
subindo a escada aos tropeços.
Caliel chegou correndo na sala a tempo de ver Haziel
balançando suas asas para tirar a poeira quando ele pousou com força.
– Esconda essas asas, rápido!
– Mas por quê?
– Esconde. Rápido! – Caliel gritou.
Haziel levantou os ombros e guardou as asas. Hector e Aron
chegavam à sala, mas só deu tempo de Hector enxergar uma luz
dourada, enquanto ainda vinha pelo corredor.
– Alguém está com uma lanterna potente aí? A minha quebrou –
disse Hector em tom de ironia, repuxando um sorriso, depois
resmungando e colocando a mão em seu machucado. Nesse momento
ele viu Haziel. Um grande homem louro, forte, com feições felinas,
que também considerou diferente. Tal como o ruivo e o grandalhão.
Que tipo de grupo estranho é esse? – ele pensou. Mas o que achava
mais estranho é que não se incomodava com nenhum deles. Pelo
contrário, sentia-se acolhido. Apesar disso, percebeu que o louro era
mais sério do que os outros dois. Mas isso não o intimidava. – Quem é
140
ele? – indagou repuxando os lábios, com seu tradicional sorriso
irônico.
Nesse momento, o grandalhão passou correndo por ele,
trombando em seu corpo, fazendo-o cair com força no chão.
– Ops... – Barrattiel voltou e levantou Hector como se ele fosse
um boneco. – Desculpe amigo! – Deu-lhe um tapa no ombro que
quase o derrubou novamente.
Hector se sentia um pouco atordoado. Pensou que aquele
homem parecia um touro, de tão forte. Mal sabia ele que Barrattiel era
inúmeras vezes mais forte do que um touro. Em seguida, viu quando
ele se aproximou do louro e começou a jogá-lo para cima. Aquele
homem louro, alto pesava no mínimo cem quilos. A facilidade com
que o grandalhão o jogava para cima era tão grande que fez Hector se
impressionar como nunca na vida.
Quando Haziel foi posto no chão, depois de quase implorar a
Barrattiel, Caliel levou Hector até ele e o apresentou.
– Esse é Haziel, Hector. Um grande representante de nossa
comunidade.
– Todos da sua comunidade têm “El” no nome? – Hector riu
depois da piada.
– É! Mais ou menos todos. – Caliel também riu.
Haziel os encarava seriamente, sem esboçar um sorriso. Nesse
momento, Hector se sentiu um tanto intimidado e parou de rir aos
poucos, ficando talvez um pouco sem graça.
– Será que podemos conversar, meus caros? – Caliel colocou as
mãos nas cinturas de Haziel e Barrattiel, levando-os para o quintal.
Aron e Hector se deslocaram para a cozinha, a fim de procurar
algo para comer. Mas antes Hector parou na frente do banheiro e
gritou para Aron:

141
– Espere, que eu só vou dar uma mijada. – Nesse momento ele
já descia o zíper de sua calça, colocando o corpo para dentro do
cômodo.
No quintal, os anjos se afastavam o máximo que podiam dos
humanos, antes de atingirem os limites fora do terreno da casa. Eles
pararam na garagem, vendo a rua desértica no lado de fora.
– Sinto e temo que as notícias não sejam boas! – disse Caliel,
dirigindo-se a Haziel.
– Não são!
– Eu sabia! Temos que acabar com todos aqueles chifrudos. –
Barrattiel socou a própria mão.
– Xiu! – expressou Caliel, colocando um dedo nos lábios. –
Temos um humano na casa. Dois, mas um já é de casa. – O ruivo
repuxou um sorriso sem graça.
Barrattiel também o fez. Haziel prosseguiu:
– Não é só isso! – Ele fez uma pausa o suficiente para que o
coração do ruivo palpitasse. – Temo que enfrentaremos a pior espécie
das trevas, na história de toda a guerra eterna.

142
CAPÍTULO 23

– Preciso apenas de mais quinze minutos – disse Chavakiah


fitando o horizonte com seus braços cruzados. O general poderia se
fundir ao vento novamente, mas sabia que poderia não ter 100% de
êxito, sendo que tinha utilizado grande energia a menos de meia hora.
– O que podemos fazer enquanto isso? – indagou o duque da
luz, impaciente.
– Esperar! – retrucou o general das potências celestes.
O trio entrou em estado de meditação, absorto, reunindo toda a
energia possível naquele tempo. Para Chavakiah era mais fácil, sendo
que absorvia energia que a natureza daquele planeta lhe entregava
com prazer e satisfação.
Os quinze minutos se passaram e Mazarak e Daniel abriram seus
olhos juntos, quando sentiram uma grande emanação de energia.
Fitaram o anjo potência e perceberam quando seu corpo se
transformava em uma silhueta formada de vento. Admiraram aquele
dom por algum tempo, até que o general retornou à sua forma de
carne, osso e sangue.
– México – disse o general.

***
Astaroth percorria a calçada com o homem negro à sua frente,
sem perdê-lo de vista. Os olhos demonstravam o terror do homem.
Andava sem olhar para trás, remexendo os globos apavorados. Toda a
sua gangue o tinha largado na mão, ficando exatamente em seus
143
lugares, enquanto Astaroth o levava para onde é que ele quisesse
naquele momento.
O homem virou à direita em um corredor que separava dois
terrenos, dando na rua paralela a que estavam. Após não mais de dez
passos, com Astaroth a apenas dois metros de distância, em um
movimento súbito, virou no próximo corredor à direita, a toda
velocidade, fugindo de Astaroth como podia. Ele corria ofegante,
enquanto sua corrente de prata balançava no peito, batendo em seu
queixo de vez em quando.
Astaroth apareceu na sua frente em um estalo e como trombando
em uma muralha, o homem caiu desacordado para trás. O duque levou
a mão à testa e murmurou para si próprio:
– Esses vermes ambulantes ainda me matam de desprazer. – Ele
se aproximou do homem e lhe deu alguns tapas no rosto. – Ei, acorde!
Com os braços estirados, o homem abriu os olhos e levantou a
cabeça, tentando focar sua visão. Quando vislumbrou Astaroth à sua
frente, soltou um grito de susto.
– Por favor, me deixe em paz, por favor! – O homem se
ajoelhou e se abaixou aos pés de Astaroth, com as mãos entrelaçadas.
– Não até que você me leve a quem eu quero.
Desapontado, o homem se levantou e seguiu adiante, com o
duque das trevas atrás de si. Uns três quarteirões à frente daquele
ponto, o duque pôde ver uma casa que percebeu ser a única iluminada
por energia elétrica da rua. É para lá que estavam indo. O humano
parou a uns cem metros de distância da casa e a apontou, olhando para
Astaroth.
– Você vai encontrar o que quer ali.
O duque o encarou com o olhar desconfiado por alguns
instantes. O suficiente para o homem quase se borrar nas calças.

144
– Suma daqui e não olhe para trás. Se você estiver mentindo, eu
vou atrás de você e arranco seu coração com as minhas próprias mãos.
Sem hesitar, o homem correu, desaparecendo na penumbra da
noite. Astaroth encarou a casa, lampejando seus olhos rubros e deu o
primeiro passo em direção a ela. Quando chegou a seu terreno,
locomoveu-se até a escada de madeira que dava em uma varanda
também de madeira. Subiu os três degraus e andou os dois metros até
a porta de tela. Ele parou na sua frente e a puxou, arrancando-a do
batente. A porta de madeira mais robusta a sua frente tornou-se não
mais do que uma porta semelhante a isopor, diante da força de seus
punhos, quando ele com um soco, desintegrou-a.
Dentro da sala, com um lustre no teto e um tapete grosso no
chão, ele viu uma mulher de óculos, flácida e com o cabelo grisalho.
Seus olhos estavam apavorados, enquanto o encaravam, paralisada no
meio do cômodo.
– Quem é você? – ela gritou com desespero na voz.
– Quem é o seu líder?
Nesse momento, um homem gordo surgiu de um dos cômodos
escuros segurando uma arma com cano duplo. Sem hesitar, com um
sorriso no rosto, ele disparou contra o peito do duque das trevas.
Astaroth observou os pequenos pedaços de chumbo batendo em
seu peito, desintegrando o que restava de sua camisa. Não sentiu mais
do que um formigamento, enquanto os pequenos pedaços se
desprendiam de sua pele e caíam ao chão. Ele levantou a cabeça e
encarou o homem com seus olhos rubros furiosos. O homem
engatilhou a arma novamente e deu mais um tiro, este que não moveu
o duque do lugar. Depois mais um, após recarregar a arma e mais um.
O resultado de todos foi igual ao do primeiro tiro. Isso só serviu para
deixar Astaroth ainda mais furioso.

145
O duque das trevas ainda não sabia quem era exatamente a sua
presa, então ele se aproximou do homem, sem a intenção de matá-lo.
Impotente, o homem deixou que o cano de sua arma pendesse
para o chão e ficou olhando o grande homem louro se aproximar. Em
um súbito movimento, pegou em seu pescoço, quase esmagando sua
traqueia.
– Quem é o seu líder? – Nesse momento, o duque olhou para
dentro de um dos cômodos escuros e viu uma pequena chama se
acendendo. Algo chamou muito sua atenção, então ele arremessou o
homem contra a janela de vidro como se fosse um boneco, fazendo
com que seu corpo caísse fora da casa, junto a todos os fragmentos
brilhantes do vidro estilhaçado.
Astaroth caminhou até a porta do quarto e parou repentinamente
a um metro dela, quando viu um pequeno carvão ardente esférico,
acendendo sua chama. Junto com a brasa que se movia para cima e em
sentido ao duque, um homem grisalho apareceu segurando um
charuto, quando a luz externa ao cômodo pôde encontrá-lo. Ele tinha
um olhar diferente de qualquer um que Astaroth tinha visto em
humanos.
– Você não imagina o quão grande é o meu prazer em poder vê-
lo pela primeira vez.
O duque fora surpreendido com as palavras do humano.
– Quem é você? – indagou o duque das trevas.
– Quem você procura!

***
Do mundo espiritual, uma criatura observava Aron e Hector pela
janela da garagem da casa. Os dois humanos interagiam, enquanto

146
Aron revirava o quarto em busca de fotos de Sun. Único motivo que o
fez querer passar em casa. Mas as coisas não andaram muito de acordo
com o que ele previra e o tempo que estava passando ali, já tinha
superado pelo menos em vinte vezes o que ele pretendia passar.
O demônio, feito de fumaça, piscava do mundo espiritual seus
olhos amarelos, sem deixar parecer qualquer evidência de sua
presença. Principalmente para os celestiais, que naquele momento se
encontravam no quarto dos fundos. Ele fez um gesto para outro
demônio, exatamente igual a ele, que o acompanhasse. Pelo menos foi
isso que pareceu quando ele ergueu uma parte da fumaça que
compunha seu corpo, fazendo parecer um braço.
Ambos transpassaram a parede ao lado da janela e seguiram
rumo ao corredor central da casa. Poderiam agir contra Aron de seu
próprio mundo espiritual, mas a emanação de energia seria tanta que
muito rapidamente os anjos perceberiam e agiriam antes que eles
conseguissem fazer qualquer coisa.
Sabendo exatamente para onde ir, os demônios chegaram até a
porta que dava no porão e a transpassaram, seguindo escada abaixo.
Um momento não muito maior do que um minuto se passou.
Subitamente um barulho muito forte veio de lá, alertando os humanos
e celestes.
Todos chegaram quase ao mesmo tempo na frente da porta e se
entreolharam.
– Vocês deixaram a porta de aço trancada? – indagou Caliel.
Nesse momento, Hector tentou se lembrar de ter visto o ruivo
descendo até o porão, mas não conseguiu. Aron puxou do fundo de
sua memória, tentando lembrar se tinha aberto a porta por algum
motivo, mas antes de responder, o outro humano disse por ele:
– Está trancada.

147
– Deixem-me ver o que está acontecendo lá embaixo. –
Barrattiel tomou a frente, passando com seu grande corpo pelo meio
de todos, abrindo a porta que dava na escada escura.
Agora que a noite começara a cair, o escuro começava a
incomodar os humanos. Não os anjos, que tinham seus sentidos
aguçados.
Barrattiel desceu os degraus sem hesitar por nenhum instante,
fazendo com que Hector o achasse extremamente corajoso. Aquele
brutamontes parecia de aço aos olhos do indiano.
– Tudo limpo – disse Barrattiel, mostrando a cabeça ao pé da
escada. – Apenas esses dois corpos aqui, acho que não estão cheirando
muito bem.
– Corpos? – Haziel se surpreendeu.
– Eu te explico depois.
Nesse momento, Hector sentiu uma suprema confiança na voz
de Caliel, tal como se ele tivesse acompanhado tudo enquanto estava
ali. Mas com certeza, Aron devia tê-lo atualizado em algum momento.
Mas em qual?

***
O duque da luz e os dois anjos chegavam à cidade do México,
sobrevoando o local a não mais de quinhentos metros de altura, sendo
que à noite estavam bem protegidos de serem vistos. Espreitavam o
mapa abaixo como gaviões, pois os três sabiam que o dom de
Chavakiah os tinha levado ao lugar certo.
– Ele pode estar nos limites entre esse grande terreno e aquele
condomínio de casas – disse o general das potências, apontando as
regiões.

148
– Vamos nos separar – disse Daniel, com seus braços cruzados.
– Concordo. – Mazarak inclinou a cabeça para a frente.
– Caso não o encontremos, o ponto de encontro será debaixo
daquela lona azul, em trinta minutos – apontou o anjo das potências
divinas.
Os dois irmãos de espírito concordaram e os três desceram a
toda velocidade, indo cada um para um canto.
Daniel pousou meio a um amplo terreno aberto. Vendo de cima,
enquanto descia, reparou que seus muros unidos se assemelhavam a
um curto labirinto. Imediatamente guardou as asas e começou a correr,
pulando o primeiro obstáculo com a destreza de um esportista
olímpico. Mais dois metros e pulou o segundo muro, caindo como um
felino no chão, com as duas palmas abertas e as pernas flexionadas.
Ele espreitou para a direita e para a esquerda, não vendo uma alma
viva na rua. Nesse momento, percebeu que não precisava se esconder,
afinal, parecia um mero humano. Era só não deixar que o encarassem
nos olhos.
Em vez de correr, ele começou a andar, contornando o muro do
terreno. Passou aquela região e depois de mais cinco minutos, mais
cinco quarteirões. Súbito, um grito. No mesmo momento identificou
que era feminino. Como uma fera, correu em sua direção. Sabia que se
encontrasse Astaroth, não teria muito o que fazer. Mas jamais correria.
Jamais deixaria que o duque completasse o que quer que estivesse
fazendo, sem ao menos levantar sua espada contra ele.
Sem escutar mais nenhum barulho, ele parou de correr e
começou a prestar mais atenção ao seu redor. Depois de dez segundos,
escutou mais um grito que soou abafado, mas logo o abafado foi
cortado, liberando o grito feminino de desespero. O ouvido do anjo se
aguçou como o de um lobo e ele seguiu em sua direção.

149
Quando localizou o que procurava, não viu exatamente o que
achou que veria, mas viu algo que o deixou enojado, petrificado diante
da cena. O anjo viu dois homens abusando de uma jovem mulher
morena de cabelos lisos e negros. Era claro que a tinham escolhido,
devido a sua silhueta atraente. Estava despida de vestes superiores,
deixando seus fartos seios aparentes. Sua saia amarela já mostrava
suas partes baixas, enquanto o homem a erguia. O outro tirava o cinto
a toda velocidade, ansioso para fazer o que mais desejava naquele
momento. O anjo pensou que nem o apocalipse curou os podres
humanos.
Em determinado momento, os olhos do anjo se cruzaram com os
da mulher. Com um brilho no olhar, ela moveu seus carnudos lábios,
pedindo ajuda pelo amor de Deus ao celeste.
O que Daniel fez a seguir nunca tinha feito em todos os seus
milhões de anos vividos. Mas também nunca tinha se deparado com
uma cena daquela diante de seus olhos, tão perto de seus poderosos
braços. Ele conhecia a regra dos guardadores de que eles só poderiam
ajudar seus guardados, mas determinou que aquela regra não se
aplicava a ele, sendo que ele era um guerreiro e não um guardador.
Ele avançou tão rápido que quando chegou, já se prostrava a
apenas dois metros diante da cena que considerava horrenda. Os dois
homens se assustaram, fazendo com que um deles quisesse prender o
cinto. Mas como se caísse em si de algo, soltou o feixe e se aproximou
do anjo, ficando frente a frente com ele, encarando-o nos olhos.
– Bonitas tranças – disse Daniel.
– Gostou? Sai fora daqui, antes que eu arranque seus olhos. – O
homem cuspiu no chão e disse com sarcasmo na voz: – Bonitão!
– Gostei! – O anjo remexeu os olhos, entortando os lábios,
referindo-se às tranças, ignorando completamente o que o homem
dizia. – Gostei bastante. Até pensei em pegar essas para mim.
150
Nesse momento, ele levou a mão à cabeça do homem e segurou
em suas tranças, erguendo-o do chão com apenas um braço. Seu
comparsa arregalou os olhos perdendo a concentração na moça. Ela
aproveitou para pisotear seu pé com o salto e sair correndo a toda
velocidade.
O homem mau não pestanejou e também saiu correndo, mas em
outra direção, só que mancando, deixando seu amigo nas mãos do
homem que o assustara tremendamente. Já era o segundo daquele tipo
que via só naquela noite.
Daniel encarou o homem que segurava pelas tranças mais
profundamente, quando este tentou lhe penetrar um canivete. Mas
infelizmente para o homem, a arma se quebrou na pele do anjo.
Reparando que a mulher já não se encontrava ali e que o outro
humano desaparecia no breu como um covarde, Daniel jogou o
homem a dois metros de distância.
– Saia daqui!
O homem se levantou tão rápido quanto um gato e correu
tropeçando uma vez, caindo, levantando-se e correndo de novo.
Enquanto o homem desaparecia da vista de Daniel, o anjo se lembrou
da primeira vez que começou a reparar na maldade humana. Na
Mesopotâmia, há quase cinco mil anos. Apesar de negra essa parte da
história, seu principal enredo o inundava de felicidade, pois
reencontrou seu grande irmão de espírito, que não via há cento e
cinquenta mil anos.
Daniel salvou a moça, mas se sentia um tanto decepcionado,
pois o grito despertou sua atenção em relação a Astaroth. Quando
passava por um ponto de ônibus, afastado cem metros do lugar da
ação, ele escutou:
– Ei, obrigado! Você é o meu anjo da guarda.

151
A mulher estava escondida atrás da sombra do ponto. Daniel
parou surpreso, pois não imaginava encontrá-la mais. Ela segurava os
braços na frente dos seios, inibindo-os. O anjo parou e a ficou
encarando, sem saber muito bem o que fazer. Ela se aproximou dele.
– Você pode me emprestar sua camiseta?
Daniel ficou mudo por um momento, tentando entender por que
a mulher queria sua camiseta, mas por via das dúvidas a tirou e
entregou a ela. A moça a vestiu, deixando que seu seio aparecesse
novamente, enquanto o tecido deslizava por seu corpo.
– Você me acompanharia até a minha casa?
– Por favor, mulher, siga seu caminho. – Nesse momento, o anjo
se virou e começou a correr para outra direção, deixando a mulher no
local, vendo-o se distanciar.
Apenas a cinco quilômetros dali, Mazarak percorria ruas
semelhantes em busca do duque infernal. Mas nenhuma pista
anunciava que ele tinha passado por ali. Passou por um parque
construído em uma praça, que naquele momento lhe pareceu
tenebroso, com a balança oscilando para cá e para lá, apenas com a
força do vento.
Ao final da rua em que se encontrava, avistou uma única casa
iluminada. Chamando sua atenção, percorreu em passos rápidos até
chegar lá. Viu a porta principal e a janela lateral destruídas. Nesse
momento, ele se esquivou e caminhou sorrateiramente até os limites
da casa, dentre uma grande sombra. O corpo de um homem gordo
jazia estirado ao lado da janela estilhaçada. Quando chegou mais
perto, pôde ver uma mulher jogada no chão chorando muito
compulsivamente no centro da sala. Sem sinal do duque, ele entrou
pela porta principal. Mas a pobre mulher nem pareceu notar sua
presença e continuou chorando, murmurando as mesmas palavras que
murmurava antes do anjo chegar.
152
Mazarak se agachou ao seu lado e nesse momento ela apenas
levantou seus olhos vermelhos, encarando o celeste.
– Ele o levou! – ela disse, choramingando.
– Quem levou quem?
– O homem alto. Ele o levou.
– Por favor, mulher, você precisa se concentrar.
– Quem ele levou?
– Meu marido. Ele levou meu marido.
– Um homem louro, forte?
– Sim!
– Você viu para onde ele foi? – Nesse momento o anjo já
inclinava seu corpo.
– Não. Ele desapareceu tão rápido que quando corri para fora,
não pude mais encontrá-los.
– Obrigado – disse o duque já saindo da casa. Ele foi até uma
sombra mais escura e lá explodiu suas asas, fazendo aquele lugar se
iluminar brevemente. Depois subiu em direção aos céus, a toda
velocidade. Em determinado ponto, parou e procurou a zona azul
apontada antes por Chavakiah. Quando a localizou, desceu a toda
velocidade na sua direção, vendo o general esperando por ele, com
suas asas guardadas. Ele pousou e viu seu irmão se aproximando
também.
Cerca de vinte metros antes de tocar o solo, Daniel guardou as
asas, despencando em um voo livre, caindo como um felino no chão.
Quando olhou para o lado, a uns trinta metros de distância, ele viu
duas crianças o encarando em cima de bicicletas. Ambos tinham os
olhos arregalados, sendo que viram Daniel despencando do nada e
caindo daquela forma tão ágil. Ele cumprimentou os meninos, que
naquele momento voltaram a si e começaram a pedalar suas bicicletas,
fugindo a toda velocidade. O anjo não se importou e se dirigiu ao
153
general e ao seu irmão de espírito que encaravam a cena um tanto
sorridentes.
– Por que vocês estão rindo? Acharam Astaroth? – Daniel
perguntou irritado, pois sabia que internamente, os outros dois
zombavam de sua distração.
Imediatamente eles esconderam os sorrisos e Mazarak
respondeu:
– Sim! Por algum motivo ele levou um homem, a uns vinte
quarteirões daqui.

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CAPÍTULO 24

– Temos que ficar aqui. Eles sabem onde nos encontrar. Se tiver
qualquer novidade, é para cá que eles virão – dizia Haziel, enquanto
ele, Caliel e Barrattiel, em cima do telhado da casa, fitavam o céu.
Barrattiel tinha seus braços cruzados. Ele deu um passo para
trás, querendo encostar-se em algo, mas esse algo era frágil para
aguentar o peso de seu corpo enorme. Quase no mesmo momento em
que encostou sua cintura na caixa de água da casa, ela se espatifou,
derrubando os quinhentos litros de água por todo o telhado. A sala,
que já não tinha seu teto, destruído também pelo grande anjo, fora
lavada com água.
– O que vocês estão fazendo aí em cima? – gritou Aron da sala.
– Foi apenas um pequeno acidente, Aron – retrucou Caliel,
enquanto fulminava Barrattiel com seus olhos rubros.
Aron se virou para voltar à cozinha, onde papeava com Hector,
mas trombou-se com o homem que se encontrava atrás dele, no
corredor.
– Eu já pensei em inúmeras formas em como seu amigo
conseguiu destruir esse teto, mas nenhuma delas me pareceu cabível.
– Nem me pergunte. – Aron levantou a mão e prosseguiu para a
cozinha. – Nem me pergunte.
Hector olhou o grande rombo e depois seguiu Aron com cara de
interrogação. Sabia que as loucuras que passavam por sua cabeça
poderiam derivar de alucinações pelo grande corte, agora cicatrizado,
em sua barriga.

155
– Uma tequilinha, meu amigo? – indagou Hector, enquanto
pegava uma garrafa fechada no armário.
– Não, obrigado. Você tem certeza de que isso fará bem a você?
– Aron apontou o corte.
– Me matar não vai! – retrucou Hector, mostrando os dentes.
– Quem sabe?!
Nesse momento Aron escutou um estalo vindo do porão.
– Você escutou isso?
– Escutou o quê? – perguntou Hector, antes de virar a primeira
dose da bebida.
Mais um estalo.
– Isso!
– Agora eu escutei – disse o homem, segurando a garrafa e
servindo mais uma dose no pequeno copo.
– Eu vou ver o que está acontecendo. – Aron se levantou da
cadeira.
– Não é melhor chamar o Barr... Barra não sei o que lá? Como é
o nome do cara lá mesmo?
– Barrattiel. Não! Eu mesmo vou descer.
– Tá bom. Tá bom. Eu vou junto! – disse Hector depositando a
garrafa na mesa, juntamente com o copo cheio, indo atrás de Aron.
– Eu não estou pedindo nada. Você está vindo por livre e
espontânea vontade. – O rosto de Aron estava virado um pouco para
trás, enquanto ele andava e falava.
Aron virou a maçaneta da porta, empurrando-a e tocou o
primeiro degrau, descendo os outros em seguida. Hector fez o mesmo,
seguindo logo atrás. Eles chegaram até os dois corpos, sentindo um
cheiro ainda mais fétido do que antes. Tocando os corpos com
repugnância, Aron viu que naturalmente estavam em suas posições. O

156
homem estirado no chão e a mulher amarrada com a cabeça pendendo
para o lado.
– Você tem uma lanterna? – indagou Aron.
– Eu não disse que a minha quebrou?
Aron apenas balançou a cabeça em negativas e começou a tatear
a despensa, a fim de achar algo que pudesse iluminar o lugar. Isso
durou uns dois minutos, até que Hector resmungou, fazendo com que
sua voz percorresse o escuro total, até chegar a Aron:
– Vai demorar aí?
– Espere. Eu só estou... Ah! Achei. – Aron balançou a caixa
notando que ali tinha pelo menos metade do total de fósforos. Ele
pegou um e se virou na direção de Hector, riscando um dos palitos. O
que viu à sua frente fez com que ele desse um impulso para trás,
batendo a cabeça fortemente em uma madeira horizontal que
compunha a despensa, soltando o palito. Isso aconteceu no mesmo
momento em que Hector gritava:
– Que porra é essa?
Quando riscou o palito, o momento de luz mostrou dois olhos
leitosos, encarando Aron a trinta centímetros de seu rosto. Era o
homem. Apesar de estar em pé, sua aparência não era mais do que de
um morto ambulante. No mesmo momento, a mulher avançava para
cima de Hector, perambulando como um sonâmbulo. Quando a luz se
apagou, os dois humanos perderam totalmente o sentido de enxergar e
foram surpreendidos pelos mortos-vivos. Suas mãos fortes os
agarraram como feras ao abaterem suas presas.
Instantaneamente, Aron se lembrou do momento que passou
com o humano possuído quando chegou à praia, apesar dos olhos
deste serem leitosos e não negros como os moribundos antigos.
Naquele momento, percebeu que ainda não tinha se perguntado como
exatamente tinha saído da ilha onde ficou preso com Sun por quase
157
quinze dias. Sabia que tinha sido obra dos anjos, mas como o tiraram,
sem que ele não visse nada, por nenhum mero segundo?
Aquele homem que antes estava morto, apesar de desajeitado,
era mais forte do que o que ele enfrentou na praia, tornando quase
impossível se livrar de sua pegada. Com os dedos, o homem apertou
os braços que Aron usava para tentar se livrar com a força de uma
máquina. Isso fez com que o humano soltasse um grunhido de dor.
Nesse momento, vendo o pavor do amigo, Hector utilizou seu
punho, com muitos anos de treino em boxe e acertou um soco cruzado
no queixo da moça. O murro foi tão poderoso que deslocou sua
mandíbula, arremessando seu corpo ao lado do dele. Em um impulso,
ele se levantou e avançou para o lado onde escutava a luta de Aron
com o homem. Com um pressentimento da localização, ele segurou o
pescoço do homem com seu antebraço e o puxou com toda força para
trás. Os dois caíram, com Hector batendo primeiramente suas costas
no chão, trazendo junto o peso do homem em cima dele. Por pouco,
sua cabeça não bateu no metal da máquina de lavar atrás dele, mas
isso ele não viu, pois o escuro não permitia. A falta de ar foi tão
repentina que imediatamente o homem perdeu a consciência.
O homem morto não se importou com ele e se levantou como se
nada tivesse acontecido, indo de encontro a Aron. Parecia poder sentir
o cheiro do humano, localizando-o em qualquer lugar daquele porão.
Não foi preciso muito, pois a mulher com a mandíbula estourada
lutava com ele, impedindo-o de sair dali.
Naquele momento, Aron já tinha percebido que era alvo daquele
ataque. Então caiu na real de que de jeito nenhum as coisas estavam
melhorando, pois ele ainda era o único sobrevivente dotado da energia
curadora da humanidade. Sem ele, as coisas ficariam mais fáceis. Ele
tentava se desprender da mulher com todas as forças, quando sentiu
um puxão em sua camiseta. Isso o desiquilibrou e ele caiu, com a
158
mulher ainda presa nele. Ambos rolaram no chão e logo ele sentia não
duas, mas quatro mãos em cima de seu corpo.
No chão, sem poder ver nada, tinha a impressão de que duas
feras tentavam rasgá-lo para poderem devorar tudo que tinha em suas
entranhas. Ele debatia seus braços, tentando acertar algo e quando
acertava, nenhum efeito surtia, pois aqueles humanos não tinham a
força de um humano, pelo menos não de um normal. O humano
começou a pensar que não tinha passado tudo o que passou apenas
para morrer ali, com os anjos no andar de cima. Com esse
pensamento, instantaneamente ele começou a gritar com todas as
forças que seus pulmões permitiam.
Nesse momento, ele começou a sentir uma dor que nunca tinha
sentido em toda a sua vida. Foi aí que percebeu que os mortos vivos
tinham cravado seus dedos em sua barriga e cada um puxava de um
lado, esticando sua pele ao limite. A dor chegou a um ponto que fez
com que Aron começasse a perder os sentidos. Subitamente ele sentiu
um rompimento, mas a dor logo se apagou quando ele desmaiou,
deixando que sua mente fosse levada para a escuridão.
Nesse momento, um barulho muito poderoso rompeu acima
daquele cômodo. Em seguida, passos quase como metralhadoras
desceram as escadas. Os três anjos chegaram como feras, com seus
olhos resplandecentes, iluminando o recinto. Quando Caliel viu a cena
diante de seus olhos, o mundo inteiro se apagou a sua volta e só
aquele ponto brilhou mais forte. Ele sentiu algo que nunca tinha
sentido em toda a sua vida. Um formigamento subiu por sua cabeça,
passando para todo o seu corpo. Ele perdeu as forças instantaneamente
e desabou de joelhos no chão. Os dois demônios de fumaça que
deixavam os corpos moribundos não chamaram a menor a atenção do
ruivo, pois o que ele via era muito maior do que qualquer coisa.

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Haziel e Barrattiel estavam petrificados, com seus olhos focados
também naquele ponto. Mas quando os demônios de fumaça surgiram.
Haziel entortou a face e quando os viu transpassar o teto, dando no
andar de cima, ele subiu a escada como um lobo. Barrattiel fitou
Haziel subindo a escada, mas preferiu ficar com Caliel, caso ele
precisasse de qualquer coisa.
Na frente de Caliel, o corpo de Aron estava destroçado no chão.
Sua barriga estava aberta, com seus órgãos internos expostos. Um
pedaço do intestino já tinha sido puxado para fora. Ele não pensou em
fazer nada, até que lágrimas começaram a escorrer por seus olhos.
Então ele chorou pela primeira vez desde que foi criado. Sabia o que
era sentir emoção. Sabia o que era sentir felicidade, pois sempre que
algum guardado sentia essa felicidade, ele também a sentia. Pensou
que Aron foi o guardado mais feliz que guardou de todas as centenas
de pessoas que guardou até aquele momento.
Barrattiel encarava o ruivo, mas escutou algo que chamou sua
atenção. A segunda vez o fez ter certeza, então ele chamou o nome de
Caliel. Ao escutar a voz do guerreiro, algo acendeu em seu peito e ele
escutou algo que não poderia se em suas veias, naquele momento, não
corresse o sangue dos querubins.
Seu humano ainda não estava morto. Os batimentos estavam tão
fracos e espaçados que quase ele não podia ouvi-los. Um brilho de
esperança se acendeu nos olhos do ruivo e sem perder tempo, ele se
aproximou do corpo de Aron, colocando a mão sobre ele.
Instantaneamente, um brilho rubro se acendeu na mão do anjo e ele
começou a transferir energia para o seu guardado. O rombo ameaçava
se fechar, mas parecia que a anergia não tinha forças para lacrar algo
daquele tamanho, com pelo menos trinta centímetros de diâmetro.
Sem pestanejar, ele colocou a outra mão sobre o humano e começou a
forçar ainda mais.
160
Nesse momento ele se concentrou, escutando os batimentos de
Aron, mas em vez de acelerarem, eles ficavam ainda mais fracos a
cada segundo. O anjo começou a sentir algo que considerou o mais
próximo do desespero, então começou a enxugar seu coração de
energia, transferindo toda ela para o humano. Mas o que ele não
esperava era o que aconteceria a seguir.
A energia espiritual emanada pelo anjo foi crescendo tão
astronomicamente que começou a interagir com a matéria no planeta.
As lâmpadas que não viam energia elétrica há meses começaram a
piscar. Subitamente, a energia rubra que envolvia apenas a mão do
ruivo, tomou conta de 100% de seu corpo, em seguida envolvendo
totalmente o corpo do humano. O poder de Caliel não parava de
aumentar, então o chão começou a tremer. O teto a soltar poeira.
Pequenas rachaduras se desenharam na parede e seguiram até o teto,
encontrando mais uma rachadura. O teto cedeu, mas ficou preso por
alguns centímetros de concreto. Isso não afetou Caliel que continuou
em sua missão de vida, mesmo sendo fustigado por micro pedras e
muita poeira.
O impulso de energia era frenético. Quando o pedaço de
concreto quadrado de um metro e meio despencou, se Barrattiel não
estivesse ali para ampará-lo com suas costas, ele teria esmagado Aron
no chão, pois o ruivo não prestava atenção em nada, alheio naquele
momento com seu guardado.
A casa não parava de tremer e de soltar fragmentos. Súbito, o
ferimento do humano começou a unir sua pele e a fechar-se aos
poucos, colando cada célula de uma vez. Barrattiel via aquilo
acontecer, sem tirar seus olhos, enquanto colocava o pedaço de
concreto com calma no chão. Os últimos dez centímetros colaram
mais rapidamente e uma linha de brilho envolveu o ferimento que

161
naquele momento se transformava em uma grande linha cicatrizada
escura.
Percebendo que Caliel já perdia completamente suas forças,
Barrattiel o chamou, mas isso não o fez se atentar ao guerreiro.
Barrattiel o chamou de novo. Nesse momento a casa começava a parar
de trepidar. Repentinamente, Caliel abriu os olhos rubros e sorriu ao
ver a cicatriz curada. Em seguida, viu os pulmões de seu humano
encherem com oxigênio ao seu limite, para depois soltar e novamente
repetir a ação. Satisfeito, ele cerrou novamente e apagou em cima de
Aron.
Barrattiel assistiu à cena, fazendo com que uma lágrima
escorresse de seus olhos, ao seu grandioso final. Um movimento fez
sua cabeça se mover para o lado, então seus olhos iluminaram algo
que nenhum deles tinha se ligado até aquele momento. Hector estava
encolhido no canto da parede, ao lado da máquina de lavar. O
eletrodoméstico o tinha protegido de ser atingido pela despensa que
despencou em cima dele. Ele tinha os olhos tão arregalados que tinha
perdido até a concentração da respiração. Inclusive, a cada arfada
sentia uma dor aguda nas costelas.
O humano se levantou e andou entre os escombros, até chegar
aos celestes e ao seu novo amigo, estirado no chão, com o ruivo caído
em cima dele. Barrattiel o seguiu com o olhar, quase que petrificado,
sem conseguir ter alguma reação. Hector encarou Aron e Caliel no
chão, vendo uma caixa de fósforos ao lado deles. Depois encarou
Barrattiel. Abaixou e pegou a caixa, colocando-a no bolso. O
momento de tensão durou cerca de trinta segundos. Então o humano
disse, envergando suas costas para trás e soltando um grunhido de dor:
– Acho que quebrei as costelas.
Barrattiel arqueou as sobrancelhas ainda mais surpreso. Mas
depois escutou da boca do indiano:
162
– Que merda toda foi essa?

163
CAPÍTULO 25

Astaroth caminhava com o homem rapidamente dentre as ruas


da cidade do México. Ele olhava sua mão brilhar em uma tentativa
não tão frustrada de desmaterialização. Não tão frustrada porque já
esperava por aquilo. Era apenas um teste. O duque não entendia por
que, mas se sentia intimidado por aquele humano. Seus olhos negros e
profundos o faziam lembrar-se de uma lenda sobre algo quase tão
antigo quanto Deus. Algo, porque esse algo não era alguém e sim
alguma coisa. Esse algo era a própria escuridão. Mas Deus sempre o
manteve preso, desde os primórdios do tempo.
– Humano, explique-me essa história. Como você sabia que eu
viria?
– Por favor, peço que não me chame assim. – O homem sorriu e
parou de lado, com a cabeça baixa. O duque parou junto com ele,
encarando-o com seus olhos rubros. – Eu não sei exatamente. Eu
simplesmente sabia.
– Não entendo! – retrucou o duque.
– Durante toda a minha vida, eu tive visões de um homem
grande, louro. Este que me levaria com ele e me transformaria em algo
que sempre sonhei, um guerreiro. – Ele sorriu. – Sempre chamei essas
visões de sonhos acordados. Mas no momento que vi seus olhos
brilhando quando transpassou a porta daquela casa, soube
imediatamente quem era você.
– Você sabe quem sou eu?
– Não! Eu sei que você é uma espécie de mentor.
O duque sorriu, com os olhos estreitos.

164
– Ótimo! Continue andando, pois não temos muito tempo. –
Imediatamente Astaroth desconfiou de que os outros três
provavelmente também tiveram visões dele. Então, além de saber em
que cidades se encontravam, agora ele tinha uma pista sobre cada um
deles.
– Para onde vamos? – O homem olhou para trás com os olhos
inocentes dessa vez.
– Você, para o meu reino. Eu vou para a África – disse o duque
do inferno.
– Você é um rei?
– Vamos dizer que uma espécie de rei.
– Eu sei que provavelmente devo estar dentro de uma de minhas
visões, então vou aproveitar isso aqui o máximo que eu puder. – O
homem olhou em volta sem parar seus passos. – Assumo que isto está
muito real! – Um sorriso maquiavélico se fez em seus lábios.
Astaroth apenas balançou a cabeça em negativas, deixando que
o homem achasse o que quisesse. Isso não era problema dele.
– Chegamos! – disse o louro.
– Chegamos? Onde? – O homem deu uma volta em seu próprio
eixo.
Olhando para o lado, Astaroth fez um meneio de cabeça. O
homem não viu nada, mas duas figuras tenebrosas aguardavam no
mundo espiritual, exatamente naquele ponto. Ambos eram apenas
duas túnicas negras flutuantes. Apenas uma corrente grossa de prata,
com um medalhão que ficava na altura do peito, brilhava em seus
seres.
O homem não entendia por que Astaroth não respondia sua
pergunta, ou sequer movia um músculo. Tinha apenas seus braços
cruzados, encarando-o, com seus olhos rubros, lampejantes e
malignos.
165
No mundo espiritual, as figuras flutuaram até o homem e cada
uma segurou em um braço seu com sua mão mórbida, com unhas
grandes e escuras. Ele não sentiu, mas viu quando um sorriso se
alargou no rosto de Astaroth. Isso o fez se sentir desconfortável.
Subitamente, o duque desapareceu da sua frente e tudo ficou negro.
Do mundo carnal, Astaroth viu quando os demônios negros
seguraram seus amuletos e instantaneamente eles e o humano se
desintegraram em uma névoa escura, desaparecendo completamente.
O duque tirou uma folha escurecida da cintura e a desdobrou.
Olhando seu conteúdo, escrito com tinta vermelha, de repente a frase:
Cidade do México, coordenadas 19.354909, -99.090966, começou a
escurecer como se fosse queimada por uma chama embaixo do papel.
Os restantes das escritas, diziam:
Makoua, coordenadas -0.004521, 15.612962.
Tókio, coordenadas 35.708871, 139.734541.
São Paulo, coordenadas -23.474579, -46.601979.

***
Caliel carregava Aron nos braços. Ele entrava no quarto que saía
da sala. Afinal, era o único quarto disponível naquele momento, pois o
outro, que ficava em cima do porão, agora estava literalmente no
porão. Colocou seu humano na cama, deixando que ele repousasse
pelo tempo necessário. Olhou-o por um tempo e se virou, para fazer
algo que não pretendia fazer antes, mas por um vacilo enorme, iria ter
que fazer. Ele encarou Hector que estava prostrado no batente da
porta, encarando-o.
– Vamos lá, humano. Responderei a três perguntas.
– Engraçado você me chamar de humano, mas beleza, vamos lá.

166
– Vamos ver o quanto você vai achar engraçado, após saber no
que está se metendo – retrucou o ruivo, sério, enquanto passava por
ele na porta e se sentava no sofá, coberto pela poeira branca do teto
que Barrattiel desabou.
Hector se virou de frente para ele e viu algo à sua direita que o
deixou surpreso. Um copo com tequila estava intacto, intocado. Nem
o abalo da casa o tinha derrubado. Ele encarou Caliel e disse:
– Certo! Pergunta um. – Mostrou o indicador. – Como
exatamente o seu amigo fez isso no teto?
– Pousando! Pergunta dois.
– Como pousando?
– Pergunta... Dois. – disse Caliel seriamente.
– Ok. Ok. Vamos lá. Que merda foi aquela lá embaixo?
– Você viu o que aconteceu. Eu curei Aron!
– Mas como você curou Aron? Como você pode fazer isso?
– São duas perguntas. Qual delas você quer que eu responda?
– Não, não. Nenhuma delas! – O humano pegou o copo com
tequila e virou num gole só. – Deixe-me raciocinar. Ele sabia que
tinha apenas mais uma pergunta, então queria ser certeiro nela. Desde
que viu Caliel e Barrattiel pela primeira vez, achou-os homens
completamente diferentes do que viu em toda a sua vida. Mesmo
depois do apocalipse. O que mais chamava atenção era o brilho sutil
em seus olhos. Depois que viu o terceiro, soube que se tratava de pelo
menos um grupo de pessoas diferentes. Nesse momento ele teve uma
ideia. Nada melhor do que conhecer alguém, conhecendo
primeiramente sua origem. Como a dele, por exemplo, como sempre
se considerou um indiático. – Qual é a raça de vocês?
Nesse momento, Barrattiel chegava pelo corredor. Ele arregalou
os olhos com a pergunta do humano, soltou um sorrisinho e se virou,
voltando para o lugar de onde vinha.
167
Caliel se sentiu encurralado com a pergunta, sem saber o que
responder. Então prolongou a resposta.
– O que você quer dizer com raça?
– Raça. – O humano deu de ombros. – Eu, por exemplo, tenho a
pele escura e antecedentes indianos. Considero-me um Indiático.
O ruivo se pegou pensando que eles eram anjos e que seus
antecedentes eram... Deus. Então eles eram Deusiáticos. Nesse mesmo
momento, sentiu-se envergonhado perante o Pai, mas sabia que ele
não se ofenderia com isso. Então, perdendo totalmente as
expectativas, o anjo revirou os olhos e disse:
– Nós somos anjos do Senhor!
Hector arregalou os olhos e contraiu os lábios. Ficou mudo e
sem respirar por um longo momento. Caliel ficou sem palavras, não
sabia mais o que dizer. Ficou na expectativa do que o humano diria,
esperando a mesma ladainha de sempre. Quando teve que fazer isso
nas poucas vezes que aconteceram em sua vida, todos tinham a mesma
reação. Pelo menos os humanos dos últimos dois séculos.
Normalmente, eles não acreditavam e balançavam a cabeça. Depois
bombardeavam o anjo com perguntas e no final pedindo que ele
mostrasse alguma prova. Logo, Caliel abria as asas e... Tcharam!
Todos caíam para trás, estupefatos. Mas o que veio a seguir,
surpreendeu a Caliel.
Hector soltou todo o ar em seus pulmões em uma gargalhada tão
poderosa quanto à gargalhada mais poderosa e humana que Caliel já
tinha visto. O anjo ficou mudo, petrificado, absolutamente sem reação.
– Cara, sério! Para de palhaçada. – O humano caiu de joelhos no
chão, ofegante, mas não conseguia parar de rir. Ele viu um pacote de
cigarros amassados jogado no chão e pegou um dos sobreviventes.
Tirou a caixa de fósforos que tinha pegado no porão, riscou um dos
palitos e o acendeu, dando uma longa tragada. Levou a mão ao corte
168
cicatrizado, que naquele momento começava a dar pontadas, pelo
excesso de força que fez para rir. Subitamente ele soltou a fumaça,
encarando Caliel nos olhos e indagou: – Você está falando sério? –
Então levou o cigarro novamente à boca.
Da noite escura, vindo do buraco no teto e com sua tradicional
“delicadeza”, Haziel pousou meio a sala com suas asas abertas,
fazendo o chão tremer. Desceu de frente para Caliel, então não teve a
oportunidade de ver Hector atrás dele, com os olhos tão arregalados
quanto os de um lêmure. Seu cigarro estava na boca, queimando, sem
que o humano tocasse nele. Sua reação estava tão engraçada que nem
Caliel conseguiu se conter e foi sua vez de começar a rir. Mas o ruivo
era sutil, soltando apenas algumas risadas, logo levando as costas de
uma das mãos à boca, inibindo a risada. Mas seus olhos deixavam
transparecer sua alegria.

169
CAPÍTULO 26

– Ele passou por aqui. Mas e agora? Não tenho a mínima ideia
por onde começar a procurá-lo – disse Daniel, enquanto fitava a Lua.
– Você não pode utilizar a mesma técnica anterior? – indagou o
duque da Luz, dirigindo-se a Chavakiah.
– Não, no momento não tenho energia o suficiente para interagir
diretamente com a natureza, mas isso não impede de pedirmos sua
ajuda.
– Como?
– Eu não sei ainda, mas creio que posso conversar com a
vegetação.
– Eu sempre tive curiosidade em saber como funciona o diálogo
entre vocês, anjos potência e a natureza? – indagou Daniel, virando-se
para o general.
– Para falar a verdade, creio que funciona exatamente como o
nosso. Podemos entender seu dialeto, fazendo com que passemos a
conversar diretamente com ela.
Olhando à volta, Mazarak disse:
– Acho que só temos um problema. Vocês conseguem ver algo
verde, vivo?
– Saiba que isso não será um problema – disse o general,
confiante. Em seguida, ele se abaixou e tocou uma das folhas verdes
que compunha uma flor com três pétalas, com seus dedos. Ele fechou
os olhos, concentrando-se naquele diálogo e ficou assim por cerca de
vinte segundos. Em seguida, levantou-se e olhou para os irmãos de

170
espírito. – Ela o perdeu quando saía da Costa de Cuba. Se continuasse
na mesma direção, iria para a África.
– Ele pode ter parado na República Dominicana ou em Porto
Rico – disse Daniel.
– Jamaica também fica por aquelas regiões. – O duque da luz
explodiu suas asas que naquele momento se confundiam com a
sombra do lugar.
– Diversas ilhas ocupam aquela região. Teremos que passar por
cada uma delas. – Chavakiah também explodia suas asas, quase
juntamente com Daniel.
Em seguida, os três explodiam o vento com a fúria súbita de um
tornado e sumiram no breu da noite.

***
Enquanto isso, no Sexto Céu, o movimento era grande. Kamael
deixava o grande salão, a fim de entrar em contato com Uriel e lhe
pedir a consagração da espada para todas as potências. Enquanto
passava pela porta dos fundos que não se erguia tão alto, não passando
dos dez metros de altura, foi chamado por uma voz que respeitava
muito. O anjo se aproximou dele, abrindo suas enormes asas com
quase quatro metros cada uma delas.
– Meu rei!
– Vamos juntos. Creio que consigamos isso com mais
facilidade. – Sorridente, Metatron soltou uma piscadela para o
príncipe.
Os dois membros da realeza divina alçaram voo e rapidamente
já sobrevoavam a região onde se encontrava o seixo divino do Sexto
Céu. Avistando a grande rocha cônica de cristal, os dois desceram e

171
pousaram à sua frente, pisoteando a grama branca que crescia em
abundância por aquela região.
O rei meneou a cabeça ao príncipe, dizendo:
– Contate a princesa das dominações!
Kamael se aproximou, tocando uma região lisa da rocha com a
sua palma aberta. O monumento brilhou em uma luz tão forte que por
um momento cegou os dois anjos. Nesse momento, eles deram alguns
passos para trás e na frente da rocha surgiu a figura de um arcanjo. A
alta mulher, que apesar de meio metro mais baixa que Metatron, tinha
cem vezes mais imponência que ele, aproximou-se dos dois anjos com
um largo sorriso.
– Olá, meu caro rei de todas as castas de anjos de todos os céus!
– A mulher arcanjo asiática o encarou nos olhos.
Metatron meneou sua cabeça careca, amassando sua grande
barba contra o peito.
– Olá, arcanjo, princesa das dominações celestes.
Ela se dirigiu a Kamael.
– É um prazer revê-lo novamente e tão rapidamente, meu caro
príncipe das potências celestes. – Parecia encarar os dois ao mesmo
tempo. – A que lhes devo o prazer tão imediato, a fim de que
precisassem contatar-me através do seixo?
– Como a vossa princesa já deve saber, a resposta é positiva! –
O príncipe negro deu um passo à frente e encarou a mulher de ouro
com as suas sobrancelhas baixas. – Tememos que a lenda dos quatro
anjos das trevas seja verdadeira. – Fez uma breve pausa.
– Prossigas, por favor – disse Uriel.
– Obrigado! – Kamael meneou a cabeça. – Pensamos que nesse
caso precisaremos de todas as forças possíveis, para enfrentar o que
quer que eles sejam. Nós, as potências celestes, podemos ser

172
equipados com espadas esculpidas diretamente pelas mãos das
virtudes celestiais.
– Concedido, por minha parte.
O príncipe e o rei dos anjos alargaram seus sorrisos. Uriel
acrescentou:
– Eu me reunirei com os meus cinco irmãos de espírito nos
próximos minutos. Tratarei diretamente com Rafael, que é o príncipe
desta casta. Creio que faremos com que isso aconteça brevemente.
Encontrar-me-ei aqui em exatamente uma estação da estrela branca –
disse Uriel, que nunca chegava a se ausentar por mais de meia-hora.
Apenas quando utilizava mais energia do que o normal, gostava de
repousar por quase uma estação que na terra é chamada de hora, mas
logo voltava à ativa novamente, mostrando seu brilho eterno.
– Estaremos aqui, Arcanjo, princesa das virtudes de todo o
cosmos – disse Kamael.
Uriel meneou a cabeça e desapareceu em um brilho intenso.
– O Senhor sugere algo, meu caro rei de todos os anjos?
– Que aguardemos aqui – disse em tom sério.

***
Na casa de Aron, Hector se encontrava na beira da cama e não
tirava os olhos do novo amigo, desacordado no leito, sem camiseta.
Caliel, de braços cruzados na porta, com suas asas abertas. O
pensamento do anjo estava longe. No mesmo momento que decidiu
que todos teriam que sair dali, escutou Hector dizer:
– Ele está acordando.
Os olhos de Aron abriam devagar e quase que instantaneamente
ele sentiu uma fisgada no abdômen, não forte, mas o suficiente para

173
ele olhar e perceber o grande corte escuro, já cicatrizado, saindo quase
do peito e passando do umbigo. Nesse momento lembrou-se, em
curtos lampejos de lembranças, da dor alucinante que sentira antes de
apagar.
O ruivo se aproximou de Aron com um sorriso largo e se
inclinou sobre seu corpo estendido no colchão.
– Como você se sente?
– Bem! – disse Aron diretamente. – Nesse momento, ele reparou
nas asas abertas de Caliel e depois fitou Hector o encarando. – Vejo
que as coisas já foram esclarecidas.
– Em partes! – retrucou o outro humano, olhando com desdém
para Caliel.
– Você se lembra do que aconteceu, Aron? – Caliel se levantou,
ficando em postura imponente.
– Sim, me lembro! – As sobrancelhas de Aron se abaixaram.
– Ótimo! Temos que sair daqui o quanto antes, pois o outro lado
agora sabe que você está aqui.
Aron meneou a cabeça, encostando os dois cotovelos no
colchão, inclinando alguns centímetros o corpo.
– Que outro lado? – indagou Hector.
– Você explicou ou não para ele? – Aron indagou impaciente a
Caliel.
– Disse apenas o que ele precisava saber.
– Certo, eu lhe explicarei no caminho. – O guardado de Caliel se
dirigiu a Hector enquanto tirava os pés para fora da cama.
– Caminho para onde, exatamente? – Caliel tinha um tom
estranho na voz.
– Para onde você acha, Caliel? – retrucou Aron.
– Ele não poderá ir conosco.
– Como não poderá ir conosco? O que ele fará aqui, sozinho?
174
– O mesmo que fazia antes de nos conhecer.
Aron deu um tapa na cama e se levantou. Hector se afastou um
pouco, apenas observando a discussão.
– Antes ele estava sequestrado. Aloou!
Caliel ficou mudo nesse momento. O tempo foi o suficiente para
que Aron percebesse que ainda não tinha perguntado a Hector como
aquilo tinha acontecido.
– Como isso aconteceu? – ele indagou a Hector com o tom de
voz calmo, concentrado.
Hector ficou com os olhos vidrados em Aron por um momento,
depois encarou Caliel. Em seguida, respirou fundo e andou até a cama,
sentando-se sobre o lençol encardido.
– Tudo começou há cerca de dois meses. Vários eventos
ocorreram para que eu chegasse aqui hoje.
Nesse momento Barrattiel entrou pela porta, percebendo a
atmosfera tensa do quarto. Ninguém parou para prestar atenção nele.
Então ele ficou por ali mesmo, vendo enquanto Hector contava algum
tipo de história.
– Creio que os eventos acontecidos nos últimos meses tenham
tudo a ver com vocês. – Hector viu enquanto Aron e Caliel meneavam
a cabeça juntos. – Assumo que durante alguns dias, eu fiquei um
pouco ausente de mim. Mas quando minha mente clareou, eu pude ver
a pior coisa da minha vida, diante de meus próprios olhos. – Dando de
ombros, ele continuou: – Eu não sei como minha esposa lidou com
esses dias de guerra, mas acho que ela não precisava ter feito o que
fez. Ainda mais sem que eu pudesse acompanhá-la naquela jornada.
Os dois anjos e o outro humano escutavam Hector sem
interrupções. Mas Haziel entrando pela porta como um raio, fez com
que imediatamente ele cortasse a falação. Todos olharam o louro com
os olhos arregalados, deixando-o um tanto inibido. Ele apenas cruzou
175
os braços, recostou-se na parede e abaixou a cabeça, quase que se
ausentando do ambiente. Então Hector continuou:
– A última imagem que tenho dela vai marcar meus
pensamentos pelo resto de minha vida. Nem o nosso casamento, ou
lua de mel, ou qualquer viagem que fizemos e nos divertimos, juntos,
felizes, nem as suas caras ferozes de quando ela brigava infinitamente
comigo vão conseguir anular um dia a imagem que tenho dela naquele
momento. – Hector ficou mudo por longos segundos, enquanto fitava
algum lugar afastado de sua mente. – Seus olhos, com milhares de
micro veias estouradas me encaravam, enquanto sua língua pendia da
boca, roxa. Sua pele alva estava infinitamente mais alva. O corpo
pendia do teto, segurado apenas pelo laço da corda em volta de seu
pescoço.
Caliel observou, enquanto os olhos do humano se inundavam
com lágrimas e decidiu pará-lo, antes que seu coração humano não
aguentasse.
– Temos que ir, garotos. O Sol está para raiar e para que
possamos nos locomover rapidamente, precisamos aproveitar a noite.
– Quando Caliel, por um acaso, fitou Barrattiel, percebeu uma
enxurrada descendo de seus globos oculares.
O grandalhão limpou as lágrimas, virou-se de costas e saiu do
quarto assobiando. Haziel saiu atrás dele, dando-lhe um tapa amigável
nas costas.
– Vamos?
– Vamos para o Sexto Céu? – indagou Aron.
Súbito, todos escutaram um estrondo, seguido de um tremor. A
casa inteira oscilou e mais um estrondo. O que aconteceu a seguir foi
tão claro que todos perceberam rapidamente. A casa inteira começou a
inclinar para um lado, fazendo com que todos tombassem e caíssem
rumo à parede, que naquele momento virava o chão da casa.
176
Haziel estreitou os olhos e explodiu as asas. Em seguida, voou
furioso, explodindo o teto da casa, que naquele momento era a outra
parede. Vigas e concretos foram arremessados e vendo para onde, o
anjo ficou estupefato. Por um breve momento não teve reação, até que
uma força divina o impulsionou e como um raio, a imagem da casa
despencando no vazio, no mais negro absoluto, ficou nítido na sua
frente. Acima de sua cabeça, uma brecha esférica na escuridão se
fechava. Então ele caiu na real do que acontecia e rapidamente entrou
em ação.
Alguma força maior tinha deslocado aquela casa inteira do
mundo carnal, com todos os seres nela e a arremessado em algum tipo
de abismo sem fundo. Se aquela brecha se fechasse e o anjo louro não
conseguisse trazer todos para cima, aquilo poderia ter um fim fatal, ou
pior, um fim infinito.
Pelo furo que tinha aberto na casa com seu corpo, ele conseguia
ver os humanos segurando em Caliel com todas as suas forças. O
ruivo tinha cravado seus dedos no concreto e usava o corpo para
proteger os dois homens.
Barrattiel tinha o rosto enfurecido. Ele explodiu as asas e saiu
pelo furo feito por Haziel, estourando ainda mais concreto que
decolou desintegrado por todos os lados daquele abismo. Ele encarou
Haziel e com uma transmissão de pensamento, fato por passarem
muito tempo juntos, ambos souberam o que fazer e cada um desceu
por um lado da casa, acompanhando sua queda.
Haziel deu um poderoso murro no concreto, abrindo um rombo
que naquele local, foi aberto no exato cômodo onde Caliel tinha seus
dedos cravados na parede. O louro berrou para que eles saíssem da
casa. Rapidamente Caliel entendeu o recado e prendeu os humanos,
um embaixo de cada braço, fixando suas pernas em duas paredes.

177
Hector não entendia por que, mas não estava assustado com
aquilo e sim completamente entusiasmado. Enfim tinha chegado
aonde queria. Agora teria respostas sobre o que levou a sua esposa a
fazer o que fez.
Fora da casa, Haziel berrou para Barrattiel:
– Voe o mais rápido que puder em sentido àquele buraco e tente
fazer algo para que ele pare de se fechar.
Sem hesitar, Barrrattiel meneou a cabeça e disparou em sentido
ao buraco bem acima de suas cabeças. Haziel aumentou o buraco na
parede com seus punhos, enquanto a casa seguia em queda livre. Isso
deixou o acesso livre para Caliel, que saiu batendo suas asas e
segurando um humano em cada braço. Todos viram a casa despencar
no breu. Haziel se aproximou dos outros e pegando o braço de Hector,
colocou-o em suas costas. O humano facilitou, segurando o pescoço
do anjo e todos dispararam rumo à abertura que agora não passava de
um buraco com mais de dois metros de diâmetro. Barrattiel seguia uns
duzentos metros na frente deles, apenas a dois metros do furo. Ele
passou e freou bruscamente. Enquanto a brecha não parava de se
fechar, ele colocou seu corpo entre ela. Segurando com os braços de
um lado e com as pernas do outro, começou a forçar o mais que podia,
mas o buraco não parecia sentir ao menos o mínimo de impacto da
força do celeste, continuando sua trajetória. Em poucos milésimos de
segundos, já estava com um metro de diâmetro. Barrattiel forçava
apenas com seus braços nesse momento. Não a mais de vinte metros
abaixo, ele escutou a voz de Haziel em um grito estridente.
– Suba, Barrattiel, você vai ser cortado ao meio.
– Não! Eu não vou deixá-los.
Mas Barrattiel não teve outra opção, pois Haziel percebeu que
ele preferiria morrer a deixá-los na mão e voou em sentido a ele com
toda a fúria que podia. Barrattiel sentiu apenas uma poderosa
178
impulsão em seus pés, arremessando-o com todas as forças para fora
do buraco que se fechou diante de seus olhos. Forçando-se novamente
para baixo, Barrattiel deslizou pelo ar em direção ao buraco já
fechado. Isso o impulsionou a esmurrar o chão, já sem esperanças de
encontrar os outros que naquele momento jaziam em outra dimensão.
Com sua mente perturbada, sentindo-se sem opção, Barrattiel
apenas se deixou cair ao lado de onde antes tinha um buraco escuro e
ficou ali se remoendo, impotente. O sol já começava a mostrar seus
primeiros raios no horizonte. O grande anjo olhou na sua direção,
vendo a silhueta de algo entre a grande estrela dourada e seu corpo.
Dessa criatura, grandes asas como de morcegos se abriram por mais
de dois metros cada uma delas.

179
CAPÍTULO 27

Barrattiel deu um pulo no chão tal como de um felino e caiu em


prontidão de luta. O terreno, que antes era decorado com a grande casa
do humano, agora tinha no lugar um amplo terreno de terra vermelha.
A criatura estava ao seu fundo, encarando Barrattiel sem mover ao
menos um braço. Subitamente ela começou a mover as pernas, vindo
em sentido ao guerreiro.
O momento de tensão até que a criatura se colocasse a não mais
de cinco metros do anjo, durou uns trinta segundos. Nesse momento
Barrattiel pôde encarar seus olhos, vendo a escuridão através deles. A
pele do demônio era cinza e um tanto envelhecida. Os olhos negros
eram duas bolas brilhantes. A pele de seu corpo nu era lisa como a da
cabeça, sem pelos, escamas, ou qualquer coisa que indicasse algum
tipo de relevo. Seus músculos eram tão robustos quanto os do anjo,
mas sua altura em relação a ele deixava a desejar, não passando de
1,90m.
Barrattiel se sentiu intimidado quando o demônio abriu sua
boca, que no mesmo momento, iluminou o terreno com brasas
brilhantes e quentes que emanavam de seu interior. Seus olhos
arderam em chamas e ele soltou um uivo alto. Sua pele mais fina, tal
como a que ficava na região das costelas, também ardeu em um brilho
fogoso. Em um súbito movimento, ele avançou para cima do anjo,
grudando tão forte em seus braços que Barrattiel achou que eles
seriam esmagados.
Utilizando toda a sua força, Barrattiel puxou seus braços para
trás em um tranco fenomenal, aproveitando para esmurrar o demônio

180
na face, fazendo com que seu corpo decolasse e acertasse o muro ao
final do terreno, explodindo tijolos vermelhos e concreto para todos os
lados.
Barrattiel espalmava as mãos olhando o ponto em que o corpo
do demônio tinha batido, mas como um raio, ele fora surpreendido
pelo infernal que apareceu na sua frente de uma hora para outra,
também lhe acertando um murro poderoso, talvez mais poderoso do
que o dele. Ele voou e se chocou contra a casa que ficava de frente
para a de Aron. Por sorte, ou azar, seus moradores não estavam mais
nela, pois ela veio abaixo, soterrando Barrattiel de baixo de seus
escombros. Mas o anjo não ficou lá por muito tempo, pois furioso,
explodiu sua áurea dourada, fazendo com que os destroços voassem a
mais de duzentos metros de distância.
O demônio fora ágil e em vez de aguardar o ataque do celeste,
atacou-o primeiramente, antes que ele saísse de seu lugar. Barrattiel
começava a se surpreender com o poder daquele monstro, mas ainda
tinha muito caminho pela frente para percorrer, antes de formar uma
opinião. A investida infernal foi poderosa, mas o anjo colocou seu
grande antebraço na frente, recebendo a pancada naquela região. Uma
dor aguda percorreu seu corpo a partir daquele ponto e por pouco seu
osso não despedaçou ali mesmo.
A distração da dor foi o suficiente para que não visse o cotovelo
do demônio descendo contra seu rosto, acertando-o violentamente,
fazendo com que ele caísse no chão, abrindo um rombo no solo. O
monstro, quase com face cavernosa, inclinou-se na direção de
Barrattiel e abriu sua mandíbula novamente, mas dessa vez ela se
alargou mais do que o normal. O anjo pôde ver um poço de brasa
fervendo em seu interior. A temperatura começou a se elevar naquela
região e ainda mais quando chamas começaram a pulsar dos olhos do
monstro.
181
Em um impulso violento nos braços, Barrattiel subiu com suas
duas pernas em direção ao peito do demônio que recebera o golpe
total. Ele foi arremessado a dez metros de altura, mas dando uma
cambalhota no ar, caiu agachado, com uma mão no chão. Ele avançou
como uma pantera contra Barrattiel que lhe acertou um forte murro,
fazendo-o voltar para o lugar de onde vinha. Em seguida, o anjo
correu em direção ao demônio e levou sua mão às costas a fim de
pegar sua grande espada. Mas nesse momento, sentiu-se frustrado ao
se lembrar que a tinha deixado na casa, para que Hector não a visse.
Mas quando tudo foi revelado ao humano, ele não se lembrou de
pegá-la.
A luta foi levada a outro patamar, quando Barrattiel se
aproximou e acertou um soco no infernal que com um movimento
surpreendente, agarrou a mão do anjo, antes de acertá-lo. O anjo
investiu novamente com a outra mão, mas o demônio também a
agarrou. Sem perder tempo, Barrattiel levantou a perna e acertou um
chute direto no abdômen do demônio que sacolejou violentamente,
mas não largou os punhos do celeste. Barrattiel acertou um chute mais
forte, mas os punhos do infernal pareciam esmagar cada vez mais as
suas mãos. Parecia estar colado por alguma força maior, sem
possibilidade de se desprender.
– Me solte, seu chifrudo! – Nesse momento, o anjo percebeu que
o demônio não tinha chifres, mas o apelido funcionava para qualquer
um no mundo sombrio.
Em vez de soltá-lo, o infernal puxou o anjo mais para perto,
colocando muita força em seus bíceps. Quando estavam cara a cara,
ele abriu a boca uns vinte centímetros e soltou um uivo alucinante,
jogando um bafo quente no rosto de Barrattiel. O anjo fez cara de nojo
ao sentir o cheiro horrível que saiu junto e em seguida, bateu o ombro
em seu queixo. Quando a cabeça do demônio voltou ao centro, fora
182
recebida com uma poderosa cabeçada do celeste, fazendo com que um
grande corte fosse aberto na boca do monstro. Desse corte, jorrou um
líquido semelhante à lava derretida, quase respingando no rosto do
anjo. Mas rapidamente, Barrattiel o afastou a tempo de ver o líquido
escaldante passando na frente de seus olhos e despencando em seu
antebraço. Instantaneamente, sua pele derreteu naquela região,
fumegando, fazendo o anjo soltar um grito de dor. Isso apenas o fez
sentir mais raiva e logo o anjo puxou com tanta força os braços de
volta que a pele do infernal e músculos se rasgaram. Os braços
ficaram presos e fechados no braço de Barrattiel como se suas peles
estivessem fundidas.
Olhando à frente, viu que no lugar dos braços do demônio,
tinham sobrado apenas dois tocos caveirosos do punho, que seguiam
para dentro, até entrar por entre os músculos e pele dilacerados. Mas o
monstro não pareceu se intimidar com isso e avançou para cima de
Barrattiel, manejando seus tocos a fim de que eles se transformassem
em poderosos murros.
Foi exatamente isso o que aconteceu, a única diferença é que
agora os socos eram mais doloridos para o celeste os defenderem,
então ele começou a tentar esquivar de cada investida. Os movimentos
eram tão rápidos que apenas vultos do tronco do anjo se movendo para
lá e para cá podiam ser vistos.
Em um movimento espetacular, Barrattiel se esquivou para o
lado e pôde ver quase em câmera lenta, o toco se aproximando e
passando rente ao seu rosto. Ele entortou a face e colocando toda a
força em seu punho, subiu com um soco tão poderoso contra o queixo
do infernal que ao impacto, ele escutou o barulho do osso do pescoço
se partindo. O corpo do monstro foi arremessado a dez metros de
altura, caindo ao fundo do terreno.

183
Satisfeito e crente de que a luta havia acabado, Barrattiel se
virou para o lado da rua e se espantou ao ver dois jovens os encarando
com os olhos esbugalhados. O tempo foi curto, pois os jovens
passaram a encarar as costas do anjo. Foi quando Barrattiel se virou e
viu o demônio se levantando com o pescoço pendendo, mole como
uma borracha velha. Em poucos segundos, o pescoço se encaixou e a
cabeça voltou ao lugar. Puto da vida, Barrattiel pisoteou tão forte o
chão que uma pequenina cratera se abriu abaixo daquele pé. Em
seguida, ele saltou e caiu na frente do monstro que o encarou com os
olhos ardentes. Em um movimento repentino, Barrattiel levou suas
duas mãos ao rosto da besta e grudou em seus olhos, puxando a
cabeça em forças inversas. Uma rachadura começou a se abrir no meio
do crânio do demônio, crescendo e seguindo por seu tronco. Logo o
anjo o rasgava em dois, tendo um pedaço da besta em cada braço.
Ele jogou os pedaços no chão, em seguida puxou os dois braços
infernais ainda colados ao seu, rasgando sua própria pele e jogou junto
ao resto do monstro. Nesse momento, ele se virou e viu que os
humanos ainda estavam ali. Então começou a caminhar em direção a
eles a fim de arranjar alguma desculpa no meio do caminho. Súbito, os
dois jovens soltaram alguns gritos e começaram a correr.
– Ei, esperem! Nós estamos gravando um filme – gritou
Barrattiel, enquanto dava alguns passos mais rápidos. Logo ele parou,
fitou o chão e coçou a cabeça lisa.
Quando o anjo ia alçar voo, um movimento o fez olhar para trás.
Não viu uma, mas duas criaturas acabando de se formar a partir dos
restos da primeira. Ele levou as mãos à cintura e disse encarando os
dois monstros:
– Vocês estão de brincadeira comigo!

184
***
No Sexto Céu acontecia algo que nenhum dos guerreiros,
potências ou guardadores na Terra imaginava.
O brilho do seixo divino se acendeu, fazendo com que Metatron
e Kamael soubessem que alguma entidade do Sétimo Céu se
aproximava muito mais rapidamente do que a velocidade da luz, do
Sexto Céu. Em vez de apenas uma figura surgir, três surgiram. Duas
delas eram normais para o rei e o príncipe, pois se tratava de dois
arcanjos. Mas uma delas, ambos tinham visto pouquíssimas vezes em
todos os seus bilhões de anos de vida. O príncipe teve apenas uma
curta oportunidade de vislumbrá-la, mas já fazia muitos milhões de
anos. Contudo, naquele caso, teve a oportunidade de estar presente no
mesmo recinto que todas as únicas quatro existentes delas.
Uriel e Jeremiel caminhavam em direção aos dois membros da
realeza divina. Atrás deles, uma figura imperial os seguia, dando um
passo de cada vez. Um dos quatro querubins, guardadores do trono,
com seus três metros de altura, intimidava, com sua postura majestosa.
O cabelo de fogo que escorria até a altura de seus joelhos explodia
centelhas aqui e ali. A pele era clara como gelo e os músculos
aparentes eram adornados com tatuagens escuras. Algo similar à
cultura dos maoris. Os olhos amarelos da criatura eram estreitos e
delineados. O nariz era fino como os lábios. Suas longas pernas
também estavam à mostra, mostrando os desenhos dos fortes
músculos a cada passo da criatura. O lugar marcado da pélvis era liso
como o dos arcanjos e tradicionalmente, como qualquer celeste, não
tinha umbigo.
As três majestades se aproximaram do rei e do príncipe das
potências celestiais, com Uriel dizendo:

185
– Meus caros, o pedido foi concedido e poderemos prosseguir
com o armamento das potências celestiais.
O querubim deu um passo à frente, tirando da bainha sua espada
flamejante.
– Vamos! – disse ele, com uma voz tão poderosa que soou como
um forte trovão. – Não temos muito tempo. Até que todos estejam
manuseando suas armas com a destreza divina, não poderemos
prosseguir.
– Creio que entendi o que pretende, princesa das dominações
celestiais. – Metatron deu um passo à frente, reverenciando também a
Jeremiel. – Mas teremos sucesso em unir a energia dos minerais com a
energia de guerra?
– Por isso trouxemos a fonte diretamente conosco. – A mulher
arcanjo apontou o querubim ao seu lado, fazendo com que todos no
ambiente sorrissem com satisfação.

186
CAPÍTULO 28

Mazarak, o guerreiro e o general das potências, escolheram, para


começar a investigação, a Jamaica. O país era muito rico em
vegetação, com diversos pequenos pontos povoados, distribuindo-se
pela região. Eles pousaram em uma pequena aldeia titulada de Frome.
Uma região mais rica em humanos, talvez por abrigar uma grande
usina de açúcar, tendo suas centenas de trabalhadores árduos. Se o
demônio tivesse que parar em algum lugar, quando entrasse naquela
ilha, seria naquela região.
Imediatamente guardaram suas asas e começaram a pisotear o
solo de terra seca, fazendo a poeira se levantar. Todos andavam em
passos rápidos, mas sorrateiros, para não chamar atenção. O lugar, que
antes já não era tão populoso, agora parecia uma cidade fantasma, com
casas inteiras levantadas, mas abandonadas. O vento começou a soprar
frio e úmido, condensando a poeira que se levantava da terra, fazendo
com que ela se mantivesse presa no solo. Mas uma névoa clara e
sombria substituiu a densa poeira da terra, anulando o que os anjos
podiam ver abaixo de seus joelhos.
Imediatamente, o general, que era o mais velho e que também
tinha o maior conhecimento sobrenatural do cosmos dentre eles,
parou, abrindo os braços na frente dos dois. Todos frearam
subitamente.
– Ele não passou por aqui – disse Chavakiah.
– Ele não passou por essa região? – indagou o duque da luz.
– Não, ele não passou por essa ilha.

187
– Certo. Então próxima parada, República Dominicana –
retrucou Daniel, sem perder tempo.
Em menos de dois segundos, o trio alçava voo em direção ao
próximo país.

***
– No que eu fui me meter?
– Não diga que eu não te avisei! – disse Caliel.
– Porra! Mas eu nunca imaginava que a merda era tão grande
assim. – O tom de voz de Hector era alto. – Há apenas alguns minutos,
estávamos no quarto. Agora estamos nessa porcaria de breu. – De
repente o homem soltou uma risada. – Agora só falta eu estar no meio
de um transe muito louco, em que vejo anjos.
– Acredite em mim. Você não está sonhando! – disse Haziel,
enquanto fitava o horizonte escuro à frente. O louro segurava Hector,
tal como Caliel segurava Aron.
A única luminescência no lugar provinha das áureas dos anjos
que brilhavam uma em dourado, a outra em vermelho. Nenhum dos
dois celestes tinha ideia de como agir, pois estavam em um universo
completamente escuro, onde por todos os lados a única coisa que se
podia ver era o puro negro absoluto.
– Alguma ideia, Haziel? – indagou o ruivo.
– Ainda não. – O louro estava concentrado, sem desprender sua
atenção do horizonte escuro.
– Como você veio parar ao lado de seres celestiais? – Hector
coçou a cabeça enquanto perguntava a Aron.
– Cara! Para te falar a verdade, quando eu vi, já estava no meio
deles.

188
Hector desviou seu olhar de Aron e emitiu um curto som de
resmungo, antes de responder:
– Foi parecido comigo então!
– É, vamos dizer que sim – retrucou Aron, revirando os olhos.
– Eu nunca imaginei que um dia eu pudesse vir a encontrar algo
que fosse parecido com essas coisas. Ups... Desculpe! Com esses
anjos.
Nesse momento, a atenção de Haziel se desviou para o humano
com um olhar fulminante. Por um momento, Hector achou que Haziel
fosse largá-lo.
– É brincadeira, parceiro. Apenas para descontrair.
– Você terá bastante descontração se eu te soltar e você cair para
sempre.
– Pera lá! Pera lá!
– Pare com isso, Haziel. Deixe o humano. Ele não sabe o que
diz – disse o ruivo com desdém.
O louro apenas balançou a cabeça em negativas e voltou a
concentrar-se. Aron soltou curtas gargalhadas e por um momento
houve silêncio. Nesse momento, até o ruivo se concentrou ao escutar
um tipo de assobio. Era tão agudo que os próprios anjos, com suas
audições aguçadas, quase não podiam ouvir.
Haziel precisou apenas de dois segundos para identificar de
onde vinha o som. Então olhou para Caliel e apontou com o queixo,
mergulhando no breu. O ruivo seguiu atrás dele, na mesma
velocidade.
Voavam em velocidade cautelosa para os níveis angelicais e
quanto mais se aproximavam, mais alto ficava o assovio. Em
determinado ponto, sentiram um mínimo impacto que só os celestes
puderam sentir, pois se tratava de ondas de som tão graves que os
humanos não podiam escutar, ou sentir. Mas nesse momento, já
189
podiam escutar o som agudo que para os ouvidos humanos se traduzia
semelhante a um apito canino.
– Que som é esse? – indagou Hector.
– É isso o que vamos descobrir em pouco temp...
Súbito, uma luz rubra que começou a queimar tão furiosa quanto
uma tocha a cem mil graus, acendeu-se a dezenas de quilômetros do
ponto em que estavam. Pelo menos era essa impressão que dava, mas
o elemento podia estar muito mais longe, tanto quanto uma estrela, ou
muito mais perto. Não tinham nada para se parametrizarem no meio
do caminho para fazer a comparação. O ponto de visão da trupe, de
repente, voltou-se para onde consideraram ser a parte de cima do breu.
Uma rachadura se abria, irradiando uma luz branca, poderosa. Nesse
momento, todos pensaram em uma coisa, inclusive os humanos. Siga
para a luz. Então os anjos explodiram o vento com tanta voracidade
que o som de suas asas batendo, destacou-se.
Haziel e Caliel voavam rumo àquele ponto de luz disforme que
oscilava em tamanho. Nesse momento, os dois se lembraram da
escapada, onde Haziel derrotou Pruflas, um dos duques do inferno. As
lembranças para o ruivo foram mais dolorosas, pois de repente reviveu
o momento do impacto violento que sofreu, antes de apagar meio aos
escombros rochosos. Lembrando-se disso, ficou ainda mais em alerta
naquele lugar escuro.
Continuaram avançando, mas o buraco parecia não chegar
nunca. Em determinado ponto, ele começou a diminuir de tamanho.
Nesse momento, os dois celestes se sentiram impotentes, pois voavam
a toda velocidade, sem poder atingir seu objetivo que diante de seus
olhos começava a se fechar.
Mas o que parecia ser ruim, repentinamente se tornou melhor,
porque o furo radiante começou a se abrir novamente, só que com

190
mais vontade. Parecia estar ali por eles, lutando para que se
mantivesse aberto pelo tempo necessário para que eles o passassem.
A luz rubra, ao longe, cintilava pulsante e dançava como uma
chama ao soprar de um vento. Por um breve momento, ela se apagou e
acendeu ainda mais fortemente. Por coincidência, ou não, o buraco
radiante abriu ainda mais e com mais vontade. Nesse momento os
anjos sabiam que era naquele momento, ou nunca.
Suas asas rajavam com toda a força divina concedida a eles, sem
parar nem que fosse por um breve momento. Os dois já começavam a
sentir leves fisgadas, pois o excesso de força que faziam, para que se
mantivessem naquela altíssima velocidade, era enorme. O ruivo sentia
mais do que o louro, pois não estava acostumado e nunca obtivera
treinos para passar por momentos que vinha passando nos últimos
meses.
Quanto mais próximos chegavam de seu objetivo, mais alto
ficava o som. Nesse momento, os dois humanos já tinham seus dedos
nos ouvidos, sem ao menos se importarem com a estupenda
velocidade que estavam. Seus olhos estavam cerrados, pois o barulho
chegava a ser tão ensurdecedor que pontadas começaram a irradiar por
suas cabeças. Os anjos não sentiam esses efeitos.
Por sorte e pela excelência na velocidade dos celestes, todos
chegaram à rachadura que parecia ser controlada pelo brilho vermelho
e que também parecia controlar o som. Antes de transpassar para o
outro lado, Haziel observou bem o ponto de luz que parecia brilhar
como um cosmo angelical na sua mais alta voracidade e depois passou
para o outro lado, surpreendendo-se aonde foram parar.
Água para todos os lados. Era quase impossível saber se o
oxigênio ficava para cima, para baixo, para a esquerda, ou para a
direita. De um momento a outro, todos se viram cobertos por

191
toneladas de águas. As asas dos anjos agora os atrapalhariam em
futuras manobras, então eles as guardaram muito rapidamente.
Aron encarava Caliel com os olhos esbugalhados e bochechas
infladas. Hector não tinha as suas infladas e naquele momento parecia
perder a consciência. Era fato que a perdia tão rapidamente, porque
provavelmente sua última respirada foi muito antes da de que Aron
tinha dado. Apenas sorte de Aron e azar de Hector.
A mente de Hector começava a entrar em devaneios. O primeiro
pensamento foi de Maia pendurada pela corda. Depois viu um
grotesco rosto de humano possuído com seus olhos negros, encarando-
o como um leão à espreita de sua presa. A próxima imagem foi um
tanto mais confusa. Pois viu apenas um vulto embaçado de um homem
com asas brancas, ou seja, de um anjo. Ele o encarava, enquanto
chegava perto dele, com seus braços abertos. O fundo da imagem era
alvo como o fundo de um copo com leite.
Subitamente, Hector acordou cuspindo água na beira de um
grande rio. Aron estava em cima dele e se jogou sobre seu corpo,
abraçando-o, quando percebeu que ele tinha voltado. Quase Hector se
afogou novamente. A figura de Caliel estava de pé, atrás de Aron,
com os olhos lampejantes. Haziel estava dentro do rio, com a água
batendo nos tornozelos, concentrado em algum pensamento.
– Que porra foi essa? – Hector tinha os olhos assustados.
– Uma passagem – disse Caliel, com as mãos na cintura.
– Uma passagem pra onde?
– Você vai entender mais tarde – retrucou o ruivo, enquanto se
virava e deslizava até Haziel. Seus pés também encontraram a água
fria, quando se posicionou ao lado do puro guerreiro. – O que você
acha que foi isso?

192
– Eu não sei! – O anjo fez uma pausa para respirar forte. – Mas
nunca me deparei com alguma dimensão que tivesse as trevas em tão
absoluto. Mas não foi isso que me surpreendeu.
– Eu sei o que você diz. Da energia familiar lá embaixo?
– Exato!
– A mim também!

193
CAPÍTULO 29

Astaroth sobrevoava uma região populosa em vegetação.


Algumas casas, com telhados escuros, distribuíam-se entre árvores e
grandes terrenos com jardins verdejantes. Ruas de terra seca cortavam
a grande vila na vertical e na horizontal. Uma das casas se
diferenciava por ter seu telhado vermelho vivo. Isso chamou a atenção
do duque, por nenhum motivo específico e ele resolveu pousar
naquela região.
Ao pousar, o duque do inferno fora surpreendido por latidos
caninos. Ele encarou o cachorro com seus olhos rubros, fazendo o
animal se encolher inteiro, para depois correr choramingando.
Montes de lixos amontoados se erguiam em cada esquina da
região. A vila estava praticamente desértica, se não fosse por corpos
humanos jogados como trapos em terrenos com a vegetação mais
espessa. Astaroth não soube por que, mas sentiu repugnância ao ver
um dos corpos. Era um jovem com não mais de dezoito anos. Estava
sem os olhos. No lugar, um aglomerado de larvas se satisfazia com a
carne podre, comendo o jovem de dentro para fora.
O duque continuou caminhando por uns cinco minutos, quando
um vulto passou na sua frente, a uns dez metros de distância, fazendo-
o parar repentinamente. Tentou escutar algum barulho, mas só pôde
ouvir o uivo do vento que soprava sombrio. Deu um passo, depois
mais outro e parou quando escutou a vegetação que contornava a rua
mover-se. Astaroth preferiu continuar caminhando, preparando um
avanço inimaginável para o que o esperava do outro lado da mata.

194
Quando o duque louro escutou o barulho novamente, dessa vez atento,
avançou como um tigre na direção do mato. Subitamente escutou um
berro agudo e quando olhou para baixo, com seus olhos rubros, viu
um garotinho, com cerca de seis anos de idade, encolhido entre as
compridas folhas verdes. O menino o olhava com seus olhos
amendoados, muito abertos. Astaroth o encarou por alguns segundos,
sem saber o que fazer.
– O que faz aqui, garoto? – Astaroth perguntou no dialeto da
região.
– Estou atrás de você, senhor! Te vi pousando. O senhor é um
anjo?
O duque e atual rei do inferno abriu um sorriso frio, maligno,
mas a inocente criança não percebeu isso.
– Sou! Sou sim um anjo do Senhor e hoje vim em uma missão
muito especial. Uma das pessoas que você conhece dessa vila será
levada por mim e será transformada em um lindo anjo. – O duque
tocou com o indicador o nariz do menino negro que puxou a cabeça
para trás, abrindo um sorriso com a boca aberta. – Mas para isso eu
vou precisar da sua ajuda.
O menino balançou a cabeça para cima e para baixo, muito feliz
de poder ajudar aquele homem.
– Eu preciso que você me ajude a encontrá-lo – disse o demônio
sorridente, em seguida estreitando os olhos.

***
No Sexto Céu, Hariel acabara de chegar ao salão aberto que
abrigava uma das sete fontes divinas. Logo vislumbrou quem
procurava.

195
– Creio que tenha chegado a hora, irmão. – Hariel andou em
torno da fonte da luz, tocando a água com seus suaves dedos. Suas
asas brancas balançavam a cada passo.
Nesse momento, Hekamiah tirou suas espadas, cruzando-as na
frente do corpo e as olhou minuciosamente.
– Como te disse, eu sempre estou pronto! – O anjo colocou as
armas novamente nas costas e explodiu as asas.
– Você soube que um querubim veio do Sétimo Céu?
– Não pude identificar sua natureza, mas senti sua enorme
energia – Hekamiah falou com o olhar sério.
– Um dos quatro está aqui. Ele veio para condecorar com o
elemento de guerra o espírito das espadas que serão concedidas às
potências.
– No final das contas o pedido foi aceito, então?!
– Sim! Creio que teremos uma ajuda inimaginável.
– O que faremos agora? – indagou o anjo guerreiro.
A loura piscou os olhos e deixou que sua íris brilhasse.
– De acordo com Jeremiel, um de nossos irmãos está precisando da
nossa ajuda.

***
Barrattiel tinha enfrentado um daqueles demônios e vencido,
mas com dificuldade. Mesmo ele, orgulhoso, sabia que não teria
chance contra dois daquele tipo, juntos. Então alçou voo a toda
velocidade. Os demônios tiveram ótimos reflexos e juntos, deram um
salto que alcançou vinte metros de altura. Durante a trajetória, abriram
suas asas e dispararam, seguindo o anjo.

196
Olhando para trás, o guerreiro viu que os infernais o seguiam
com a mesma desenvoltura. O anjo começou a subir cada vez mais
alto, a fim de atingir uma baixa temperatura, para assim congelar e
derrubar os demônios que diferentemente dele, tinham sangue frio. Na
pele, Barrattiel começava a sentir o vento cortante, mas que para ele
não fazia efeito nenhum. Pelo visto, nem para os demônios que o
continuavam seguindo a toda velocidade.
A estratégia falhou e se Barrattiel continuasse subindo, uma
hora estouraria a última barreira da atmosfera terrestre e se colocaria
no espaço sideral. Um local tão amplo que para aqueles infernais seria
uma tarefa fácil seguir o anjo, até de alguma maneira alcançá-lo e
vencê-lo.
Em um movimento súbito, Barrattiel deu uma cambalhota no ar
e mudou de direção, seguindo de encontro aos demônios que quase
não tiveram tempo de se esquivar. Quase foram acertados
violentamente pelo corpo do anjo, que naquele caso, tê-los-ia
desintegrado. Pena para Barrattiel, que passou como um míssil por
eles e desceu novamente de encontro ao planeta Terra. Os dois
monstros se encararam um tanto confusos e dispararam na direção do
anjo.
Barrattiel toda hora olhava para trás, percebendo que os
demônios mantinham sua distância, nem se aproximando, nem se
afastando dele. O anjo voltou para o mesmo lugar onde tinha perdido
seus amigos, o Brasil. Mais precisamente, foi para São Paulo, no
Centro. Uma região tão rica em construções verticais que em muitos
casos fora apelidada de selva de pedras. Ali Barrattiel sentiu que tinha
chance de despistar as bestas aladas.
Logo o anjo e os demônios já serpenteavam os prédios mais
altos da cidade. Barrattiel não estava preocupado com os humanos,
pois em uma região com mais de vinte mil metros quadrados, era
197
possível avistar, apenas um ou dois grupos perambulando. Quando
percebeu, Barrattiel sobrevoava a Av. Paulista. Uma avenida não tão
comprida, com apenas dois quilômetros de extensão. Mas era bela, tão
bela quanto as mais movimentadas avenidas do planeta.
Em um exato ponto, o anjo voava, indo em sentido a uma
grande placa onde estava escrito ITAÚ, que encimava a torre do
Conjunto Nacional. Ele diminuiu sua velocidade e deixou que os
demônios se aproximassem. Na hora certa, ele desviou da placa e os
demônios se chocaram com ela. Um fenômeno aconteceu e a lâmina
do aço estrutural da placa, que não era para surtir nenhum efeito
contra seres daquela magnitude, cortou um deles ao choque de seus
corpos. Os pedaços foram arremessados em plena queda, deixando no
lugar três daquelas criaturas, que se juntaram com a quarta. Nesse
momento, o anjo percebeu que se fosse pego, seria seu fim. Mas a
única coisa que podia fazer naquele momento era fugir.
Os monstros não pareciam se cansar. Nem o anjo, pois já
participou sem parar de longas batalhas duradouras que percorreram
um, dois, cinco meses. Naqueles casos, os celestiais lutavam sem
parar contra impulsivos avanços infernais. Demônios, que não eram
celestiais que sofreram mutação pelo tempo na escuridão. Eles podiam
ser fabricados – criados –, e apesar de mais fracos, ainda podiam ser
problema. Sendo criados a todo o tempo, geravam o motivo das
batalhas tão longas. Sendo assim, Barrattiel estava bem acostumado a
ter fôlego e os demônios teriam que ter muito para cansá-lo.
Olhando mais uma vez para trás, Barrattiel percebeu que um
deles era mais rápido do que os outros. Inclusive até mais rápido do
que ele, pois a besta ganhava terreno a cada segundo, aproximando-se
do celeste. Mas com um ele podia, pensou Barrattiel.
O anjo mantinha sua velocidade, deixando que o demônio se
aproximasse cada vez mais. Logo ele já estava a trinta, vinte, dez
198
metros de distância do anjo. Enquanto isso, os outros três se
mantinham a duzentos metros atrás. Subitamente, o infernal se nivelou
com o celeste e investiu um primeiro soco que Barrattiel tirou com seu
antebraço. O próximo ataque foi previsível para o guerreiro divino que
antecedeu o seu, surpreendendo o monstro com seu poderoso
cotovelo, abrindo um rombo enorme em sua cabeça. Isso o fez
despencar como um pássaro que acabara de levar um tiro de um
caçador. Ótimo, agora eram três. Caso eles não se multiplicassem
novamente – pensou o anjo.

A essa altura, Barrattiel já começava a entrar na zona oeste da


cidade e não imaginava quando aquilo teria um fim. Não conseguia
pensar em uma maneira de despistar aqueles dois monstros. Pensou
que os prédios o fossem ajudar, mas infelizmente para ele, não
passaram apenas de obstáculos para ele próprio e para os demônios.
O anjo era orgulhoso e já começava a ficar de saco cheio
daquilo. Fugir era algo que não combinava com ele. O que combinava
com ele era afundar a cara daqueles chifrudos na porrada. Então foi
exatamente o que ele fez. Em um movimento súbito, ele parou
bruscamente de costas para os infernais, que o vendo fazer isso,
também o fizeram. Com calma, Barrattiel se virou e encarou os três.
– Cansei disso!
Os três abriram sorrisos de deboche idênticos. Mas não disseram
uma só palavra. Barrattiel já desconfiava que nem que eles quisessem,
poderiam falar. Pareciam meros animais humanoides, com um poder
surpreendente. Barrattiel fez negativas com a cabeça e acrescentou:
– Agora vocês conhecerão o poder que me foi concedido. – O
anjo explodiu sua áurea dourada e fechou os punhos tão fortemente
que seus nós dos dedos se esbranquiçaram.

199
Quando ia avançar para cima dos três, que já o aguardavam
ansiosos, como dois trovões, duas figuras apareceram, uma de cada
lado seu, já preparadas para o ataque.
– Precisando de ajuda, irmão? – indagou Hariel, enquanto o
encarava com seus olhos azuis resplandecentes.
Do outro lado, o outro anjo disse:
– Acho que chegamos na hora certa. – Hekamiah tinha um
sorriso ansioso no rosto. Não via a hora de enfrentar aquelas criaturas
horrendas.
– Vocês não fazem ideia! – Barrattiel não se lembrou de ter se
sentido tão satisfeito com algo em toda a sua vida.
Em seguida, Hekamiah pegou suas duas espadas dentadas das
costas e as cruzou na frente do corpo. Barrattiel achou a pose do anjo
fantástica, mas se frustrou novamente ao se lembrar que estava sem a
sua. Olhando as bestas, a quase cem metros deles, o anjo reparou em
seus sorrisos de deboche. Uma coisa ele tinha que assumir: aqueles
não eram simples diabretes, pois não eram covardes. Estavam diante
de três dos celestes mais poderosos e mesmo assim não se
intimidavam e desapareciam dali, como todos os outros faziam. Pelo
contrário, tinham sede de luta como os duques do inferno. Os seres
mais poderosos do mundo das trevas.
– Vamos botar pra quebrar. – O anjo grandalhão socou a própria
mão.

***
Os dois humanos estavam na areia seca que contornava o rio.
Vislumbravam os dois anjos na beira da água em um diálogo que
parecia importante. Aron estava só de cueca e Hector acabava de tirar

200
sua calça. Eles as torciam e penduravam em um galho de uma árvore
com os galhos robustos.
– Do que você acha que eles estão falando?
– Não tenho a mínima ideia – respondeu Aron, enquanto
enxugava a última gota de sua camiseta que ainda não tinha
pendurado.
– Cara! Você tem certeza de que isso aqui não é um sonho muito
louco?
– Mais do que você imagina. – Aron pendurou sua camiseta
branca, que naquele momento já não estava muito branca e se
posicionou ao lado de Hector, com seus braços cruzados.
Os dois humanos fitavam o horizonte à frente e no meio do
caminho viam a imagem dos dois anjos conversando. De repente,
Hector quebrou o silêncio.
– Qual foi a sua história?
Aron soltou uma risada e respondeu:
– Ainda estou no meio dela. Meu livro ainda tem chão para
terminar sua história.
– Livro?
– Deixa para lá. – Nesse momento Aron estreitou os olhos. –
Você está vendo aquilo?
– Estou, estou sim! Isso é mais um caralho que teremos que
resolver?
– Nunca dá pra saber. – Vendo a cara dos anjos correndo de
encontro a eles, Aron respondeu: – É, com certeza é um caralho para
se resolver.
– Rápido! Vistam-se! – disse Haziel em tom alto.
– O que é isso? – indagou Aron, enquanto pegava a camiseta da
árvore.

201
– Nós não estamos na Terra! – respondeu o ruivo com seus
olhos preocupados.
– Que porra está acontecendo dessa vez? – Hector abotoava sua
calça.
– É melhor você lavar essa boca, ou eu lavo para você! – disse
Haziel se dirigindo a ele, já sem paciência, com tantas palavras
ofensivas.
Hector arregalou os olhos, ficou mudo por um tempo e
respondeu:
– Tá bom, tá bom! Não está mais aqui quem falou. – Ele puxou
a camiseta gotejante do tronco e a vestiu, puxando o tecido que ficou
colado em seu corpo.
Preocupado, Caliel fitava o horizonte que subitamente mudava
sua cor do azul claro, para o vermelho sangue.
– Temos que sair daqui muito rápido! – disse o ruivo.
– O que está acontecendo? – indagou Aron, pronto para partida.
– Isso é uma tempestade de sangue. Você sabe o que isso
significa, certo?
Aron olhou para qualquer lugar com os olhos arregalados.
Apontando o dedo para baixo, disse quase em um sussurro.
– Nós estamos no...
– Exatamente e essa não é uma chuva comum!
Hector tinha suas sobrancelhas baixas e seu olhar era de pura
desconfiança, enquanto ele ouvia a conversa do ruivo com Aron.
– Do que vocês estão falando? Onde nós estamos? – Logo se
aproximou da dupla.
Os dois se entreolharam e Aron respondeu curto e grosso,
enquanto Caliel abaixava a cabeça, colocava a mão na cintura e se
virava para o outro lado:
– Nós estamos no inferno.
202
O queixo de Hector quase caiu e por um momento ele se
esqueceu de respirar. Após alguns segundos, puxou o ar com força,
com as mãos nos joelhos. Levantando a cabeça e encarando Aron com
um olhar maluco, disse:
– É! Fazer o quê? – Ele inclinou o corpo e deu de ombros.
Aron balançava a cabeça de um lado para o outro com um
sorriso no rosto, pois aquele indiano o surpreendia a cada momento.
Subitamente fora puxado por Caliel tão forte que perdeu o equilíbrio.
Mas logo se viu em seus braços, enquanto ele explodia as asas.
– E você, vem ou não? – Haziel estava parado com um braço na
cintura, encarando Hector.
O indiano arregalou os olhos e correu até ele, quase na beira do
rio, que ao longe já começava a se tingir de vermelho.
– Lógico. Lógico. Ninguém parte sem mim.

203
CAPÍTULO 30

Nem se aquela chuva multiplicasse sua velocidade por dez,


alcançaria os celestes, que cortavam o ar denso do inferno com a
velocidade de mísseis.
Hector estava completamente passado com a imagem que
começava a vislumbrar na sua frente. Um novo rio começava a se
formar e eles ingressaram adentro. Sua água era negra como petróleo.
Até brilhava e parecia um tanto pegajosa. O céu era cinza, porém
claro. Então mesmo da altura que o humano estava, podia reparar
muito bem naquela imensidão de gosma escura. O que começou a
surgir muito à frente o impressionou ainda mais. Não achou possível
um veleiro navegar por aquelas águas. Ainda mais uma centena deles,
quase colados um no outro. Nesse momento, começou a considerar
aquele rio um mar.
– Como isso pode ser possível?
Haziel, que na mesma hora olhou para onde Hector olhava, ao
ver o que viu, considerou-se desatento, pois não tinha reparado na
grande massa infernal que se aproximava. Caso eles chegassem mais
perto, mesmo sobrevoando tão alto, poderiam ser vistos e aí sim
começariam os grandes problemas.
Caliel ainda não tinha reparado na massa, mas nesse momento,
por coincidência, pensava que se eles mantivessem aquela altura,
poderiam passar por aquelas regiões tranquilamente, pois eram poucos
os demônios que eram dotados de asas. A não ser pela grande parte
dos duques, apenas alguns anjos na queda conseguiram se manter

204
alados. Súbito, viu Haziel frear radicalmente. Ele fez o mesmo. A
força G nesse momento foi grande para os humanos e os dois viram
estrelas quando seus pescoços foram arremessados para a frente.
– Ô, mais cuidado ae! – gritou Hector.
Dessa vez Haziel não lhe deu atenção e se dirigiu a Caliel:
– Tem algo grande acontecendo!
O ruivo olhou para a região que o louro olhava e viu os
inúmeros veleiros se aproximando. Haziel acrescentou:
– Nas poucas vezes que estive nesse lugar, nunca vi um
movimento tão grande.
– O que vamos fazer? – indagou o ruivo. Nesse momento ele
reparou em algo que ainda não tinha visto. Não soube se realmente
não tinha visto ou aquilo nunca tinha acontecido. A pedra rubra de sua
lira, que estava presa à cintura, estava pulsando bem vagamente.
Quase não era perceptível, mas uma leve oscilação em seu tom
deixava isso claro. Ele levantou a cabeça e viu Haziel encarando a
pedra com os olhos estreitos.
O louro o encarou e disse com ar desconfiado:
– Estranho!

***
Astaroth caminhava atrás do garotinho negro que andava
saltitando e mexia quase em tudo que achava pelo caminho. Ele
conseguiu enxergar a inocência naquele menino, em como ele
brincava, cantarolava e se impressionava com pequenas coisas, como
uma borboleta batendo as asas. Uma pedra mais brilhante. Quando
percebeu sua linha de pensamento, balançou a cabeça em negativas e

205
voltou a enxergar aquela miniatura de humano como um simples
verme.
– Onde você está me levando, garoto?
O menino parou e o encarou com seus olhos inocentes.
– Você não quer ajuda para achar uma pessoa? Então! Eu vou te
levar para o meu vô.
Astaroth estreitou os olhos, desconfiado e indagou:
– E seu avô pode me ajudar a achar essa pessoa?
– Meu vô pode ajudar qualquer um a fazer qualquer coisa. Por
que você acha que não tem ninguém mais aqui? – O menino se virou e
voltou a saltitar, seguindo em frente.
Astaroth prosseguiu seguindo o menino, mas agora estava mais
atento, pois sentia que algo errado tinha naquela situação. Após cinco
minutos, ele avistou uma cabana com tamanho razoável. Tinha as
paredes brancas e os tetos escuros, mais próximos do marrom. Uma
porta construída a partir de algum vegetal seco ficava no meio da
construção.
– Vovô? – chamou o menino, colocando as mãos em volta da
boca. Impaciente, o chamou novamente: – Vovô?
Astaroth escutou um baque surdo dentro da cabana e depois um
arrastar de algo. Os passos eram tão leves que um mero humano não
poderia ouvi-los. Em seguida, a porta se abriu calmamente e uma
bengala foi a primeira coisa que viu. Atrás dela, saiu um homem
negro, corcunda. Estava despido de vestes superiores e na parte de
baixo usava uma bermuda e sandálias. O que viu a seguir o agoniou
um pouco, mas ele não demonstrou. O homem encarou a parte externa
da cabana com olhos quase brancos. Nitidamente era 100% cego dos
dois olhos. Sua cabeça era lisa e brilhante. Nenhum fio de cabelo
parecia crescer ali fazia muito tempo. Seu cavanhaque longo era tão
branco quanto algodão.
206
– Estava preocupado com você, Addae – disse o idoso ao neto,
com um sorriso nos lábios. Amistosamente, disse sem mesmo poder
ver Astaroth. – Vejo que nos trouxe uma visita.
– Sim, vovô. Ele é...
– Sem mais explicações, meu neto. Agora entre, que sua irmã
está esperando para lhe dar banho.
– O que te traz a essas regiões? – indagou o senhor com um
sorriso cativante nos lábios.
– Estou à procura de uma pessoa.
– Hum! – O homem afagou a barba com a mão livre. – Vamos
ver se eu posso te ajudar. Creio que você possa ter algo com você que
seja do meu interesse.
Astaroth levou aquilo como um pedido de pagamento. Sem
hesitar, levou as mãos à orelha esquerda e tirando o cabelo louro de
cima dela, pegou uma peça semelhante a um brinco que ficava presa a
cartilagem. Ele a colocou na mão do homem, que já tinha sua palma
estendida. O idoso analisou a peça com os dedos e a guardou no bolso
da bermuda. Em seguida, puxou a porta da cabana e pediu para que
Astaroth entrasse. O duque se abaixou para entrar e se locomoveu para
dentro da moradia.
A cabana era simples. O chão ficava alguns centímetros acima
da altura da terra, pois era feito com galhos secos trançados. A cada
passo de Astaroth, ele podia sentir o chão trepidar. Uma pequena
banheira, onde o menino era banhado por uma moça negra, que
naquele momento estava de costas, estava no canto da cabana. Não
tinha luz elétrica e nem velas. As tochas fizeram o duque ser levado a
um momento de nostalgia.
– Gordura animal. É o que utilizamos para mantê-las acesas –
disse o idoso. – Mas como você pode ver, agora somos apenas eu,

207
meu neto e minha neta. Está ficando um pouco difícil de caçar e a
gordura está acabando.
A cabana parecia ter apenas uma divisão de cômodos, sendo que
o outro parecia muito menor do que o que eles estavam. O velho ia
entrando pela porta e chamou Astaroth para segui-lo. Do outro lado, o
duque podia ver apenas uma luz vermelha entrecortada. Quando ele
atravessou, o que viu arrepiou até os pelos de seus braços. Aos poucos
foi percebendo os detalhes daquela coisa. No centro, era evidente que
era um crânio humano amarelado. De suas órbitas, dois olhos
mumificados o encaravam. Os dentes prendiam uma grande língua
que com certeza era de um grande animal, também mumificada.
Grandes chifres pontiagudos estavam fincados na parte de cima do
crânio. Por fim, duas grandes orelhas que ele identificou como de
elefantes estavam exatamente em seus devidos lugares. Tudo isso
estava sobre um móvel velho de madeira. Nas laterais do móvel, em
dois pequenos criados mudos, velas vermelhas queimavam suas
calmas chamas.
Isso fez Astaroth pensar para qual tipo de demônio era aquela
adoração, pois ele não conseguiu identificar ao pensar.
– Como te disse, sempre estamos precisando de animais, pois
essas coisas não duram para sempre. – O homem soltou uma risada
com pigarro, em seguida tirou um cachimbo do bolso e o acendeu. –
Servido? – indagou, entre uma tragada e outra.
Astaroth apenas moveu sua cabeça para os dois lados. Com
certeza, aquele não era um mero humano. Algo estranho estava
acontecendo naquele lugar. Mas deixou rolar, pois quanto mais
estranho melhor para ele.
O homem pegou a mão do duque e a espetou com um graveto
afiado. Em seguida, puxou o braço de Astaroth, que cedeu em passos
e o aproximou da coisa. Nessa trajetória, duas gotas de sangue
208
pingaram no chão, a terceira foi exatamente em cima da língua
daquela coisa estranha. Instantaneamente, sua cor morta ganhou um
tom rosado e o sangue começou a ser absorvido. Depois dessa, mais
dezessete gotas pingaram, sendo absorvidas. O idoso soltou a mão do
duque, que a trouxe para próximo do corpo. A língua começou a
murchar e voltou a sua coloração natural.
Súbito, o velho levantou sua bengala, que naquele momento
pareceu mais um cajado. Em seguida, começou a sussurrar algumas
palavras estranhas. Entre elas, Astaroth pôde identificar: xama-tunga.
Após alguns segundos, a chama das velas ganhou força e se elevaram
a uma altura de dez centímetros. Seguido disso, os olhos mumificados
da caveira ganharam vida e se acenderam como duas chamas rubras.
O ritual durou cerca de dois minutos. Quando o idoso parou de
sussurrar as palavras, abriu os olhos brancos, assustados. As chamas
das velas se apagaram, soltando fios de fumaça e os olhos da caveira
explodiram em um show de gosmas.
– O que aconteceu? – indagou o duque.
O homem hesitou um pouco antes de falar e quando falou,
gaguejou algo. Pelo pouco tempo que passaram juntos, Astaroth
percebeu algo não natural naquele senhor, que de alguma forma, era
imponente.
– Nã... Não deu certo!
– Como não deu certo? Me diga! Onde eu acho a pessoa que
procuro?
– Desculpe, eu não sei te dizer!
Astaroth via nitidamente que o homem estava mentindo. Nesse
momento, ele soltou um berro:
– Diga!
A cabana inteira trepidou. O senhor encarou o duque, parecendo
enxergá-lo e disse:
209
– Por favor, peço que se retire!
A atmosfera da cabana começou a mudar como em um avanço
de uma grande tempestade.
– Você não sabe com quem fala, velho! É simples! Ou você fala,
ou eu arranco sua cabeça fora.
– Eu não falarei!
– Certo! Vamos ver se não. – Astaroth atravessou a divisória
com seu corpo, arrebentando tudo.
Do outro lado, a moça pulou para trás com um salto. O menino
saltou da banheira como um gato e correu, saindo pela porta. A moça
se arrastou até se encurralar no canto. Seus olhos estavam arregalados
de pavor. O duque andou até ela e a levantou com tremenda violência,
segurando seu corpo por trás.
O velho entrou pelo buraco que o duque fez, com o rosto
fervendo em raiva.
– Ou você fala, ou eu a mato! – Astaroth prendeu a mão na
mandíbula da mulher. Em seguida, começou a puxar seu crânio para
cima, começando a esticar a pele de seu pescoço.
Ela começou a gritar o mais agudo que pôde, mas logo esse
agudo começou a ficar esganiçado.
– Diga! – gritou o duque. Mais um centímetro e ele quebraria
sua coluna cervical. Mas não pararia até estar com sua cabeça em
mãos.
– Se você a matar, nunca encontrará a pessoa que você quer –
gritou o velho, desesperado.
Imediatamente Astaroth parou.
– Então diga!
O homem hesitou um pouco, mas logo disse:
– A pessoa que você procura sou eu!

210
– Como eu já imaginava. Isso tá ficando muito óbvio! – O duque
empurrou a moça para o lado, fazendo com que ela caísse e andou até
o velho.
Nesse momento, a moça viu algo caindo do bolso do duque, mas
no arder do momento nem prestou atenção.
– Por favor, me deixe me despedir de minha neta – implorou o
homem, com as mãos juntas.
O duque parou no meio do caminho e encarou o homem por
cinco segundos.
– Está bem! Mas seja rápido.
Nesse momento, a mulher já se movia até o avô. O idoso a
abraçou e sussurrou em seu ouvido, tão baixo que nem o duque pôde
ouvir:
– Pegue seu irmão e vá para o mais longe daqui que puder. –
Nesse momento ele foi puxado à força.
Sua neta tentou agarrar sua mão, com os olhos arregalados. Mas
já era tarde. Astaroth explodiu suas asas brancas e alçou voo,
explodindo o teto, levando o idoso com ele.
A moça saiu pela porta e começou a gritar o nome do irmão. O
menino surgiu correndo do meio das árvores, completamente nu e
pulou no colo da irmã.
– Addae! Graças a Deus! Temos que sair daqui, irmãozinho.
– O que aconteceu, irmã? – perguntou o menino, com inocência.
– Aquele homem mau levou o vovô, que pediu para irmos para o
mais longe possível daqui.
– Ele me disse que era um anjo.
A mulher se surpreendeu ao ouvir isso e colocou Addae no
chão.
– Quando ele te disse isso?
– Quando vínhamos para cá.
211
A moça levou o dedo à boca, olhando para o chão e disse:
– Espere aqui, Addae.
Ela entrou na cabana e começou a procurar por algo. Alguma
evidência que dissesse algo a ver com aquilo. Logo achou um papel
amassado no chão. Ela o pegou e o abriu. Nele estava escrito, abaixo
de uma marca de queimado:

Makoua, coordenadas -0.004521, 15.612962.


Tókio, coordenadas 35.708871, 139.734541.
São Paulo, coordenadas -23.474579, -46.601979

212
CAPÍTULO 31

Enquanto a pequena legião sobrevoava o mar em direção à


Costa Rica, Chavakiah começou a sentir seus dedos das mãos
formigarem. Aquilo era um indício de que sua energia começava a se
revigorar. Mazarak reparou enquanto ele olhava os próprios dedos. O
general das potências cruzou seu olhar com o do duque, abrindo um
sorriso.
– Estamos próximos – disse Daniel, descendo em rasante.
Os outros dois repetiram o movimento e logo todos já
sobrevoavam um grande tapete de vegetação verdejante. Avistando
um grande morro cônico à frente, Chavakiah tomou a dianteira.
– Sigam-me! – disse o general açoitando as asas com mais
pujança.
Dois quilômetros à frente, o trio pousava em cima do morro.
Chavakiah se deslocou alguns metros deles e ficou quase na beira da
montanha. Em seguida, ele abriu os braços e subitamente seus traços
começaram a se transformar em vento. A emanação durou cerca de
dois minutos e logo ele voltou a sua coloração natural.
– África! – disse Chavakiah.
Os dois irmãos de espírito iam explodindo o vento, quando o
general gritou:
– Esperem! – O general fez uma curta pausa. – Dessa vez a
mensagem veio diferente. Algo começou a acontecer!v

***

213
Astaroth sobrevoava certa região daquela vila, quando desceu e
pousou entre duas enormes árvores muito parecidas uma com a outra.
Mas apenas Astaroth podia vê-las. De repente os dois enormes troncos
começaram a se mexer, juntamente com seus galhos que se
movimentavam como braços.
– O que estamos fazendo?
Para Astaroth, aquilo soou como um zunido e ele nem ao menos
olhou para o idoso. O duque continuou fitando as árvores e viu
quando, como duas velas abaixo de uma chama a mil graus, as árvores
derreteram em duas massas negras, transformando-se em duas
criaturas idênticas, feitas de algo parecido com petróleo, porém muito
mais denso. Dois buracos disformes e profundos ficavam no lugar dos
olhos e boca. Os braços e pernas quase não tinham forma. As criaturas
se arrastavam quase como lesmas, em sentido ao velho, que nesse
momento, Astaroth já tinha colocado no chão.
– O que está acontecendo? – indagou o homem, dessa vez com
mais preocupação na voz.
Isso foi a última coisa que disse, pois em seguida, as duas
criaturas seguraram uma em cada braço seu. O que o homem sentiu
nesses pontos, não passou de formigamentos. Súbito, uma poça negra
enorme se abriu abaixo dos pés dos três e eles foram engolidos,
desaparecendo daquele mundo, juntamente com a poça.
Astaroth deu um sorriso de satisfação e praguejou:
– Velho insolente! – Em seguida, levou a mão ao bolso e
remexeu, remexeu, mas não achou o que procurava. Logo percebeu
que tinha perdido o papel com as coordenadas. Mas isso não foi
problema nenhum para ele, pois com um pequeno esforço, lembrou
exatamente do papel, com os números, como numa fotografia mental.
Astaroth explodiu o vento e partiu para sua próxima missão.

214
***
A luta iria começar nos próximos segundos, quando algo fez os
três anjos hesitarem. Uma quarta criatura surgiu e se juntou a elas.
Barrattiel se lembrou de sua cotovelada, abrindo um rombo na cabeça
da criatura alada, a pouco mais de dois minutos. Mas sabia que aquilo
não era o suficiente para acabar com ela.
Hekamiah foi tão rápido que quase Hariel e Barrattiel não viram.
Ele avançou como uma bala e agarrou o pescoço de duas criaturas.
Barrattiel e Hariel se entreolharam e avançaram contra as outras duas.
A luta havia começado.

Enquanto segurava o pescoço das duas criaturas, esmagando


suas traqueias e vendo seus olhos virarem, Hekamiah viu quando
Hariel grudou suas unhas no ombro do demônio à sua esquerda e lhe
acertou dois poderosos murros na cara, e então a mulher anjo o soltou
e ele foi arremessado contra a parede de um prédio, arrebentando o
concreto como uma bomba, fazendo com que seu corpo penetrasse em
seu vigésimo segundo andar. A loura encarou Hekamiah com um
sorriso, soltou uma piscadela e avançou em sentido ao seu oponente
que jazia meio aos escombros. Hekamiah bateu a cabeça das criaturas
que segurava duas vezes, despedaçando seus crânios e as soltou. Elas
despencaram e logo ele avançou contra a criatura que lutava contra
Barrattiel. Com um poderoso soco, ele atravessou seu cérebro e puxou
o punho tingido de um vermelho quase rubro, de volta.
– Poxa! Como você é chato! – Barrattiel estava frustrado, pois
sua luta havia apenas começado.
Nesse exato momento, eles escutaram um estrondo, vindo do
prédio onde acontecia a luta de Hariel. Hekamiah ia avançar, quando

215
foi surpreendido por um dos demônios. Dois deles atacaram Barrattiel,
juntos. O que atacou Hekamiah, grudou em seu corpo com os quatro
membros. O corpo do demônio começou a esquentar de uma maneira
que derreteu a pele do anjo e suas peles se fundiram. Hekamiah soltou
um berro mais de raiva do que de dor, em seguida pegou a cabeça da
criatura e a arrancou com apenas uma puxada.
Entre um murro, que acertou o rosto de um dos demônios, e um
murro que acertou seu rosto, vindo do segundo infernal, Barrattiel
gritou:
– Não! – Enquanto via Hekamiah jogar a cabeça, deixando-a
despencar e arrancava o resto do corpo, puxando sua pele junto. Ele
apenas torceu o rosto nesse momento. Instantaneamente sua pele
começou a se regenerar, nascendo uma nova no lugar.
Vendo dois pontos de luta acontecendo ao mesmo tempo,
Hekamiah não sabia qual ajudar. Viu Barrattiel sendo arremessado ao
longe por poderoso soco de uma das criaturas que já avançava contra
o celeste. A outra criatura batia contra o muro de um prédio,
provavelmente por uma ofensiva de Barrattiel. No outro ponto, via o
prédio tremer e suas janelas estourarem no vigésimo andar, depois no
décimo oitavo.
A loura lutava vorazmente contra o demônio. Seu soco foi tão
forte que o infernal bateu contra uma parede e a atravessou como
isopor, caindo em outra sala. Seu corpo bateu em uma mesa com um
computador, espatifando-o no meio, depois rolou por cima dela,
batendo em outra e em mais outra. Imponente, Hariel avançou em
passos rápidos pelo buraco aberto pelo monstro. Do outro lado, viu
meia dúzia de mesas destruídas. O infernal estava debruçado em uma
delas, já se levantando. Uma de suas asas estava quebrada. Hariel
começou a correr na sua direção e nesse momento ele também foi em
direção à loura.
216
Quando seus corpos se chocaram, Hariel o acertou com uma
poderosa cotovelada, esfacelando a mandíbula do demônio. Mas ele já
tinha grudado a mão no ombro da mulher anjo e quando ele foi
arremessado contra a parede lateral, levou a pele dela junto. Ela sentiu
uma dor semelhante a um ferro quente derretendo a pele. Olhando o
demônio no chão, com fúria de uma guerreira divina, pulou para cima
dele como uma loba. Mas estava muito confiante e fora surpreendida
por um chute rodopiante que a acertou violentamente na cabeça. Ela
voou contra uma vidraça, espatifando-a. Um pouco desnorteada
enquanto começava a despencar no céu, balançou a cabeça para um
lado e para o outro e bateu as asas, entrando pelo buraco que seu
corpo tinha aberto.
Hariel avançou contra o demônio como uma águia, só que dez
vezes mais rápido e chocou seu corpo contra o dele. Os dois bateram
contra uma parede, destruindo-a, depois contra outra e parando na
terceira. A loura grudou no pescoço do monstro e lhe deu dois murros
na face, em seguida jogou-o no chão com muita força. Mais murros,
fazendo o piso daquele andar ceder. Os dois caíram no andar de baixo,
mas ela continuava grudada em seu pescoço, esmurrando sua cara. O
chão daquele andar também cedeu, só que no andar de baixo, dessa
vez, eles caíram com mais força e ele cedeu instantaneamente.
Na parte de fora, Barrattiel e Hekamiah enfrentavam quatro
demônios invencíveis. Sendo que os dois que enfrentavam Hekamiah
foram resultado de quando ele dividiu a cabeça do corpo do último.
Não eram invencíveis pela força, mas porque eles não morriam de
jeito nenhum e também não desistiam. Lutavam como feras
indomáveis.
De repente, as vidraças do prédio que Hariel lutava começaram
a estourar em uma tempestade de vidros estilhaçados, do quinto andar
e subindo até o vigésimo quinto. Flocos de concreto começaram a se
217
desprender naquela região e rachaduras se abriam por todos os lados.
Uma rachadura descomunal começou nos últimos andares e desceu
como um raio, atravessando o prédio inteiro, parando no quinto andar.
Nesse momento, Hekamiah avistou um bando de humanos olhando
toda a cena que acontecia. Com a chuva de detritos, eles começaram a
correr. Mas já era tarde. Muitos deles foram acertados por pedaços
grandes de pedras e ficaram ali mesmo, no chão, com o sangue
escorrendo de suas lacerações. Dois deles correram, mas uma mulher
voltou para ajudar um dos feridos e foi acertada por um pedaço de
pedra do tamanho de uma melancia.
O prédio inteiro soltou um estrondo. De repente, um enorme
barulho de concreto raspando. Em um desmoronamento descomunal,
o prédio veio abaixo, levantando poeira a centenas de metros de altura,
cobrindo um raio de centenas de metros com toneladas de pó.

218
CAPÍTULO 32

Haziel, Caliel e os humanos se distanciavam daquela região do


mar negro. De vez em quando, Caliel batia o olho na pedra da lira,
para ver se ela ainda pulsava. Continuamente seguia com seus
lampejos.
As primeiras camadas de nuvens acinzentadas eram sobrevoadas
pelos celestes e eles não tiravam os olhos da massa de veleiros
infernais. Os barcos continuavam avançando vorazmente rumo à costa
da cidade onde despencava a chuva de sangue.
Totalmente atentos aos barcos, os dois anjos não viram quando
duas criaturas se aproximavam de baixo de seus mantos escuros.
Subitamente foram surpreendidos por duas gargalhadas, vindas de
suas costas. Em um impulso, eles se viraram e os dois olhos angelicais
e os dois humanos vislumbraram as duas imagens, tirando as túnicas
de cima de seus corpos.
Ao ver a face dos demônios, nesse momento, até Haziel sentiu
uma palpitação de ansiedade. Um era Asmodeus, uma guerreira caída,
que na época seguia todos os passos de Baal. Ainda era bela como na
época em que ainda era um anjo, com seus olhos verdes e cabelos
compridos, negros. Mas levava nas asas, grandes marcas de sangue
vivo e suas penas eram um tanto velhas, amarelentas. O outro era
Dagon, um demônio horripilante. Seus olhos eram negros como dois
poços sem fundo e sua boca era enorme e forrada com dentes de
tubarão. Sua cabeça lisa tinha uma barbatana central, com dois
pequenos chifres laterais.

219
– Ora, ora! Se não é o lourinho preferido do segundo
comandante – disse Dagon, com os braços fortes e azuis, cruzados. A
cara de deboche deixava Haziel furioso.
– O que vocês querem? – perguntou o guerreiro divino.
Os dois demônios se entreolharam e explodiram em
gargalhadas.
– Você está de brincadeira conosco? – Asmodeus flutuou alguns
metros à frente, fazendo com que Haziel se mantivesse atento. –
Vocês estão aqui no nosso “sagrado” mundo e você me pergunta o que
nós queremos?
– Nós não estamos aqui por nossa escolha! Alguém nos trouxe
aqui. – Haziel tinha seu rosto tão sério que até Caliel se sentia um
tanto intimidado.
– Ok! Ok! Então quer dizer que vocês estão aqui e não
pretendem fazer nada. Apenas passear, dar uma olhada por aí e ir
embora? – indagou a mulher demônio, com tom de deboche.
– Chega de conversinha fiada. – Dagon avançou sem nenhum
tipo de aviso para cima de Haziel.
O pavor de Hector, quando viu o demônio em cima deles como
um raio, foi insuperável. Mas Haziel foi rápido e deu as costas para o
demônio. O louro recebeu uma poderosa joelhada em suas costelas.
No mínimo, uma dúzia de ossos se partiu, dando-lhe uma dor
lacerante. Nesse momento, ele perdeu as forças e quase largou Hector,
mas o segurou ainda com mais força e bateu as asas em outra direção.
Caliel segurava Aron e viu quando Dagon partiu, seguindo
Haziel. Na frente dele ficou Asmodeus, encarando-o com um sorriso
debochador. O anjo não sabia o que fazer. Sabia que tinha o sangue
dos querubins, guardadores do trono de Deus, correndo em suas veias.
Mas ele nunca tinha treinado, ou participado de algo que exigisse
força bruta.
220
– Agora somos apenas eu e você, ruivinho. – Ela encarou os
olhos de Aron, depois olhou para Caliel novamente. – É! Tem isso aí
que você está segurando também.
Aron se sentiu como um verme, naquele momento, mas não
disse nada. Apenas fulminou a mulher demônio com os olhos. Isso
não o impediu de achá-la extremamente bonita.
Prevendo o ataque de Asmodeus nos segundos vindouros, Caliel
teve uma ideia e tentou resolver aquilo da melhor maneira possível.
– Tá bom, tá bom! Como podemos resolver essa situação?
Asmodeus levantou uma das sobrancelhas, pois esperava
qualquer reação daquele anjo. Mas um pedido de resolução era uma
coisa nova para ela.
– Resolver? Não tem nada para resolver aqui! Vocês estão aqui
por algum motivo e nós vamos acabar com vocês. Sempre assim.
– Certo. Mas se você nos matar aqui e agora, nunca saberá por
que estamos aqui. Creio que seja de seu interesse descobrir algum
plano celeste, antes que ele prossiga adiante. – Caliel soltou uma
piscadela.
A cara que Aron olhava para Caliel quase o fez rir. Aron estava
confuso e não tinha a mínima ideia do que o anjo pretendia com
aquela conversa.
Asmodeus encarou Caliel por longos segundos e depois abriu
um sorriso.
– Sabe que você tem razão, ruivinho? – Ela abaixou o olhar e
viu a lira presa à cintura do anjo. – Belo instrumento! Nunca vi um
assim. Deixe-me vê-lo, ruivinho. – Ela sabia que Caliel era um
guardador e que aquele instrumento era algo inusitado para sua casta.
Na verdade, ela nunca tinha visto um daqueles.
Imediatamente Caliel fechou a cara e negou o pedido.

221
– Como você é egoísta. Eu vou pegá-lo à força então. – Na
medida em que Asmodeus terminava a frase, seus olhos se
preenchiam de um verde ardente.
Ela avançou flutuando para cima de Caliel, mas o ruivo se
deslocou alguns metros para trás, encarando seus olhos. Àquela altura,
o anjo já tinha perdido seu olhar amigável e uma grande ansiedade
crescia em seu peito.
Súbito, Asmodeus avançou mais rápido, sem que Caliel tivesse
tempo para reagir e segurou sua lira. Nesse momento, uma grande
explosão se sucedeu a alguns quilômetros dali. A mulher demônio se
distraiu e Caliel aproveitou para fazer algo que nunca tinha feito. Ele
fechou o punho o mais forte que pôde e subiu com um gancho que
acertou o queixo da moça, arremessando-a às alturas.
Olhando, viu o corpo de Asmodeus subir sem rumo e depois
baixou o olhar para Aron, que o encarava estupefato.
– Caralho! – disse o humano.
Nesse momento, Haziel chegou explodindo o ar. Alguns
arranhões se desfilavam por seu corpo.
– Temos que sair daqui, agora! – gritou o louro.
Caliel meneou a cabeça e eles sumiram como dois raios. Por
sorte, não foram seguidos.

***
No Sexto Céu, apenas os grandes estavam reunidos em uma
grande sala com uma mesa de cristal central, octogonal. Centenas de
esferas douradas, luminescentes flutuavam iluminando o salão, sem
nenhum tipo de ordem. Ocupando as cadeiras em volta da mesa,
estavam Uriel, Jeremiel, Bariel, Yesalel, Kamael, Metatron, Auriel e

222
Mikael, o príncipe das virtudes. Na porta arqueada da sala, estava em
prontidão, fitando a paisagem externa, a figura imperial do querubim,
guardador do trono de Deus.
– Temo que nosso guerreiro, o general das potências e o duque
da cidade da luz estejam encontrando dificuldades para localizar
Astaroth. – Jeremiel se levantou, esticando seu grande corpo dourado.
– Nesse momento, eles estão indo para a África, sendo que o duque
infernal já está no caminho para o seu próximo ponto.
– Podemos enviar uma missão para direcioná-los na direção
certa – disse Bariel.
– Podemos, mas provavelmente, quando o nosso missionário
chegar lá, a direção de Astaroth poderá não ser a mesma. – Yesalel
tinha seus olhos pensativos. – Existe a possibilidade de um dos
arcanjos informá-los pelo mundo espiritual?
Jeremiel esperou um pouco para responder.
– Para isso, precisaríamos de Gabriel, pois ele é o único que
pode estar aqui e lá ao mesmo tempo.
– Eu vou buscá-lo, meu caro irmão – disse Uriel, já se
levantando e andando rapidamente em direção à porta.
Era nítida a tristeza de Auriel, que mantinha sua cabeça baixa e
os olhos lacrimosos. Não conseguia nem imaginar o quanto era grande
o sofrimento do restante dos tronos que se encontravam no inferno.
Ela estava ali, reunida, apenas porque tinha que estar, pois sabia que
não tinha cabeça para dar qualquer opinião. Todos entendiam isso,
então deixavam a princesa dos tronos na dela, sem se dirigirem a ela.
Após alguns segundos, Uriel retornou e disse:
– O terceiro guardador do trono se dispôs a ir.
– Ótimo! – Jeremiel debruçou suas duas mãos na mesa. – Então
apenas aguardemos.

223
Todos os membros da realeza celeste se levantaram, a não ser
por Metatron e Kamael.
– O que acha de tudo isso, primeiro anjo, rei de todos nós?
Metatron encarou Kamael com os olhos inocentes por alguns
instantes, depois olhou para a janela principal do salão, que tinha seus
dez metros de altura. Os raios da estrela branca passavam por ela,
prateando uma parte do salão.
– Creio que tenhamos chegado ao final de uma etapa, meu caro
príncipe das potências celestes. A humanidade nasceu, cresceu,
evoluiu, envelheceu e aos poucos está se deteriorando, com seus
próprios atos. A investida do inferno só foi possível pelo fato dos
“filhos de Adão” agirem, sem refletir em seus atos, em toda a sua
história.
– Eu fui à biblioteca sagrada e li um texto que fica na página
137.824 do livro 847. O texto fala sobre os cataclismos do fim da era
criativa, mas não dita o fim da humanidade. Temo que nossos irmãos
caídos estejam utilizando dessa transição energética espiritual, para
criar algo nunca visto por nenhum de nós. Nem por nossos primeiros
irmãos.
– Eu conheço esse texto. – Metatron encarou Kamael. – Eu
suspeito que nossos irmãos caídos tenham achado um meio de destruir
o que os derrubou.
– Talvez tenha chegado a hora do Pai interferir.
Uma voz grave soou nas costas de Kamael.
– O Pai sabe exatamente a hora de interferir em algo. Não
questione suas ideologias.
– Desculpe, meu caro Jeremiel! Eu não tive a intenção.
De repente, vindo do corredor que dava no grande salão, eles
viram uma grande luz dourada se aproximando rapidamente. Todos se

224
surpreenderam quando não uma, mas três figuras douradas surgiram,
seguidas do querubim.
Jeremiel e Uriel foram os primeiros a se aproximarem.
– Meus irmãos! – Jeremiel encarou com um grande sorriso,
Miguel, Gabriel e Rafael. – Amo suas presenças, mas temo por algo.
O que traz todos aqui, de uma só vez?
– Gabriel viu os quatro cavaleiros das trevas! – disse Miguel
com seus olhos absolutamente resplandecentes. Uma dupla de luzes
verde esmeralda que nunca se apagaram desde sua criação. Assim
como de todos seus irmãos, reunindo uma lindeza de cores suaves,
brilhantes.
– Eu temia por isso! – Uriel baixou a cabeça, deixando cair uma
lágrima de cor quase rosada, de seu olho direito.
– Não chores, minha querida irmã! – Gabriel se aproximou dela
e tocou em seu ombro.
Uriel levantou a cabeça, com seus olhos encharcados de uma
lágrima divina, vendo os olhos azuis de seu irmão brilharem na sua
frente.
– Minha querida irmã, o Pai não me deu meu codinome por
acaso. Saiba que nunca permitirei que nossos irmãos caídos consigam
utilizar essa transição divina para seu próprio benefício. Ainda tenho
esperanças de que se arrependam de toda essa bobagem e voltem para
o seu devido lugar.
– Eu concordo com nosso irmão Gabriel, minha querida irmã. –
Rafael se aproximou com seus olhos amendoados, possantes de um
brilho divino. – Faz um pouco mais de cento e cinquenta mil anos que
eles começaram com essa briguinha. Tenho certeza de que eles vão se
arrepender e você conhece o Pai. Ele vai perdoá-los!

225
– Eu também acredito nisso, meus lindos irmãos. Mas temo que
se arrependam tarde demais! – Olhando dentre os irmãos, Uriel
indagou: – Onde está nosso querido Lúcifer?
– Ele vinha conosco, mas o Pai o chamou de última hora. –
Rafael fitou todos os irmãos dourados quase de uma vez. – Vamos
reunir todos nessa sala agora, pois precisamos distribuir algumas
questões que precisam de resolução.
Todos os arcanjos inclinaram a cabeça para a frente, então
Rafael começou:
– Meus queridos irmãos angelicais, por favor, venham todos
aqui. Aproximem-se.
Todos os anjos se aproximaram, formando círculos, juntamente
com seus irmãos arcanjos. Rafael estava no centro dele.
– Gabriel teve algumas visões e gostaria de compartilhar
algumas ideias conosco. – Rafael se aproximou de Gabriel e meneou a
cabeça a ele. – Por favor, meu caro irmão, a força e a visão do querido
Pai nosso, queira continuar.
– Obrigado, irmão! – Gabriel lhe meneou a cabeça e foi para o
centro da roda. – Meus caros irmãos angelicais, todos nós sabemos
que estamos em uma guerra com nossos irmãos caídos há mais de
cento e cinquenta mil estações. Como tudo, ela teve um início,
percorreu seu caminho e agora creio que tenhamos chegado ao seu
fim. Temos algumas coisas acontecendo e precisamos ser prontamente
resolutivos. – Gabriel encontrou Kamael com os olhos. – Príncipe das
potências celestes, nosso irmão Rafael lhe acompanhará e abrirá seus
caminhos. Bariel, primeiro comandante dos guerreiros divinos, reúna-
se com seu segundo comandante – ele olhou para Yesalel rapidamente
–, e com todas as suas centenas de milhares de legiões de guerreiros
celestiais. Eu também tenho uma missão a cumprir. Encontremo-nos
todos no pátio celestial central, exatamente abaixo da cordilheira
226
divina de acesso a casa do pai no Sétimo Céu, em exatamente duas
estações.

***
Astaroth sobrevoava a ilha de Chibu, próximo à costa do Japão.
Sentiu um súbito formigamento no corpo e olhando as mãos, reparou
que elas brilharam algumas vezes. Nesse momento abriu um sorriso,
pois sabia que poderia se desmaterializar quando quisesse.
Após não muito mais do que dez minutos, já voava por cima da
grande cidade de Tóquio, rumo às coordenadas marcadas em sua
mente. Olhando abaixo, viu que as ruas da cidade já não eram mais
movimentadas. Poucos humanos perambulavam, alguns com rumo e
outros sem. Ele não tinha certeza se podia ser visto daquela altura. Se
fosse visto, até poderia ser confundido com um grande pássaro. Não
que isso fizesse diferença para o atual duque mais poderoso do
inferno.
Astaroth pousou no espaço onde indicavam as coordenadas e
logo guardou as asas. A manhã estava fria e pequenos cristais de gelo
caíam do céu. Aquela região estava completamente deserta, se não
fosse por dois cachorros que encaravam o duque, da esquina. Um
tinha o pelo marrom, era alto e magro. O outro era caramelo, baixo e
comprido. Quando o duque penetrou seu olhar escarlate nos deles,
deram no pinote, desaparecendo da vista dele.
De um bueiro, onde havia uma fina camada de água congelada
que se mantinha inerte, entrando no buraco escuro, Astaroth viu um
bafo de vapor, que considerou quente, ser expelido de lá. Curioso, ele
caminhou até o local e agachou, afastado um metro de distância.

227
Subitamente dois olhos rubros se acenderam no escuro. O duque
soltou uma risada.
– Eu sabia que era você!
– Olá, meu caro duque! – De dentro do bueiro, o demônio disse,
com uma voz cavernosa. – Trago informações que podem ser valiosas.
– Diga-me, Mohara.
– Esse quarteirão inteiro foi esvaziado. Há cerca de vinte
minutos atrás, um ônibus levou uns quinze humanos daqui.
– Você sabe para onde eles foram?
– Na última vez que os vi, quebraram à direita na primeira via,
embaixo desse viaduto acima de nossas cabeças.
– Ótimo, Mohara. É tudo que eu preciso! Avise os outros que o
terceiro estará chegando, em menos de trinta minutos. – Astaroth
explodiu as asas e ia alçar voo, quando se agachou novamente. –
Como anda a consagração do primeiro levado?
– Já terminou e foi um sucesso! – respondeu Mohara, satisfeito.
Astaroth inclinou a cabeça para baixo com um sorriso, levantou-
se e alçou voo. Os movimentos na cidade eram mínimos, então o
duque subiu, ampliando seu campo de visão e a não mais de cinco
quilômetros dali, pôde ver um ônibus branco se locomovendo. O
demônio teve certeza de que era o automóvel que procurava e partiu
na sua direção.
Dentro do ônibus, nos acentos traseiros, um casal de idosos se
abraçava. Duas filas na frente, um menino, com aproximadamente
doze anos, com o rosto sujo e o corpo magricela, dormia encolhido,
ocupando os dois acentos. Ao lado dele, uma mãe tinha sua filhinha,
com aproximadamente oito anos, no colo. Mais à frente, dois
mendigos, três crianças e um negro ocupavam os lugares. Em pé, ao
lado do motorista, um homem de meia idade, com uma touca de lã na
cabeça, ia batendo papo com ele.
228
– Certo! Então você está querendo me dizer que isso aqui tudo é
obra divina – disse o motorista.
– Com toda a certeza! Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito
diz às igrejas: O que vencer não receberá o dano da segunda morte.
Apocalipse 2. Versículo11 – respondeu o homem.
– O que isso quer dizer?
– Que quem enxerga o que o Espírito Santo nos mostra será
salvo e não arderá nas chamas do inferno.
– Você é louco!
Nesse momento, o ônibus passava por cima de uma ponte.
Súbito, cinco metros à frente, o chão foi arrebentado de baixo para
cima em uma explosão de concreto e asfalto. O motorista foi rápido e
desviou da acometida, mas seu ombro saiu do lugar e ele perdeu a
direção. O ônibus oscilou para um lado, para o outro e bateu
violentamente contra o guard rail. O homem ao lado motorista foi
arremessado contra o vidro da frente tão violentamente que quando
sua cabeça bateu, o vidro se estilhaçou e ele caiu já morto dez metros
abaixo.
Todos no veículo sofreram algum tipo de trauma. Alguns
tiveram cortes profundos e um deles até acabou morrendo na hora. Os
idosos foram arremessados e bateram contra os ferros, quebrando
costelas e outros ossos. O menino dormindo apenas bateu com força
no acento da frente, sentido apenas uma dor aguda nos joelhos. A
mãe, com a pequena menina, estava tão desprevenida que no momento
da pancada, a menina caiu por entre suas pernas, quase não sofrendo
dano nenhum e ela bateu a cabeça com violência na ferragem do
banco da frente. O corte foi tão profundo que um pouco de massa
cefálica começou a escorrer. Ela morreu na hora.
Os mendigos não morreram, mas perderam a consciência. As
crianças ficaram apenas com pequenos cortes nos braços e canelas. O
229
homem negro não sofreu dano algum. O motorista foi salvo pelo cinto
de segurança, mas sentia uma forte dor no peitoral e tinha dificuldade
para respirar. Quando ele levantou a cabeça, viu na sua frente uma
criatura imperial, descendo do céu, batendo suas grandes asas brancas.
Astaroth avançou calmamente contra o ônibus que pendia da
ponte e o colocou de volta no lugar, antes que despencasse. Em
seguida ele pousou, guardando as asas e contornou a frente do ônibus,
parando na frente da porta, encarando o motorista com seus olhos
rubros. Educadamente ele pediu para que o homem abrisse a porta.
Imediatamente o humano o fez. O duque subiu os degraus o
encarando. O homem se inclinou para trás mais ofegante do que antes.
– Obrigado – disse o duque, passando por ele, seguindo pelo
corredor do ônibus.
Além dos mendigos, todos já tinham retornado para os seus
lugares. O homem negro e as três crianças o olhavam com os olhos
arregalados. Uma das crianças, uma menina, gritou quando o duque se
aproximou dela. Mas quem parecia ser seu irmão a acalmou. Astaroth
passou por eles, e viu uma menininha chorando desesperadamente em
cima do corpo da mãe. Dois idosos no fundo do ônibus quase não
deram atenção para ele, a não ser por um olhar da mulher que o
fulminou e depois voltou a cuidar de seu marido, que sentia horríveis
dores.
Astaroth começou a pensar e a se perguntar se quem ele
procurava estava ali e como ele faria para localizá-lo. As coordenadas
marcavam um local pequeno e com certeza, todas as pessoas que
ocupavam aquela área estavam no ônibus. Ele ficou no meio do
corredor, pensativo, por quase dois minutos. O suspense entre os
humanos subia seu termômetro a cada segundo. De repente o duque
teve uma ideia, lembrando-se do que o homem do México disse a ele.

230
– Alguém aqui me conhece? – Uma pergunta ridícula, mas não
tinha a menor ideia do que fazer.
As três crianças balançaram as cabeças. O homem negro hesitou
assustado, mas também balançou a dele, movimentando-a
rapidamente.
– E vocês, me conhecem? – ele gritou para os idosos.
A mulher olhou para ele e balançou a cabeça. O homem tinha
seus olhos fechados e só gemia de dor.
– Ei, estou falando com você! – A voz do duque era grave.
O homem não respondeu e ficou do mesmo jeito. Sem
paciência, Astaroth se aproximou do casal, vendo os olhos da mulher
crescerem, enquanto ele se aproximava. Perto, grudou com violência
no braço do idoso, fazendo-o soltar um grunhido de dor.
– Não! Solte-o – gritou a idosa, pegando no antebraço do duque.
O duque a afastou com violência para o lado, fazendo com que
ela percorresse um metro e batesse no metal lateral do ônibus. O
impacto foi forte, mas não o suficiente para apagá-la. O pânico tomou
conta dela, quando ela viu o duque segurando as bochechas de seu
marido, aproximando o rosto do dele e perguntando:
– Você... Me... Conhece?
O homem abriu seus olhos já estreitos por natureza e balançou a
cabeça algumas vezes negativamente. Astaroth arregalou seus olhos,
sorriu e o soltou.
– Obrigado! – disse o demônio.
Quando ele se virou, deparou-se com a pequena menina o
encarando, parada no meio do corredor. Aquele olhar o fez voltar ao
abismo de quando foi arremessado ao inferno. Instantaneamente,
lembrou-se do olhar do primeiro homem que pegou no México. Não
se lembrou de ter reparado isso no da África, mas achou que sim.
Nesse momento, ele já sabia que aquela garotinha era quem ele
231
procurava. Sem hesitar, com um sorriso malandro no rosto, Astaroth
avançou e pegou a menina em seus braços. Atravessou o corredor sem
dizer uma palavra, sem olhar para o lado. Todos ficaram assustados,
mas um tanto satisfeitos. Mesmo que ele estivesse levando a
garotinha, o problema não era deles e estavam a salvo.
Astaroth já tinha em mãos o que buscava. Mas o choro agudo de
desespero da garotinha o estava deixando impaciente. Ele alçou voo,
deixando o ônibus em seu lugar, sem condições de se locomover e
partiu na direção de seu alvo. Logo já pousava próximo às
coordenadas de antes, guardando as asas em seguida, para não chamar
atenção. A menininha não parava de chorar e ele só pensava em
arrancar sua cabeça, para estancar aquele som horripilante. Mas ao
mesmo tempo sabia que não podia.
O duque parou em uma determinada esquina, vendo, a uns
duzentos metros, uma dupla de humanos que não repararam nele. A
quina do prédio, atrás dele e da garota, tinha uma fina camada de água
congelada, forrando quase todo ele. Subitamente, o gelo começou a se
derreter e depois de dez segundos, já era uma grande poça de água
cristalina no chão. Dessa poça, duas criaturas aquosas surgiram, como
duas cachoeiras ambulantes, com dois metros de altura cada uma. As
águas, em volta de seus corpos, movimentavam-se como rios em fúria.
No mundo espiritual, as criaturas se arrastaram, deixando rastros
molhados no chão e seguraram a mão da menina, que a essa altura, já
estava no chão.
A garota, que chorava em pequenos murmúrios, tinha seus
olhinhos vermelhos e inchados. Seu último olhar para Astaroth, antes
de ser levada poça abaixo, juntamente com os demônios, deixou o
duque com um sentimento de comiseração. Mas logo ele afastou esses
pensamentos.

232
CAPÍTULO 33

A queda do prédio foi tão violenta que os demônios que


enfrentavam Barrattiel e Hekamiah até pararam de lutar para assisti-la.
Aproveitando isso, Barrattiel mergulhou no ar em direção aos
escombros, a fim de ver o estado da loura. Os dois demônios
mergulharam atrás dele e quando estavam a poucos metros de pousar,
uma rajada dourada explodiu detritos para todos os lados. Era Hariel.
Ela subiu como um cometa e cortou o ar com sua espada, partindo os
dois infernais ao meio.
Barrattiel apenas colocou as mãos na cabeça careca, com seus
olhos preocupados, pois sabia que dali, surgiriam mais quatro dessas
criaturas. Hariel guardava sua lâmina, plainando no ar, quando viu a
cara do grandalhão.
– Você está bem?
– Olhe aquilo! – Barrattiel apontou os pedaços dos demônios.
Quando a loura olhou, viu os quatro pedaços se mexendo
involuntariamente, para em seguida virarem quatro gosmas e
crescerem como quatro demônios novos em folha.
– O que é isso? – ela indagou.
– Pois é!
Entre socos e chutes, Hekamiah viu quatro criaturas se erguendo
do chão e rodeando Hariel e Barrattiel, uns cinquenta metros abaixo
dele. Sem hesitar nem por um segundo, ele mergulhou no ar e se
juntou a eles. Logo estavam os três de costas um para o outro,
formando uma espécie de triângulo, com seus corpos e asas. Os seis
infernais os rodeavam com sorrisos satânicos.

233
– Meus caros irmãos, a situação é simples – começou
Hekamiah. – Temos seis braços e seis demônios para enfrentar. Temos
apenas que nos defender, enquanto não pensamos em algo melhor.
Subitamente, dois dos infernais atacaram juntos. Ambos contra
Barrattiel, que conseguiu acertar um poderoso soco na face de um
deles. Mas o outro grudou nele e o mordeu no ombro, arrancando um
grande pedaço de carne. O anjo gritou, grudou sua mão nele,
afundando os dedos em seus músculos e começou a esmurrar sua face,
sem parar.
Nesse momento os outros quatro avançaram. Mas apenas um foi
para cima de Hariel, sendo que os outros três partiram contra
Hekamiah. Dois deles grudaram, um em cada braço do anjo, e o outro
começou as esmurrar seu rosto, sem parar. Entre um soco e outro que
se seguira, Hekamiah soltou um grito de guerra e bateu com muita
força a cabeça dos dois demônios que o seguravam. Imediatamente o
crânio dos dois foi transformado em duas massas escuras,
despencando os dez metros abaixo e batendo no chão. O outro o
encarou com ainda mais raiva e voou para cima dele como uma fera,
grudando os dedos em seus bíceps. Ele tentou morder o rosto do anjo,
mas Hekamiah colocou o antebraço em seu pescoço e com o outro
braço lhe deu cotoveladas poderosas, até que ele despencasse. Quase
na mesma hora, os outros dois com os crânios destruídos estavam em
cima dele novamente.
Barrattiel levava desvantagem, pois acertava um murro e levava
dois. A mordida em seu ombro fora tão profunda que o corte levou
quase dois minutos para cicatrizar inteiramente
Hariel olhou para o lado, vendo a situação em que Barrattiel se
encontrava e arremeteu um poderoso soco contra seu adversário,
jogando-o longe. Voou para cima de um dos demônios que lutava
contra ele e grudou em suas costas, segurando seus braços, usando os
234
seus como ganchos. Um segundo depois, sentiu um impacto nas
próprias costas e percebeu quando o demônio envolveu o braço por
sua cintura. A loura estava com um demônio na frente de seu corpo e
outro atrás. Nesse momento, os três começaram a voar cambaleantes e
a bater contra a parede de um prédio daquela rua.
A situação para os três anjos estava muito difícil. Aquela luta
não parecia ter fim e seus adversários, quando vencidos, em vez de
ficarem mortos, anulando um número de seu grupo, um a mais voltava
para o bando.
O prédio, no qual a loura e os outros dois demônios batiam seus
corpos violentamente, já começava a soltar detritos. Barrattiel tinha
sua luta quase nivelada com outro demônio, mas suas investidas eram
mais poderosas. Hekamiah lutava com o trio infernal com sua áurea
explodida e queimando na sua mais alta voracidade.
O que aconteceu a seguir surpreendeu aos anjos. Mas não mais
do que aos demônios. Surgindo das nuvens, uma luz imperial desceu
como um raio de sol a 1.000.000 graus. O raio da luz abraçou dez
quarteirões do centro da cidade. Toda entidade maligna que estivera
nela, fora desintegrada em menos de dois segundos, com gritos
agoniantes, mas curtos.
Os três guerreiros olharam para cima, com seus olhos ofuscados
pela claridade e vislumbraram uma cena divina. Do meio de um
titânico turbilhão que se formou com as nuvens, uma legião com mais
de cem mil potências celestes descia no meio da claridade. Um grande
funil invertido, com anjos de todas as cores e raças, plainava no ar em
queda. Na ponta do funil, com um sorriso tão belo que iluminava
quem o via, estava Kamael, o príncipe dessa casta.

***
235
Mazarak, Daniel e Chavakiah sobrevoavam a costa do
continente Africano.
– Temos que seguir para o leste. – O general das potências
sentia algo parecido com ansiedade em seu peito. – Eu sinto essa coisa
no peito!
Os dois irmãos de espírito olharam para trás, atentos ao general
das potências.
– Sinto que tem algo errado! Algo está acontecendo.
Daniel e Mazarak entortaram seus rostos, franzindo seus traços
idênticos. Apesar de iguais, algo deixava transparecer que Mazarak
parecia o mais velho deles. Talvez por sua pele ser um tom mais
morena, ou suas asas negras.
Subitamente, Mazarak começou a enxergar alguns pontos de luz
como pequenas estrelas. Eles não paravam de crescer e logo
começaram a tomar conta de sua visão, ofuscando o horizonte à frente.
– O que são essas luzes? – indagou ao duque com tom
preocupado.
– Que luzes, irmão?
Foi a última coisa que ele ouviu, pois de repente tudo
desapareceu e seu corpo despencou em um vazio branco. Ele batia as
asas, mas seu corpo não parava de cair, como se estivesse sendo
freado por uma força maior. Seu corpo começou a parar e logo tocou
algo que obviamente não era o chão, pois não dava para ver o chão.
Não podia ver nem a sua própria sombra, pois tudo além dele era
branco. O duque começou a caminhar sobre o branco com passos
firmes. Apesar de poder sentir o chão, ele não via nada mais do que
um abismo branco embaixo de seus pés.
Muito longe, ou talvez muito perto de Mazarak, ele avistou um
ponto de luz que começou a crescer muito rapidamente. Subitamente,
236
esse ponto de luz se aproximou como um raio e se formou na figura
do Arcanjo Gabriel. O susto do duque da luz foi enorme, pois jamais
achou que se depararia com a figura de um dos irmãos de Lúcifer.
– Mazarak! Meu querido irmão! Não tenho palavras para
expressar o enorme prazer em revê-lo. Muito tempo se passou
daqueles tempos difíceis.
– Arcanjo! – disse o duque se ajoelhando.
– Por favor, irmão. Não faça isso! Levante-se!
Mazarak encarou Gabriel com olhos inocentes e se levantou sem
tirar seus olhos dos dele.
– Você sabe o que está acontecendo aqui e agora, Mazarak?
Confuso, o duque balançou a cabeça em negativas. Gabriel
alargou seu sorriso e começou a explicar-lhe:
– Estamos em um mundo paralelo, onde o tempo não corre.
Tenho alguns assuntos para tratar com vocês e escolhi de vocês três,
justamente você, porque preciso te dizer algo especificamente. –
Gabriel fechou os olhos e depois de dois segundos os abriu
novamente. – Mazarak, saiba que você é sempre bem-vindo para
retornar ao seu lugar, quando você quiser.
– Obrigado, Arcanjo! – O duque da luz meneou a cabeça.
– Disponha! – Gabriel também meneou a dele.
– Já que temos tempo, posso lhe fazer uma pergunta? – indagou,
tímido, Mazarak.
– Mas é claro! Fique à vontade.
– Gostaria de saber como está Lúcifer? – Mazarak perguntou um
tanto tímido.
– Meu grande irmão de espírito. – Gabriel saldou Lúcifer. – Ele
está bem. Sente saudades de vocês! – Referiu-se a Mazarak e
Beelzebuth. – Creio que ele tenha um longo caminho a percorrer

237
juntamente do Pai. Os dois se encontram isolados, em uma dimensão
que só o Pai conhece. Lúcifer precisa disso!
– Obrigado, Arcanjo! – Mazarak inclinou a cabeça para a frente,
satisfeito.
Gabriel meneou a dele.
– Creio que o que vocês mais se perguntam agora é: onde está
Astaroth?
Mazarak arregalou seus olhos verdes e deixou Gabriel
prosseguir.
– Ele está passando por alguns países e recolhendo elementos
para que seres catastróficos sejam criados. Atualmente ele já
conseguiu três deles. Estes elementos são humanos especificamente.
Nosso irmão caído já conseguiu três deles e agora parte na direção do
quarto.
– Para onde devemos ir? – Mazarak deu um passo rápido à
frente.
– Brasil, mas eu não conheço exatamente o ponto. Em minha
visão, pude vislumbrar uma grande construção humana, erguida
próxima ao ponto específico. Nela vi uma grande placa rubra, com
uma escrita em português, em dourado. Estava escrito Tucuruvi.
Mazarak juntou as pernas e meneou a cabeça.
– Obrigado, Arcanjo! Isso é tudo o que precisamos.
– Boa sorte, meu querido irmão, duque da cidade da luz!
Nesse momento, Gabriel brilhou tão forte que tudo ficou
dourado e quase no mesmo momento, Mazarak já estava voando ao
lado de Chavakiah e de Daniel. Logo ele se deu conta disso e falou:
– Brasil!
Os dois olharam para ele completamente confusos.
– Temos que ir para o Brasil!

238
– O que você está dizendo, Mazarak? – indagou Daniel com os
olhos grandes.
– Gabriel me disse. Temos que ir agora!
Daniel o encarava com os olhos arregalados. Começava a achar
que o irmão de espírito estava ficando confuso, quando escutou da
boca de Chavakiah:
– Ele o levou para a dimensão alva?
Mazarak fez sinal de positivo com a cabeça. O general das
potências sorriu e acrescentou:
– Temos que ir ao Brasil!

***
– Você conhece alguma saída desse lugar? – indagou Caliel a
Haziel.
– Creio que as mesmas que você. Ou pela antiga cidade de
Pruflas, que nesse momento deve estar em ruínas, ou pelo espaço.
– Como você e Daniel saíram daqui há algumas horas?
– Os duques abriram algum tipo de passagem para a Terra. Mas
pelo seu estado quando passamos, tenho certeza de que ela não está
mais lá.
Apesar da conversa, os dois anjos voavam concentrados, com os
humanos em seus braços. Nenhum dos dois falava nada, atentos à
conversa dos celestes.
– Eu acho que vale a pena tentarmos ir até Monte Negro.
Haziel estreitou os olhos e não disse nada por um instante.
Caliel acrescentou:
– Desculpe! Não queria que tivesse lembranças ruins.

239
– Não tem problema! – disse Haziel. – Vamos para lá. Você tem
razão.
– O que é esse Monte Negro? – indagou Hector.
– É a cidade mais temida de todo o inferno – respondeu Haziel,
com um sorriso nos lábios, caçoando de Hector.
Nesse mesmo momento, os olhos do humano cresceram tanto
que parecia que iam pular das órbitas.
– Então por que porra de caralho nós estamos indo para lá?
Haziel bufou e encarou Hector.
– Desculpe! – o humano se retraiu.
Haziel aumentou sua velocidade, seguindo na frente, com Caliel
logo na sua rabeira. Voavam o mais alto que podiam, antes de sair da
atmosfera daquela dimensão. Hector vislumbrava a miniatura do mapa
de várias cidades satânicas, interligadas. Isso quando ele podia
enxergar através das nuvens escuras, que na maior parte do tempo,
pareciam um enorme tapete fofo, com relâmpagos explodindo aqui e
ali.
Já voavam sem parar há quase uma hora. Hector tinha seus
olhos vidrados, quando viu uma titânica construção que alcançava no
mínimo cinco quilômetros de altura. Ele olhou para Aron a fim de
chamá-lo, mas o outro humano estava dormindo pesado, nos braços de
Caliel.
– Como ele consegue dormir? – indagou Hector a Haziel.
– Ele está acostumado – respondeu o louro. Em seguida, Haziel
arregalou os olhos, vendo algo que Hector não podia, pois estava
muito longe. – Caliel! Estamos próximos.
– Eu notei. Reconheço essa região – respondeu o ruivo.
Os anjos aumentaram ainda mais suas velocidades e em poucos
minutos já cruzavam a fronteira de Monte Negro, a antiga cidade de
Pruflas, um dos duques do inferno com mais baixo poder. Diferente de
240
antes, quando Caliel entrou na cidade para salvar Haziel, a cidade
estava escura e vazia. Em vez do vermelho predominante, o azul
acinzentado criava uma atmosfera ainda mais sombria do que antes.
Uma névoa clara pairava sobre toda a região.
Haziel avistou a torre onde ficou preso pelos últimos cem anos.
Nesse momento, sua respiração mudou de velocidade e ele começou a
relembrar os momentos de tortura e dor que passou nas mãos dos
infernais. Ele começou a sentir suas veias pulsarem mais forte e uma
chama de ódio arder em seu peito. Ele tinha determinado para ele
mesmo que nunca, jamais deixaria que algum de seus irmãos passasse
o que ele passou. Nem que ele tivesse que acabar com todos os seres
demoníacos do universo. Sua visão começou a se pintar de vermelho.
– Haziel? – O louro escutou a voz do ruivo abafada. – Haziel? –
Dessa vez foi melhor.
Ele olhou para o lado e de repente todo o ódio desvaneceu, de
uma hora para a outra. Caliel, Aron e o próprio Hector em seu colo,
encaravam-no com os olhos arregalados. Ele mesmo percebeu quando
sua visão turva, avermelhada voltava ao seu estado normal. Uma
energia como fogo queimava no lugar de sua áurea dourada. Eles já
não voavam em sentido algum. Estavam apenas flutuando no ar,
parados.
– Você está bem? – indagou Caliel.
Orgulhoso e imponente, Haziel respondeu que sim com um
meneio de cabeça. Enquanto isso, sua energia voltava ao estado
normal, para em seguida se apagar por completo.
– Vamos vasculhar esse lugar – disse Haziel, mergulhando em
sentido a cidade de Pruflas.
– Mas... – foi a única coisa que Caliel disse, pois só pôde
mergulhar em direção ao louro.

241
CAPÍTULO 34

Em não mais de uma hora, poupando energia, Astaroth já voava


sobre o grande estado do Mato Grosso do Sul. Mais dez minutos e já
chegava ao seu destino, na zona norte da cidade de São Paulo. Já era
noite. Ele pousou atrás de uma robusta árvore, ao pé de uma ladeira
íngreme que saía de uma das avenidas principais daquele bairro.
Imediatamente ele guardou as asas e caminhou para a avenida. O
quarteirão estava completamente deserto, a não ser por dois
apartamentos que via iluminados com velas. Um ficava em um prédio
com oito andares e o outro em um com dezessete, ao lado.
Astaroth parou de caminhar e analisou os prédios atrás de suas
costas. Um deles estava arruinado e o outro completamente escuro.
Nesse caso, ele deduziu que seu alvo abrigava um daqueles
apartamentos, pois ele sabia sua coordenada atual. Pelo menos
daquele humano, que naquele momento da história da humanidade,
era um dos quatro. Sempre existiam quatro pessoas. Quando um
morria, logo outro, com a alma perturbada, nascia.
Todas as casas daquele quarteirão também estavam apagadas.
Ele não hesitou e atravessou a rua, rumo à portaria do primeiro prédio
que julgou ter sua alma humana, tão importante naquele momento. O
portão estava arrebentado. Então ele apenas o empurrou e entrou,
subindo as escadas que davam no hall. Nessa trajetória, ele contou o
quarto andar como seu alvo, vendo a luz cheia ao lado do prédio. Foi
quando viu o vulto de uma cabeça humana olhando para fora da
janela. Seus olhos se encontraram e a pessoa entrou rapidamente. Em
seguida, a luz da vela se apagou. Imediatamente Astaroth disparou
prédio adentro.
242
Enquanto o duque subia as escadas de quatro em quatro degraus,
com agilidade sobre-humana, pensou que teria sido mais fácil e rápido
saltar até aquela altura e entrar pela janela. Considerou-se burro por
isso, mas continuou e em menos de cinco segundos, alcançou o andar
desejado. Não achou possível que o humano tivesse subido as escadas
antes de ele chegar lá. Como previsto, quando empurrava a porta
corta-fogo da escada, escutou o barulho de uma porta batendo ao final
do corredor da direita.
Astaroth caminhou naquela direção e se deparou com duas
portas. Uma delas estava semiaberta, então ele escolheu a fechada.
Tentou girar a maçaneta, mas a porta estava fechada. Por algum
motivo resolveu ser educado naquele momento e bateu na porta com
os nós dos dedos. Com seus ouvidos aguçados, pôde escutar um
movimento quase silencioso dentro do apartamento, mas ninguém deu
passos que pareciam vir rumo à porta. Já era impaciente por natureza,
mas com um pouco mais de força, bateu novamente na porta. Mas
nesse momento, o que escutou foi o barulho de outra porta dentro do
apartamento se abrindo. Com uma poderosa ombrada, ele reduziu a
porta a minúsculos pedaços e avançou para dentro do apartamento.
Passou a cozinha e entrou na sala. De cara, olhou pelo corredor à
sua esquerda que provavelmente dava nos quartos. Quando olhou à
direita, viu a porta no fundo da sala batendo. Do momento que
estourou a porta e chegou ali, não tinham se passado mais de dois
segundos, então alguém saiu do apartamento e provavelmente eram
duas pessoas. Deduziu isso pelo intervalo de tempo que a porta se
abriu e se fechou.
Ele avançou como um lobo e puxou a maçaneta da porta com
ferocidade. A porta inteira saiu em sua mão. Um momento de
confusão tomou conta de seu ser e ele arremessou a porta contra a
parede, transformando-a em pequenos detritos de madeira. Quando
243
olhou para o hall externo, viu um dos humanos pulando para o poço
do elevador e descendo pelo cabo de aço. Ele conseguiu ver seus
olhos quando se encararam e soube que aquele não era quem
procurava. Mas como achava que eram dois, continuou sua
perseguição, já começando a achar aquilo chato.
Astaroth mergulhou no poço do elevador passando por um dos
humanos, sem dar atenção nenhuma a ele. O segundo que descia na
frente que era seu objetivo. Quando ele o alcançou, o humano já
colocava as pernas para fora do poço, no andar térreo. O duque apenas
esticou o braço e agarrou sua mochila. O homem sentiu um tranco e
deixou sua mochila para trás. Nesse momento, o segundo humano,
que ainda descia pelo cabo, caiu em cima do duque. O peso quase não
fez diferença para ele, mas o desconcentrou.
Olhando para a frente, o duque viu quando o seu perseguido
passava pela porta de metal torto da portaria do prédio. Ele ficou
furioso. Em seguida, olhou para trás e encarou, como um leão, o
humano que tinha caído em cima dele. Astaroth não se conteve e
agarrou seu pescoço, erguendo-o do chão. Sua próxima reação foi
muito mais hostil, pois com muita força, arremessou o humano contra
a parede, fazendo com que seu corpo explodisse em uma massa
vermelha.
Sem perder tempo, ele avançou para fora do prédio. Com sua
velocidade sobrenatural, chegou a tempo de ver o humano virando
uma esquina, correndo. Como uma bala, ao disparar de um potente
revólver, Astaroth avançou e dobrou a esquina. Em menos de um
segundo, já estava com o humano em suas mãos.
O escuro da noite não permitia que o duque enxergasse seus
olhos com nitidez, então, enquanto ele segurava o humano que se
debatia em sua mão, pelo pescoço, acendeu a luz rubra de suas íris.
Isso iluminou o local como duas pequenas chamas. Estavam de baixo
244
de uma árvore cheia de folhas verdes. Suas raízes fortes já começavam
a quebrar a calçada, avançando para o asfalto.
Ao encarar os olhos do humano completamente amedrontado,
Astaroth viu algo que não imaginava ver. O calor da perseguição o fez
esquecer de que aquela poderia não ser a sua presa. Foi exatamente
isso o que aconteceu. Ele não enxergou o poço sem fundo que
enxergou nos outros. Isso o deixou ainda mais furioso.
– Você só me fez perder tempo, verme! – Em seguida, Astaroth
deu um golpe com as costas da mão no rosto do jovem, arrancando
sua cabeça. O sangue voou em seu rosto e ele limpou com o
antebraço.
Quando olhou para o prédio ao lado, não viu uma, mas duas
janelas acesas. Suas chances haviam aumentado e isso o fez perceber
que ambos os prédios podiam abrigar sua presa, mesmo sem luz.
Mesmo assim, preferiu arriscar nos apartamentos já acesos que
ficavam um no quinto andar e o outro no primeiro.
Ele subiu muito rapidamente e logo já arrombava a porta do
apartamento do primeiro andar. Ele procurou humanos na casa e
achou. Era uma velha com não menos de setenta anos e uma
menininha com aproximadamente oito anos. Nenhuma das duas
possuía aquele olhar. O pavor nem chegou a dominar o peito das
humanas, pois o duque percebeu tudo isso em menos de dez segundos
e saiu, dando as costas para as duas.
Quando chegou ao quinto andar, arrombou o apartamento e foi
até o quarto que tinha a luz acesa. Mas o cômodo estava vazio.
Apenas uma lanterna acesa estava jogada no chão. Isso o fez pensar
que o humano tinha saído às pressas daquele lugar. Astaroth colocou
toda a sua velocidade nas pernas e percorreu cada cômodo de cada
apartamento daquele prédio, descendo do último ao primeiro andar.
Não demorou mais do que dez minutos para vasculhar o prédio todo.
245
Impaciente, avançou para o prédio ao lado, onde tinha
encontrado os primeiros humanos. Fez a mesma coisa, mas este por
ser menor, demorou a metade do tempo. Em seu coração, já começava
a surgir um sentimento de derrota.
Sem artifícios para localizar aquele humano, começou a
arrombar casa por casa que se erguia naquele quarteirão. De tão
furioso, aniquilou duas famílias que encontrou. Em nenhuma delas,
viu sua presa.
O duque avançou para mais dois quarteirões, fazendo a mesma
coisa. A cada casa que não encontrava seu humano, a fúria em seu
peito parecia aumentar a solidez. Em determinado ponto, quando
localizou uma família com quatro pessoas, com um pai, dois
adolescentes e uma criança, logo imobilizou todos. Olhando em seus
olhos, não viu nenhum que tinha aquela semelhança. Esse foi o
momento em que o sentimento de derrota o assolou. Ele criou duas
esferas de energia, uma em cada mão. Não foi preciso lançá-las, pois
só sua temperatura foi o suficiente para matar os humanos em poucos
segundos.
Não satisfeito, colocou mais potência nas esferas. Abrindo os
braços, lançou-as contra os muros das paredes, destruindo-os. Mas as
esferas pulsantes não pararam e continuaram avançando, destruindo
dezenas de casas por todo o seu caminho. Em mais uma investida, o
duque criou uma única esfera rubra em suas mãos. Em seguida, alçou
voo, alcançando duzentos metros de altura. Ele não pareceu lançar,
apenas deixou que a esfera despencasse.
Quando ela tocou o chão, a explosão foi descomunal. O
cogumelo escaldante logo alcançou Astaroth, mas ele se manteve no
lugar, deixando que as chamas tentassem consumi-lo. O duque era
poderoso e aquilo não lhe fez nem cócegas. Quando as chamas se

246
dissiparam, ele flutuou e desceu tocando o chão da cratera que tinha
ficado no lugar do quarteirão.
– Verme maldito! – O duque cerrou um dos punhos. – Eu vou
encontrá-lo!

***
A não mais de um quilômetro dali, Mazarak, Daniel e
Chavakiak voavam, a toda velocidade, sentido à explosão. Não
demoraram mais do que cinco segundos para alcançá-la. Quando
chegaram, a cem metros de altura, viram Astaroth pousando meio a
uma grande cratera, enquanto a poeira ainda se dissipava.
Mazarak não hesitou e explodiu o ar, sentido a Astaroth. Pousou
a cinquenta metros dele, como um meteoro, explodindo detritos do
solo vermelho que tinha ficado no lugar do quarteirão.
Quando a poeira começou a se dissipar, Astaroth viu a silhueta
de Mazarak com suas asas negras, inclinando o corpo.
– Você está de brincadeira comigo! – Astaroth praguejou.
– Assumo que não é fácil localizá-lo! – disse Mazarak, enquanto
surgia da poeira levantada, imponente.
– Saia da minha frente, ou passarei por cima de você! – Astaroth
pisoteou firme o solo.
– Eu conto com isso – retrucou Mazarak, parando e afastando
suas pernas, ficando em postura de luta.
Astaroth soltou um rosnado de fúria e voou para cima de
Mazarak. O duque da luz foi acertado por um poderoso murro que o
jogou a mais de duzentos metros. Ele caiu deitado, com os braços já
flexionados. Em seguida, bateu as asas e avançou furiosamente contra
Astaroth, que fez o mesmo. Mazarak berrou:

247
– Eu nunca permitirei que você mate mais humanos!
Em seguida, o choque de seus corpos criou uma energia que
irradiou por dezenas de metros. Ambos foram lançados a centenas de
metros de distância e dezenas de altura, na direção em que Astaroth
vinha correndo. Ambos bateram contra uma vidraça de um prédio
comercial, rolando oitavo andar adentro. Quando seus corpos pararam
de rolar, os dois caíram, um em cada lado, daquela sala.
– Se você parar com essa babaquice agora, eu deixo que você
viva! – rosnou Astaroth. – Você não enxerga que somos deuses
perante esses vermes de barro?
– Eu nunca permitirei isso! – Mazarak explodiu sua áurea
esverdeada e partiu violentamente para cima de Astaroth.
Quando seus corpos se chocaram, a vidraça inteira daquele
andar se estilhaçou por todos os lados. Mazarak grudou com as duas
mãos no ombro de Astaroth e pulou, batendo o corpo do duque do
inferno no teto, abrindo um rombo. No chão novamente, Astaroth
segurou o ombro direito de Mazarak e lhe deu um soco direto na face.
Mazarak, que ainda o segurava, fez o mesmo e eles trocaram meia
dúzia de socos, até que Astaroth acertou um mais poderoso e Mazarak
saiu voando do prédio, acertando o prédio ao lado com seu corpo.
O duque da luz destruiu vigas de concreto e aço com o seu
corpo, saindo pelo outro lado do prédio. Este que soltou um estrondo e
de repente todos os andares de cima caíram com centenas de milhares
de toneladas em cima do andar abalado pelo corpo de Mazarak. Um
jato de poeira esférico foi expelido pelo prédio e ele começou a pender
para o lado, batendo no prédio vizinho com uma força descomunal.
Por um trabalho majestoso de bons engenheiros, este prédio suportou
o peso do outro e se manteve em pé, segurando os dois.
Detritos como concreto, aço retorcido e vidro caíam em uma
chuva pesada, por quase dez andares. Astaroth já voava em direção ao
248
duque da luz, que despencava no ar. Em uma rajada poderosa de suas
asas, Mazarak investiu em um poderoso gancho que acertou Astaroth
perfeitamente, jogando-o a sessenta metros de altura. Em seguida, o
duque da luz voou, seguindo Astaroth e de cima para baixo, acertou-
lhe mais um soco. O corpo do duque do inferno foi arremessado
contra o topo de um prédio ainda em construção. Ele bateu com as
costas no aço reforçado de um guindaste. A pancada foi forte, mas
apenas para desnorteá-lo por um segundo. Quando olhou e viu
Mazarak se aproximando a toda velocidade, pegou uma corrente
grossa de aço no chão, girou, jogou-a e passou em volta do pescoço do
duque de asas negras. Rapidamente, Mazarak estourou a corrente com
os punhos, mas nesse momento, já havia sido puxado com toda força.
Livre da corrente, foi acertado por um soco, que o jogou a mais de
quinhentos metros ao longe. Um segundo depois, mais um soco,
jogando-o ainda mais longe, depois outro que o arremessou na
diagonal para baixo.
Astaroth avançou como uma águia para cima de Mazarak e antes
que o duque da luz batesse contra um prédio, ele parou bruscamente,
surpreendendo o duque do inferno e lhe acertou um gancho de direita
na mandíbula. O murro foi tão poderoso que Astaroth foi lançado a
quilômetros de altura, com Mazarak atrás dele, acompanhando seu
corpo a toda velocidade. Foi exatamente nesse momento que Mazarak
percebeu que ele e Astaroth eram seguidos o tempo todo por Daniel e
Chavakiah.

Quando Mazarak se nivelou ao corpo de Astaroth, o duque do


inferno percebeu e tentou lhe acertar um murro que desceu em direção
ao seu rosto. O duque da luz foi rápido o suficiente para se desviar do
soco, mas não do próximo que o acertou na lateral da cabeça, jogando-
o para o lado com violência. Mais um soco veio em sua direção, mas
249
desse ele escapou, esquivando a cabeça para o lado. Aproveitando
disso, subiu com um murro que acertaria o abdômen de Astaroth, mas
rápido, o louro dobrou o corpo e escapou do golpe.
O próximo golpe que Mazarak levou, quase o apagou. Uma
poderosa joelhada o acertou embaixo do queixo. Ele mordeu os dentes
tão fortemente que os sentiu ranger. Quase no mesmo momento,
sentiu o impacto do cotovelo de Astaroth no centro de sua cabeça,
arremessando-o novamente para baixo. Dessa vez, Mazarak começou
a despencar, desacordado.
Daniel viu quando Astaroth descia a toda velocidade na busca
de Mazarak, que caía indefeso. Sem hesitar, ele explodiu na direção
do duque e o surpreendeu com uma poderosa ombrada que acertou
suas costelas, partindo algumas delas.
Astaroth foi arremessado ao longe, sentindo uma dor alucinante.
Olhando para baixo, viu uma de suas costelas à mostra, atravessando a
carne. Sentindo um pouco mais de dor, ele a empurrou para dentro,
vendo a pele cicatrizar instantaneamente. Depois sentiu cinco estalos
dos ossos entrando no lugar. Isso durou cerca de sete segundos e
quando encarou Daniel furiosamente a cem metros dele, viu muito
abaixo o corpo de Mazarak despencando, já muito afastado. Outro
celeste já chegava perto do corpo do duque da luz para ampará-lo.

Quando sentiu o toque de Chavakiah em seu corpo, Mazarak


despertou e a primeira coisa que viu foi o rosto do general das
potências. A segunda foi de Astaroth, avançando como um míssil em
direção ao seu irmão de espírito e grudando em seu pescoço. Nesse
momento, ele disparou em direção aos dois e na trajetória reparou
quando Astaroth levou a outra mão à cabeça do anjo que tentava se
desprender da pegada do demônio. Isso o fez perceber a pior coisa que

250
poderia acontecer. Astaroth iria arrancar a cabeça de Daniel e foi
exatamente isso que ele começou a fazer.
O duque do inferno começou a girar a cabeça de Daniel com
força, mas o anjo não se deu por vencido e fazia força contrária,
mesmo sendo inútil. Ele sentiu o primeiro estalo e nesse momento
soltou um berro furioso. Um chute do anjo acertou as costelas de
Astaroth com força, mas ele não parou e continuou girando a cabeça
do anjo. A voz de Daniel começou a soar esganiçada e ele sentiu mais
um estalo. Nesse momento, sua mente começou a desvanecer e ele
apagou.
Mazarak viu quando a cabeça de seu irmão já estava em uma
posição quase impossível. Desesperado, ele soltou um berro:
– Nãaaaaooo!
O berro foi tão alto que fez Astaroth perder a concentração e
encarar seus olhos, enquanto ele se aproximava. Mazarak não soube
como, mas nesse momento, sua velocidade dobrou e dois centésimos
de segundo depois, estava acertando Astaroth com um soco tão
violento na face que sentiu dezenas de ossos do crânio do duque do
inferno se partindo. Daniel caiu desacordado em seus braços e
Astaroth foi lançado a quase um quilômetro dali.
Chavakiah chegou freando bruscamente ao lado dos irmãos de
espírito.
– Vá! Eu cuido dele.
Mazarak meneou a cabeça e lhe entregou o irmão. Nesse
momento, viu algo que não tinha reparado a alguns quilômetros, nas
costas do general. Ao sul de onde eles estavam, uma gigantesca legião
angelical descia em um funil invertido, dourado, das nuvens.
– Eu cuidarei de Astaroth! Vá ver o que está acontecendo lá. –
Mazarak apontou o local com a cabeça e Chavakiah se virou para
olhar.
251
Nesse momento, o general identificou as potências celestes, em
centenas de milhares deles. Um sorriso grandioso veio à tona e ele
partiu com Daniel em seus braços.

252
PARTE SEGUNDA

NO MUNDO DOS HOMENS

253
CAPÍTULO 35

Os dois anjos desciam em sentido à cidade de Monte Negro.


Uma grande estrada de terra, que se erguia de ponta a ponta, agora
estava reduzida a cinzas e apenas alguns pontos eram possíveis de
serem vistos.
Haziel pousou meio aos detritos, colocando Hector no chão.
Caliel pousou em seguida, fazendo a mesma coisa com Aron. Ele se
adiantou até Haziel, que espreitava por entre os montes erguidos, no
meio da estrada.
– O que você pretende? Não acha que estamos correndo riscos?
– Não percebo nenhum tipo de energia maligna aqui. Sinto que
vamos encontrar algo importante neste lugar!
Caliel encarou Haziel durante um tempo, com reprovação.
– Que seja! Façamos isso rapidamente, pois não temos tempo a
perder.
Haziel não respondeu e se locomoveu, subindo um monte com
quatro metros de altura. Os dois humanos e o ruivo o observaram,
enquanto ele fitou o horizonte por alguns minutos. Em seguida,
descendo em passos rápidos, disse:
– Caliel, eu preciso da sua ajuda!
O ruivo estava impaciente, mas não demonstrou isso.
– Diga, Haziel!
– Vou vasculhar o que sobrou da torre. – O louro se virou e
encarou a grande construção de Pruflas.
– Por que você quer tanto fazer isso?

254
– Eu não sei. Mas sinto algo que nunca senti! Preciso averiguar,
senão não ficarei em paz.
– É! Sem bem como é isso – retrucou Caliel.
– Você entenderá – disse Haziel, enquanto andava em direção à
torre.
– Acho que você é que tem que entender primeiro. – Caliel falou
em tom um pouco mais alto, pois Haziel já estava a mais de dez
metros dele.
– O que eles estão fazendo? – Hector indagou a Aron, enquanto
se abaixava para ver o que ele fazia no chão.
O humano raspava o chão com uma vareta. Escrevia o nome de
“Sun” repetidas vezes e acabou não respondendo por não escutar o
que Hector perguntou. Hector se sentou ao lado dele, vendo a escrita
no chão, e perguntou:
– Quem é Sun?
Aron respirou fundo com os olhos tristes.
– Minha esposa!
– Você a perdeu? – Hector encarou Aron.
– Mais ou menos! – Aron atacou a vareta longe. – Quase tudo
que acontece agora é porque estamos em uma missão para resgatá-la.
– Onde ela está? Quero ajudar!
Aron passou a mão no rosto, esticando a pele para baixo e
depois disse:
– Está aqui! – disse Aron apontando o dedo para o chão.
– Aqui nessa cidade?
– Não! Aqui no inferno.
Um calafrio subiu pela espinha de Hector ao ouvir aquilo.

255
***
Haziel guardou as asas enquanto se aproximava da torre, pois
ainda precisava ser cauteloso. Afinal, tinham dois humanos
completamente indefesos com ele. A cinco metros da construção, ele
parou e a encarou de baixo para cima. Com um salto, que subiu a mais
de dez metros, ele afundou a mão na rocha que compunha a torre
como com garras. Pequenos pedaços de pedras e poeira se soltaram.
Ele deu mais um pulo e alcançou mais oito metros. Logo ele levou a
mão à primeira abertura e entrou, puxando o corpo para dentro de um
buraco completamente escuro.
O anjo não podia ver, mas seus sentidos apurados lhe permitiam
andar pelo local sem esbarrar em nada. De vez em quando escutava
alguns ruídos, mas com certeza, vinha apenas de alguns insetos
infernais. Algo chamou sua atenção e mesmo sem ver, ele dobrou um
corredor à direita e continuou andando. Em determinado ponto
daquele corredor, o piso começou a ganhar certo grau de inclinação.
Súbito, Haziel parou, não vendo nada na sua frente. Ele deu quatro
passos para trás, correu e pulou. Abaixo dele, estendia-se um buraco
com mais de dez metros de diâmetro, mas isso ele não pôde ver, só
sentir.
O guerreiro começara a experimentar coisas que nunca tinha
experimentado antes. Nunca teve seus sentidos tão apurados. Estava
no escuro, mas era como se pudesse ver tudo quase nitidamente.
Quando a primeira rampa acabou, uma segunda à esquerda, que
acompanhava a primeira paralelamente, continuava subindo. Ao final
dela, Haziel avistou uma luz dourada muito fraca e contou
aproximadamente cento e cinquenta metros até o sutil clarão, que a
cada passo dele, percebia que começava a pulsar e ganhar brilho.

256
Nesse momento, um sentimento de curiosidade despertou com força e
seus passos ganharam velocidade.
Quanto mais o anjo se aproximava, mais forte ficava o brilho.
Quando estava a dez metros do que viu ser uma entrada disforme
cortada na rocha, uma grandiosa luz dourada era esbanjada com raios
dourados. Aquele foi o momento em que Haziel começou a sentir seu
coração palpitar e uma emoção familiar tomou conta de si. Agora
caminhava em passos calmos. Quando chegou à entrada, olhou
diretamente para o ponto de onde a luz irradiava.
Um choque de emoção abalou o corpo do anjo e ele caiu
ajoelhado. Jogada, como um lixo qualquer, estava sua espada, que o
acompanhou pelos últimos cento e cinquenta mil anos e há apenas
cem anos, tinha sido tirada à força dele.

257
CAPÍTULO 36

Cento e cinquenta mil anos atrás – Segundo Céu.


Haziel corria junto a Hariel, acompanhados de centenas de
milhares de legiões angelicais, em sentido à grande construção que
Deus tinha criado há apenas um dia, para todos os refugiados. O
desespero daqueles anjos era grande. Em uma época quando o Céu
ainda não conhecia a maldade, apenas centenas deles iniciavam uma
poderosa luta de sangue contra seus próprios irmãos.
– Hariel, o que está acontecendo? – Haziel indagou enquanto
corria, com o olhar quase perdido.
– Querido irmão! Baalberith incorporou algo que estão
chamando de O Mal.
Nesse momento, uma morada com dois andares, branca,
explodiu em uma chuva de detritos, acertando dezenas de anjos
refugiados. Um grande bloco, com mais de cinquenta centímetros,
quase acertou Haziel na cabeça, mas Hariel o jogou para o lado e ao
mesmo tempo se desviou do fragmento, rolando no chão. Olhando
para baixo, enquanto ainda estava sentada, viu seu joelho ralado,
gotejante de sangue. Uma fisgada de dor subiu por sua perna.
– Obrigado, irmã! Venha, temos que continuar! – Haziel
estendeu a mão para ela e a ajudou a se levantar.
Nesse momento, eles escutaram um som grave tão poderoso que
pareceu vir de uma trombeta. De mãos dadas, entreolharam-se e
continuaram correndo meio à multidão de anjos que forravam a
paisagem com suas asas brancas. Alguns deles, mais corajosos, ou
desesperados, tentavam erguer voo. Mas nenhum chegava às alturas,

258
pois uma força maior os jogava para o chão novamente com tanta
violência que todos seus ossos se partiam.
Finalmente, chegaram à recente construção que se dividia do
restante do Sexto Céu, por um titânico muro branco que se erguia a
mais de trezentos metros de altura. Os irmãos entraram e continuaram
correndo. Inúmeros celestes entravam pela passagem ao mesmo
tempo, aos empurrões. Alguns caíam e não conseguiam se levantar
mais, pois a multidão, que chegava como um mar de desespero, não
permitia.
Haziel e Hariel se afastaram do grande muro, cerca de cem
metros e ficaram parados, sem ter mais para onde correr. Uma enorme
multidão de asas brancas ia se distribuindo pelo amplo terreno
esférico, cercado pelo muro. Se aquela grama verde, abaixo de seus
pés, não fosse divina, seria reduzida a fragmentos verdes, misturados
com barro. Mas ao invés disso, ao serem pisoteadas, as folhas
voltavam ao seu eixo vertical e se mantinham eretas, fortes como
folhas de aço flexíveis.
Após muitos minutos de pavor e quando todos os anjos
sobreviventes já estavam dentro do terreno, uma grande pedra, com
vinte metros de altura, desceu e com um estrondo e levantando poeira,
lacrou o portão. Seguido disso, todos tremeram com o poderoso som
grave que soou novamente. De repente, tudo ficou calmo. Inclusive
dentro da arena com dezenas de quilômetros.
Súbito, o muro tremeu com um poderoso impacto de fora para
dentro. Muitos anjos se assustaram com gritos. Alguns choravam em
murmúrios e rezavam pedindo proteção ao Pai. Após mais alguns
segundos, a construção tremeu novamente, só que com mais força.
Uma grande rachadura abriu do chão até onde o muro acabava,
soltando pó e pequenos detritos.

259
Todos os anjos começaram a dar passos para trás ao ponto de se
espremerem para se afastarem do muro. Haziel e Hariel tinham na
frente deles, pelo menos duzentos metros de anjos. Atrás era um mar
infinito.
O próximo impacto contra o muro foi ainda mais poderoso e o
destruiu, abrindo um rombo maior do que cem metros de diâmetro.
Rochas, com mais de dois metros, acertaram anjos em cheio,
esmagando-os. Os celestes corriam e se trombavam. Alguns tinham
membros decepados e asas tingidas de vermelho.
– Gente, eu estava procurando por vocês. – Daniel chegava aos
empurrões, passando por dezenas de anjos, até chegar aos irmãos de
espírito.
Mazarak chegou quase junto com ele, em um espaço de cinco
segundos.
– Vocês sabem o que está acontecendo? – indagou o anjo de
olhos verdes.
– Estão dizendo que Baalberith está dominado por uma coisa
chamada de O Mal.
– Eu li sobre isso nas escrituras sagradas, mas achei que não
passava de uma história – disse Mazarak, com o olhar perdido.
Os gritos recomeçaram estridentemente e Daniel olhou para o
grande rombo no muro.
– Acho que eu entendo o que é esse mal! – disse o anjo de olhos
de fogo, estupefato com o que via. A figura à sua frente era uma coisa
que para ele ainda não tinha nome. Poderia ser chamado de feio, mas
para os celestes, essa palavra ainda não existia. – O que é aquilo?
Os três anjos se viraram e sentiram um calafrio na espinha,
diante do que viram. Uma criatura titânica cuspia fogo pela boca,
como um potente chafariz escaldante. Suas patas estavam erguidas
como cavalos quando relincham antes de um pinote. Em poucos
260
segundos, as patas já tocavam o chão, como duas grandes montanhas.
Ondas de terra partiram daqueles pontos, soterrando centenas de
anjos. A criatura feroz tinha a pele escamosa, escarlate. Seu focinho
de dragão expelia nuvens de vapor fervente, enquanto ela passava seu
olhar por toda a região da arena.
Haziel encarava a besta com seus olhos arregalados. Nunca tinha
presenciado uma criatura com todas aquelas feições que o deixavam
tão arrepiado. Por um breve momento, os olhos negros do monstro se
apagaram e uma cor, com todas as cores do arco-íris juntas, floresceu
no lugar das trevas.
– É Baalberith – disse o louro.
Todos os anjos, perto de Haziel, encararam-no.
– Do que você está falando? – indagou Hariel.
– Essa criatura é Baalberith! – Haziel se virou para os três mais
próximos dele.
– Se essa criatura é Baalberith, o que ele está fazendo? Como ele
pode estar com essa aparência? – indagou a loura.
– Tenho certeza de que tem a ver com a humanidade. – Mazarak
cerrou um dos punhos nesse momento. – Ele nunca aceitou isso e
todos nós sabemos o que vem acontecendo nos últimos tempos.
– Baalberith ensina sobre o cosmos para vinte e sete legiões
angelicais. Será que o mesmo aconteceu a eles? – perguntou Daniel.
Sua pergunta foi respondida, quando viu Belielentrar flutuando
pela abertura, com uma energia rubra em volta de suas mãos. O
sorriso em seu rosto era diferente dos de quando todos brincavam e se
divertiam no Sexto Céu. Ele não conseguiu encontrar uma palavra
para aquele sorriso, mas ao vê-lo, arrepiou-se por completo. O anjo
era líder de algumas legiões e se ele estava com Baalberith, na certa,
outros líderes também estavam.

261
Haziel pensou em alçar voo e chamar os outros para junto dele.
Mas quando viu um grupo fazendo isso e em seguida Beliel os
detendo com uma força invisível que os marretou para o chão
novamente, desistiu.
– Meus caros irmãos – disse Baalberith com sua voz satânica e
forte como o som de uma trombeta –, nós sabemos e sei que muitos de
vocês desconfiam que o Pai nos trocou por essa tal humanidade.
Venho aqui com o restante dos nossos irmãos, também abraçadores
dessa causa, para convidá-los a se juntar a nós. A proposta é acabar
com os milhares de humanos que ainda estão em crescimento. Isso vai
mostrar ao Pai que eles são inferiores como meros insetos e descobrirá
que foi um erro criá-los. Quem quiser se juntar a nós, venha para fora
dos muros. Quem não quiser. Bom! Quem não quiser que aguente as
consequências.
– Você aguentará as consequências do Pai, por desafiá-lo. – Um
anjo imponente deu um passo à frente, encarando Baalberith.
O grande monstro baixou sua enorme cara enfurecida e a
aproximou a apenas um metro do anjo.
– Insolente! Ousa me desafiar? – Ele soprou um bafo quente no
rosto do anjo.
– Bariel é corajoso. Como ele pode desafiar esse ser que
Baalberith se tornou? – Mazarak encarava a cena a uns quatrocentos
metros dele.
– Dariel está se aproximando deles – disse Daniel.
Dariel entrou na frente do irmão de espírito, afastando-o para
trás. Olhando nos grandes olhos da besta, disse:
– Desculpe, Baalberith! – Bariel não sabe o que diz. – Dariel se
sentiu com o coração apertado em dizer aquilo, mas previa o pior e
preferiu agir com a politicagem.

262
– Obrigado, Dariel! Então vejo que está do nosso lado. – A voz
de Baalberith soava cavernosa.
– Não tenha dúvida disso, Baalberith!
– Mas irmão! – Bariel tinha suas sobrancelhas arqueadas.
– Deixe comigo! – Dariel sussurrou em seu ouvido. – Deixe
comigo e se afaste daqui. Te encontro daqui a algumas horas.
Hesitante, Bariel se afastou ao escutar seu irmão, frações de
segundo mais velho que ele, como sempre fazia. Vendo seu irmão de
espírito sair da fortaleza, fez seu coração partir, mas logo começou a
ver inúmeros celestes saírem de suas posições, para seguirem o
mesmo rumo de Dariel. Logo, milhares de anjos caminhavam de
cabeça baixa rumo à saída. Bariel não sabia se aqueles estavam sendo
guiados por seus corações, ou pelo medo.
Bariel começou a sentir um tipo de decepção pelos seus irmãos,
um novo sentimento que florescia em seu peito.
Subitamente o Céu inteiro brilhou em um dourado intenso e uma
esfera radiante, como uma estrela, começou a descer das nuvens. Ao
se aproximar, ficou evidente para todos os anjos que era a figura de
cinco dos primogênitos do Pai, os arcanjos divinos. Nesse momento,
os olhos negros de Baalberith encaravam, com ódio, os cinco. Ambos
flutuaram, até ficarem de frente para ele, mas quem se aproximou
mais foi Miguel.
– Repense no que faz, Baalberith!
– Eu já fiz isso e minha decisão está tomada, Miguel! Inclusive
te convido para se juntar a nós, pois tenha certeza de que
conseguiremos mostrar para o Pai o que queremos. Esses humanos são
facilmente influenciáveis. Eles não têm honra.
– Você me diz que o que está fazendo é honra?
Têm centenas de corpos de nossos irmãos pelos próximos dois
quilômetros adiante.
263
– Desculpe por isso! Alguns males vêm para o bem.
– Até você, Beliel? – Miguel encarou o anjo rebelde.
– Desculpe, arcanjo, mas creio que você esteja cego – Beliel
disse respeitosamente.
Nesse momento, Miguel percebeu que inúmeros líderes
celestiais se aproximavam deles, ficando logo atrás de Baalberith e
Beliel, flutuando no ar. Os rostos de alguns deles o surpreenderam por
estarem naquele meio. Dentre eles, estavam Astaroth, Azrael, Cérbero,
Lilith, Azazel, Abbadon e Dagon.
– Não somos nós que estamos cegos. – Miguel rodeou o dedo
indicador, apontando todas as centenas de milhares de celestes
naquele campo. – Arrependa-se, Baalberith. O Pai lhe perdoará.
– Nunca! Jamais me arrependerei de algo que acredito fielmente.
– Baalberith observou o restante dos anjos, que com a chegada dos
arcanjos, pararam de se locomover para fora. – Acho que é isso. Não
digam que eu não avisei. Quem não me seguir, enfrentará
consequências desastrosas. – Ele se virou, quase chicoteando os anjos
que estavam no chão com seu rabo e seguiu para fora da muralha.
Todos os rebeldes seguiram atrás dele e desapareceram meio aos
raios da estrela do Segundo Céu, que passavam pela abertura do muro.
Em um movimento súbito, Baalberith se virou furioso, surpreendendo
a todos e avançou contra os celestes, com seu titânico corpo. Quando
faltava não mais de dez metros para arrematar os arcanjos, que foram
seu alvo principal, ele bateu em um campo energético transparente que
funcionava como um muro. A onda de choque foi poderosa, tremendo
uma grande parte da arena.

– Espertos! – disse Baalberith, com os olhos negros estreitos.


– Ainda há tempo, Baalberith. Arrependa-se e não sofra as
consequências – gritou Miguel, com sua voz grave.
264
– Jamais! – retrucou o anjo satânico. – Em seguida, ele abriu a
boca e com um poderoso rosnado, jogou um grandioso jato escaldante
contra a camada transparente. Nenhum tipo de abalo foi sofrido e ela
se manteve intacta.
– Digo mais uma vez, Baalberith. Arrependa-se!
Baalberith não respondeu nada e se virou com um bufo, fitando
todos com o canto do olho, antes de dar suas costas. Barbatanas negras
se mexiam para lá e para cá, enquanto ele se locomovia, afastando-se.
Quando todos os rebeldes saíram, o grande muro começou a se
organizar e sozinho, a se formar novamente. Além disso, uma grande
redoma, como uma bolha de sabão, formou-se em volta do grande
campo, deixando todos os celestes completamente isolados dos
rebeldes.
Miguel se virou para seus irmãos de espírito e flutuou, juntando-
se a eles. Em seguida, todos os arcanjos se viraram à legião completa
de anjos e juntos começaram a falar em uníssono.
– Nossos caros irmãos angelicais, falamos agora em nome de
nosso aclamado Pai de todas as coisas. Desde a criação do primeiro
anjo, há cerca de 5 BILHÕES de anos, ele previu uma revolta. Nossos
irmãos revoltosos estão doentes, mas cremos que podemos curá-los.
Todos nós teremos trabalhos árduos para serem cumpridos nas
próximas estações da estrela amarela. Para isso, teremos que organizar
todos em grupos. Esses grupos receberão dons divinos, para que os
ajudem nessa nova e mais difícil empreitada que já enfrentamos. Estes
dons serão divididos e escolhidos por vocês próprios.
Sons de murmúrios de milhares de anjos cochichando entre si se
iniciou. Os arcanjos continuaram falando e todos, respeitosamente,
pararam de falar.

265
– Agora falaremos a lista desses dons e ao final dela, cada um
que se dirija à sua respectiva luz. Os primeiros serão aqueles que
ficarão mais próximos do Pai, em uma dimensão que ficará entre o
reino dos anjos e dos arcanjos. Vocês serão presenteados com o
conhecimento pleno sobre a bondade e a maldade. Seus deveres serão
velar, adorar e louvar ao Pai, assim como propagar a sua glória. Seus
dons serão atribuídos dentro da ordem da purificação e da iluminação.
O fogo pulsante reinará eternamente em seus corações e mais dois
pares de asas serão acrescidos às suas primogênitas. Vocês serão
chamados de Serafins. O próximo grupo será chamado de
dominações. Estes farão cumprir a vontade do Pai em todos os seres
celestiais. Despertará no homem a força para vencer o inimigo
interior. – Nesse momento, os arcanjos repararam na feição de
confusão dos anjos. – Os futuros dominações auxiliarão nas
emergências e nos processos de toda a natureza. Em espírito, o
próximo grupo já tem seu líder estabelecido. Ele ainda não sabe, mas
o grande dia chegará e o fruto de sua alma amadurecerá em instantes.
Este grupo terá o grande objetivo de proteger todos os seres humanos
do poder maligno e destrutivo. – Mais uma vez houve confusão no
rosto dos seres celestiais. – Esse grupo será responsável pela ordem e
pelos quatro elementos: Água, Terra, Fogo e Ar. Esses serão
chamados de potências. Os que escolherem o próximo grupo terão que
estar dispostos a terem sua fisionomia adulterada. Vocês serão
representados pelo reino mineral e pelas leis que regem a criação.
Serão orientadores das pessoas, de acordo com a vontade divina. Vão
traduzir o desejo de Deus e oferecerão ao homem discernimento, nos
tempos difíceis que virão. Esses serão chamados de virtudes. Vocês
terão o poder de acalmar a fúria da natureza, como tempestades,
maremotos e terremotos. – Nenhum dos anjos conhecia essas palavras,
mas escutavam tudo o que os arcanjos diziam, completamente atentos.
266
– O próximo grupo é o que terá a tarefa mais complicada. Vocês serão
os guardadores divinos. Sua missão é proteger e direcionar os
humanos para o lado correto em suas trajetórias cotidianas. Apenas
alguns humanos escolhidos poderão disfrutar de um guardador o
acompanhando por toda a sua vida. Por último e não menos
importantes, virão os guerreiros de Deus. Primeiramente, estes terão a
tarefa árdua de proteger o Segundo Céu das forças malignas
crescentes. Após isso, a humanidade recém-criada pelo Pai enfrentará
uma de suas piores épocas e vocês serão a força para que eles possam
prosseguir, antes de se extinguirem por completo.
Miguel olhou para seus irmãos e avançou flutuando uma dezena
de metros à frente.
– Algum de vocês, entidades celestiais ocupantes do Segundo
Céu, tem alguma dúvida?
Metraton, um grande anjo careca, com uma barba negra enorme,
deu alguns passos à frente.
– Meu caro arcanjo, Miguel, a semelhança do Pai, eu tenho uma
dúvida.
– Diga, meu caro Metatron, o primogênito dos anjos. – Miguel
alargou seu sorriso.
– Nossos irmãos fora do muro sabem o que está acontecendo
aqui?
– Veja bem, primogênito dos anjos, com a graça de nosso irmão
Gabriel – Miguel apontou, com a palma aberta, para Gabriel que se
aproximou dele –, nós estamos todos presos em uma bolha do tempo.
Fora dessa redoma, o tempo não passa. Podemos ficar aqui por
milhares de anos. É claro que para isso, Gabriel teria que se empenhar
de uma forma majestosa. – Miguel viu Gabriel o encarando e sorrindo.
– Mas ainda bem que não precisamos disso. Não, pelo menos agora. –

267
O arcanjo mostrou um sorriso. – Mais alguma dúvida, meus queridos
irmãos?
– Sim, arcanjo do Pai! – Bariel deu um passo à frente, vendo
Miguel lhe menear a cabeça. – Você pode nos fazer compreender com
detalhes sobre os guerreiros?
– Grande Bariel, o décimo primeiro anjo. Não fomos informados
com detalhes profundos de cada casta. Mas todos nós sabemos que
apenas precisamos confiar nas ideologias do Pai e deixar que elas
fluam naturalmente.
– Obrigado, Arcanjo, à semelhança do Pai.
Vendo que não surgiriam mais dúvidas, Miguel inclinou o rosto
para cima, com os braços esticados, rumo ao solo. Todos os arcanjos
se uniram a ele em um triângulo e também fizeram a mesma pose.
Todos começaram a falar em uníssono:
– A força infinita do Pai celestial, agora nos concede o poder de
triunfar junto às castas futuras angelicais, do Segundo Céu. Cada um
de nós, arcanjos, será responsável por uma delas. Pelo fato de nosso
querido irmão Lúcifer não estar presente, um de nós ficará responsável
por duas castas.
Nesse momento, a luz de Rafael brilhou mais forte e acima dele,
uma esfera dourada, similar a uma estrela de pequeno porte, foi criada.
O brilho de luz flutuou sozinho, até se fixar em uma região próxima
ao muro protetor. Em seguida, mais uma esfera foi criada acima da
cabeça do arcanjo, só que essa tinha auroras reluzentes esbanjando
suas energias com todas as cores possíveis. Ela flutuou e se
posicionou também próxima ao muro, quase a um quilometro de
distância da outra. Com as duas bolas cintilantes em seu poder, Rafael
saiu de seu transe e flutuou à frente de todos os seus irmãos de
espírito.

268
– Meus caros irmãos angelicais – começou o arcanjo, com
aparência de afro, que naquela época ainda não estava estabilizada na
humanidade –, agora está em suas mãos o grande poder da escolha. A
esfera dourada se refere a quem escolher viver como um guerreiro
divino. Por favor, meus irmãos, quem sentir-se atraído, caminhe e
fique embaixo dela.
Haziel olhou para Hariel assustado, assim como Daniel olhava
para Mazarak, que tinha seu olhar estreito, completamente focado na
estrela dourada.
– O que acham, irmãos? – indagou Mazarak, encarando primeiro
Daniel e depois os outros.
– Vejam, é Bariel!
Todos olharam para onde Haziel apontava, vendo Bariel se
deslocar e começar a caminhar em sentido a esfera cintilante. Em
seguida, o louro viu um anjo que muito respeitava seguir Bariel uns
vinte metros atrás. Era Yesalel, um dos primeiros anjos a serem
criados e tinha amplo conhecimento em tudo que se referia ao cosmos.
Haziel o visitava pelo menos uma vez por dia, a fim de aprender sobre
a história celestial. Isso fez uma chama desconhecida acender no peito
do anjo e ele começou a caminhar em sentido à esfera.
– Haziel? O que está fazendo? – indagou Hariel.
– Eu serei um guerreiro divino, irmã! – Haziel começou a se
afastar.
Hariel petrificou por um momento e logo começou a andar em
direção ao irmão de espírito.
Daniel olhou para Mazarak com um sorriso e apontou a cabeça
para os dois irmãos louros, já alguns metros na frente. Logo eles
também começaram a caminhar em sentido àquela esfera.

269
– Ei! Onde vocês acham que vão sem mim? – O grande
Barrattiel passou correndo ao lado de Daniel e Mazarak e foi em
direção a Haziel e Hariel, com seus braços levantados.
Centenas de milhares de anjos tinham sentido o fogo guerreiro
pulsar em seus corações e com seus corpos e asas, preencheram uma
grande região abaixo da esfera dourada. Quando nenhum dos anjos se
movimentava mais, Rafael sorriu e disse:
– Embaixo da esfera colorida, sigam os que escolheram fazer
parte dos guardadores divinos.
O primeiro anjo a se movimentar foi uma mulher com os
cabelos dourados. Era Auriel, uma antiga celestial com conhecimento
estupendo. Sua luz brilhava mais do que a dos outros. Um anjo ruivo
foi em seguida dela, era Caliel. Após alguns minutos, todos os anjos já
ocupavam a região abaixo também daquela esfera.
Miguel se aproximou de Rafael, agradecendo-lhe. Em seguida,
criou sua própria esfera de luz. Esta brilhava com um fogo pulsante
vermelho. Esse fogo foi aceso apenas no coração de nove anjos e estes
se aproximaram dela, quase que juntamente. O que seguia na frente
era o grande Metatron. Atrás dele, seguiam Vehuiah, Lelahel, Sitael,
Jeliel, Elemiah, Mahasiah, Achaiah e Cahethel, os oito primogênitos
dos anjos que foram criados logo em seguida de Metatron. Apenas
estes ocupariam o lugar dos nove serafins de Deus.
O próximo arcanjo a criar uma esfera foi Jeremiel. Sua esfera
começou a brilhar e a ganhar corpo, logo se tornando uma grande bola
de luz lilás. Os anjos que sentiram o fogo dessa energia foram os que
escolheram a casta das potências celestes. O primeiro anjo a caminhar
para baixo dela foi Chavakiah. Em seguida dele, foi Aniel, uma
mulher anjo com os cabelos verdes e olhos amarelos como de
leopardos. Quase junto com ela, deslocou-se de seu lugar um anjo
com a pele mais escura do que a dos outros, uma nova experiência na
270
criação. Talvez este fosse um dos mais belos dentre eles todos. Era
Kamael, um anjo forte, alto e lindo como uma flor selvagem.
Uriel encarou todos os seus irmãos de espírito com um sorriso e
em seguida inclinou sua cabeça para criar sua esfera cintilante. Uma
alva bola de luz branca irradiou do céu e percorreu até seu local da
arena. O primeiro anjo a se mexer foi Vasariah, um celeste com
feições masculinas e felinas. Seus cabelos eram compridos e negros.
Os olhos brilhavam em um azul royal, combinando com a pele clara.
Quando ele passou por outro anjo, idêntico a ele, mas com olhos
verdes, ele o puxou pelo braço e eles começaram a caminhar juntos.
Este era seu irmão de espírito, o imponente Lecabel. Muitos outros
anjos o seguiram e fecharam o cerco das dominações celestiais.
Por último e não menos importante do que os outros, Gabriel, o
arcanjo titulado de A força de Deus, flutuou até a frente de seus
irmãos de espírito e criou uma esfera, quase mais brilhante do que as
outras. Ela pulsava em apenas sete tons e isso podia ser visto
nitidamente. Suas cores eram azul, verde, prata, marrom, dourado,
vermelho e branco. A esfera se locomoveu e os anjos começaram a
andar em direção a ela. O primeiro deles foi Mikael, seguido de
Yelaiah e Mihael. Logo, uma multidão deles e últimos de toda a arena
caminharam até embaixo da esfera brilhante.
Com cada uma das seis esferas ocupando seu lugar naquela
região, os arcanjos começaram um ritual, onde todos se organizaram
como uma ponta de flecha, deixando que suas luzes brilhassem
intensamente, como em uma só. Um feixe de luz tão poderoso quanto
uma supernova foi disparado de suas direções. Para cima e para baixo.
Da parte de cima, onde a ponta do feixe de luz tocava, quatro criaturas
surgiram imponentes. Logo começaram a descer no meio da luz que
subia como um raio tão poderoso quanto mil sóis.

271
Todos os anjos que viram aquilo, instantaneamente,
identificaram aquelas criaturas como os guardadores do trono do Pai.
Mas porque estavam ali? Não saíram de seus lugares, desde o
momento em que foram criadas, há cerca de 10 BILHÕES de anos. Só
quase cinco bilhões de anos depois, seria criado o primeiro anjo, com
o nascimento de Matatron. Subitamente os quatro transpassaram a
parede do raio que subia como uma cachoeira inversa na velocidade
da luz. Seus cabelos eram como fogo e queimavam em chamas a
1.000.000 graus. As tatuagens, em volta de seus corpos, brilhavam em
um tom avermelhado pulsante. No lugar dos olhos, duas chamas
queimavam na mesma intensidade de seus cabelos. Subitamente, o
raio se extinguiu e Miguel começou a falar:
– Meus caros irmãos angelicais – começou Miguel –, alguns de
nós tiveram a chance de conhecer os querubins do Pai. Quem não viu,
já ouviu falar deles. Eles estão especificamente aqui, para que
possamos usar um elemento especial que o Pai colocou em seus
espíritos. O elemento da força de guerra divina. – Miguel arqueou as
sobrancelhas. – Nós não entendemos completamente o porquê disso,
mas o Pai nos instruiu e nós o fazemos sem questionar.
– Que assim seja! – As centenas de milhares de anjos disseram
em uníssono.
Em seguida todos os arcanjos sorriram e Miguel acrescentou:
– Agora é com vocês, guardadores do trono divino.
Nesse momento, os querubins começaram a flutuar pela arena,
passando pelas regiões ocupadas por cada futura casta angelical.
Passaram pelos guardadores, em seguida pelos serafins e pararam na
frente do terceiro grupo que formaria a casta dos guerreiros de Deus.
A esfera cintilante acima da cabeça deles começou a pulsar mais forte
e em seguida desceu, abraçando todos os anjos daquela futura casta.
Logo se ergueu do chão novamente e começou a subir, levando
272
aqueles celestes com ela a quinhentos metros de altura, ainda dentro
da redoma criada pelos arcanjos.
O próximo passo foi emocionante, pois os querubins explodiram
suas quatro poderosas áureas como quatro bombas nucleares e
explodiram em direção à esfera que envolvia os anjos. No voo,
posicionaram-se em uma fila, com a distância de trinta metros de um
para o outro. O primeiro deles chegou e se ajeitou para começar a
rodear a esfera cintilante, na vertical. O segundo seguiu pela
horizontal. Os outros dois pegaram, cada um, uma diagonal da esfera.
Logo eles rodeavam a bola brilhante, voando como raios e formando
quatro anéis de linhas resplandecentes em volta dela. Por questão de
poucos metros, eles não se trombavam em certos pontos. Mas isso
estava muito bem calculado, pois caso isso acontecesse, uma explosão
tão poderosa que poderia extinguir todos os anjos, aconteceria.
A energia que estava sendo esbanjada daquele local era tão
grande que ao acertar a camada superior da redoma, auroras boreais de
todas as cores eram formadas. A bola brilhante envolvida pelos anéis
de fogo brilhava cada vez mais forte. Nesse momento, já não era mais
possível avistar os querubins e sim apenas os anéis formados por suas
velocidades bruscas. Um assobio se iniciou e começou a ficar cada
vez mais agudo, para depois de não mais de um minuto, parar
juntamente com uma explosão de luz que irradiou daquele ponto.
Todos os anjos e arcanjos foram cegados por um momento, até que a
luz se dissipou. No lugar dela, ficou uma gigante legião de guerreiros
de Deus flutuando no ar, rajando suas asas.
Os quatro querubins do trono de Deus estavam parados na frente
deles e no rosto, demonstravam uma primeira aparição do que poderia
ser sorrisos. Afinal, era deles que tinha partido a força para que os
guerreiros pudessem ser criados. Sentiam algo semelhante ao orgulho.
Com uma voz tão grave como um trovão, um deles pediu para que a
273
legião, com mais de cem mil guerreiros, pousasse. Eles desceram e
logo todos juntos tocavam o solo com seus pés.
Nesse momento, Gabriel se aproximou dos quatro querubins e
tomou a frente. Ele esticou a palma das mãos e materializou um objeto
com um formato agudo. A impressão era de que sua casca fosse
transparente e de que luzes, com centenas de cores, dançavam com
ondas, em seu interno. Gabriel olhou para cima e súbito, atirou o
objeto em direção ao espaço. Como uma lança, ela penetrou a camada
transparente da redoma e de lá uma onda de choque irradiou por toda a
sua parede, deixando por onde passou centenas de milhares de pontos
coloridos. Em seguida, o arcanjo juntou as palmas com os olhos
fechados e os pontos se desprenderam e seguiram rumo ao solo, como
estrelas cadentes.
Antes de tocarem o chão, cada um desses pontos coloridos foi
freando aos poucos e cada um deles parou na frente de um guerreiro
divino, parecendo os encarar. Eles desceram mais e ficaram na altura
de seus peitos.
Haziel encarava sua bola azul, igualmente a sua irmã de espírito,
ao seu lado. A de Daniel brilhava igualmente aos seus olhos, como a
de Mazarak brilhava em verde esmeralda. De uma hora para a outra,
as bolas de energia começaram a virar matéria espiritual, sendo que de
baixo delas, alongaram-se cabos. Muitos dos guerreiros o pegaram por
acharem óbvio. Mas muitos não e um deles foi Haziel que encarava a
bola de energia se transmutar, estupefato.
Mazarak, Daniel e Hariel seguraram o seu cabo e logo a parte de
cima da energia, que ainda era uma esfera, começou a se alongar, até
tomar a forma de algo comprido e pontudo. A energia colorida foi se
dissipando aos poucos e todos os objetos foram ganhando tons
prateados, ornados com detalhes bronzeados, dourados e com pedras
preciosas, entre o cabo e a parte aguda.
274
Quando todos os objetos acabaram de se formar, os anjos que
não o seguravam, apenas os viram despencando na grama verde.
Haziel olhou para o lado e viu sua irmã de espírito e os outros olhando
cada detalhe de seus novos objetos. O louro voltou sua atenção ao seu
objeto caído no chão, prateado como a estrela branca e nesse momento
sentiu um fogo ardendo em seu peito. Aquele sentimento foi
assustador, mas sem hesitar mais, ele abaixou e segurou sua espada, já
sabendo exatamente para o que ela serviria.

***
Monte Negro, Inferno – tempos atuais
O peito de Haziel palpitava de emoção. Ele engatinhou até sua
espada, vidrado nela. Ao chegar perto, hesitou em pegá-la. Mas logo
esticou a mão e a trouxe para junto do peito. Ele ficou abraçado com a
arma por quase um minuto e se levantou, tirando a cópia dela da
cintura, entregue a ele por Gabriel. Segurando uma em cada mão,
notou apenas uma diferença nelas. A pedra central de sua espada
original tinha um ângulo esférico para dentro, na parte superior
esquerda. A da cópia estava na direita. O louro encarou sua espada
original com um sorriso e em seguida guardou as duas, uma em cada
lado de seu cinto.
Haziel começou a correr e após apenas dois minutos, chegou
onde estavam Caliel, Aron e Hector.
– E aí? – indagou Caliel, com as mãos na cintura. Nesse
momento, ele já tinha suas asas guardadas.
– Achei o que eu procurava!
– E o que você procurava? – Os olhos rubros do ruivo
resplandeceram.

275
Haziel levou a mão à cintura e tirou sua arma original. Caliel a
encarou e logo percebeu qual objeto era aquele.
– Não é possível! – exclamou o ruivo. – O que te levou a ela? –
Caliel indagou, enquanto tocava a lâmina prateada com dois dedos.
– Eu não sei! – disse Haziel, guardando-a de volta. Em seguida,
olhou as próprias mãos. – Temos que sair daqui. Sinto que já posso
me desmaterializar novamente.
– Justo! – disse Caliel. – Eu ainda não posso, mas em breve,
poderei.

***
Mazarak pôde ver à distância, quando Astaroth explodiu sua
poderosa áurea rubra, saindo do meio da nuvem de poeira, criada pelo
impacto de seu corpo e avançou como uma bala vezes dez, em direção
a ele. O duque do inferno parou a vinte metros de distância e explodiu
mais uma vez a áurea, fazendo-a queimar com mais intensidade.
Quase não era possível vê-lo atrás daquele fogaréu de energia, mas
Mazarak aproveitou, enquanto sua cara torta se movia, para encaixar a
mandíbula no lugar, após ter levado o soco anteriormente. Astaroth
não precisou dizer nada, para Mazarak reparar em o quanto ele estava
furioso.
Astaroth respirou mais forte uma vez e como um raio, já
surpreendia Mazarak com um soco cruzado, que o arremessou não tão
longe, pois em seguida acertou-lhe um chute lateral, jogando-o para o
outro lado. Os golpes foram tão poderosos que o duque da luz pôde
sentir seu fêmur se partindo com o chute. A dor aguda quase o
apagou, mas ele apenas apertou forte a coxa e em dois segundos o
osso começou a se colar. O tempo não fora suficiente, pois logo

276
Astaroth o acertou com uma joelhada exatamente naquele ponto, dessa
vez, estilhaçando os ossos. O próximo golpe do duque do inferno foi
um murro na face de Mazarak que o jogou para baixo.
Enquanto caía, com a mente abalada, Mazarak pensava em
quanto poder Astaroth tinha escondido. Ele quase não pôde ver seus
golpes e se continuasse lutando do jeito que estava, com certeza não
duraria mais de cinco minutos nas mãos do louro. Além disso, agora
tinha um membro a menos para ajudá-lo. Mesmo assim, ele sabia que
era o único que tinha poder o suficiente para parar ou pelo menos
atrasá-lo. Pensar nisso, fez o fogo guerreiro de Mazarak pulsar mais
forte em seu peito e quando Astaroth se aproximou para acertá-lo mais
uma vez, com um soco gancho, o duque da luz o acertou na face.
Astaroth recebeu o golpe, mas não com a força que Mazarak
gostaria que fosse. Sua cabeça apenas foi arremessada para trás e
quase que instantaneamente ele a trouxe de volta, encarando Mazarak
com ódio. Nesse momento, ele grudou os dedos no duque da luz e
começou a esmurrar sua cara, dando um, dois, três, quatro socos. O
quinto foi muito mais poderoso, arremessando Mazarak para baixo,
como um míssil.
Em não muito mais de dez segundos, o corpo de Mazarak
acertou o solo com tanta força que detritos de asfalto, terra e aço
retorcido foram arremessados como ao explodir de uma bomba
poderosa.
Astaroth pousou ao lado da grande cratera aberta pelo corpo do
duque da luz. Vendo seu corpo inerte, cinco metros abaixo, ele saltou
e caiu ao seu lado. Mazarak tinha os olhos tão inchados que não podia
abri-los. Uma rachadura começava abaixo do nariz e terminava no
queixo, abundante de sangue. Manchas azuis, amarelas e rochas se
desfilavam por todo o seu rosto. De repente, seu corpo tremeu e
Astaroth escutou um sussurro. Ele se aproximou de Mazarak ao ponto
277
de ver sua pele começar a se fechar, muito devagar. Parecendo fazer
um pouco mais de esforço, ele viu Mazarak dizer com a voz
arranhada:
– Por que você está fazendo essas coisas?
– Simples! Para acabar com todos esses insetos de uma vez só.
– O que você vai ganhar com isso?
Astaroth alargou bem seu sorriso antes de dizer:
– O mundo! – uma breve pausa. – Agora vamos acabar com essa
baboseira e...
– O que você acha que nosso querido irmão Lúcifer vai achar de
tudo isso?
Nesse momento, Astaroth petrificou e seu sorriso se escondeu.
O que aconteceu a seguir, Mazarak não pôde ver. Os olhos de
Astaroth passaram do vermelho ao verde e seus membros começaram
a tremer. Então ele continuou escutando o que Mazarak dizia com sua
voz quase agonizante:
– Você sabe que eu não posso te parar e que os arcanjos não
vêm para esse mundo. Mas Lúcifer é diferente. Ele é um guerreiro.
Sempre foi.
Subitamente, os olhos de Astaroth voltaram ao seu tom escarlate
e ele recuperou sua postura imponente.
– Lúcifer me entenderá! – disse o duque do inferno, antes de se
virar e pular da cratera. Ele saiu de lá o mais rápido que pôde, pois por
algum motivo, seu coração o guiou de uma forma, em que ele preferiu
deixar o duque da luz viver. Em seguida, alçou voo, em busca de sua
quarta presa.
Mazarak ficou estirado no buraco. Sentindo a ausência de
Astaroth, esperou pelo pior nos segundos vindouros. Mas um minuto
se passou. Depois mais outro e logo ele pôde abrir os olhos. O que viu
primeiro foi a luz do dia indo embora ao final da tarde. Em seguida,
278
viu a silhueta de um humano o observando, surpreso. Talvez mais
curioso do que surpreso.

279
CAPÍTULO 37

Haziel e Caliel voavam o mais alto que podiam, enquanto


seguravam os humanos. Seguiam rumo à antiga passagem que eles
saíram do inferno há cerca de dois meses. Quando chegaram próximos
à região da abertura, pararam e começaram a procurar com os olhos.
Mas o que viram foram apenas rochas que se derreteram e se
solidificaram, unindo titânicas montanhas. Era impossível
descobrirem onde exatamente ficava a passagem, sendo que podia
muito bem estar dentro das rochas de uma montanha.
Haziel pensou em estourar tudo para achar o que queria. O poder
que usaria para isso seria enorme e alertaria uma grande parte do
inferno. Mas e se ela não estivesse mais lá?
– Você está vendo algo? – indagou Caliel.
– Não e não acho que vamos encontrar a passagem.
– Eu temia por isso.
Hector olhava de um para o outro enquanto eles conversavam.
– O que faremos então? – ele perguntou.
Aron já não falava mais nada. Sabia que não adiantaria. Deixou
as coisas fluírem naturalmente e ficou em seus pensamentos,
lembrando-se de seus momentos inesquecíveis com Sun.
– Eu não conheço outra saída daqui, a não ser pelo espaço. –
Haziel coçou o queixo. – Mas eu acho que eles não aguentariam a
longa viagem. – Ele olhou para os dois humanos.
– Eu concordo! Os animais seriam de grande ajuda nesse
momento – retrucou o ruivo. – Tem algum jeito mais fácil. Precisamos
apenas raciocinar.

280
Haziel meneou a cabeça e entrou em concentração. Caliel fez a
mesma coisa e pelo próximo minuto, todos ficaram mudos.
– Ei! Vocês não estão vendo isso?
Nenhum dos anjos respondeu a Hector, mantendo-se em seus
pensamentos.
– Acho que vocês vão querer ver isso – o humano disse
novamente, só que com a voz mais calma.
Isso sim fez os anjos lhe darem atenção. Quando Haziel olhou
para Hector, imediatamente olhou para baixo, vendo a pedra da lira de
Caliel pulsar novamente, só que com mais vontade. Nesse momento,
todos eles escutaram um som ensurdecedor, tão poderoso quanto o de
uma trombeta celestial. Aquele barulho rasgou o céu e abalou o
inferno inteiro. A centena de quilômetros de onde eles estavam, um
enxame negro de seres demoníacos alados ergueu voo.
– O que é aquilo? – Aron apontava para o lugar, com o coração
palpitante.
– Eu não sei. – Haziel respirou fundo. – Mas espero que não seja
o que...
– Sim, Haziel! Não pode ser outra coisa. – O ruivo flutuou um
pouco mais à frente.
– Do que vocês estão falando? – indagou Hector.
– Dos anjos das trevas! – disse Caliel, evidentemente
preocupado.
A luz da pedra aumentou, parecendo querer chamar atenção do
celeste. Sua pulsação parou e ela se manteve totalmente acesa.
Subitamente um zumbido partiu dela, mas era tão agudo que só os
anjos podiam ouvir.
– Aron, segure-se em meu pescoço – pediu Caliel.
O humano concordou com a cabeça e o ruivo o ajudou a se
posicionar. Livre com os dois braços, Caliel retirou a lira de sua
281
cintura com um clique. Em seguida, olhou para Haziel e para a lira
novamente, tocando uma corda. Nesse momento, energia como
pequenos fragmentos de purpurina dourada se soltou da pele de todos
eles, em um pequeno chuvisco. Caliel puxou mais uma corda, mais
grave e os fragmentos se soltaram novamente, só que em menor
quantidade. Em seguida, ele tocou uma mais aguda e dessa vez os
fragmentos se soltaram aos montes. Ele encarou Haziel novamente e o
louro lhe meneou a cabeça, concordando com o que ele faria, já
sabendo sua intenção só de ver seu olhar.
– O que está acontecendo? – perguntou Hector.
Caliel tocou uma, duas, três notas e em seguida passou os dedos
por mais cinco cordas. Uma chuva de fragmentos encheu a volta do
quarteto e com isso, Caliel continuou dedilhando e criando uma linda
melodia. Os fragmentos começaram a rodeá-los como uma galáxia em
volta de um grande buraco negro. Vários pontos de luz começaram a
brilhar mais do que outros e de uma hora para a outra, começaram a
girar em velocidade descomunal. Em um flash rodopiante, todos
desapareceram de uma hora para a outra e a luz se extinguiu até
chegar ao tamanho de um fóton, anulando-se completamente.
Subitamente, o quarteto surgiu em um breu absoluto, sem
poderem enxergar um palmo à sua frente. A primeira coisa que os
anjos notaram foi que seus pés tocavam o solo. A segunda fora pingos
de água escoando de rochas úmidas. A terceira chamou mais suas
atenções. Um ponto de luz branca estava a não mais de trezentos
metros deles. Vendo isso, Haziel colocou Hector no chão, mas antes
de tocar os pés no solo, o humano se desesperou e gritou, achando que
o anjo o estava largando. Esse momento foi de descontração, pois
todos riram em seguida disso.
Logo todos começaram a caminhar em direção ao ponto de luz e
em um minuto brotavam de uma gruta na floresta. Naquela região, era
282
dia e pelo clima, estavam nas primeiras horas da manhã. Mesmo com
tudo isso, eles ainda não podiam ter certeza de que estavam na Terra.
– Só há uma forma de saber onde realmente estamos – disse
Haziel.
Caliel entendeu e jogou Aron em seus braços. Haziel fez o
mesmo com Hector e os dois anjos alçaram voo, em uma linha de
noventa graus. Eles subiam tão rápido que um funil de ar começou a
ser criado em volta de seus corpos. Logo tiveram certeza de estar na
Terra, pois subiram tão alto que chegaram a ver a Terra se dobrando
em uma esfera. Aron já tinha visto o planeta daquela perspectiva, mas
não Hector. Ambos se mantinham vidrados no globo azul.
Os anjos se encararam, menearam a cabeça e sem perder tempo,
mergulharam rumo à região em que deixaram Barrattiel, quando
caíram na dimensão negra. Quanto mais se aproximavam do Brasil,
mais as águas iam ficando escuras e a sombra ia tomando conta do
planeta.
Já quebrando a linha do estado de São Paulo, os celestes
vislumbraram um aglomerado de anjos, flutuando a centenas de
quilômetros deles. Os humanos viram apenas um ponto de luz
brilhando intensamente, mas não identificaram o que era.
Sem hesitar, os celestes aumentaram suas velocidades e partiram
para o encontro de seus irmãos angelicais.

283
CAPÍTULO 38

– Você está bem, meu caro servo do Senhor? – O humano pulou


para dentro da cratera e começou a descer, segurando-se onde podia,
até chegar a Mazarak.
O duque da luz, nesse momento, já pôde movimentar seus
braços e com isso, inclinou o corpo para a frente, sentando-se. Sentiu
um estalo vindo de uma das asas, percebendo que seu osso tentava
entrar no lugar. O homem estava a menos de cinco metros dele,
quando ele tentou se levantar e caiu de novo, sentindo uma dor
poderosa na coxa. Seu fêmur ainda não estava bom e provavelmente
sozinho não conseguiria reunir todos os fragmentos de ossos
espalhados dentre os músculos, para se regenerar.
– Então é verdade o que estão dizendo! – disse o jovem parando
perto de Mazarak, com os olhos e sorriso tão vidrados que chegaram a
contagiar o duque da luz.
Mazarak ficou mudo por um momento, sem saber o que dizer.
Pensou em voar dali, mas uma de suas asas não entrava no lugar.
Correr também não podia. A não ser se saltitasse com uma perna só.
Levaria uma hora para chegar até a grande legião que vira
anteriormente e não estava disposto a fazer isso, pois se colocasse em
prática a ideia que começara a brotar em sua mente, demoraria no
máximo metade desse tempo.
– Você está bem? Deixe-me ajudá-lo. – O jovem de pele escura,
com um sorriso perfeito, aproximou-se mais do duque, esticando sua
mão livre. O outro braço envolvia um grosso livro de couro, abraçado
ao seu peito. Suas vestes estavam impecáveis, trajando uma camisa

284
branca, abotoada até o pescoço e uma calça social preta que caía sobre
sapatos pretos.
– Obrigado! – Mazarak aceitou a ajuda e debruçou no ombro do
homem.
Eles caminharam juntos até quando a cratera ficou mais
íngreme. Nesse ponto, o homem não poderia ajudá-lo.
– Deixe comigo agora.
Confuso, o homem se afastou e viu quando o duque cravou a
mão na rocha. Em seguida a outra e começou a escalar apenas com os
braços. Ele preferiu dar a volta, utilizando alguns pedregulhos e raízes
de árvores, para alcançar o nível da rua. Quando chegou, deu a volta
no buraco para alcançar Mazarak, que já o aguardava sentado.
– Eu posso te ajudar de alguma forma?
Mazarak o olhou com as sobrancelhas franzidas.
– Pode. Precisaremos de algum tipo de lâmina.
– Isso eu consigo muito facilmente. – O jovem se ergueu e
assobiou.
De trás do muro, mais cinco humanos apareceram e se
aproximaram cautelosos, com os olhos vidrados em Mazarak.
– Eu disse a vocês que o Pai está velando por nós! – disse o
homem que segurava o livro grosso de couro.
Mazarak não se importou nem um pouco com a presença
humana, pois nos últimos cento e quarenta e cinco mil anos, anteriores
aos últimos cinco, ele passou ao lado deles. A única diferença dentre
eles é que os antigos eram movidos pela fé e esses pela ciência. Mas o
duque sabia como lidar com eles perfeitamente e se adequar
completamente aos seus costumes.
– Jonathan, você poderia me emprestar a sua faca?
O homem alto e forte como um soldado entregou a faca ao
homem com o livro, respeitosamente. Em seguida, este se agachou e
285
passou o objeto a Mazarak. O duque da luz agradeceu, inclinando a
cabeça e sem hesitar, cravou a faca na sua coxa e começou a rasgar a
pele e músculos.
Todos os humanos, a não ser pelo homem forte, viraram-se
diante da cena repugnante.
– O que você está fazendo? – gritou o homem com o livro,
olhando com o canto do olho.
– Consertando minha perna! – disse Mazarak, com os dentes
cerrados.
– Esse cara é corajoso! – disse o grandão, com um sorriso
orgulhoso no rosto.
O corte aberto não tinha nada a ver com um corte cirúrgico.
Qualquer açougueiro poderia fazer o que o duque fez. Em poucos
minutos, ele conseguiu reunir quase todos os fragmentos de seu osso.
Pelo menos o suficiente para que eles pudessem se regenerar
completamente.
Quando os humanos voltaram a olhar, sua perna já estava
cicatrizando e os cortes que ele tinha feito porcamente, para todos os
lados, acabavam de se fechar. O duque se pôs em pé. Limpou o
sangue da faca nos trapos de sua calça e esticou a mão, girando o cabo
da faca, para que o homem com o livro pegasse.
– Agora é a sua vez!
Assustado o homem deu um passo para trás.
– Eu não...
– Deixe comigo! – O grandão tomou a frente e pegou a faca da
mão de Mazarak – O que você quer que eu faça?
– Faça o mesmo com a minha asa quebrada. Ela deve estar na
mesma situação da perna. – Nesse momento, já nem parecia que
Mazarak tinha sofrido todas aquelas contusões, pois se não fosse por

286
sua asa estar em uma posição estranha, ele estaria completamente
curado.
O homem grande deu a volta em Mazarak, rodopiando a faca. O
bom é que o duque não podia ver quando ia acontecer a primeira
fisgada e quando aconteceu, foi menos dolorido do que se ele tivesse
visto. Ele percebeu que o homem tinha prática com o que fazia. Isso o
fez pensar em o porquê disso.
– Caça com o meu pai – disse o homem, parecendo ler a mente
do duque. Ele me levou com ele dos meus dez anos até meus vinte e
cinco, que foi quando ele faleceu. Maldito javali! Mas tinha a carne
boa. – O homem deu uma risadinha. – Ainda bem que meu pai teve a
oportunidade de saboreá-la antes de subir. – O homem olhou para
cima. – Que Deus o tenha! Pronto, os ossos da sua asa estão
perfeitamente encaixados.
– Obrigado, humano! Tenho uma dívida contigo. Com todos
vocês! – Mazarak olhou os olhos de todos do grupo. Apenas uma
menininha lourinha, grudada na mãe, tinha seus olhos amedrontados.
Ele se aproximou dela e nesse momento ela foi para trás da mãe,
olhando entre suas pernas, para o duque. Ele se agachou e sorriu para
a pequena. – Não tenha medo, pequena! – Mazarak alargou seu sorriso
e olhando para a palma de sua própria mão, disse – Olhe!
Subitamente, um pequenino ponto de luz verde se formou acima
de sua palma. Mais duas, menores, surgiram em seguida, ao lado dela
e todas começaram a rodopiar levemente sobre a mão do duque.
Vendo os olhos da menina vidrados nas pequenas esferas, Mazarak
pegou a mãozinha dela e depositou as esferas. Ela trouxe sua mão para
perto de seus olhinhos azuis, arregalando-os cada vez mais. Súbito, as
esferas explodiram em uma pequenina chuva de fragmentos
brilhantes, fazendo com que a menininha soltasse uma gargalhada.

287
Mazarak se inclinou em sua imponente postura e encarou a
todos os humanos.
– Vocês acabam de fazer um amigo! – Ele meneou a cabeça a
todos eles. Foi quando a menininha correu e abraçou suas pernas. Ele
colocou a mão em sua cabeça a acariciando e a levantou em seu colo.
– Você parece ser uma menininha muito esperta! – Mazarak tocou seu
nariz com o indicador. – Continue assim e proteja a sua mãe! – Ele
encarou a moça sorridente à frente, também loura, com os olhos
idênticos aos da filha.
– Pode deixar, senhor anjo. – A menininha lhe meneou a cabeça.
Mazarak sorriu para ela, resplandecendo seus olhos verdes,
fazendo-a gargalhar novamente e em seguida a entregou para a mãe.
– Obrigado novamente, meus amigos! – O duque esticou suas
asas com dois metros cada uma e explodiu o vento, levantando poeira
no ar.

***
Voando em velocidade consideravelmente rápida, Haziel, Caliel
e os humanos alcançaram o aglomerado de celestes, em menos de dez
minutos. Quando chegaram, perceberam que 99% deles estavam
desmaterializados. As asas negras de Mazarak sobrevoando aquele
mar de celestes era inconfundível. Haziel entregou Hector para Caliel
que o segurou nos braços, já que tinha Aron nas costas e em seguida
voou até se nivelar com Mazarak. Percebendo, o duque da luz parou e
encarou Haziel.
– Você não tem ideia de como é bom te ver! – disse Haziel. –
Onde está Daniel?

288
– Estou exatamente procurando por ele. Deixei-o com
Chavakiah.
– Certo, vou ajudar a procurá-lo! Você sabe o que está
acontecendo aqui?
– Desconfio!
– Hum! Aquele é Kamael? – apontou Haziel para a figura
tremulante de Kamael atrás da camada que separava suas realidades.
– Sim! Aquele é o príncipe das potências. – Mazarak encarou
Haziel. – Vamos achar meu irmão!
O guerreiro e o duque começaram a sobrevoar os arredores do
funil de potências divinas e viam que por trás do véu, eram encarados
por vários deles.
– Acho que eles estão estranhando suas asas! – disse Haziel. –
Por que elas tinham que ser negras? – Haziel tentou fazer o máximo
tom brincalhão que pôde, mas que ainda soou um tanto marrudo.
– Porque não sou mais um anjo. Isso é característica total de
vocês.
– Eu não vejo diferença de nós para você! – retrucou Haziel.
– Veja bem, Haziel. Desde que tomei aquela decisão que nós
sabemos muito bem qual foi, não sou mais ligado ao poder divino do
Pai. Não preciso dele para exercer minha força.
– Certo! Mas não foi Lúcifer que conseguiu te trazer
novamente? Ele é um arcanjo do Pai.
– É... Foi... Isso é complicado! Acho mais fácil você conversar
com Yesalel.
Haziel sorriu e a uns duzentos metros dele, viu Hariel e
Barrattiel materializados. Os dois passaram a toda velocidade, indo
rumo a algum lugar. Haziel explodiu em direção a eles, com Mazarak
atrás dele. Quinhentos metros à frente, ele conseguiu abordá-los. Além
da surpresa no rosto, Hariel tinha melancolia nos olhos.
289
– O que foi? – indagou Haziel.
– É Daniel!
– O que está acontecendo? – Mazarak tomou a frente como um
trovão.
– Ele não está cicatrizando o pescoço quebrado – disse a loura
com desespero na voz.
– Leve-me até ele. – O duque da luz partiu junto a Hariel.
– Barrattiel! O que eles estão fazendo para ajudar Daniel? –
indagou Haziel.
– O jovem Malahel, aprendiz de Caliel, está tentando fazer algo,
mas não está tendo sucesso.
– Tem outros guardadores aqui?
– Não, apenas ele! – disse o grandalhão coçando a careca.
– Caliel estava comigo até poucos minutos atrás. Precisamos
localizá-lo,
– Isso seria perfeito – respondeu Barrattiel, com um sorriso.

290
CAPÍTULO 39

Mazarak pousou e rumou até o corpo de Daniel, estirado em


uma esquina destruída pelo violento combate dos anjos. Hekamiah
estava agachado, encarando o corpo de Daniel com a mão no queixo.
Afastado dois metros dele, estava Chavakiah, inclinado. Calado, com
as duas mãos no peito de Daniel, estava Malahel, esbanjando sua
energia colorida em cima do guerreiro.
Quando o duque da luz se aproximou de seu irmão de espírito,
seu coração palpitou e um calafrio atravessou sua espinha como um
raio. O pescoço de Daniel estava torto e uma energia dourada,
translúcida, percorria seu corpo. Isso o fez lembrar exatamente de
como foram os minutos anteriores à morte de Israel. Nesse momento,
o sentimento de agonia foi preenchido por um de esperança, quando
viu Haziel pousando junto a Barrattiel e Caliel atrás deles. Aron estava
com eles. Mas outro humano, estranho, também estava. Ele não deu
importância a isso e só ficou olhando, enquanto Caliel corria até
Daniel e o abraçava, envolvendo seus braços pelo ombro do guerreiro.
Malahel ia saindo para deixar Caliel fazer seu trabalho, quando
o ruivo disse:
– Não saia. Continue o que está fazendo, pois isso já aconteceu
antes com Bariel. Não vamos perdê-lo.
Malahel lhe meneou a cabeça e agora com mais vontade, por ter
seu instrutor ali junto com ele, começou a colocar toda energia
possível na investida. Caliel fez o mesmo e com não muito esforço,
todos escutaram um forte estalo do osso do anjo entrando no lugar.
Instantaneamente sua luz translúcida começou a se dissipar.

291
– Se fosse tão grave quanto o de Bariel, ele não teria aguentado!
– disse Caliel, levantando-se.
Hector e Aron estavam próximos dos anjos, apenas assistindo à
cena, bem concentrados. Os dois humanos não podiam ver a enorme
legião de potências celestes flutuando bem acima de suas cabeças.
– Aron! – chamou Hector. – Faz quanto tempo que você está
envolvido com esses seres?
– Pelo que eu sei, desde que nasci! Mas só fui descobrir sua
existência a menos de três meses.
– Como foi a sua história? – Hector andou dois passos e se
sentou sobre um pedregulho.
Aron se sentou ao lado dele e em cinco minutos lhe resumiu a
história toda. Foi nesse momento que se ligou que ainda não tinha
perguntado para ninguém, como exatamente tinha saído da ilha. Mas
deixaria isso para depois, pois queria mesmo preencher aquela lacuna
de sua história. Porém, seria em um momento mais propício, pois via
que Caliel estava ocupado, conversando com um anjo que ele não
conhecia. Em seguida, o ruivo o encarou e se locomoveu até ele.
– Aron! Temos que sair daqui. As coisas ficarão feias – disse
Caliel.
– Por mim tudo bem, mas antes... – Aron se lembrou de que
tinha ido até sua casa, apenas para pegar uma fotografia de Sun, mas
que infelizmente não conseguiu fazer. – Ah... Vamos logo!
Hector se levantou junto com Aron, espalmando as calças.
– Hector, desculpe! Mas você não poderá ir junto.
O indiano olhou com as sobrancelhas baixas por uns cinco
segundos e depois baixou a cabeça.
– Não tem problema! Eu sabia que essa história maluca estava
para acabar.

292
O tom de decepção em sua voz era nítido e isso fez o coração de
Caliel balançar, já que estava se afeiçoando também por aquele
humano. Como ele poderia deixá-lo naquele planeta, sabendo o que
viria adiante?
Hector se adiantou e abraçou Aron com um sorriso no rosto.
– Foi um prazer te conhecer, amigo! Tenho certeza de que nos
encontraremos novamente.

Aron conhecia aquele humano a não mais de vinte e quatro


horas. Mas o sentimento por ele fora instantâneo. Parecia ser um
primo próximo que não via há anos. Algo no espírito de Hector era tão
bom que qualquer um ao seu lado se sentia aconchegado. Mesmo com
suas loucuras, palavrões e bebedeiras.
Caliel viu a cena dos dois novos amigos se despedindo. Em
seguida, fitou Mazarak ao lado de Daniel, segurando sua mão com
força. Ao lado deles, reunidos, estavam Haziel, Hariel, chegada
recentemente naquele local, Barrattiel, Hekamiah e Chavakiah. Um
quarteirão deles, uma dupla de humanos assistia tudo, completamente
vidrados. Nenhum dos celestes se preocupava em se esconder, naquela
altura dos acontecimentos. Todos já sabiam que Astaroth tinha
conseguido levar três de suas almas e que a bomba estava para
estourar. Só não imaginavam como e onde. O ruivo não pôde deixar
Hector e lhe fez uma proposta.
– Acho que tem uma maneira de conseguir levá-lo conosco.
Hector se aproximou de Caliel, alargando seu sorriso.
Segurando sua mão, indagou:
– Como? Faço qualquer coisa!
– Eu não sei se isso funcionará, mas eu tive uma ideia que me
soou plausível, agora. – O anjo ficou pensativo por alguns segundos,
enquanto os humanos estavam vidrados nele. – Nós sabemos que não
293
foi só Aron que não foi possuído no holocausto. Sun também não foi e
isso talvez não tenha sido resultado da proteção e sim porque você
Aron, talvez tenha transferido seu DNA espiritual para ela.
Hector se sentia em um mar de confusão.
– Você acha que pode ser possível? – indagou Aron.
– Não tenho a mínima ideia, mas acho que não custa nada
tentarmos.
– Peraí, peraí! – Hector ergueu as mãos. – Você não está
querendo que a gente faça coisas, né? Isso extrapola meus limites!
– Como você é idiota! É claro que não! – Aron disse em tom
alto, fazendo com que os outros anjos olhassem para eles. – Como
faremos isso, Caliel?
– Acho que a troca de sangue seria o mais adequado. Mas
façamos isso longe daqui. – O ruivo fitou seus irmãos com os olhos
nesse momento.
Foi a primeira vez que Aron pensou que Caliel não via grandes
problemas em quebrar algumas regras. Tanto que elas fossem
totalmente positivas. Talvez isso o diferenciasse dos outros e por isso,
estava sendo levado ao vigésimo quinto lugar dos tronos do Pai, como
ouviu Rafael falar no Sétimo Céu.
Caliel se aproximou dos outros anjos e disse que se retiraria com
os outros humanos. Barrattiel se ofereceu para acompanhá-los, mas
Caliel mostrou seus punhos, sorridente e disse que não era necessário.
Todos menearam a cabeça a ele e ele foi em direção aos humanos,
colocando Aron nas costas e segurando Hector nos braços. Em
seguida, explodiu as asas e ergueu voo, com cautela. A dez metros do
chão, fitou pela última vez a dupla de humanos que os encaravam e
investiu fortemente nas asas, sendo jogado a cem metros de altura em
menos de dois segundos.

294
O ruivo se afastou daquele ponto quase vinte quilômetros e
pousou acima de um prédio alto. Os humanos se desprenderam e se
posicionaram um ao lado do outro.
– Eu farei isso o menos dolorido possível – disse o anjo.
Ambos os humanos engoliram a seco. Caliel esticou seu braço e
pegou o de Aron.
– Desculpe por isso! – disse ele encarando Aron, enquanto com
uma mão, depositava sua energia para que Aron não sentisse dor e
com a outra, cortava o pulso de seu guardado com a unha apenas um
centímetro e o menos profundo possível.
O sangue escorreu em uma fina linha vermelha. Em seguida, o
ruivo chamou Hector indicando que seria a sua vez. Hesitante, o
indiano se aproximou e esticou o punho. Caliel repetiu o ritual, mais
doloroso para ele que por regra divina, não poderia ter sua dor
censurada pelo ruivo. Em seguida, juntou o braço humano dos dois em
uma cruz.
– O que é isso? E se ele tiver uma doença? – disse Hector.
– Isso é completamente irrelevante e fique tranquilo, ele não
tem. – Caliel soltou os dois braços e cada um trouxe o seu de volta ao
corpo.
– E agora? – indagou Aron.
– Agora esperamos que tenha dado certo – respondeu o ruivo. –
Vamos, não temos tempo a perder. Tenho certeza de que as coisas
ficarão muito ruins nas próximas horas.
Não precisou de mais horas. Súbito, eles escutaram o mesmo
som que ouviram no inferno, tão poderoso quanto o de uma trombeta
divina.
Um som agudo, que pareceu ecoar pelo planeta todo, vibrou e se
alongou quase por um minuto, estourando janelas de edifícios, em
todos os lugares. Alguns humanos mais sensíveis tiveram seus
295
tímpanos perfurados e dentre esses, outros ainda mais sensíveis
chegaram a perder totalmente a audição. Pessoas foram afetadas e
quase perderam o sentido. Nesse estopim, apenas uma dúzia de seres
humanos perderam a vida, em todo o planeta.
Isso já não era o bastante, quando uma enorme bola de fogo
rompeu a atmosfera terrestre, a dezenas de milhares de quilômetros
por hora. Haziel não hesitou nem por um centésimo de segundo e
disparou como uma bala em direção ao meteoro. Hariel disparou atrás
dele, quase juntamente com Hekamiah e Barrattiel. Chavakiah
aguardou Mazarak recolher Daniel e então partiram juntos, mas foram
em direção ao príncipe Kamael que já começava a se movimentar por
trás do véu da realidade.

***
Costa dos Estados Unidos, Orlando, Flórida – dois minutos
atrás
Os enormes parques da Disney, agora quase fantasmagóricos,
preenchiam uma grande parte daquela cidade. Um pouco mais à
frente, na costa de Cocoa Beach, o mar se movimentava calmamente.
Gaivotas voavam em bando por alguns lugares. Cinco enormes urubus
devoravam o que parecia ser um grande cachorro morto, na beira da
praia.
Afastados uns duzentos metros do cachorro, um grupo de
homens estava reunido na areia. Dois deles, trajando jaquetas jeans,
óculos escuros e faixas na cabeça, estavam sentados em cadeiras de
praias. A bota de um deles esfregava a terra, abrindo um buraco
comprido.

296
– É, parça! Acho que esse mundo aqui é melhor pa nóis – disse
um homem negro, aproximando-se de um deles e pegando a garrafa de
Whisky de sua mão. – Só tá faltando a mulherada! – Ele abriu os
braços, sorriu e em seguida virou o fundo inteiro da garrafa de um
gole só.
– Que merda! Você acabou com tudo – disse um louro alto, com
a pele rosada e nariz de fuinha, encostado no muro, atrás deles.
– Meu irmão, cê tá ligado que aqui é nóis, mano. Entra lá e pede
mais uma pa senhora... Fala que eu deixei.
Quando o cara de fuinha ia se deslocando, um barulho poderoso
estourou por todos os lugares. Os humanos sentados nas cadeiras de
praia levaram as mãos aos ouvidos. O cara de fuinha caiu no chão e
sua orelha começou a sangrar. O homem negro apenas tapou os
ouvidos e olhava em todas as direções, tentando identificar de onde
vinha o som. Mas não parecia vir apenas de um lugar e sim de todos
eles.
– O que é isso? – Uma senhora com os cabelos grisalhos,
fofinha, chegou cambaleante, olhando com os olhos estreitos para o
céu.
Subitamente o céu se iluminou de uma forma intensa, junto com
outro estrondo. Grave dessa vez. Por um momento cegou a todos os
humanos. Em seguida, uma esfera escaldante desceu a toda
velocidade, em sentido àquela costa. O meteoro cortou o vento em um
estrondo acima de suas cabeças e foi em direção à água, fazendo um
grande rastro no mar, por onde passava.
O choque contra o oceano veio a alguns quilômetros à frente. A
energia do impacto deslocou um titânico muro de água que veio a
mais de quinhentos quilômetros por hora, em sentido à costa.
O som já tinha parado naquele momento e o cara de fuinha,
desnorteado, já se punha em pé, com a ajuda da senhora. Todos eles
297
viram quando o mar começou a se retrair, deixando aquela região
onde ocupava completamente desértica de água. Nenhum deles era
bobo e imediatamente identificaram aquilo como um maremoto. Mas
já era tarde, quando olharam à frente, uma gigantesca parede de água,
com no mínimo uma centena de metros de altura, aproximava-se
como um monstro.
Os humanos começaram a correr, mas o mais rápido deles não
conseguiu avançar mais do que cinquenta metros, antes que a água o
engolisse e continuasse destruindo tudo pelo seu caminho. Ela engolia
florestas inteiras, prédios e condomínios fechados de casas, como
pequenas maquetes meio a um tornado. As águas invadiam avenidas e
ruas, como línguas gigantes.
Um prédio, com mais de cinquenta andares, estava recebendo
milhares de toneladas de quilos em impactos marítimos. A água
salgada fazia sua estrutura trepidar, enquanto colidia com ele, a mais
de quinhentos quilômetros por hora. Nos últimos andares, em um dos
apartamentos, um grupo de mais ou menos dez humanos assistia a
água fustigando o prédio a poucos andares deles. Um homem de meia
idade apontou em uma direção. Quando todos olharam, um enorme
barco com o casco virado para cima se aproximava em diagonal do
prédio. O impacto foi inevitável e com o balançar repentino, um
jovem foi arremessado da sacada, desaparecendo no mar em fúria.
Uma mulher gritou desesperada e avançou com os braços para
fora do metal que contornava a varanda. Um jovem forte a segurou e a
puxou para dentro. Os dois caíram dentro de uma sala com o piso de
madeira. A mulher se debatia, enquanto o jovem a prendia,
envolvendo-a com os braços e pernas.
Súbito, todos sentiram uma poderosa sacudida. Em seguida, o
prédio começou a se inclinar para a frente e logo já estava em um

298
grau, onde todos puderam ver quando a água chegou mais perto deles
e o concreto afundou, levando todos os humanos com ele.
Alguns prédios mais baixos à volta não tiveram o asar de serem
surpreendidos por algum gigante detrito e muitos conseguiram
manter-se em pé.
Cinco minutos se passaram após a queda do grande prédio. A
um quarteirão dele, em um prédio com dez andares a menos, uma
família com quatro pessoas ocupava um apartamento, esperando o
holocausto baixar. Duzentos metros para a direita, outro prédio tinha
dois apartamentos ocupados. Um por um casal de idosos e o outro, por
uma mulher de trinta anos, solitária.
Felizmente para todos eles, após uns quarenta minutos da
primeira onda, a água começou a perder velocidade e em poucos
minutos, começou a baixar. Rapidamente ela retrocedia para o mar,
deixando cada vez mais andares livres. Mas o que nenhum deles sabia,
era que aquilo tinha sido apenas um prelúdio do que estava por vir.
Afastado, cerca de quinze quilômetros deles, mar adentro, um
titânico casco esférico e brilhante surgia na água. A primeira coisa que
apareceu foram suas sobrancelhas lisas, seguidas de seus olhos azuis,
como as luzes de uma tempestade. Logo em seguida vieram nariz e
boca, com lábios fartos. A feição da criatura era masculina. Quando
ela se inclinou, deixando evidente seu corpo musculoso e liso como
metal, com a água chegando apenas até sua cintura, ficou clara sua
altura aproximada. Maior do que a maioria das estruturas construídas
pelo homem no planeta, a criatura humana passava de seus seiscentos
metros.
Com cada passo, que alcançava quase quatrocentos metros cada
um, em menos de um minuto, cortando a maré, que retrocedia em
bilhões de litros de água por segundo, a criatura alcançou a costa,
apenas caminhando. Poucos segundos depois, já caminhava sobre as
299
ruas do primeiro bairro, pisoteando casas, carros virados e chutando
pequenos prédios como minúsculos pinos de boliche. A água nessa
região não passava de quatro metros de altura nos pontos mais altos.
Então era como se o monstro de um cromado quase branco andasse
em um pântano de concreto.
Ela via apenas pequenos pontos abaixo de seus olhos que como
em uma brincadeira, pisoteava, levando tudo a ruínas. O monstro
avançou fazendo isso por mais de um quilômetro, até que se deparou
com uma construção que se erguia quase até a altura de seu joelho. Ele
a encarou por um momento e se abaixou, pegando-a com a mão,
retirando-a do solo com uma facilidade que uma criança tem, ao tirar
um prédio de isopor de uma maquete. O monstro parecia não
compreender o que eram as coisas, mas ao mesmo tempo, analisava
com cuidado aquele objeto pontudo que tinha em mãos, buscando
algum tipo de conhecimento. Quando ele o aproximou de seus olhos,
viu pequenas criaturas segurando onde podiam, pendendo de alguns
lugares. Com uma balançada, ele viu uma delas caindo. Isso o divertiu
e ele balançou novamente, mas dessa vez pegou uma das duas que
caíram, com a ponta de seu dedo.
A mulher caiu sobre uma casca lisa, como uma enorme esfera de
metal. Ela se levantou e começou a correr com toda a velocidade que
suas pernas permitiam. A esfera começou a se movimentar
velozmente para cima. O vento ficou tão forte que quase não era
possível ela se manter em pé e continuar correndo. Em instantes, viu
algo que imediatamente não reconheceu, mas quando analisou sua
forma, apavorou-se quando percebeu que era um gigantesco olho azul
escuro, muito brilhante, com dezenas de metros de comprimento. Ela
pôde ver muito bem, quando ondas em tons de azul se movimentavam
como relâmpagos pela íris do olho. Ela caiu para trás com um grito,
virou-se e começou a correr em sentido contrário.
300
A minúscula mulher não viu, mas a criatura estreitou os olhos,
afastou o dedo do olho e soprou com toda a força, jogando a mulher
para longe, como em um tornado. Ela morreu apenas com o golpe do
vento.

301
CAPÍTULO 40

Haziel avançava com a velocidade quase duas vezes maior do


que um SR-71 Blackbird, avião da força aérea americana, marcando
quase 7000 km/h. O anjo não entendia por que estava tão rápido, pois
nunca sequer tinha se aproximado daquela velocidade, em terrenos
humanos. Ele também percebia que a cor de sua áurea já não era tão
dourada, obtendo um tom mais alaranjado. Ele sentia que aquele
meteoro não era qualquer meteoro. Essa era a fonte para que seu
coração batesse freneticamente, milhares de vezes por minuto, dando-
lhe energia necessária para voar tão rapidamente.
Os outros anjos voavam quase alinhados, afastados dele em
milhares de quilômetros. Hariel e Hekamiah seguiam na frente, com
toda a sua pujança. Um quilômetro afastados deles, ganhando terreno
a toda velocidade, seguiam Barrattiel e Chavakiah. Esse grupo de
anjos não estava a mais de cem metros do chão. Então, quando
passavam por lugares povoados, surpreendiam os humanos com vultos
super-rápidos, acompanhados de um estrondo que vinha de seus
corpos cortando o vento naquela velocidade. Mas o que os olhos
humanos não podiam ver é que atrás dos quatro anjos materializados,
uma enorme formação de potências celestiais os acompanhava,
desmaterializados, a toda velocidade.
Haziel começou a entrar na área inundada, vendo um mar de
destroços abaixo de seus olhos. Os bairros estavam cheios de água,
movimentando-se por suas ruas, como em veias de um corredor
olímpico. O anjo passou por uma casa e por estar muito rápido,
conseguiu ver apenas um vislumbre de uma família sobre o teto dela,

302
refugiando-se. Nesse momento, já era óbvio para ele o que tinha
acontecido. O meteoro se chocou contra o mar e sua energia levantou
um grande muro de água que correu em todas as direções. Qual tinha
sido o estrago nas ilhas vizinhas e mais baixas da região? – pensou o
anjo. Com certeza muito menor do que o de 65 MILHÕES de anos
atrás que provavelmente teria pulverizado aquela área e o anjo pôde
presenciar aquilo pessoalmente.
Um movimento chamou a atenção de Haziel e quando ele olhou
para a frente, perdeu a respiração por um momento, tendo que parar
imediatamente. Nunca tinha visto uma criatura daquele tamanho.
Estava a mais de dez quilômetros dele, mas de tão imensa, ele podia
enxergá-la nitidamente, andando e destruindo a cidade. Seria aquele
um dos cavaleiros do apocalipse? O anjo fechou os punhos, respirou
fundo, estreitou os olhos e avançou como um míssil para cima do
monstro.
Haziel percorreu aqueles dez quilômetros em quase sete
segundos e em toda a trajetória, concentrou sua força no punho
direito. Quando se aproximou da criatura, que não pôde enxergá-lo, de
tão rápido, ele preparou um murro e acertou seu rosto com uma
energia tão devastadora que daquele ponto foi criada uma onda de
choque tão forte quanto a de um meteoro de pequeno porte. Se o
impacto tivesse sido no solo, a situação teria sido um pouco pior para
aquela região, que sofreu abalos, onde muitos vidros, que ainda não
tinham estourado, nesse momento explodiram em chuvas de cristais
refletindo a luz do sol.
O monstro cambaleou para trás em passos desajeitados,
pisoteando centenas de milhares de fragmentos dos prédios de
concreto que tinham estourado antes. O anjo foi arremessado para
cima centenas de metros com o impacto. Em seguida ele desceu,
mergulhando entre as nuvens brancas e começou a bater suas asas em
303
direção à criatura. O monstro o viu quando olhou para cima e com a
aproximação do anjo, esticou o braço e tentou pegá-lo. Mas o celeste
era ágil e apenas virou o corpo alguns graus e continuou descendo em
direção à cabeça da criatura. Dessa vez ele foi mais esperto e com uma
cambalhota para a frente, acertou a cabeça lisa do monstro com os pés,
dando um poderoso tranco em seu pescoço, com mais impacto do que
o golpe anterior. O corpo enorme do monstro oscilou para trás e
voltou, caindo para a frente, enterrando sua cabeça no concreto e nos
prédios.
O gigante não ficou mais do que dez segundos no chão. Logo já
apoiava seus enormes braços, levantando seu tronco e depois as
pernas. Com as mãos fechadas, trouxe centenas de pedaços e grandes
fragmentos de pedras junto com elas. Haziel já vinha para cima dele
novamente, quando ele puxou uma das mãos para trás e arremessou
todos os detritos contra o anjo. Em seguida fez o mesmo com a outra
mão.
Haziel viu centenas de pedaços de pedras relativamente grandes
vindo em sua direção, como balas. Ele se desviou de todas elas,
movimentando suas asas com agilidade. Mas não previu o ataque do
monstro, que aproveitando de sua distração, surpreendeu-o com a sua
gigante mão, jogando-o, com uma força descomunal, a quilômetros ao
longe. Por um momento, o anjo apagou e quando acordou, já acertava
uma grande estrutura com seu corpo cadente. A construção foi abaixo,
soterrando-o.
A criatura não perdeu tempo e correu em direção ao celeste.
Com menos de dez passos, alcançou onde ele tinha caído e ficou
procurando-o.
Debaixo dos escombros, furioso, Haziel explodiu sua áurea, que
já não era mais dourada, fazendo pedaços de detritos voarem para
todos os lados, em centenas de metros. Uma dessas pedras acertou um
304
dos olhos do monstro em cheio, fazendo-o soltar um alto rosnado. Ele
levou as mãos àquele olho e começou a cambalear, tentando tirar de lá
o objeto que tanto o incomodava. Haziel aproveitou dessa situação e
voou na direção da face da criatura. Sem hesitar, acertou-o com uma
joelhada no queixo, concentrando bem o golpe.
O monstro perdeu o equilíbrio e caiu apagado. Haziel o encarou,
dando-se por satisfeito e desceu calmamente, pousando ao lado de seu
rosto. Ele olhou profundamente seus traços e não viu nada parecido
com qualquer traço demoníaco. Abrindo a boca, soltando um ruído,
ele ameaçou abrir os olhos. Haziel deu um passo para trás na
defensiva, mas nada aconteceu.
Subitamente o anjo começou a escutar palmas de apenas uma
dupla de mãos. Ele olhou para trás e viu a silhueta de uma figura sobre
um prédio tombado. O sol estava atrás dela, deixando evidente apenas
o contorno negro de seu corpo e de suas asas de pluma recolhidas. A
criatura saltou, caindo a vinte metros do anjo, meio aos detritos que
preenchiam o asfalto e começou a andar na sua direção em passos
calmos, porém imponentes.
– Então quer dizer que você é o grande Haziel? Eu sei muito
sobre você!
Nesse momento, Haziel já podia ver as feições da figura.
Parecido com alguns duques do inferno, tinha partes angelicais e
algumas partes demoníacas. Tais como pequenos chifres, com no
máximo dois centímetros, erguendo-se na testa e unhas compridas. O
restante era completamente angelical, com asas de pluma brancas,
corpo humanoide e cabelos sedosos. As roupas eram tradicionais do
mundo espiritual, com a parte de cima nua, calças brancas seguradas
por um cinto e botas escuras, ornadas com rubis. Única coisa
completamente diferente nessa criatura eram seus olhos. No lugar

305
deles havia apenas dois buracos profundos, cuspidores de chamas
coloridas.
Os celestiais caídos eram os demônios mais poderosos do
inferno e Haziel conhecia cada um deles. Mas aquela figura ele nunca
tinha visto na vida, então com certeza era uma besta criada e
provavelmente não tinha muito poder.
– Quem é você? – indagou Haziel.
– E sou um anjo!
– Eu não perguntei o que você é, e é claro que um anjo você não
é! Perguntei quem... É... Você?
– Você não me reconhece, Haziel? Olhe bem para mim! – A
criatura alargou o sorriso.
– Eu não estou aqui para brincadeiras. – O anjo pisou firme no
chão, fechando mais forte um dos punhos.
– É... Eu não posso dizer o mesmo. – A figura chutou algumas
pedrinhas no chão.
– Diga logo quem é, ou enfrente-me! – Haziel gritou.
– Você não imagina o quanto estou esperando por isso!
O anjo das trevas abriu suas asas com três metros cada uma
delas e juntou as palmas das mãos, fechando os buracos que ficavam
no lugar dos olhos. Um raio desceu do céu em um estalo, encontrando
as duas mãos da criatura. Uma bola de energia resplandecente se
formou e sem esperar ao menos um momento, direcionou os braços na
direção de Haziel e descarregou toda ela em cima do anjo. Mais de
cento e cinquenta milhões de volts rasgaram o corpo do celeste e ele
caiu de joelhos. Por um momento ele não conseguiu mover os
músculos, mas fazendo uma força suprema, sentindo uma dor
alucinante, pôs-se em pé e encarou a criatura com fúria.
Haziel fez algo que nunca imaginou que pudesse fazer. Ele
reuniu toda a energia que fora descarregada contra ele e a explodiu
306
juntamente com sua áurea, criando uma chuva de centelhas azuladas.
Toda a energia se extinguiu, sobrando no lugar apenas a áurea do anjo,
queimando em seu tom alaranjado como fogo.
– Muito bom! Parabéns! – A criatura aplaudia o anjo. – Agora
vamos ver se é capaz de parar isso!
Haziel não pôde ver, quando a figura desapareceu e reapareceu
na frente dele, acertando-lhe um soco tão violento que o arremessou a
centenas de metros, na diagonal. O corpo do anjo só parou quando
encontrou o aço de um enorme guindaste. A pancada foi tão forte que
o aço cedeu e o guindaste se dividiu em dois. A metade de cima
pendeu e caiu com um estrondo enorme. O corpo de Haziel despencou
e ele caiu com a cara no concreto. Mas a única coisa que aconteceu
nesse momento foi que o concreto se rachou com a pancada da cabeça
do anjo.
O anjo das trevas começou a andar na direção de Haziel e na
trajetória desprendeu sua espada da bainha com o dedão, fazendo um
clique. Ele pegou a empunhadura com a outra mão e começou a puxar
a lâmina. Subitamente ele parou, juntou a sobrancelhas, encarando
Haziel no chão e guardou a lâmina novamente. Aproximando-se do
anjo, agachou-se e puxou seus cabelos louros para cima. O que viu a
seguir não foi exatamente o que imaginava.
Haziel estava com um enorme sorriso no rosto, surpreendendo a
criatura. Aproveitando disso, como um escorpião, grudou no pescoço
dela com os pés e a puxou, batendo sua cabeça violentamente no chão.
Uma pequena cratera foi aberta no asfalto, levantando poeira.
Rápido, o anjo das trevas segurou a canela do anjo com apenas
uma mão e ainda deitado, puxou-o violentamente, batendo seu corpo
inteiro no asfalto, como se fosse um grande pedaço de bife. Um
buraco maior ainda se abriu e dessa vez Haziel sentiu o impacto. Um
pouco tonto, ele se levantou e acertou um murro no anjo das trevas,
307
mas ele apenas deu um passo para trás e voltou com um soco cinco
vezes mais forte que do anjo. Haziel recebeu o golpe nos antebraços e
não caiu. Mas abriu um rastro de dez metros na rua com suas pernas.
Sem dar tréguas, Haziel avançou a toda velocidade para cima da
criatura que o surpreendeu, sendo ainda mais rápida do que ele. Como
um raio, ela desapareceu e reapareceu atrás dele. O anjo virou o corpo,
tentando acertá-lo com uma cotovelada, mas a figura novamente
desapareceu. Um assobio e quando o anjo olhou, viu a figura
decolando do alto de um pequeno prédio que ainda se mantinha em
pé. Haziel explodiu o vento e foi atrás dela.
Haziel explodiu o vento e partiu para cima da criatura. Ele voava
como um gavião atrás de sua presa, quando a figura se virou de frente
para ele, voando de costas e encarou-o nos olhos, com um sorriso e
braços cruzados. Haziel avançou mais rapidamente tentando acertá-la
com um soco no rosto. Com uma leve esquiva para o lado, a figura se
desviou do golpe. O anjo investiu novamente com o outro braço, mas
ela se esquivou novamente. O anjo se enfureceu e soltou uma sessão
de socos e todos foram desviados com facilidade. Naquele momento
ficou claro que em velocidade, o anjo nem se comparava à criatura.
Mas Haziel não desistiu e em um movimento súbito, levou as duas
mãos à cintura e tirou as espadas cruzadas, cruzando suas lâminas no
ar, tentando cortar a criatura como com uma grande tesoura. Mas
como previsto, a figura desapareceu e reapareceu atrás dele. Antes do
anjo se virar, foi surpreendido com uma joelhada nas costas.
– Eu pensei que você fosse mais forte! – disse o anjo das trevas,
enquanto acertava Haziel com o golpe.
Em seguida, ele segurou em seu pescoço e começou a apertar.
Haziel tentava se desprender, mas percebeu que àquela altura, aquele
gancho, com certeza, não seria solto. Então o acertou com uma

308
cotovelada nas costelas, mas a criatura continuou apertando. O anjo
tinha virado uma presa fácil em suas mãos.
– Por que você é tão fraco? – a figura disse, ao pé da orelha do
anjo.
Haziel lhe desferiu mais uma cotovelada. O anjo das trevas riu
alto. Em seguida, o anjo tentou rodar sua espada, mas antes de
terminar a volta, a criatura soltou uma mão do pescoço de Haziel,
deixando a outra ainda presa como um gancho e segurou os braços
juntos do anjo, apenas com a força do punho.
– Você não percebe que nenhum movimento seu vai me parar?
– O que você é? – indagou o anjo, com a voz rouca pelo
enforcamento.
– Eu já disse. Eu sou um anjo. – Após dizer isso, o anjo das
trevas soltou Haziel e com um movimento espetacular de rápido,
acertou-o com um soco tão poderoso que o anjo foi arremessado
contra o solo, como uma bala.
O corpo de Haziel bateu no chão com violência, fazendo detritos
explodirem para vários lados. O impacto fez com que ele quase
perdesse a consciência. Sua mente foi levada a eras antigas. Eras tão
antigas que sequer sua espada existia.
Haziel estava em um amplo terreno de grama verdejante. Ele
caminhava rumo a um morro que dava em um grandioso horizonte
colorido. Na beira do morro, Yesalel o aguardava, um anjo muito mais
velho do que ele. Este que tinha conhecimento de todas as coisas do
cosmos. Ele estava virado para a frente, com as mãos cruzadas atrás
do corpo e as asas abertas, balançando diante do vento.
Quanto mais Haziel se aproximava dele, mais forte o coração do
anjo louro batia. Quando ele chegou próximo de Yesalel, cutucou-o no
ombro. Um momento de suspense tomou conta da atmosfera. Quando

309
Yesalel virou o rosto para ele, o susto foi instantâneo, pois no lugar de
seus olhos, apenas dois buracos negros existiam.
– Esse é o fim! – disse Yesalel, guardando as asas e em seguida
deixando que seu corpo caísse do morro.
– Você está me escutando? Esse é o fim!
Haziel abriu os olhos e viu a figura do anjo das trevas o
erguendo por sua veste branca. Uma fúria poderosa tomou conta do
coração do anjo e de repente sua áurea explodiu rubra. Seus olhos
pareciam duas turbinas de avião, brilhando em escarlate. Subitamente
ele acertou a criatura com um soco cruzado tão poderoso que ela foi
arremessada a centenas de metros.
O celeste se ergueu, limpando a poeira do corpo e endireitou
suas asas. Subitamente explodiu sua áurea ainda mais forte que
começou a queimar como uma fogueira a 1 MILHÃO de graus.
Subitamente, um ponto brilhou muito longe no espaço. Tão
longe quanto uma estrela. Era por volta do meio-dia ainda, então não
poderia ser uma estrela.

***
Yesalel avançava ao lado de Bariel e o maior batalhão de
guerreiros já reunidos para um evento. Contendo mais de dez mil
legiões, com cada uma delas obtendo cinco mil celestes. Cada uma
delas tinha um comandante inferior, para ajudar a coordenar as ordens
dadas por Bariel e Yesalel. O exército era tão grande que puderam
passar apenas por uma abertura que ficava próxima a Júpiter. Nenhum
deles estava materializado e rumavam ao ponto indicado por Gabriel.
Yesalel segurava um recipiente esférico e transparente que tinha
uma chama queimando vividamente dentro dele. A luz desse

310
recipiente se transferia para o batalhão inteiro em uma fina camada de
luz dourada. Era exatamente isso que lhes dava a força necessária para
avançar naquela velocidade estupenda. Com certeza, quase nenhum
deles tinha experimentado aquilo, apenas por Bariel, que há poucos
meses o fez nas costas dos animais. A chama que queimava dentro da
esfera era a mecha do cabelo de um querubim, o qual todos conheciam
apenas pelo codinome de O Quarto.

***
Caliel, Aron e Hector avançavam por cima da cidade de Águas
Vermelhas em Minas Gerais. Acima de uma cidade vizinha dela,
ficava uma abertura que dava no salão comunal que antecedia a
passagem ao Sexto Céu. Em poucos minutos, o guardador e os
humanos se aproximaram da abertura.
– Fechem os olhos!
Aron fechou na mesma hora, mas Hector quis fazer uma
pergunta:
– Pra quê? – Isso custou relativamente caro para ele, que ao
passarem pela abertura, a luz foi tão forte que o cegou pelo próximo
minuto. – Eu não enxergo!
– Da próxima vez que eu pedir para fazer algo, faça! – disse o
ruivo.
– Deu certo? Não estamos mais materializados? – indagou Aron,
um tanto empolgado.
– Ainda estamos, Aron. Só saberemos se deu certo, quando
passarmos pelo salão comunal do Sexto Céu.
– Como aquele de quando encontramos Rafael no Sétimo Céu?

311
Após isso, o anjo tocou o chão e os dois humanos tocaram em
seguida. A visão de Hector começou a voltar e a primeira coisa que
vislumbrou foi uma estreita ponte de pedras quadriculadas. Ela
formava quase um “S” enquanto flutuava sobre nuvens brancas,
terminando em um retangular palco de mármore branco. O trio
começou a caminhar sobre a ponte.
A cara de Hector era uma mistura de confusão com curiosidade.
– Não posso dizer que é um salão como aquele. Mas sim, é uma
passagem também – disse o anjo.
– Eu fui desmaterializado quando entrei no Sétimo Céu? – uma
dúvida súbita do humano.
– Não. Você entrou de carne e osso.
– Então por que eu pude e Hector corre o risco de não poder?
– Primeiro porque não sabemos se ocorreu a transferência de
DNA espiritual. Outra coisa é que eu não conheço as políticas do
Sexto Céu. Rafael podia muito bem estar utilizando algum tipo de
magia divina para conseguir com que estivéssemos lá.
– Isso é possível?
– Quem sabe? As formas que o Céu arruma para conseguir
enfrentar barreiras surpreende a todos, toda vez. Essas coisas são
complicadas!
– Como isso é irônico né? – começou Hector. – Falam que Jesus
é o construtor de pontes e estamos justamente andando sobre uma,
para chegar ao Céu.
– Não tem nada de irônico nisso – Caliel foi direto. – Foi
exatamente o filho do Pai que teve a ideia dessa ponte.
– Então ele também é real?!
– Eu não sabia que você tinha dúvida disso! – Caliel olhou torto
para Aron.

312
– Eu não tinha... Não tenho! – O humano coçou a cabeça. – Mas
é que é bom escutar isso!
– Você já viu Deus, ruivo? – indagou Hector.
– Essa é uma pergunta complicada de ser respondida, mas
vamos lá. Todos nós, os anjos do Pai, sentimos seu fogo queimando
em nossos corações o tempo todo. Posso dizer que isso chega a ser
mais impactante do que propriamente vê-lo com nossos próprios
olhos.
– Então você nunca o viu? – Hector perguntou com surpresa na
voz.
– Não com meus olhos! Poucos anjos tiveram a oportunidade de
ver o Pai. A não ser pelos arcanjos, apenas Metatron, que é o rei de
nós, o viu. Os príncipes e os comandantes dos guerreiros.
– Eu nunca ouvi falar de Metatron! – disse Aron.
– É porque ele não fica no Sexto Céu. Estamos chegando. –
Caliel apontou o palco de mármore branco com quatro metros de
altura.
Aron fitou o palco e rapidamente perguntou:
– Ele fica no Sétimo Céu?
– Não! Ele fica em uma dimensão entre o Sexto e o Sétimo Céu.
– Que dimensão é essa?
– Aron! Eu sinceramente achei que você tinha parado com essas
perguntas.
– Poxa, Caliel! Mas é que isso é interessante.
Caliel sorriu com o canto da boca, abaixou as sobrancelhas.
– Quando atravessarmos a passagem, contarei uma bela história
para vocês.

313
CAPÍTULO 41

Haziel já estava afastado mais de um quilômetro de onde tinha


derrubado o gigante. Quando olhou para cima, não viu nada, além do
céu azul com algumas nuvens brancas.
– Você não faz ideia de como é bom poder te encontrar aqui!
A voz veio da sombra de um edifício tombado. Em seguida a
criatura surgiu, fazendo com que o anjo desse um salto para trás, de
surpresa. Até sua áurea se apagou. No bico fino tinha um sorriso de
deboche. Sua tradicional pele escarlate, com rajadas negras, brilhava
ao bater da luz do Sol. Suas enormes garras negras pareciam estar
maiores ainda e mais pontudas.
– Pruflas! Como isso é possível? Eu acabei com você.
– Tudo é possível guerreiro. Depende apenas de como você
enxerga as coisas.
– O que você quer dizer com isso?
O demônio começou a andar e circular Haziel.
– Vejamos! – Ele levou a grande garra ao queixo. – Você me
matou há o quê? Dois meses? Mas eu estou aqui – parou de circular,
encarando Haziel.
– O que você quer? – indagou o anjo, preocupado.
– Não se faça de bobo, seu bostinha. Eu quero te dar o troco, por
ter me matado! E será agora. – O demônio gritou e explodiu sua áurea
rubra.
Haziel explodiu a dele, quase no mesmo tom da do demônio e
viu Pruflas partir para o ataque, no meio tempo em que o infernal
avançava para cima dele a toda velocidade. Vendo isso em câmera

314
lenta, Haziel tirou as duas espadas da cintura e aguardou o demônio se
aproximar. Quando isso aconteceu, ele rodou, esquivando-se não mais
do que cinquenta centímetros para o lado, deixando apenas a lâmina
de suas espadas no lugar. O demônio foi cortado em três e seus
pedaços voaram, desaparecendo em um piscar de olhos, dez metros à
frente. O sangue que voou em Haziel, no momento do corte, também
sumiu.
O anjo escutou um grito perto de sua orelha e não teve tempo de
reagir enquanto se virava. Ele foi acertado por um poderoso murro.
Antes de ser arremessado, pôde encarar os olhos rubros de Belial, com
um sorriso no rosto. O soco foi forte, mas não o suficiente para
derrubar o celeste, que caiu com um pé no chão e saiu se arrastando
quase de joelhos, apoiado com a mão. Ele se ergueu e rodou as duas
lâminas das espadas. Sem hesitar, começou a caminhar rapidamente
na direção de Belial, que aguardou em seu lugar.
Quando Haziel chegou perto dele e movimentou uma das armas
para acertá-lo de cima para baixo, ele tirou a dele da bainha e se
defendeu, segurando a empunhadura com uma mão e a lâmina foi
apoiada com a outra. A outra espada de Haziel veio por baixo em um
movimento circular, mas o demônio apenas rodou seu corpo para trás,
fugindo da lâmina por um centímetro. Aproveitando o giro de seu
corpo, Belial avançou com sua espada na direção dos joelhos de
Haziel, que apenas deu um salto e com uma surpreendente velocidade,
acertou a cabeça de Belial que saiu rodopiando. O corpo dele também
desapareceu e quem reapareceu atrás de Haziel, já o enforcando, foi
Pruflas.
– O que você está achando disso, anjinho?
Haziel tentou desprender a mão, mas não conseguiu. Em
seguida, deu uma cotovelada, mas Pruflas inclinou o corpo para trás e
não o largou. Dois metros à frente do anjo, a figura de Belial surgiu do
315
nada e o acertou com um poderoso murro no abdômen. Em seguida,
mais um e outro. Pruflas o tinha travado como em um gancho mortal.
De repente, Belial deu um passo para trás e a um metro do anjo,
à sua direita, apareceram duas figuras. Uma delas já lhe desferia um
golpe nas costelas com um porrete, com pregos enferrujados. Esse era
o cara de tartaruga que ele eliminou quando Caliel foi tirá-lo de Monte
Negro. O parceiro brutamontes do cara de tartaruga aproximou-se em
seguida e enrolou uma corrente robusta no pescoço do anjo. Pruflas
soltou Haziel e em conjunto, o grandalhão puxou Haziel com força,
fazendo-o enterrar a cara no concreto. Todos riram nesse momento.
Haziel foi percebendo aos poucos que todos aqueles demônios
estavam mais poderosos do que de costume. Como um demônio
daquele, que nem um anjo caído era, poderia ter forças para fazê-lo
enterrar a cara na rua?
Em seguida, o grandalhão o puxou para trás, colocando-o de
joelhos. Quando o anjo caiu em si, uma algema, que pegava quase os
seus antebraços inteiros, estava se materializando. Ele tentou, mas
essas ele não conseguiu estourar. Subitamente, os demônios à sua
frente deram passos para o lado e abriram a visão para o anjo. Uma
criatura enorme, com as vestes brancas, olhos negros, segurando um
gigante machado, o estava encarando com fúria. Ele identificou como
o monstro que derrubou da Torre de Babel infernal, no escape com
Caliel.
A criatura demorou mais de cinco segundos para se aproximar
de Haziel e esse tempo fora o suficiente para seus olhos se turbinarem
e iluminarem o lugar como duas fogueiras. Ele se levantou
rapidamente, surpreendendo a todos. O grandalhão tentou puxar a
corrente, mas foi como se puxasse uma corrente presa a uma
montanha. Então seu corpo foi arremessado para a frente, quando
Haziel avançou dois passos rápidos e acertou a criatura do machado,
316
de baixo para cima, com os dois punhos presos a jogando longe. Em
seguida, estourou as algemas sem quase se esforçar e deu um chute
lateral para trás, acertando a sola do pé no rosto do grandalhão que
tinha caído de joelhos e ainda segurava a corrente. Ele foi arremessado
para trás com os braços abertos e bateu contra um muro de concreto,
explodindo em uma massa gosmenta. Naquele momento, o anjo teve
um sentimento de nostalgia.
Haziel preferiu acabar com tudo de uma só vez e concentrou
uma poderosa energia nos punhos. O breve momento durou um pouco
mais de dois segundos, criando uma esfera incandescente naquele
ponto que cresceu como o brilho de uma estrela. Logo, ele abriu os
braços em uma explosão descomunal e pulverizou tudo em um raio de
duzentos metros. Os demônios desapareceram no meio da luz. Haziel
observou ao longe e viu tudo muito calmo. Então viu suas espadas as
uns cem metros de distância, caminhou até elas e as guardou na
cintura.

***
Caliel, Aron e Hector pararam diante do muro de quatro metros
de altura que dava em cima do palco de mármore branco. Segurando
um humano em cada braço, com um bater de asas, o anjo os levou até
acima do bloco branco. Instantaneamente, os humanos foram
surpreendidos com o que viram. Em cima do bloco, viram algo que
ainda não tinham visto. Não porque a visão não permitia, mas porque
aquilo parecia estar tampado por algum tipo de força divina.
– Sim. Nós só podemos ver isso daqui de cima – disse o ruivo,
com um sorriso no rosto.
– O que é aquele arco? – indagou Aron, apontando ao longe.

317
– Aquela é a entrada para o Sexto Céu. Vamos? – O anjo
encarou os dois com um sorriso.
Hector deu um passo hesitante para trás.
– O que acontecerá se não der certo? – indagou ele, com os
olhos vidrados no arco.
– É simples. Você será desintegrado.
– O quê? – o humano gritou de desespero.
– É brincadeira! – Caliel riu alto.
– Se você quiser me matar, me dá logo um tiro! – Hector passou
as mãos na cabeça e se agachou. Em seguida, alongou as pernas e os
braços, levantando-se após isso. – Vamos. Estou pronto!
– Você acha que vai jogar uma bola? Vai lutar um MMA? O que
você acha que vai fazer? – perguntou Aron, com sarcasmo na voz.
– Não tenho a mínima ideia, mas quero estar preparado! –
retrucou o indiano.
Caliel recolheu os dois e alçou voo em direção a entrada do
Sexto Céu. Não parecia, mas o arco estava a mais de cem quilômetros
deles. Mas como Caliel estava muito mais próximo do Pai, atravessou
aquela região em um minuto e pouco. Quando próximo, os humanos
se surpreenderam com a altura do arco que não podia se ver o fim,
erguendo-se a milhares de quilômetros de altura.
– É agora! – disse o anjo, apertando a velocidade e seguindo
direto para a boca do arco.
Os humanos fecharam os olhos e abaixaram a cabeça diante dos
últimos metros e quando entraram nos limites do arco, nada
aconteceu. Foi como se estivessem passando por baixo de uma mera
ponte humana. Nenhum efeito de luz. Nenhum vento mais forte. Nada.
Simplesmente não aconteceu nada.
A estrutura do arco se alongava por alguns quilômetros, sendo
que para sustentar sua altura, suas duas vigas eram enormemente
318
grossas. Caliel atravessou aquela região de forma calma, reparando em
sua atmosfera diferente. Ele sentia algo estranho no ar, mas não soube
identificar exatamente o quê.
Para Aron e Hector estava tudo bem. Principalmente para
Hector, que não tinha a mínima ideia de como as coisas funcionavam.
Mas quando ele olhou para a cara do ruivo, na mesma hora notou algo
estranho.
– Está tudo bem?
Caliel voltou a si e disse:
– Sim! Está!
Quando eles terminaram os limites do arco, Caliel não viu o
guardião da entrada, Aladiah. Na verdade, a entrada estava
completamente deserta. Até aí tudo bem, pois o anjo poderia ter ido
dar um recado a alguém.
Vendo uma imensidão de nuvens que pareciam dançar entre si,
Hector indagou:
– Chegamos?
– Quase. Agora são apenas mais dois mil quilômetros –
respondeu Caliel, fitando o horizonte.
– Puta que pariu! Dois mil quilômetros?
– Nós acabamos de atravessar cem para chegar até o arco.
Hector ficou mudo por um momento, tentando entender o que
tinha escutado. Em seguida, ele deu de ombros, com as sobrancelhas
arqueadas, fez um gesto com a mão, soltou um murmúrio que não
passou de duas sílabas e ficou quieto novamente. Caliel sorriu,
balançou a cabeça e em seguida explodiu o vento em direção à
cidadela do Sexto Céu.

***
319
O gigante batalhão angelical, ainda na metade do caminho,
voava a toda velocidade em direção a Terra. Enfrentavam agora uma
enorme tempestade de detritos do cinturão de asteroides. Estavam
todos desmaterializados, então aquilo não os afetava em sua realidade.
O planeta vermelho, Marte, crescia aos olhos dos celestes.
– Como você acha que as coisas vão acontecer daqui para
frente? – Yesalel perguntou a Bariel.
– Creio que você tenha essa resposta mais bem formada do que
eu. Mas de uma coisa eu sei. Temos que segurar as pontas até que o
Pai termine sua última criação.
– É exatamente sobre ela que estou pensando. Não que eu
questione o Pai, mas o que será que ele pretende com ela?
– Eu não sei, mas tenho certeza de que resolverá tudo à sua
maneira.
Yesalel observou Marte muito longe. A essa altura, já dava para
perceber que o planeta se movimentava quase tão rápido quando eles,
traçando o fragmento de uma esfera que completaria em torno do sol,
em um ano marciano.
– Sabe que esses planetas ainda me deixam abismado? Qual foi
a engenharia que o Pai utilizou para fazer tanta coisa grande e com
tanta perfeição?
– Eu também penso nisso às vezes! – respondeu o primeiro
comandante.
– É obvio que vindo dele, as coisas sempre serão perfeitas. Mas
a sua capacidade de pensar sem limites me impressiona mais do que
tudo. – Nesse momento, Yesalel fitou a esfera com a mecha do
querubim em suas mãos.
– É por isso que ele é o criador de todas as coisas. O único Deus
todo poderoso e onipotente.
320
– E ele é o nosso Pai! É exatamente por este motivo que não
podemos temer nada. Nunca!

321
CAPÍTULO 42

– Muito bem! – A criatura aplaudia o anjo, sentado na beira de


um muro.
– Agora eu vou acabar com você! – Haziel apontou o indicador
para ele.
O anjo das trevas saltou no chão e caminhou para mais próximo
de Haziel.
– Não seja apressado. Eu quero ver se você será páreo para o seu
próximo adversário.
Nesse momento, um anjo pousou como um meteoro, apoiando
uma mão no chão. Quando ela levantou a cabeça e começou a andar
na direção de Haziel, ele quase caiu para trás.
O anjo das trevas se esquivou para uma sombra e desapareceu.
– O que você está fazendo, Hariel?
– Estou cansada dos seus problemas! Você sempre arranja um
para nós. – A loura tirou a espada da cintura e avançou correndo para
cima de seu irmão de espírito.
Ela tentou acertar Haziel com um golpe, mas ele rolou no chão e
se esquivou para o lado.
– Você quer me matar? – gritou ele.
– Haha! Você não tem ideia do quanto. – Ela estreitou os olhos e
tentou acertá-lo no chão.
Haziel foi rápido e colocou suas duas armas cruzadas na frente
da dela, recebendo o golpe entre elas. Em um movimento
surpreendente, ele girou seu corpo e com um tranco, tirou a espada das
mãos de Hariel.

322
– Você está louca?
– Sim! Completamente. – Hariel se movimentou rapidamente e
se Haziel não desse um pulo para trás, seria acertado com um
poderoso chute.
– Hariel! Explique-me. O que eu fiz para você?
– O que você fez para mim? Não sei! Mas vamos ver o que você
fez para todos. – Ela levantou a mão e começou a contar nos dedos. –
Primeiro foi o lance da sua espada, lembra? Por que você tinha que
avançar para cima de Mephisto daquela maneira? Quem acabou
pagando por isso foi Dariel! Depois veio Amon e não demorou muito.
Quanto mais ou menos? – Hariel levou o dedo indicador ao queixo,
estreitando os olhos. – Uns dois mil anos? – Ela sorriu. – Quem quase
perdeu a vida nessa foi Yesalel. Depois disso você deu uma aquietada.
De repente, em uma simples batalha, você quis resolver tudo da sua
maneira idiota e ficou preso no inferno por cem anos, deixando a mim
e a todos arrasados.
Depois de ouvir todas essas palavras, Haziel se sentiu quase
como um inútil. Ele soltou as armas e deixou que elas caíssem no
chão.
– Eu mudei, irmã! Os cem anos me fizeram mudar. – O anjo
olhou as duas mãos.
– É, imagino! Até quando? Até daqui a cem anos?
Com cara de decepcionado, Haziel ficou encarando Hariel se
aproximar dele. Quando a loura chegou perto, sem problema algum,
ela apenas introduziu a espada no abdômen de seu irmão de espírito,
que nesse momento só fez uma cara de dor. Haziel levou a mão à
lâmina e sentiu quando Hariel a afundou mais, despontando a espada
nas costas do louro. Ela o encarou.

323
– Você se lembra da humana, na ilha? Você não acha que
poderia tê-la salvo com um pouco de esforço? Se tivesse feito isso,
não estaríamos tendo esses problemas com aquele humano idiota.
– Como você pode dizer isso da cria do Pai, irmã?
Subitamente, Hariel fora surpreendida por uma rajada dourada,
espetacularmente rápida. Ela bateu contra um prédio com um
estrondo, explodindo concretos como a força de uma bomba.
Haziel viu quando dentro do rombo aberto no prédio caído, uma
luta se iniciava, com o lado direito dentro do buraco explodindo. Em
seguida, o lado esquerdo e a estrutura inteira se rachou. De repente,
duas Harieis agarradas explodiram uma das paredes do prédio e
saíram rolando pelo asfalto. Nesse momento, Mazarak pousou ao lado
de Haziel, juntamente com Daniel, que tinha a pele um pouco pálida
ainda. Era a primeira vez que Haziel tinha visto um anjo com olheiras.
O louro não deu muita atenção a isso e correu na direção de suas duas
irmãs, sem pensar em qual delas seria a verdadeira.
A Hariel 1 se pôs em pé primeiro do que a Hariel 2 e afundou
um soco em sua face, fazendo-a se estatelar no chão. A 2 sentiu o
impacto, mas não serviu para desmaiá-la. Então ela deu um giro com o
corpo e com uma rasteira derrubou a 1. Logo rolou por cima dela e
começou a lhe desferir um soco atrás do outro. Depois do décimo
soco, a Hariel 1 começou a sentir que a luz se desvanecia. Percebendo
isso, a Hariel 2 levou a mão à sua bainha e tirou a espada.
Vendo isso, Haziel avançou como um lobo para cima dela,
afinal ele não sabia qual delas era a verdadeira e não queria correr o
risco de perdê-la. Em um movimento rápido, Haziel tirou a espada da
mão dela e a única coisa que ela acertou no peito da outra foi a mão
fechada.
A Hariel 1 pegou sua mão e a torceu, fazendo com que ela
rolasse ao seu lado. As duas grudaram os braços no ombro da outra e
324
se encararam. A Hariel certa viu algo que fez uma onda elétrica
atravessar a sua espinha. Por de trás dos olhos da Hariel falsa, ela viu
como se fosse através de uma camada translúcida, a imagem de três
dos tronos presos, como em queda livre em um abismo sem fim. Isso a
fez tremer em fúria e agarrando o pulso da falsa, ela a arremessou
contra um muro e voou para cima de seu corpo, desferindo-lhe um
poderoso murro que arrebentou o muro atrás, desmoronando concreto
sobre as duas.
Haziel avançou e começou a tirar as pedras de cima delas. De
repente, apenas uma delas surgiu dos escombros, com ela mesma
tirando uma pedra com mais de um metro de cima de seu peito. Ao
encará-lo, ele percebeu que era mesmo sua irmã de espírito.
– Eu vi, Haziel. Eu vi os tronos! – As sobrancelhas de Hariel
estavam baixas.
Haziel lhe deu a mão, puxando-a para cima e a envolvendo-a em
um abraço.
– É bom te ver, irmã!
– Digo o mesmo, querido irmão! Você escutou o que eu disse? –
Ela se afastou e segurou nos braços dele, encarando seus olhos.
– Escutei! – Com um sorriso grande, Haziel passou a mão pelos
cabelos de Hariel. Não se lembrava em ter sentido tamanha felicidade,
pois pensou mesmo que sua querida irmã tinha se virado contra ele.
Barrattiel pouco “delicadamente” avançou correndo na direção
dos irmãos. Mazarak e Daniel fizeram o mesmo, em seguida.
– O que está acontecendo? – indagou o grandalhão.
– Eu não sei! – Haziel se virou para Barrattiel. – Apareceu uma
réplica de Hariel e tentou confundir minha mente. Mas já está tudo ok.
– O anjo sorriu e olhou nos olhos de Hariel. – Minha querida irmã de
espírito me salvou.

325
– Você pode ser poderoso, mas é muito burro, Haziel! – disse a
criatura, surgindo novamente das sombras e avançando em passos
calmos na direção dos anjos. – Isso foi um simples jogo e você caiu.
Tenho certeza de que Yesalel não cairia.
Todos já estavam em guarda. Barrattiel observou Daniel
fechando sua guarda também e comentou:
– Você está parecendo um zumbi! Não é melhor você
descansar?
– Você tem um jeito muito ofensivo às vezes, Barrattiel e não.
Estou bem!
– Desculpe! Eu só sou sincero.
– Fiquem calmos, celestiais. Eu não pretendo acabar com
ninguém nesse momento. Quero apenas que me escutem. – A figura
parou a alguns metros deles.
Barrattiel deu um passo à frente.
– Eu vou acabar com esse...
Haziel colocou o braço atravessado na frente de seu peito. O
grandalhão parou e o encarou.
– Deixe-o, Barrattiel. Não temos chances contra ele.
Hariel encarou Haziel com o olhar confuso. Ela sabia que isso
não fazia parte da personalidade de seu irmão.
– Eu disse para você que tinha mudado. – Ele arregalou os olhos
ao dizer isso, pois se lembrou de que falou para a Hariel falsa.
– Ahm? – A loura ficou mais confusa ainda.
– Deixa para lá! – ele sorriu e se virou para a criatura. – Diga. O
que você quer?
– Eu quero fazer um trato com vocês.

***
326
A fúria nos olhos de Astaroth era nítida. Ele flutuou pelo buraco,
aberto pela luta dele contra Mazarak na estrutura infernal. Em seguida,
vazou pelo buraco do teto no andar de cima. Já a espera dele, estava
Leviatã, esfregando as mãos. Ele pousou e começou a caminhar em
direção ao seu trono, no final da sala. O demônio reptiliano começou a
andar apressadamente ao lado dele.
– Como estão os avanços? – perguntou Astaroth, sem olhar para
Leviatã.
– Tivemos sucesso com o espírito da menina japonesa e o
embrião do mexicano já floresceu.
– Eu achei que isso seria uma coisa mais prática. – Astaroth se
aproximou de seu trono e olhou atrás do apoio das costas. – E o
espírito do velho?
– Então...
– Então o quê? – Astaroth parou o que fazia e encarou Leviatã
com os olhos arregalados.
– Acho que tem algo errado com o espírito do africano. – O
demônio revirava os olhos, encolhido.
– Por que você acha isso? – Astaroth retirou uma adaga de prata
de trás do trono e a girou, refletindo a luz das tochas.
– Nós colocamos o mexicano e o africano juntos no tanque.
Assim que a japonesa chegou, também a colocamos. Ela foi a mais
rápida, nascendo, crescendo e evoluindo, em poucas horas. O embrião
do mexicano já começou a ganhar forma. No tanque, envolvido ao do
africano, nada aconteceu ainda.
– Certo! Deixe-me vê-lo. – Astaroth seguiu pelo corredor, que
saía de trás de seu trono e desceu a primeira escada à direita.
Descendo em caracol, o duque venceu os cem degraus e chegou a uma
plataforma de aço.
327
Leviatã subiu por ela dois segundos depois e puxou uma
alavanca. Começou um barulho de correntes rangendo, seguido do
barulho delas se colidindo. A plataforma começou a descer e depois
de dois minutos, alcançou seu objetivo com um tranco. Os dois
demônios desceram da plataforma e seguiram por um túnel escuro. Ao
final dele, deram de cara com o titânico salão de suas experiências.
Astaroth caminhou sobre uma plataforma de aço que contornava
o salão, chegando a uma porta que abriu e deu na sala, onde estavam
os recipientes com os humanos. O primeiro tanque transparente tinha
o mexicano, com seus olhos arregalados. O líquido em que boiava,
tinha oxigênio e de alguma maneira os infernais o adaptaram para que
os humanos usufruíssem dele, como os peixes. Astaroth se aproximou
do mexicano e encarou seus olhos, vendo o poço sem fundo. O
homem estava quase como morto, sem reação alguma. Mas seu peito
se movia para frente e para trás, em respirações aceleradas. O segundo
tanque tinha o africano e ansiosamente o duque encarou seus olhos.
Nada. Não eram como os do mexicano. Em seguida, ele olhou o da
menina japonesa e esses eram identicamente aos do mexicano. Ele
voltou para o tanque do africano para conferir e com um grito de fúria,
esmurrou o tanque, explodindo o vidro em centenas de detritos.
– Fui enganado por um mero humano! – Seus punhos tremiam
de ódio. Ele sabia que para o velho precisar tê-lo enganado, com
certeza ele estava protegendo um de seus netos.
Leviatã viu quando Astaroth pegou o corpo do velho encolhido
no chão e determinando que ele não tinha utilidade para nada, o
rasgou em dois, explodindo entranhas para todos os lados. O demônio
reptiliano cobriu a face com o antebraço. Astaroth lambeu os lábios e
limpou o sangue daquela região. Em seguida, rasgou um pedaço de
sua calça, que naquele momento, já parecia quase uma bermuda e
limpou o resto do corpo.
328
– Vou atrás do verdadeiro espírito na África – disse Astaroth, já
se movendo.
– O que faço com esse tanque quebrado? – indagou Leviatã.
Astaroth parou e sem se virar, respondeu:
– Conserte! – Em seguida, o duque voou e desapareceu no túnel
que dava acesso àquele grande salão.
Leviatã praguejou algumas coisas e andou para o túnel, para
acessar o elevador que dava em certo andar da torre. Mas o que ele e
Astaroth não viram é que uma figura sorrateira estava na escuridão,
anulando-se deles e escutando tudo. Era Dariel. Ele se esquivou para
dentro de uma sombra que subia até o teto e desapareceu na escuridão.
Subitamente ele surgiu na sombra principal da torre, na parte externa.
Nesse momento, ele começou a caminhar e atravessou a entrada
principal, acenando para os guardas. Ele ergueu voo e quinhentos
metros à frente, pousou no meio de uma floresta infernal, de pequenas
proporções. Lá, o companheiro que encontrou na árvore anteriormente
o aguardava.
Com os olhos tão belos quanto a cor do final de uma tarde de
sol, a pele alva e sensível como uma flor, os cabelos negros como os
pelos de uma pantera, um enorme casaco azul cobrindo vestes negras
que exaltavam seus músculos peitorais, deu um passo à frente. Foi
possível ver suas asas alaranjadas. E então ele disse:
– Você foi rápido, irmão!
– Eu sempre fui, Beelzebuth – Dariel sorriu.
Beelzebuth também sorriu e viu Dariel dizer:
– Irmão, Astaroth está indo para a África. Ele cometeu um erro,
raptando o humano errado, mas está disposto a corrigi-lo.
– Obrigado, Dariel! Isso é tudo o que eu preciso.
– Espere! – Eu sei as exatas coordenadas, onde ele iniciará sua
busca.
329
– Isso será de grande utilidade.
Enquanto o demônio negro escrevia as coordenadas em um
pedaço de couro, com a unha, indagou:
– Como você fará para chegar à Terra? Pois creio que a
passagem momentânea, que Leviatã está conseguindo abrir para
Astaroth passar, já deve estar fechada.
Beelzebuth sorriu e pegou o pedaço de couro da mão de Dariel.
– Da mesma forma que cheguei aqui, querido irmão! –
Beelzebuth fechou os olhos por menos de cinco segundos e meneou a
cabeça para Dariel. Em seguida, explodiu o vento em sentido vertical.
Dariel o observou se afastar, até que ele virou apenas um ponto
de luz azul no espaço.
Quando quase atravessava a atmosfera daquele lado do inferno,
Beelzebuth mudou sua direção e começou a voar na horizontal. Em
poucos minutos, voando em velocidade descomunal, o duque da luz
começou a avistar uma torre. Esta era a maior do inferno, erguendo-se
a mais de cem quilômetros de altura. Mas era uma torre fantasma,
sendo que a entidade que um dia a habitou, quando morreu, criou uma
maldição onde nem o pior dos demônios se atrevia a adentrá-la.
De trás da torre, surgiu uma enorme criatura alva, com seus
olhos amendoados. Era o dragão de Lúcifer. Ele soltou uma piscadela
para Beelzebuth e começou a voar, afastando-se dele. Beelzebuth
sorriu e explodiu sua áurea, voando na sua direção. Mas o dragão não
o deixava se aproximar e quando deixava, ao sentir o toque do duque
da luz, afastava-se novamente como em uma brincadeira. Depois de
alguns momentos, o dragão deixou que ele se aproximasse e montasse
nele.
– Você nunca cansa disso? – indagou Beelzebuth, acarinhando
sua cabeça.

330
O dragão olhou para trás, abriu a boca sorridente e disparou
como um cometa, com Beelzebuth em suas costas.

331
CAPÍTULO 43

Addae e sua irmã mais velha percorriam uma região pantanosa.


O garoto tinha nos pés apenas um par de chinelos de dedos, uma
bermuda e uma regata. Ela se vestia praticamente da mesma maneira
que ele, mas nas costas levava uma sacola de mais ou menos quinze
litros, cheia com garrafas de água, pão, uma troca de roupas para cada
um deles e um facão.
Ambos já andavam sem dizer nada fazia meia hora e escutavam
apenas o barulho de alguns pássaros voando entre as folhas das
árvores. Eles viram um rabo enorme entrando na água a cerca de dez
metros deles e deduziram que era um crocodilo.
– Rápido, para cá, Addae! – A jovem o puxou para uma ilhota
que abrigava duas árvores em seu solo.
Dez segundos depois, eles puderam vislumbrar o imenso réptil
serpenteando pela água. Quando ele se afastou, os dois irmãos
entraram na água novamente e cruzaram até a margem o mais rápido
possível. A água chegava apenas até a altura dos joelhos da moça.
Mesmo assim, o perigo era colossal, pois qualquer coisa poderia ser
fatal naquela região hostil.
Na margem do pântano, mais uma vez começaram a caminhar
floresta adentro.
– Estou cansado, Dahia! – disse o pequeno, com sua voz doce.
– Eu sei, Addae. Eu também estou! Mas vovô disse que
tínhamos que nos afastar de lá.
– Você não acha que já estamos muito longe?

332
– Não, irmãozinho. Não sei se andamos mais de cinco
quilômetros.
Um rio cortando a floresta surgiu na frente dos irmãos. De uma
margem até a outra, poderia chegar a mais de cem metros. Isso não era
problema, pois ela sabia que com certeza encontrariam alguma canoa
abandonada por ali. Como ela deduziu, depois de duzentos metros
contornando a margem, eles se depararam com um pequeno barquinho
para três pessoas. Estava sem remo. Dahia olhou pelo lugar e avistou
um tronco, com mais de dois metros. Ela colocou o irmão no barco,
pegou o tronco, soltou a corda e entrou. Com uma investida,
impulsionando a madeira no chão, empurrou o barco, rio adentro.
Para uma jovem de dezesseis anos, Dahia parecia bem madura.
A vida dura daquela região a obrigou virar mulher antes do tempo.
Com um pouco de esforço, tocando o fundo do rio com o tronco, ela
direcionava o barco para a outra margem. Repentinamente, ela
percebeu que o rio ficava mais fundo. Dois metros à frente, depois de
perceber isso, não teve mais o que fazer, pois o pau não tocou mais o
fundo e o barco começou a ser levado pela correnteza, que não era
forte, mas o suficiente para arrastá-los.
Seguindo pelo meio do rio, não tinham a menor chance de
agarrar qualquer galho de árvore. Sem ter o que fazer, Dahia se sentou
e segurou o enorme tronco em cima de suas pernas.
– O que faremos, irmã?
Ela deu de ombros.
– O vovô não disse que era para nos afastarmos? Então! Quer
melhor maneira que essa? – Ela sorriu e acarinhou a cabeça quase lisa
do irmão.
Addae também sorriu, mostrando os seus dentes da frente,
banguelos.

333
***
– Nós nunca faremos um trato com alguém como você! – Hariel
deu um passo, furiosa, à frente.
– Mas você não pretende nem escutar? – retrucou o anjo das
trevas, com um sorriso de deboche no rosto.
Todos ficaram calados e ele acrescentou:
– Foi o que eu pensei. Bom! Não sei se vocês sabem exatamente
o que está acontecendo, mas estou aqui para acabar com essa tal
humanidade. Assim como fui instruído – disse o anjo das trevas, como
em um papo de bar.
– Como se atreve? – Dessa vez quem deu um passo à frente foi
Haziel.
– Deixe-me terminar, por favor. Aff! Como são mal educados. O
Pai de vocês não lhes ensinou nada? – Vendo a cara de todos os anjos
se entortarem nessa hora, ele disse: – Eu sei, eu sei. É só brincadeira!
– Ele colocou as mãos na cintura. Cada gesto que fazia tinha um tom
de provocação. – Como eu dizia, estou aqui para acabar com essa tal
humanidade. Mas nessas duas horas que estou rodeando esse planeta
inteiro, percebi que esses frágeis seres podem servir de uso para algo.
Nesse momento, a atenção dos anjos passou para outro nível.
Mas nenhum deles interrompeu o anjo das trevas.
– Vejo que podemos ser reis nesse planeta. Vocês já devem
saber que a lenda é verdadeira e sim, eu sou um dos quatro cavaleiros
do apocalipse. Minha proposta é a seguinte. Vocês me ajudam a
acabar com os próximos três que vão chegar e os deixarei governar
este planeta junto a mim.
O silêncio tomou conta do grupo por um breve momento.
– Você está de brincadeira? – indagou Hariel.

334
– Não! Eu falo muito sério – disse o cavaleiro, sorridente.
– Nós nunca nos viraríamos contra o Pai, ou contra qualquer cria
Sua! – gritou Barrattiel.
A loura o encarou nesse momento, virando a cabeça para trás. O
anjo das trevas arqueou as sobrancelhas.
– O que vocês têm a perder com isso?
Haziel deu um passo à frente e disse com a voz calma:
– Nós nunca iríamos contra algo que interferisse na vontade de
nosso Pai. Você não entende isso, porque Ele não é seu Pai. É claro
que sabemos que em Seu coração tem espaço para te amar também.
Por isso, eu aproveitaria a chance de ficar ao seu lado e jamais lutaria
contra Ele. Caso contrário, você terá a oportunidade de conhecer Sua
ira, através de nós, seus guerreiros eternos.
O anjo das trevas arregalou os olhos e entortou a boca para
baixo.
– Belo discurso! Você poderia ser meu primeiro súdito.
Subitamente, Haziel explodiu sua áurea e encarou ainda mais
profundamente o anjo das trevas.
– Eu já disse que nunca lutaríamos contra o Pai.
– Você quer mesmo fazer isso novamente? – indagou o
cavaleiro, estreitando os olhos.
Após dizer isso, o primeiro cavaleiro avistou ao longe algo que
o deixou relativamente feliz. Tinha sido criado há pouco tempo e
nunca tinha visto tantos seres alados juntos. O que ele vislumbrava era
a enorme legião de potências celestiais. Mas para ele, aqueles
celestiais eram diferentes do que os que estavam na sua frente.
Aqueles tinham suas formas trêmulas e um tanto embaçadas.
Kamael liderava a legião e a menos de cem metros dos
guerreiros de Deus, ele foi parando e sua legião foi parando com ele.
Todos plainavam no ar como um enorme muro de anjos, com suas
335
luzes douradas. Subitamente, Kamael se materializou e um atrás do
outro daqueles celestiais começou a se materializar.
Os olhos do anjo do apocalipse cresceram ainda mais, ao ver a
tempestade de centelhas douradas que explodiam das centenas de
milhares de potências celestiais, materializando-se. De repente, todos
naquele muro de anjos estavam com a forma dos celestes à sua frente.
Mesmo diante de tantos anjos de Deus, a criatura não se sentiu nem
um pouco intimidada.
– Minha proposta está de pé. – O anjo das trevas arqueou as
sobrancelhas para Haziel. – E o tempo está passando!
– Como se atreve? – O guerreiro fechou um dos punhos,
aumentando a vibração de sua energia.
– Nos encontraremos na hora certa! – A criatura soltou uma
piscadela para Haziel e em um feixe de luz, desapareceu.
– Como ele é atrevido! – disse Barrattiel.
– Ele é atrevido, porque ele pode irmão! – disse Haziel com as
sobrancelhas baixas.
Chavakiah bateu suas asas com calma e subiu até Kamael,
plainando na sua frente. Ele meneou a cabeça ao príncipe.
– É muito bom vê-lo, príncipe das potências celestiais.
– Considere essas palavras também as minhas, meu querido
general. Peço que me atualize!
– Vim exatamente fazer isso. A criatura que acabara de deixar
este local era um verdadeiro anjo do apocalipse. Ele nos fez uma
proposta, mas não acho que devemos perder tempo com ela.
Kamael desviou o olhar para as costas de Chavakiah
rapidamente.
– Olá, Haziel. É muito bom vê-lo novamente!

336
– Olá, príncipe. Escutei o que Chavakiah disse e me senti na
obrigação de lhes informar que eu nunca enfrentei ninguém tão
poderoso.
– Eu pude sentir sua energia, guerreiro. Se as escrituras
estiverem corretas, não teremos chances contra eles e o mundo será
levado à calamidade. – O príncipe fechou os olhos por dois segundos.
– Eu não permitirei que isso aconteça! – disse Haziel, apertando
o punho.
– Eu sei, guerreiro. Eu tenho certeza também de que o Pai tem
um plano para isso.
Haziel meneou a cabeça.
– Príncipe. Aquele ponto de luz é o que penso?
– Sim, Haziel. 99% das legiões de guerreiros foram deslocadas
do Sexto Céu e estão vindo para cá.
– Yesalel está junto com eles?
– Sim! Com eles está um material poderoso, necessário para que
cheguem aqui rapidamente e ainda mais importante: nos equipará
como os guerreiros do Pai.

***
Ao chegarem à primeira cidadela do Sexto Céu, até Hector, que
não conhecia nada, achou estranho.
– Isso aqui é vazio, hein! Pensei que veria 1MILHÃO de anjos
voando por aí.
– Era para você estar vendo pelo menos mais de cem. – Caliel
tinha os olhos estreitos.
Aquela era a cidade que abrigava a legião das virtudes celestiais.
Depois dos serafins, essa era a menor casta angelical, contendo apenas

337
111 indivíduos. Até seu vento, que corria em direções diversas na
região, tinha cores sutis. Cada um contendo seu próprio aroma.
– Então onde estão todos? – sentindo um leve cheiro de maçã.
– Eu não sei, mas vamos descobrir! – Caliel mudou de direção.
– Quando poderemos comer alguma coisa? – Hector massageou
a barriga.
Caliel explodiu o vento e em poucos quilômetros, eles chegaram
à cidadela dos tronos. Um titânico palácio, com mais de cinco
quilômetros de altura, erguia-se de um punhado de nuvens. Uma
energia, como as dos guardadores, embelezava a construção enquanto
lambia suas paredes com ondas coloridas. O monumento tinha vinte e
quatro níveis, sendo que o último era único e maior do que os
inferiores.
Caliel começou a subir na diagonal, alcançando níveis
superiores e entrou por uma abertura que ficava no décimo quarto
nível.
– Onde estamos? – indagou Aron.
– Na cidadela dos tronos – respondeu o ruivo, plainando em um
corredor amplo e solitário, cheio de luzes brilhantes.
– A cidadela dos tronos é um palácio?
– Exato! – disse o ruivo com um sorriso.
Mas Aron só pôde ver um pouco de sua bochecha se esticando,
sendo que estava em suas costas.
– Se bem me lembro, o arcanjo disse que você iria ocupar a
vigésima quinta posição dos tronos.
– É, ele disse! Mas creio que as coisas possam ter mudado.
– De que arcanjo vocês estão falando? – indagou Hector.
– De Rafael – disse Aron.
– Hahah, então Rafael realmente existe? Não vem me dizer que
Gabriel e Miguel também?
338
– Caliel apenas baixou os olhos para ele e alargou o sorriso.
– Gente! Sério! Isso aqui é muito louco! – O sorriso do indiano
parecia que iria estourar seus músculos do rosto, de tão aberto.
Eles chegaram a uma abertura arqueada na parede lateral
esquerda, localizando-se exatamente no meio daquele grande corredor.
Ao final dele, outra abertura exatamente igual à que eles entraram,
mostrava o céu claro adiante. Caliel pousou e todos tocaram os pés no
chão. O ruivo entrou pela abertura com quatro metros de altura. Os
humanos se entreolharam e foram atrás dele.
Uma sala ampla, com pelo menos mil metros quadrados,
estendia-se em um retângulo. O solo era ornado com um carpete
vermelho que não deixava nenhuma parte do solo abaixo, aparente.
Móveis clássicos mobiliavam o cômodo. Mas o que mais chamava
atenção era a grande biblioteca que ia de ponta a ponta, contendo
centenas de milhares de livros. Alguns dentre eles brilhavam em um
tom dourado. A altura do móvel era assustadora, com tantos livros, de
tantas cores diferentes, como um monstro, chegando a mais de vinte
metros de altura.
Em cima de uma escada de madeira, que percorria a biblioteca
inteira, por cima de um corrimão, estava um homem velho, de cabelos
grisalhos. Ele procurava por um livro, a mais de dez metros de altura.
Quando ele notou a presença de Caliel e dos humanos, quase caiu da
escada, fazendo com que o anjo desse um passo involuntário para a
frente.
– Está tudo bem! Está tudo bem! – disse o grisalho, levantando
um dos braços.
Rapidamente ele desceu. Ajeitou suas calças sociais pretas.
Alisou sua camisa branca e se aproximou do trio, com passos curtos,
porém rápidos. Parando na frente de Caliel, ele olhou por cima de seus
óculos, deixando mais evidentes seus olhos verdes e disse:
339
– Caliel, como é bom te ver! – ele abraçou fortemente o anjo,
depois se afastou e abraçou Aron. – Aron! Enfim pude conhecer o
homem que salvou a humanidade.
Aron remexeu os olhos para os lados e também abraçou o idoso,
um tanto hesitante.
– Não seja tímido. Pode me abraçar!
Aron o envolveu em um abraço mais forte. Em seguida, o idoso
se afastou um pouco, encarando-o com um sorriso e lhe desferiu dois
tapinhas no rosto.
– Eu tenho orgulho de você!
– Obrigado! – respondeu Aron, dando de ombros.
O velho pulou para Hector e o segurou nos ombros.
– Hector!
– Ahn! – O indiano tinha as sobrancelhas arregaladas.
– Eu ouço falar de você, desde que você floresceu na vida
terrena.
– Eu tenho um guardador, como o outro aí? – Hector apontou
com o dedão para Aron.
– Não! – O idoso fez um momento de suspense. – Mas sua mãe
teve!
A resposta surpreendeu não só a Hector, mas também a Caliel e
a Aron.
– Eu sabia que alguma coisa de familiar nós tínhamos. – Aron
soltou uma piscadela para o indiano, mas em seguida caiu em si de
que ele era o único sobrevivente com a energia azul e apagou o sorriso
do rosto, que durou apenas poucos segundos.
– Fique em paz! – disse o idoso, colocando o dedão no peito de
Hector. – Ela está junto ao Pai, ao Espírito Santo e ao seu Filho, o
homem mais bravo de todos.

340
– Eu estou em paz. Eu já sentia isso, desde uma semana após o
final do holocausto.
O idoso retirou o sorriso do rosto.
– Sinto por todos nós em dizer que aquele não foi o final do
holocausto e sim o início dele.
– Eu temia por isso! – disse Caliel. – Então as escrituras
sagradas são reais? Estamos meio ao apocalipse no mundo?
– Sim, Caliel. Você deve se lembrar, quando tivemos uma aula
após o dilúvio, sobre o apocalipse.
– Sim! Lembro-me perfeitamente, senhor!
– Por favor, não me chame de senhor. – Ele brincou em seguida:
– Eu sou velho, mas ainda dou para o gasto.
– Eu não o quis ofender senho... Desculpe! Misael.
– Não ofendeu! – O sorriso do anjo velho se alargou.
– Então o senhor é mesmo um anjo? Ops, desculpe! – Aron
ficou vermelho.
– O que você achou que eu fosse?
– Não sei! Um humano, talvez?!
O anjo idoso sorriu e voltou sua atenção para Caliel.
– Como eu dizia, Caliel. Tudo que aprendemos naquela aula está
se concretizando. A lenda dos cavaleiros é verdadeira. Mas algo que
não está escrito aconteceu na última hora. – O anjo abaixou as
sobrancelhas. – Pela primeira vez na história da criação, o céu foi
invadido.
– Como invadido? O que você quer dizer com isso? – indagou
Caliel, espantado.
– Simplesmente fomos invadidos por uma criatura e ninguém
sabe de sua procedência, ou de onde veio. Sabemos que não é um
demônio, pois se fosse, jamais conseguiria entrar aqui.
– O que pode ser esse ser, se não um anjo, ou um demônio?
341
– Essa é uma resposta que ainda não temos. Mas todos nós
sabemos que as coisas estão mudando e futuros acontecimentos não
poderão ser previstos. Você deve ter percebido que as coisas lá fora
não estão iguais.
– Sim, a falta de brilho é evidente – disse Caliel.
– Isso porque todos os celestiais foram deslocados para a
dimensão dos serafins. Lá com certeza essa criatura não terá acesso.
Caliel, você se lembra da era da divisão das castas?
– Perfeitamente, Misael.
– Algo parecido com o que aconteceu naquela época está
voltando a acontecer. Algo que desconhecemos, como não
conhecíamos o mal, está surgindo e não sabemos como pará-lo.
– Por que você ainda está aqui?
– E quem iria cuidar desses livros, se não fosse por mim? – O
anjo idoso soltou uma piscadela.
– Quantos livros têm aqui? – indagou Aron.
– Todos! – O anjo idoso levou as mãos para trás, cruzou-as e
encarou Aron, vendo seu olhar confuso. – Aron, nós temos aqui todos
os livros que já foram escritos e os livros que ainda nem foram
escritos, que ainda são apenas ideias.
O humano jogou a cabeça para trás em gesto de surpresa. Em
seguida, ele arqueou as sobrancelhas, olhando todos os livros.
– Misael, eu sei que essa biblioteca é grande e tudo mais, mas
não acho possível que todos os livros escritos estejam aqui.
O anjo idoso alargou o sorriso e fez um gesto com a mão. Nesse
momento, eles escutaram um estalo enorme e a estante com os livros
começou a se mover para cima.
Caliel olhava para Aron, esperando sua reação ao que ele veria
na sala adiante. Mas não foi só ele, como Hector também arregalou os

342
olhos. Os dois começaram a dar passos para dentro, pisoteando o piso
de tacos de madeira escura.
– Agora está explicado!
Centenas de milhares de estantes, uma atrás da outra,
enfileiravam-se contendo inúmeros livros cada uma delas.
– Você vê esses livros brilhantes?
Aron já tinha reparado na estante anterior, mas esses agora
pareciam vagalumes brilhando meio a uma imensidão de árvores. Ele
percebeu também que alguns livros brilhavam mais do que outros.
– Por que alguns brilham mais? – Ele olhou para o anjo idoso.
– Essa é uma pergunta curiosa que acho que vocês dois vão
gostar da resposta – disse tocando o peito de Aron e de Hector. – Um
livro surge como apenas um brilho nessa biblioteca. Nesse momento,
eu fico sabendo que uma ideia floresceu na cabeça de um criado do
Pai. Essa ideia vai sendo posta no papel e quando mais próxima de ser
terminada, mais forma o livro vai tomando.
O anjo idoso andou até a primeira estante e pegou um ponto de
luz, trazendo para perto dos humanos, flutuando sobre sua mão. Era
uma esfera reluzente, mais ou menos do tamanho de uma bola de
tênis. Tinha uma casca translúcida e dentro dessa casca, parecia
brilhar uma mine estrela.
– Segure! – Misael a transferiu para a mão de Aron.
O humano a equilibrou com medo de que caísse, mas ele não
sabia que aquilo não iria acontecer. Logo ele a passou para Hector que
teve quase a mesma reação.
– Essa é uma ideia que surgiu na cabeça de duas primas. Elas
amam sua avó e vão escrever sua história. Assumo que estou curioso
para ler sobre a vida dessa senhora humana.
Hector voltou a esfera para Misael, com cuidado.
– Quantos livros você já leu? Indagou o indiano.
343
– Quase todos eles. Preciso me atualizar apenas com alguns
milhares que foram concluídos hoje.
– Quantos livros são publicados por dia? – indagou Aron.
– Ah! Milhares, mas eu leio também os que não são publicados.
Depois do que aconteceu na Terra, esses números diminuíram
drasticamente. Apenas alguns poucos humanos ainda têm cabeça para
escrever.
– Isso é lamentável. Mas corrigiremos isso – disse o ruivo.
– Eu não conto com isso! Nós entramos na era do apocalipse e
só sabemos o que acontecerá até aqui. Depois daqui, creio que apenas
o Pai saiba o que acontecerá.
– O que nos sugere fazer agora, Misael?
– Sugiro que vocês fiquem aqui comigo, até a poeira abaixar.
Temos quatro guerreiros guardando a porta principal da torre.
– Faremos isso! – disse o ruivo.
– Você se importa se eu escolher um livro para ler? – indagou
Aron, apontando para qualquer estante.
– Fique à vontade – Misael inclinou o corpo para a frente.
Hector ficou olhando para ele.
– Vá você também! – Misael o encarou com um sorriso.
O indiano meneou a cabeça e seguiu Aron. No meio do
caminho, ele parou e perguntou em tom mais alto:
– Tem algum lugar aqui que posso achar livros sobre a minha
cultura?
Misael mordeu os lábios.
– Você é o que mesmo, israelense?
Hector arregalou os olhos. Misael acrescentou com um sorriso:
– Estou apenas brincando. Siga até o corredor X-Shee-52 e ande
cerca de cem metros.

344
– Obrigado! – Hector se virou e começou a correr em direção a
Aron, que já se afastava a dezenas de metros.

345
CAPÍTULO 44

Como um gavião, Astaroth sobrevoava a região da África, onde


tinha levado o velho. Estava a quase um quilômetro de altura e
passava seus olhos por cada metro do mapa verde abaixo. Já tinha
passado pela barraca do velho, mas a encontrou vazia e sem vestígio
nenhum dos humanos. Pelo cheiro deixado na casa por eles, o duque
deduziu que eles já tinham saído de lá há várias horas. Nesse caso, ele
subiu alto, tendo essa como a única ideia para encontrá-los.
Em um foco repentino, ele avistou os irmãos a quase dez
quilômetros do ponto em que estava. Eram levados pelas águas de um
largo rio. Ele explodiu o vento e em trinta segundos os alcançou.
Astaroth mergulhou e quando se aproximou dos irmãos, antes mesmo
que algum deles notasse sua presença, ele agarrou cada um em um
braço e subiu novamente, deixando o barco seguindo sua trajetória,
solitário.
Os irmãos quase não tiveram tempo de perceber o que estava
acontecendo e Astaroth já estava pousando em um campo aberto.
Primeiro ele segurou a cabeça do garoto, encarando-o a vinte
centímetros de seu rosto. Enquanto isso, a jovem lhe desferia socos e
pontapés que ele praticamente nem sentia.
O duque se surpreendeu quando percebeu que o garoto não era
quem procurava. Ele olhou para trás, com os olhos arregalados,
encarando a jovem. Nesse momento, ela parou de bater nele e caiu
para trás. Ele caminhou na sua direção e ela se afastava dele,
arrastando-se no chão para trás. Astaroth deu alguns passos mais
rápidos e se abaixando, grudou nas duas pernas da mulher. Ele a

346
arrastou para perto e virou sua cabeça, olhando profundamente em
seus olhos. Lá estava o poço negro sem fundo que tinha vislumbrado
no mexicano e na menina japonesa.
Addae avançou contra Astaroth com socos, na tentativa de
defender a irmã, mas Astaroth apenas o afastou com o braço. Em
seguida, ergueu a moça e a jogou em cima de seu ombro. Ela se
remexia bastante e batia nele, mas os golpes não passavam de meros e
pequenos incômodos. Subitamente o duque sentiu uma fisgada na
panturrilha e aquilo sim tinha doído um pouco. Quando ele olhou, o
menino negro tinha cravado seus
dentes, abrindo um corte profundo naquela região. Astaroth o afastou
com a perna, mas o golpe foi um tanto forte e o pequeno apagou na
terra.
– Nãaaaaooo! – gritou a jovem, antes de Astaroth alçar voo e
desaparecer no horizonte.
Um pássaro passou voando. Sua sombra lambeu o rosto de
Addae e ele pousou ao seu lado. Em seguida deu dois pulinhos,
aproximando-se do menino e subitamente alçou voo, quando
Beelzebuth pousou ao seu lado.
O duque da luz encarou o menino negro no chão, com seus
olhos entristecidos. Nesse momento, Addae tossiu e abriu seus olhos
amendoados. O duque da luz se aproximou e se abaixou ao seu lado.
– Está tudo bem com você? – perguntou ele, com a voz calma.
– Onde está a minha irmã?
Beelzebuth se levantou e fitou o horizonte na direção em que viu
Astaroth indo. Ele poderia tê-lo interceptado, mas vendo o menininho
naquela situação, preferiu parar e ajudá-lo.
– Você tem alguém que cuide de você?
O garoto se inclinou e se sentou.
– Só minha irmã. Onde ela está?
347
Beelzebuth ficou mudo por um momento, pensativo. Ele sabia
que Astaroth tinha conseguido sua terceira presa, das quatro. Ele
também sabia que o duque não teve sucesso no Brasil e que com
certeza voltaria lá, para terminar sua missão. O duque da luz tirou um
pedaço de couro do bolso, entregue a ele por Dariel. Ele o abriu e viu
as coordenadas, onde ficava a morada do humano no Brasil. Embaixo
das coordenadas, tinham alguns sobrenomes. Dariel investigou as
casas daquela região e conseguiu reunir sobrenomes das famílias
ainda vivas que habitavam aquele lugar.

***
Yesalel seguia ao lado de Bariel. Quanto mais se aproximavam
da Terra, mais bela ficava a sua paisagem, que mesmo depois de todo
o holocausto, ainda brilhava em tons azuis e verdes. Naquele
momento, atravessavam a primeira camada de proteção do planeta.
Esta o protegia de tempestades solares, poderosas. Em poucos
minutos, já perfuravam a primeira camada da atmosfera. Nesse
momento, o grupo inteiro começou a frear bruscamente, seguindo as
orientações dos comandantes à frente.
O grupo de guerreiros e potências abaixo via o titânico batalhão
de guerreiros se aproximando em uma luz poderosa. Nada a ver com a
luz do impacto com a atmosfera, pois nenhum deles estava
materializado no mundo carnal e suas moléculas não se contrapunham
com as moléculas terrestres.
A uns quinhentos quilômetros ainda afastados da enorme legião
de potências celestiais, a titânica legião de guerreiros, na forma de
uma seta do tamanho de um pequeno país, começou a se materializar,
a partir de Bariel e Yesalel. Centelhas douradas começaram a se

348
fragmentar daqueles pontos e uma tempestade de luzes douradas
começou a chover por onde eles passavam.
Os humanos que viam aquilo acontecer chegavam a cair para
trás, com seus olhos penetrados na situação. Alguns até se esqueciam
de respirar. Uma mãe, usando um capuz claro, abraçou seu filho de
dez anos e começou a chorar, diante daquela cena divina. Um homem,
com chapéu de palha e um tridente de escovar grama nas mãos, tirou
seu chapéu e o colocou no peito.
Um bando de lobos parou entre duas enormes árvores e todos
começaram a uivar, fitando o elemento divino. Não muito afastado
deles, um bando de leões da montanha também estava petrificado. Por
todos os lugares que podiam vislumbrar aquela cena maravilhosa,
humanos e animais paravam com seus corações abençoados pela graça
divina dos guerreiros de Deus.
– É! Eles estão chegando – disse Haziel, com um sorriso.

***
– Gadkari, que coincidência, cara! O nome desse livro é o meu
sobrenome. – Hector o pegou e começou a folheá-lo.
– O que diz aí? – Enquanto segurava um livro aberto nas mãos,
Aron alongou o pescoço, tentando ver algo em suas folhas.
– Ah! Nada de mais! – disse Hector, entre uma folheada e outra.
– Só tem algumas figuras estranhas.
– Vamos, meninos! – chamou Misael. Tenho algo para mostrar a
vocês.
Aron colocou seu livro na estante, exatamente do jeito que
estava. Hector o colocou de qualquer jeito, em cima de alguns livros
enfileirados, em uma das prateleiras e saiu atrás de Aron. O livro ficou

349
aberto na página 132 e o indiano não chegou a ler o que estava escrito
em hindi, no final da folha:

“दिन ों के अोंत की उलटी दिनती शुरू ह ती है जब


स्विग और अोंधेरे से चुने हुए ल ि दिलते हैं ।”
Traduzido para a língua de Aron, ficava:
“A contagem das horas para o fim dos dias se iniciará quando os
escolhidos do céu e das trevas se encontrarem.”
Caliel e Misael saíam pela porta arqueada da biblioteca. Aron e
Hector trotaram passos para se aproximarem deles e todos juntos
começaram a deslizar pelo amplo corredor. Após alguns metros,
Misael parou e tirou uma chave dourada do bolso, introduzindo-a na
parede, como se esta tivesse buraco. Após girar a chave para a
esquerda uma vez, um feixe de luz, no formato de uma porta
tradicional, apareceu na parede. Subitamente a luz se dissipou e aquela
parte da parede sumiu junto. O anjo idoso fez um gesto para que o trio
entrasse na frente. Ele foi em seguida, com o muro reaparecendo atrás
dele, quando ele passou.
Eles deram em um corredor estreito para as proporções divinas,
com cerca de dois metros de largura e três de altura. O teto era
triangular e todas as paredes eram brancas. Todos começaram a andar,
já enxergando pequenos detalhes da sala que dava ao seu término.
– Aonde estamos indo? – indagou Aron a Caliel.
Hector também olhou para Caliel, esperando sua resposta.
– Eu quero te mostrar algo.
– O quê?
– Espere, faltam apenas mais alguns metros. – Caliel sorriu e
olhou para a frente, quando pisaram no salão com formato poligonal.

350
No meio do salão, erguia-se um monumento de mármore
branco, com cerca de um metro e meio de altura, seguindo o mesmo
formato da sala. Em cima desse monumento, repousando sobre um
pequeno pedestal, estava um robusto livro com uma capa de couro
marrom.
– E aí? – Caliel olhou para Aron, sorridente.
A cara do humano era de decepção pura quando retornou o olhar
para ele.
– Esse suspense todo por que você queria me mostrar um livro?
– Esse não é apenas um livro! – Caliel deu um passo e olhou
para Misael – Posso?
– É claro que sim – disse o anjo idoso. – Vá em frente!
Caliel se aproximou e segurou o livro. Subitamente uma luz
rubra brilhou em volta do livro como um raio e se apagou. O anjo
trouxe-o para perto de Aron com cuidado, já abrindo a capa grossa de
couro.
– Este não é apenas um livro. Este é o Livro da Vida! – Caliel
passou o livro a Aron. – Experimente.
Quando o humano tocou o livro, o lance da energia também
aconteceu. Mas com ele, o tom foi azulado. Já aberto em uma página
branca, Aron folheou para a seguinte. Dessa vez algo diferente
aconteceu. Uma luz ofuscante brilhou tão forte a partir das folhas do
livro que Aron se assustou e o soltou. Quando ele caiu no chão, mais
duas folhas se viraram e a luz também partiu dessas. Como um laser,
ela refletiu no fundo da sala uma imagem semelhante a um holograma,
só que absurdamente real. A única distinção da realidade é que no
corpo daquele garoto que eles viam, assim como nas árvores e pedras,
feixes sutis de luz se refletiam, como se aquele fosse um mundo de
sonhos.

351
O menino, com aparentemente dez anos de idade, cabelos lisos e
negros, corria em uma trilha de terra vermelha, cercada por árvores.
Os pés descalços estavam sujos, como suas roupas, antes claras. De
repente um cachorro grande e amarelo, com as costas pretas, apareceu
na cena correndo ao seu lado. A trilha começou a ficar mais íngreme e
logo eles chegaram a um vilarejo. As barracas eram de palha, porém
muito bem elaboradas. Algumas chegavam a ter mais de um andar.
Mesmo de dia, algumas famílias já tinham suas fogueiras acesas,
utilizando seu calor para esquentar água, ou assar comida.
O garoto chegou a uma casa que tinha duas cabras amarradas em
um tronco de madeira ficando no chão e ainda correndo, empurrou a
porta com a violência desastrada de uma criança, adentrando-se na
casa. O cão entrou atrás dele.
Cinco segundos depois, o cachorro foi atirado pela porta ainda
aberta. Ele caiu soltando um grunhido, rolou e se pôs em pé. O
menino saiu correndo da barraca atrás dele, mas deu apenas três
passos, quando um homem de meia idade, com os cabelos claros,
aproximou-se rapidamente e o agarrou pela roupa, puxando-o para trás
violentamente. O menino caiu e o homem levantou a mão, para acertá-
lo. Nesse momento, o cachorro rosnou e avançou para cima do
homem, grudando em seu braço com os dentes. Como um cão feroz,
começou a sacudir a cabeça para todos os lados, rasgando a carne do
homem.
O menino viu que alguns homens da vila começaram a se
movimentar, correndo em direção a eles. Alguns portavam armas
forjadas a partir do ferro. Outros seguravam porretes de madeira e
lanças.
– Amigo! – gritou o menino.
O cão soltou o homem.
– Corre! Eles vão te matar. Corre!
352
O cachorro bateu as patas da frente na terra, encarando o
menino, com a língua para fora. As orelhas eretas. Em seguida, virou-
se e correu floresta adentro. Ferozes, os homens passaram correndo
pelo garoto e foram atrás do cachorro.
Nesse momento, a imagem foi cortada e a luz do livro se
apagou, quando Misael o fechou e o recolheu do chão.
– Ahhhhhhh! – resmungou Hector. – E o fim da história?
– Não se preocupe – disse Misael. – Um dia você terá muito
tempo para lê-las. Todo céu tem uma cópia deste livro.
Hector arregalou os olhos e ficou mudo.
– O que tem de tão importante nesse livro? – perguntou Aron,
dando de ombros.
– Você ainda não entendeu né, Aron? – Caliel sorriu. Vendo a
cara de confusão do humano, acrescentou: – Esse livro contém toda a
história da humanidade, de todas as pessoas do mundo. Cada abertura
dele se relaciona com o sentimento exato do momento em que você o
tocou, mostrando-lhe uma história perfeitamente combinada com a
sua energia.
– Interessante! – disse Aron.
Súbito, todos sentiram a torre tremer, seguido de um estrondo.
Em seguida, mais uma tremida, com um som mais forte.
– O que é isso? – Hector segurava forte no monumento
poligonal de um metro e meio.
– Creio que a criatura tenha nos alcançado! – disse Misael,
apoiando-se na parede.
– Rápido! Como podemos sair daqui? – indagou Caliel, aos
gritos. – Ela vai derrubar o muro.
– Não acho que ela esteja tentando derrubar o muro aqui atrás de
nós. – Misael estava ofegante e seu sorriso não estava mais lá. – Acho
que ela está tentando derrubar a torre inteira.
353
Caliel ficou mudo e abaixou a cabeça, concentrado. Ficou assim
por quase cinco segundos e disse:
– Abra para mim, Misael!
Aron arregalou os olhos e correu até ele.
– O que você vai fazer?
– Se ele nos alcançar, existe a possibilidade de ele matar você.
Eu não quero que isso aconteça. E nós sabemos que isso também não
é bom para as condições atuais do planeta. – Caliel segurou nos
ombros de Aron e o puxou, envolvendo-o em um longo abraço. Em
seguida se afastou. – Misael, por favor, cuide deles para mim.
O guardador se afastou de Aron e meneou a cabeça a Hector,
que retribuiu o gesto. Em seguida, meneou a Misael e começou a
andar em direção ao muro que o anjo idoso abriu para eles passarem.
Misael ia se deslocando de seu lugar, a fim de seguir Caliel, quando...
– Por que você vai fazer isso? – Aron tinha a voz trêmula.
– Porque eu preciso! – respondeu Caliel, sem se virar.
Misael se aproximou do muro e abriu o portal. Caliel o passou e
a parede se fechou novamente atrás dele.
– Ele é um garoto corajoso! – O anjo idoso tinha os olhos tristes.
Do outro lado do muro, Caliel alçava voo em direção à saída.
Nesse momento, segurava muito forte sua lira. Parecia extrair dela
uma energia que não conhecia até então e sabia que precisaria dela
para o que se sucederia. Com mais um tremor da torre, ainda mais
poderoso do que os outros, Caliel apertou mais forte sua lira. O brilho
da pedra rubra se intensificou e ele disparou como um míssil para
fora.
A primeira coisa que o ruivo viu, petrificou-o. Aquela figura de
mulher, ele conhecia muito bem. Ela arremessava seu peso, colocando
toda a força no ombro e batendo na torre, consecutivas vezes. Sua pele

354
clara, apesar dos impactos, continuava clara como a neve. Caliel se
aproximou dela e parou a não mais de cinquenta metros de distância.
A moça percebeu sua presença e se virou para ele. Ela flutuava
sem ao menos precisar de asas. Uma energia branca, igualmente suas
vestes, envolvia seu corpo como a luz de uma lâmpada. Sua cabeça
baixa, de repente se ergueu e ela encarou o ruivo com os olhos
estreitos.
– Não é possível! – praguejou Caliel.

***
Beelzebuth pousava com o menino em seus braços, já o pondo
no chão. Estavam nos limites de uma aldeia, aparentemente povoada.
O duque da luz se abaixou, apontou as cabanas para o garoto, pedindo
que ele aguardasse ali, até que ele viesse buscá-lo. Nesse momento,
uma mulher negra, com barriga de grávida, atravessou a porta de uma
das cabanas e viu os dois. Beelzebuth se inclinou encarando-a,
meneou sua cabeça, ergueu as asas e explodiu o vento na vertical.
Quilômetros acima, o duque freou e com olhos de gavião, tentou
sentir alguma vibração no planeta. De fato, ele sentiu e explodiu a
toda velocidade naquela direção.

355
CAPÍTULO 45

Com o próprio punho, Astaroth quebrou as barreiras que


separavam a Terra do inferno e avançou para dentro do submundo,
mesmo materializado, levanto a garota desacordada em seus braços.
Em poucos instantes, já se conduzia para a grande torre. Leviatã já o
esperava em frente ao trono. O duque pousou e entregou a moça para
Leviatã.
– Sua cagada está corrigida! – disse Astaroth.
– Minha cagada?
Astaroth entortou as sobrancelhas e seus olhos lampejaram. Não
foi preciso dizer nada. Apenas Leviatã abaixou a cabeça e disse:
– É verdade! Obrigado por isso. Prometo que não lhe conduzirei
para mais missões errôneas.
– Que assim seja! Insolente! Agora vá fazer o seu trabalho. –
Astaroth apontou com o dedo indicador para qualquer lado e se sentou
em seu trono.
Leviatã deslizou para o lado com a cabeça baixa e seguiu
corredor adentro. Por um momento ele voltou e indagou:
– Posso te fazer uma pergunta? – ele segurava a moça nos
braços.
– Você já está fazendo! Diga logo.
– Como faremos para encontrar o quarto?
– Eu estou trabalhando nisso. – Astaroth apoiou a cabeça na
palma da mão.
Leviatã ficou parado, encarando-o. Então ele também o encarou
e fez gesto com a mão para que o demônio reptiliano saísse.

356
Astaroth não tinha a mínima ideia por onde começar. Única
coisa que ele tinha em mãos era a região onde a pessoa morava. Mas
com ela fora daquele lugar, não teria como encontrá-la. Talvez se
tivesse ido primeiro ao Brasil, não estaria passando por isso. A sorte
jogou ao seu lado nos três primeiros, pelo menos quase em 100% do
tempo. Alguma coisa tinha que dar errado. Já tinha dois cavaleiros
prontos, um quase, o outro estava indo para a câmara e com o quinto e
talvez mais poderoso deles, ele conseguisse o que queria. Caso ele só
conseguisse os quatro, atacaria apenas com os quatro. Isso seria óbvio,
pois nas escrituras, só mencionavam quatro cavaleiros e não cinco.
Sem a tática da surpresa, ele se sentia um pouco mais vulnerável. Mas
sem outra opção, esse seria o seu tudo.

***
A legião, com mais de centenas de milhares de guerreiros
celestiais, começava a plainar a menos de cem quilômetros por hora,
sobre a cidade destruída pelo tsunami, seguido do gigante de metal e
pela luta de Haziel contra o primeiro cavaleiro.
Bariel e Yesalel nunca tinham visto tamanha destruição.
– Comandante!
– Horrível né, Segundo?!
– Isso é uma barbaridade!
Em poucos minutos, os dois comandantes dos guerreiros do Pai
se emparelharam com o príncipe das potências do Pai.
– Kamael!
– Olá, Bariel! – Ele olhou para Yesalel. – Olá, Yesalel!
Este lhe meneou a cabeça com um sorriso gratificante.

357
– No que pode nos atualizar, príncipe? – Bariel tinha suas mãos
cruzadas na frente do corpo, enquanto balançava suas asas, com
sutileza.
Nesse momento, Yesalel olhou para o lado e viu Haziel. Uma
emoção tomou conta de si e ele se aproximou do louro, envolvendo-o
em um abraço.
– Parece que não o vejo há um bilhão de anos! – disse o
segundo.
– Obrigado, Yesalel, sinto o mesmo!
A atenção do príncipe e de Bariel já tinha se desviado para
aquele momento. Hariel, Barrattiel, Daniel, Mazarak e Hekamiah
também ergueram voo, aproximando-se de todos eles. Quando eles se
aproximaram.
– O que aconteceu com você? – Bariel se dirigiu a Daniel.
– Foi Astaroth. – Mazarak tomou a frente. – Ele quase o matou!
Bariel apertou os punhos e abaixou seus olhos prateados,
lampejantes.
– Eu sabia que não devia tê-lo deixado viver.
– É muito reconfortante vê-lo, Comandante! – Hariel se dirigiu a
Yesalel e segurou sua mão.
– E é muito reconfortante, Comandante! – disse Barrattiel, com
um sorriso de orelha a orelha.
Haziel tomou a frente e foi ele mesmo quem atualizou os
comandantes. Após determinado ponto da história, quando contou
sobre sua luta contra a Hariel falsa, todos ficaram boquiabertos,
encarando-o. Não pelo fato de a história ser estranha, mas sim porque
seus olhos estavam brilhando como fogo. Não igual aos de Daniel,
mas sim como centelhas poderosas.
Ao ver aqueles olhos, Yesalel imediatamente se lembrou de um
texto que leu em um livro quase tão antigo quanto o livro da vida. Sua
358
interpretação ainda não tinha se formado inteiramente, não pelo menos
até aquele momento.
– Haziel? – Hariel o balançou. – Você está bem, irmão?
Os olhos do anjo começaram a voltar ao seu tom natural,
azulado.
– Estou! Querida irmã. É que... – Os olhos do anjo encontraram
o vazio.
– Diga, irmão! – As sobrancelhas de Hariel estavam baixas,
quando ela levou as mãos aos ombros de Haziel.
O louro a encarou e disse:
– Eu achei que a tivesse perdido!
– Você nunca me perderá! – Ela o envolveu em um abraço forte.
– Obrigado por isso, irmã.
Os dois irmãos se distanciaram, ainda se olhando.
– O que faremos agora? – perguntou Barrattiel.
Bariel flutuou um pouco à frente.
– Creio que o que podemos fazer agora é dividirmos algumas
legiões pelo planeta. – Bariel fechou os olhos por um momento,
depois os abriu. – Temos cerca de duzentos países em todo o globo.
Vamos enviar quinhentos guerreiros para cada um deles e aguardamos
aqui por alguma posição que foi onde aconteceu a primeira aparição.
Teremos mais alguns milhares de guerreiros aqui, caso ocorra mais
uma aparição.
Haziel meneou a cabeça e começou a descer. Quando seus pés
tocaram o chão, a cem metros acima, Bariel e Yesalel também
começaram a descer, sendo seguidos por todas as centenas de milhares
de guerreiros. Diferentemente das potências, estes tinham mais
costume de ficar no solo, mesmo com as asas abertas.

359
Kamael observou toda a legião de guerreiros tocando o chão e
logo ele mesmo desceu em direção aos comandantes. Sendo seguido
por Chavakiah.
– Comandante – O príncipe se dirigiu a Bariel enquanto pousava
–, enviarei 100 potências para acompanharem cada grupo de 500
guerreiros.
Bariel virou a cabeça para trás, em seguida virou o corpo todo.
– Fico muito grato, meu caro príncipe. Tenho certeza de que isso
será de grande ajuda.

***
– Shaiah? É você? – indagou Caliel.
– Pelo visto, sua mente ainda está ok, ruivo. Afinal, faz mais de
140.000 anos.
– O que você pretende aqui? – O anjo conhecia a entidade, mas
ela não era mais uma celestial e se fosse um demônio, não poderia
estar ali.
– Não é óbvio? Derrubar a torre que por direito era minha
também.
– Eu nunca permitirei que você derrube essa torre!
– Isso nós veremos! – Ela abaixou a cabeça e explodiu sua áurea
branca.
Caliel segurou sua lira com força e nesse momento algo
totalmente inesperado aconteceu. Do lugar onde ele apoiava a mão
para segurá-la, uma energia rubra se alongou e se materializou no
formato de uma lâmina dourada. O ruivo encarou sua espada, a única
que teve em toda a sua vida, já sabendo que esta se unira ao seu
espírito, desde o momento em que a lira lhe foi entregue por Rafael.

360
– Então você vai jogar sujo? Vê que estou desarmada? – A
mulher mostrou as palmas.
– Eu não jogo sujo. Eu jogo com as regras do Pai. – Caliel
avançou para cima da suposta antiga integrante dos Tronos, como um
torpedo.
Ela também avançou para cima dele e muito rapidamente
desviou do primeiro golpe, que passou em diagonal para baixo,
deixando um rastro dourado no ar. O segundo veio pela lateral e ela só
teve que dobrar o corpo.
Foi nesse momento que Caliel percebeu que aquela era uma
espada divina muito pesada, pois a força do golpe fez seu corpo girar
com a arma e quando ele deu as costas à mulher, uma poderosa
joelhada foi acertada em suas costelas. Uma dor profunda percorreu
seu corpo e logo sentiu o impacto pesado de um murro em sua cabeça.
Naquele momento, ele se lembrou que o único impacto que tinha
levado até então foi de Pruflas, quando o demônio estava prestes a
enfrentar Haziel, em Monte Negro, no inferno. O da mulher era
incontavelmente mais forte, mas ele também estava incontavelmente
mais poderoso. Sendo assim, procurou usar outra estratégia e com um
giro rápido o suficiente para surpreender a moça, acertou-a com uma
cotovelada giratória na cabeça que a arremessou a centenas de metros.
O corpo da mulher foi disparado até duzentos metros, quando
ela explodiu sua energia e voltou com a velocidade de um míssil,
contra Caliel.
Mas o que ela não esperava é que com o ruivo tão próximo de
Deus, sua velocidade tinha se multiplicado pelo menos trinta vezes.
Caliel praticamente a viu chegando quase em câmera lenta, apenas
deslocando o corpo para o lado, vendo-a passar a toda velocidade.
Nunca tinha lutado na vida, mas estava pegando o jeito da coisa muito
rapidamente. Logo sua confiança caiu, quando viu que tinha cometido
361
um grave erro de estratégia, fazendo com que o corpo da moça fosse
diretamente contra a torre e batesse nela com força violenta.
Com certeza aquele foi o maior impacto que ela tinha sofrido,
pois nesse momento, o monumento inteiro tremeu e inclinou quase
vinte metros.

***
Dentro da torre, os humanos quase não sentiram o balanço,
tendo o tamanho da torre, comparada com sua inclinação. Mas Misael
sentiu e ele sabia que aquilo era tão grave quanto se a Terra fosse
atingida por um meteoro de médias proporções. Em toda a história
celestial, nunca tinha visto aquilo acontecer, ou pelo menos algo que
chegasse próximo de tamanha brutalidade. Nem na queda dos anjos,
viu um monumento divino daquele tamanho sofrer com um impacto.
– Venham garotos, por aqui! – Misael abriu uma porta quadrada
no chão, que surgiu do nada.
Os dois humanos se aproximaram e olharam juntos para o
buraco. Era uma simples escada de aço, muito humana para aqueles
lugares divinos. Ela descia para um escuro onde eles não podiam
enxergar.
– Rápido! Vocês devem ir. – O anjo idoso bateu o pé no chão.
Aron não achou que veria aquele anjo tão aflito daquele jeito.
– E Caliel? – Aron o olhou com seus olhos azuis que naquele
momento resplandeceram.
– Eu não o deixarei sozinho. Irei daqui, para lá.
Aron olhou para Hector e viu que ele o encarava com os olhos
arregalados. O indiano nunca tinha visto aquilo acontecer com ele.
– Você é um humano, mesmo?

362
– Sou! Essa entra para a lista das histórias que tenho que te
contar.
Aron começou a andar e quando passou por Misael, inclinou a
cabeça e agradeceu-lhe. Em seguida deu o primeiro passo no degrau.
Hector fez a mesma coisa, soltando uma piscadela para o anjo e logo
pisou o primeiro degrau, vendo Aron a quatro na frente. Um pouco
mais abaixo, os dois olharam para trás e viram Misael fechando a
porta atrás deles.
Eles continuaram descendo sem enxergar nada e logo os dois
começaram a sentir um tipo de pressão nas pernas, fazendo com que
seus passos, um atrás do outro, fossem ficando mais difíceis. De
repente, Aron bateu o pé em algo, tropeçou e caiu, batendo em um
degrau, que naquele momento, não descia mais e nem era de aço. Os
dois olharam para cima e viram um buraco retangular que daria no
final da escada. Aquela mesma escada que tinham entrado a menos de
um minuto, de alguma maneira se inverteu, quase sem que eles
percebessem, se não fosse pela pressão nas pernas e agora estava
levando para cima. Nesse momento, Hector segurou na camisa de
Aron e não o largou por nada.
– Um passo de cada vez. Um passo de cada vez. Um passo de
cada vez. Um passo de cada vez. Um passo de cada...
– Ei! Xiuuu... – Aron tinha o dedo nos lábios, mas Hector não
viu.
Com mais cinco passos, os dois chegaram à parte de cima e aí
sim não entenderam absolutamente mais nada.

363
CAPÍTULO 46

Astaroth se levantou do trono após alguns minutos de


concentração e seguiu para o fundo do corredor. Lá ele encontrou o
elevador e desceu até o escritório central, no subsolo. Leviatã tinha
acabado de colocar o corpo da moça na câmara e uma figura, com as
asas plumadas abertas, estava em pé ao seu lado. Ele caminhou até os
dois, encarando apenas Leviatã.
– Me atualize – disse com tom de voz irritado.
– Ele acabou de coloc...
– Fale comigo apenas quando eu falar com você! – Astaroth
disse ao primeiro cavaleiro do apocalipse.
O cavaleiro estreitou os olhos e deu um passo para trás.
– Eu acabei de acionar a inserção de enzimas. – Leviatã apontou
o dedo para a câmara lateral àquela. – Com essa evolução, acho que
teremos o próximo pronto em menos de uma hora. Sendo que o
terceiro está saindo do forno agorinha.
– Enfim uma notícia boa. Agora tem...
Subitamente Astaroth foi acertado por um soco tão violento que
seu corpo foi arremessado contra a parede, abrindo um rombo
profundo, com mais de vinte metros, na rocha pura. O cavaleiro
espalmou as mãos e avançou para cima dele.
Astaroth já se levantava, quando o cavaleiro o agarrou pelo
pescoço e o enterrou no solo do buraco. O duque tentou lhe acertar um
murro, mas ele o segurou com a palma da mão e esmagou seus ossos
até que eles se partissem. Ele investiu com a mão ainda boa, mas o
cavaleiro também quebrou essa mão.

364
– Foi um grande erro de vocês me criar! Meu nome é Morte e se
vocês se colocarem no meu caminho, transformá-los-ei em pó, junto
com o mundo ridículo de vocês. – Em seguida, ele desferiu um soco
poderoso o suficiente para apagar Astaroth.
Morte saiu andando do buraco e encarou Leviatã, que tinha as
pernas trêmulas. O demônio acabou urinando ali mesmo. Mas para o
seu alívio, o cavaleiro alçou voo em direção ao teto e explodiu
centenas de metros de rocha dura, implodindo para a parte de fora do
inferno em uma chuva de detritos.

***
A quinhentos quilômetros de distância, Beelzebuth já começava
a avistar o enorme enxame de guerreiros celestiais. Alguns
perambulando, outros plainando, por uma grande região. Subitamente
sua áurea laranja brilhou mais forte e ele explodiu a mais de 10.000
Km/h, naquela direção.
Quando a barreira do terceiro minuto, após ter visto seus irmãos,
iria se quebrar, Beelzebuth já plainava sobre o enxame celestial,
reduzindo sua velocidade aos poucos. Seu foco de visão altamente
capacitada o levou a identificar as asas negras de Mazarak, meio a
grande legião de asas brancas. Cauteloso, ele mergulhou naquela
direção e sutil, pousou a cinco metros nas costas dele.
Mazarak conversava com Daniel e viu quando a visão do irmão
se direcionou para algo em suas costas. Imediatamente ele se virou e
vislumbrou Beelzebuth, com um sorriso aconchegante. Ele correu e o
abraçou, muito forte.

365
– Irmão! É bom te ver! – O duque de asas negras afastou seu
rosto do rosto do duque de asas laranja e alisou seus cabelos negros e
lisos, em um chacoalhão.
– Digo o mesmo, irmão! Mas o que tenho para dizer é muito
importante e temos que agir rapidamente.
– Obrigado, Beelzebuth! – Yesalel se aproximou meneando a
cabeça a ele. – Diga-nos. O que você sabe?
Ele retribuiu o gesto e começou a falar:
– Acabo de voltar da África e Astaroth acabou de levar a moça
que utilizará para fazer um dos cavaleiros.
– Mas ele já tinha conseguido este humano, não estou correto? –
perguntou Chavakiah dando um passo à frente.
– Não, ele levou o humano errado e voltou para retomar o certo.
Pelas minhas contas e pelas informações de meu contato no inferno,
eles já têm três cavaleiros prontos, além dessa menina que será a
quarta. – Após isso ele olhou para Bariel. – Tenho um assunto
importante para tratar depois com o senhor, Comandante.
– A hora que achar adequada, Duque da luz – disse o primeiro,
meneando a cabeça.
– Obrigado! – Continuou Beelzebuth: – Eu tenho uma
informação de última hora que pode alertar as coisas.
Todos o olharam com mais atenção.
– O quarto cavaleiro não é o último. Astaroth ainda não teve
sucesso em localizar o cavaleiro do Brasil que ocupará o lugar de mais
um dos anjos do apocalipse e com certeza não desistirá, enquanto não
o localizar. Temos que deslocar guerreiros daqui, para tentarmos parar
este plano.
Bariel levou um dedo aos lábios, fitando o chão.

366
– Concordo! Afinal, já teremos quatro dos grandes para
enfrentar. – Ele se dirigiu a Yesalel: – Segundo, você concorda em ir
ao Brasil, conduzindo uma tropa, ou prefere ficar e eu vou?
– Não, Comandante, pode deixar que eu faço isso. Qualquer
novidade, o mais veloz de nós virá lhes avisar. – Nesse momento,
Yesalel fitou Haziel muito rapidamente.
O louro estava muito ocupado, comparando suas duas espadas
gêmeas, segurando uma em cada mão.
– Haziel! – Yesalel o chamou.
O guerreiro se prontificou rapidamente em um susto.
– Sim, Yesalel.
– Preciso de você para me ajudar a coordenar a tropa até o
Brasil.
– Eu também iriei, Comandante! – Hariel deu um passo à frente.
– Não, é melhor que você fique para ajudar Bariel em qualquer
situação. Precisamos dos mais poderosos aqui também. Barrattiel,
também precisarei de você – disse olhando para o grandalhão. Em
seguida encarou Mazarak: – Você vai comigo?
– É claro! Afinal, preciso terminar o que comecei.
– Não! – Beelzebuth entrou na frente de Mazarak e se juntou a
Yesalel. – Eu vou e eu mesmo pararei nosso querido irmão, Astaroth,
se necessário. – Seus olhos estavam um tanto entristecidos.
– Obrigado, Beelzebuth! Precisaremos de sua força. – Yesalel
estava com um sorriso gratificante. – Agora faremos a seleção para
sabermos quem vai e quem fica. Comandante, o que o senhor sugere?
Imponente, Bariel deu dois passos à frente, em direção à gigante
legião de guerreiros e inclinou o queixo.
– Guerreiros e guerreiras, passem a informação adiante. Todo
anjo, com final de nome “iel”, acompanhará Yesalel ao Brasil.

367
Com a tática guerreira de proliferação de informação em
velocidade máxima, em ação, em poucos minutos, a grande maioria
deles começava a plainar no ar, preparando-se para avançar.
As potências celestes usaram outro meio de seleção e os
acertados ficaram na frente do grupo maior.
Yesalel bateu asas e também começou a plainar. Em seguida
dele, Haziel, Barrattiel e Beelzebuth também subiram. Logo ele viu
Bariel meneando a cabeça a ele, tendo também um meneio de cabeça
como retribuição. Yesalel encarou Haziel, Barrattiel, Beelzebuth, a
alguns outros anjos próximos a ele e disparou como um míssil na
diagonal, em direção ao Brasil.
Todos o seguiram com a mesma desenvoltura.

***
A entidade que lutava com Caliel no Sexto Céu não sofreu
nenhum dano com o impacto à torre. Ela vinha flutuando em direção
ao anjo. Um de seus pés tocava a panturrilha da outra perna, dando-lhe
uma bela postura. Os braços eretos e juntos ao corpo transmitiam algo
que ela não tinha, boa ação. Sua postura celestial era uma farsa, com
certeza. Isso fazia Caliel se inculcar, pois nunca um demônio
conseguiria pisar naquele lugar e mesmo sem saber se ela era ou não
um demônio, ela não pisava no Céu há mais de uma centena de milhar
de anos. Nesse caso, o que ela era?
– O que é essa cara, ruivinho? Sabe que você é muito atraente?
– Do que você está falando?
– Estou falando que você é gostoso!
– Eu desconheço esse sentimento! Mas agora pelo menos sei
que você, com certeza, não é um anjo do Pai.

368
– Você tinha dúvida disso ainda? – Ela riu alto. – Isso é óbvio.
Ninguém manda em mim. Eu sou um anjo de mim mesma. – Ela
desfilou os braços pelo corpo e em seguida os subiu novamente, indo
de encontro a um de seus ombros.
Caliel a viu soltando o único véu que cobria seu ombro direito,
deixando que o vestido caísse e fosse levado pelo vento. Ela o
encarava mordendo os lábios. Os olhos estavam estreitos e refletiam
excitação. Em determinado momento, ela começou a avançar para
cima dele. Ele se afastou.
– Não precisa ter medo. Prometo que a minha intenção não é te
machucar. – Ela passou a mão sobre os dois seios, massageando-os,
sem parar de se aproximar dele.
– Eu nunca poderia sentir o que você está pensando que posso. –
Caliel se afastou mais.
A mulher sentiu algo parecido com raiva e parou de repente. Por
poucos segundos, ela ficou muda e subitamente arregalou os olhos.
– Não tem problema! – Quase colada no anjo, olhando-o nos
olhos, inclinando sua cabeça para cima, de repente desceu a mão em
direção à sua pélvis.
Caliel bateu em sua mão e se afastou alguns metros.
– Então quer dizer que isso que eu senti entre suas pernas não
serve para nada? – Ela levou os dedos à boca e começou a lambê-los.
– Como você pode ser tão vulgar?
– Pois é! Vivi muito no meio dos humanos. – Nesse momento, a
mulher parou de lamber os dedos e começou a rir.
Enojado, Caliel explodiu sua áurea e avançou em direção à
moça, com a sua espada.

***
369
Nem Aron e nem Hector acreditaram onde foram parar, depois
que saíram do cômodo, no Sexto-Céu. Noites que Aron passou
correndo em volta da casa, como criança, atrás de sua esposa, que na
época era apenas sua noiva, Sun.
– Cara, o que nós estamos fazendo aqui?
– Eu não tenho a mínima ideia! – respondeu Aron, saindo de
lado no corredor e correndo até a janela, que dava na parte externa da
rua. Nessa trajetória, ele percebeu que a casa estava impecável e não
destruída, como os anjos a deixaram. Única coisa que aguçava sua
ansiedade, naquele momento, foi o medo de abrir a janela e ver o
negro absoluto. Mas não foi isso o que aconteceu.
– Cara! Nós estamos aqui de novo – o indiano murmurou nas
costas de Aron.
– Como isso é possível? Essa casa caiu em um abismo sem fim.
– Eu não imaginava que anjos existiam até te conhecer. Então...
Vai saber! Tudo pode acontecer. – Hector deu de ombros.
– Será que os corpos ainda estão no porão?
– Eu preferiria não descobrir! – As sobrancelhas de Hector se
juntaram quando ele encarou Aron.
Aron o encarou por cinco segundos.
– Eu vou lá! – Em seguida, passou por cima da cama de casal,
para cair do outro lado do quarto e correr até o porão.
Hector colocou as mãos na cintura, respirou fundo e praguejou:
– Que merda! – Em seguida gritou: – Espere por mim! – E saiu
correndo, dando a volta na cama.
Ele chegou à frente da porta e Aron estava hesitante em abri-la,
segurando a maçaneta.
– E aí? Não vai abrir?
Aron o encarou.
370
– O que você acha?
Hector o empurrou para o lado e disse, colocando a mão na
maçaneta:
– Abre logo essa merda!
Ele a empurrou e com um ruído, a porta se abriu lentamente.
Diferente do que eles imaginavam, lá embaixo estava claro.
– Só falta agora o céu estar lá embaixo! – Hector soltou uma
gargalhada.
– Para de ser bobo. Venha comigo! – Aron deu o primeiro passo
e começou a descer.
Hector foi atrás dele e logo eles alcançaram o final da escada. O
porão estava justamente do jeito que Aron conhecia. A luz do sol
entrava pela porta de aço que dava na parte externa. Ele deu um passo
à frente e saiu pela porta, chegando à parte descoberta do porão. As
duas balanças de criança oscilavam com o vento, para lá e para cá. Na
parede do lado direito, um armário abrigava dezenas de garrafas de
refrigerante e cerveja, vazias. Aron andou e se sentou no balanço da
direita. O indiano se sentou ao seu lado, no outro balanço.
– Eu não conhecia aqui fora.
– Imagino. Não acho que tenha tido tempo para isso.
– Pois é! – O indiano sorriu, olhando para o chão.
– Tenho lembranças maravilhosas da minha infância, nesse
lugar.
– Suas amiguinhas que o digam né? – Hector arqueou as
sobrancelhas por um instante.
– Besta! São outras lembranças. Vê aquelas marcas de solado no
teto? – Aron apontou com a cabeça para cima.
O indiano olhou e viu centenas de marcas de solado de tudo
quanto é tipo, no teto.
– O que vocês faziam aqui?
371
Aron abaixou a cabeça e negativou, rindo.
– Essa era a brincadeira que competíamos para ver quem
deixava a marca mais forte.
– Seu pai devia ficar louco. – Hector riu.
– Ele ficava. Tadinho do véio! Mas você não tem ideia de como
a minha mãe ficava.
– Imagino. Mas mudando de assunto, você não acha que
podemos estar vulneráveis aqui?
– Eu não sei se alguém sabe que estamos aqui. – Aron contraiu
os lábios.
– Nem os anjos?
– Creio que não!
– Vejo isso como um problema. – O indiano soltou as correntes
enferrujadas e se levantou. – E se um desses demônios loucos resolver
nos atacar?
– Fique tranquilo! Tenho certeza de que eles não sabem que
estamos aqui.
Subitamente, ambos escutaram estalos na parte de cima.
– O que é isso?
– Passos! – disse Aron, se levantando. – Rápido, tem um violão
ali dentro, o humano apontou a parte de dentro do porão. Em seguida,
começou a olhar por todos os lados.
– O que faremos com um violão? Vamos tocar para o demônio
dormir? – O indiano sorriu.
– Apenas o pegue! – Aron se virou e encarou a corrente da
balança. Ele foi até ela e a segurou, dando um tranco para baixo.
Nada. Tentou mais uma vez e dessa vez, pequenos pedaços de
concreto e tinta verde caíram. Ele sorriu e colocou toda a sua força na
próxima investida. Com um baixo estrondo, a corrente veio abaixo,
trazendo um pedaço da parede junto com ele que ao bater no chão se
372
estilhaçou. Logo o humano fez a mesma coisa com a outra corrente
que prendia a balança ao teto.
– Finalmente! – Hector apareceu, segurando o violão como um
porrete. – O que você está fazendo?
Aron segurou as duas correntes da balança e levantou a madeira
do assento, dando uma volta no ar, como um gladiador.
– É isso aí! – Hector mostrou os dentes e balançou a cabeça para
baixo.
Os dois se posicionaram, um de cada lado da porta. Nesse
momento, eles começaram a escutar os passos, descendo os degraus.
Foram apenas quinze, quando Aron olhou para Hector e começou a
rodar a balança. Hector segurou o violão com mais vontade. Em
menos de cinco segundos, a figura atravessou a porta e os dois
humanos investiram juntos com gritos ferozes. Por sorte, ambos foram
ágeis e conseguiram parar o golpe, quando Misael gritou quase como
uma menininha, colocando as mãos na frente do corpo.
– Vocês querem me matar? – indagou o anjo idoso,
desamassando sua roupa social. Os olhos estavam bravos.
– O que faz aqui, Misael? – indagou Aron, colocando a corrente
com a balança, no chão.
– Quando caí em mim de que você tinha ficado sozinho, tive que
vir para cá.
– E Caliel? – Aron deu um passo à frente.
Misael abriu um sorriso.
– O que te posso dizer é que Caliel está no controle da situação.
– Isso é bom! – Aron olhou para qualquer lugar, concentrado. –
Isso é muito bom! O que faremos agora?
– Logo quando vocês saíram, eu segui para a biblioteca. Lá eu vi
uma matéria florescendo. Ela vai ser publicada em um blog daqui a
dois dias.
373
– Isso não é possível. Não tem energia no planeta – disse
Hector.
– Não acho que isso durará muito. – Misael olhou para Aron. –
Todos os anjos estão em Orlando, na Flórida.
– E você acha que devemos ir para lá? – indagou Aron.
– Exato! Lá você estará protegido.
– Caliel sempre me protegeu. Você não acha que consegue nos
manter seguros aqui?
– Não! – O anjo baixou o olhar. – Eu não sou um guardador.
– Você é um guerreiro?
– Não! Eu sou simplesmente um anjo – ele disse, grudando as
mãos nos braços de Aron. – Explico na viagem para lá. – Depois
olhou para Hector.
Os dois humanos concordaram com a cabeça.
– Precisarei da ajuda de vocês para isso, pois não tenho a força
de um guardador. Muito menos a de um guerreiro.
– Por que você está dizendo isso? – Aron fitou rapidamente
Hector e depois voltou o olhar para o anjo.
– Porque provavelmente eu teria dificuldade em voar com
apenas um de vocês. Quem dirá com dois.
– Você está sugerindo que eu fique? – Hector tinha a feição um
tanto triste, porém compreensiva.
– Isso nunca passou pela minha cabeça. – O sorriso de Misael
voltou. – Mas teremos que pensar em uma engenharia satisfatória,
para isso.

374
CAPÍTULO 47

Eu não permitirei que ele me desrespeite dessa maneira! – disse


Astaroth, socando a mesa. O tom da voz subiu. – Ele só existe, porque
eu o criei! – O duque respirou fundo. – Leviatã?
– Sim, senhor! – O demônio reptiliano deu um passo à frente,
alisando as mãos. Tinha os olhos baixos.
– A legião de guerreiros se encontra em Orlando, correto?
– Sim! O príncipe Kamael também trouxe a sua.
– Príncipe! – debochou Astaroth. – Como aquele anjo virou um
príncipe? – Ficou mudo por alguns segundos e se virou para Leviatã. –
Bom! Eu pedirei a ajuda deles.
Os olhos de Leviatã se abriram ainda mais, mas logo ele se
recompôs.
– O senhor não acha arriscado?
– Para falar a verdade, não! É só eu chegar e falar que fiquei
bonzinho de novo que eles abrirão suas pernas.
– Você sabe que sempre te achei um gênio?! – disse Leviatã.
– Obrigado! Eu sei. – Astaroth sorriu sombrio. – Mas antes
temos que colocar algumas peças nesse tabuleiro.

***
Morte desconhecia qualquer evento sobrenatural, sendo que
tinha sido criado há apenas algumas horas. Na sua primeira visita à
Terra, levaram-no até uma passagem que, ao atravessar, deu de cara
com uma grande estátua segurando uma tocha. Um demônio instrutor
375
passou com ele e o ajudou, passando por vários lugares, antes de
chegar ao seu objetivo. A partir daquele momento, sua criatividade
ficou por conta própria.
Agora sozinho, plainando sobre as nuvens escuras e
tempestuosas do inferno, não tinha a mínima ideia de onde ficavam as
passagens e como ele tinha que fazer para abri-las. Ele se lembrou que
em uma longa conversa com seu instrutor, ele lhe ensinou
resumidamente como funcionava o universo. Nesse caso, ele soube
que poderia viajar do inferno até a Terra, pelo espaço. Mas a viagem
seria longa. Isso até o confortou, pois teria tempo para pensar em tudo,
absorver as ideias do que viu e aprender.
Os seres angelicais que viu não eram muito do que ele esperava.
Seu instrutor os tratou como nojentos, mentirosos e traidores. Ao vê-
los, não lhe pareceu bem isso. Burros sim, isso talvez eles fossem,
pois aquele tal Haziel de quem lhe falaram não passou de uma
marionete em suas mãos.
E os humanos? Para que a existência daqueles seres? Nisso ele
concordava com o inferno. Mas achava que o inferno também era
burro, pois em vez de exterminar todos eles, por que não os utilizar
como ferramenta? Disseram-lhe que tentaram fazer isso duas vezes,
mas ele não conseguiu imaginar o tamanho da incompetência, ao não
conseguirem.
Da tal luta ele gostou. Não sabia muito bem o que seria, até
enfrentar Haziel. Mas após o primeiro golpe, começou a pegar gosto e
aprender rapidamente movimentos que até então nunca tinham
existido em sua cabeça.
Locomover-se voando era fácil. Então por que o tal Deus não
deu asas para o homem? Será que ele também era burro e não pensou
nisso? Se Morte fosse Deus, todos os seres seriam criados com asas.
Todos seriam livres para fazerem o que quisessem e viveriam onde
376
bem entendessem. Não existiriam “os anjos”, ou “os demônios”.
Todos seriam um e um seria único. Não existiriam castas ou raças.
Morte decidiu que aquela era a hora de ir para a Terra e sabendo
que a viagem seria longa, começou a reunir uma grande energia dentro
de si. Seu instrutor chamava aquele lugar de a constelação de
Scorpius. A Terra ficava em uma galáxia que os homens chamavam
de Via Láctea. Mas não seriam apenas algumas centenas de bilhões de
quilômetros que ficariam em seu caminho.
Repentinamente o cavaleiro parou e começou a plainar no ar.
Ele dobrou os braços e começou a manifestar uma energia poderosa.
Seus dedos estavam em formato de garra e entre os dedos, estalos de
eletricidade vermelha começaram a se manifestar. Ele fechou os olhos
e inclinou a cabeça para cima. Os estalos começaram a se formar em
volta de seu corpo, com velocidade incrível. Subitamente ele contraiu
os membros e explodiu em uma velocidade surpreendente.
Várias vezes mais rápido do que a velocidade da luz, o cavaleiro
cortava o universo, vendo milhões de corpos celestiais passarem
relativamente próximos a ele. Mesmo a milhões de quilômetros de
distância, naquela velocidade, a impressão dos espaços entre eles se
reduzia e começavam a parecer meros metros. Grandiosamente
robusto aos olhos humanos, aquele pedaço do universo parecia
pequeno para o grande cavaleiro do apocalipse.
Há um pouco menos de 10 BILHÕES de quilômetros, ele
começou a vislumbrar o que seria o nosso sistema solar, meio a um
aglomerado de estrelas e corpos celestiais. Em poucos minutos, esses
pontos brilhantes começaram a se aproximar e se tornar esferas
incandescentes. Ainda não era possível ver os planetas rochosos, mas
ele mantinha sua trajetória.
Seu instrutor lhe disse que a Terra era banhada com a energia de
uma estrela de meia vida. Mas ele não sabia o que aquilo queria dizer.
377
Sabia apenas que estrelas eram os corpos mais brilhantes do universo.
Ou pelo menos, assim eram conhecidos pelos humanos.
À direita do sistema solar da Terra, muito afastado, ele sentiu
uma vibração diferente e quando olhou com sua poderosa visão,
inúmeras vezes mais poderosa do que um telescópio humano, viu um
ponto vermelho esbanjando uma energia inacreditável. Antes de
seguir para o seu objetivo, ele explodiu na direção do ponto e logo
contornava a gigante vermelha que naquele momento já tinha uma
tonalidade mais clara, já em seus últimos instantes de vida. Achando
aquilo lindo, o cavaleiro se aproximou, vendo o corpo celestial pulsar.
Subitamente, a estrela começou a ganhar massa e a crescer
rapidamente, fazendo o cavaleiro se afastar. Ele foi acompanhando seu
crescimento, sem que deixasse que ela se aproximasse mais de cem
mil quilômetros dele. O que ele podia sentir era sua temperatura que
não parava de subir. Os planetas em seu caminho foram reduzidos a
cinzas, enquanto a estrela engolia-os ao crescer a dezenas de milhares
de km/s.
Tudo aconteceu muito rápido, até que a energia da estrela se
condensou e explodiu em uma supernova, fenomenal. Nesse
momento, o cavaleiro sentiu algo que não esperava. O poder daquela
explosão. A energia foi dissipada em todas as direções e nesse
momento ele começou a voar em direção contrária. O feixe de luz
poderoso seguia atrás dele na velocidade da luz, quase o alcançando.
O cavaleiro voava o mais rápido que podia, mas naquele momento já
sabia que seria atingido. Uma decisão tomou conta de sua mente e de
repente ele parou, recebendo a pancada da radiação constante.
A onda energética passava por ele como uma onda fantasma na
velocidade da luz. Cada mudança de elemento na onda era uma
pancada diferente que sentia no estômago. Por fim, ele recebeu a

378
radiação total da supernova e sentiu apenas uma coisa diferente. Seu
poder.

***
Yesalel fitava muito ao longe, reparando em algo que naquele
momento começava a considerar um problema. O ponto negro
rapidamente foi tomando a forma de uma horda demoníaca alada,
fazendo-o ficar em alerta. Ele olhou para Haziel que disse:
– Já estou vendo, Yesalel! Me encarregarei deles.
– Desloque os guerreiros da legião. Continuaremos seguindo
para o nosso rumo e quando você terminar, vá para lá. – Yesalel olhou
para Barrattiel. – Você, fique com ele e ajude a recolher 30% da
legião. Espalhe que ficarão aqueles que iniciam seu nome com a letra
H.
– Comandante, como você sabe que estes dão 30%?
Yesalel respirou fundo.
– Eu não sei, Barrattiel. Agora, por favor, vá rápido que não
temos mais do que um minuto.
O grandalhão meneou a cabeça, envergonhado e começou a
passar a informação rapidamente. Foi preciso apenas quarenta
segundos para que a informação chegasse ao último dos guerreiros.
Yesalel meneou a cabeça a Haziel e disparou lado contrário, sendo
seguido por Beelzebuth e a maior parte da legião.
O espaço entre a horda demoníaca e a legião de Haziel não se
alongava por mais de três quilômetros. Em menos de vinte segundos
ocorreria o choque, mas esse número foi reduzido pela metade,
quando Haziel tirou suas espadas. Com a força de um guerreiro, gritou
e explodiu na direção da horda demoníaca, sendo seguido pelas

379
dezenas de milhares de celestiais. Barrattiel estava ao seu lado,
voando como um touro com asas.
O enxame demoníaco começou a aumentar consideravelmente,
tendo em vista sua aproximação. O enxame branco ia de encontro a
ele, usando toda sua voracidade. Quase no momento do impacto,
todos os guerreiros celestiais soltaram um berro tão vigoroso que soou
como uma trombeta. Em seguida, todos os corpos começaram a se
chocar como dois gigantes funis se encontrando.
Era evidente o crescimento do poder de Haziel, que manejava
suas espadas com uma desenvoltura estupenda. O anjo levantou a
espada esquerda e a desceu na diagonal, cortando um demônio no
meio. A espada direita acompanhou a esquerda, picotando-o. Suas
duas mãos voltaram, só que agora o movimento foi na altura do
abdômen de duas criaturas com os olhos vermelhos. As duas foram
cortadas ao meio e explodiram em uma chuva de centelhas rubras.
Em seguida, Haziel subiu sua mão direita na diagonal, levando a
lâmina com ela a toda velocidade e cortando a cabeça de um demônio.
O braço esquerdo fincava a espada no peito de outra criatura, logo
atrás dele. Agora movimentando a espada direita para a diagonal
inferior esquerda, ele cortou outro monstro do ombro até o abdômen.
Este despencou e explodiu. O próximo movimento foi espetacular.
Haziel abriu os braços e girou o corpo uma vez, picotando sete
infernais na investida. Ao final do giro, aproveitando ainda sua força,
ele colocou as armas nas bainhas, com muita habilidade.
Olhando para o lado, Haziel viu o exato momento em que
Barrattiel segurou dois demônios pelas cabeças e as bateu,
explodindo-as. Em seguida, o grandalhão desferiu um soco direto na
face de um robusto demônio que não foi páreo para ele. O soco
atravessou seu rosto e saiu pela tampa da cabeça. O anjo puxou o
braço de volta e deixou que o corpo negro despencasse. Com certeza,
380
ele não precisava de ajuda. Então o anjo começou a analisar cada
ponto da batalha, como um falcão.
Em determinado momento, Haziel viu um monstro feroz com
asas se aproximar dele com uma lança enferrujada. Quando o demônio
investiu, muito velozmente o anjo dobrou seu corpo para trás, vendo a
lança passar sobre seus olhos. Olhando para cima, encarou bem os
olhos do demônio que por um breve momento o encararam
assustados. Haziel tirou uma de suas armas e rasgou as entranhas do
monstro, jogando seu corpo para o lado.
Em seguida, Haziel se endireitou e olhou para os dois lados,
disparando para a direita como uma bala. Ele se afastou de Barrattiel
um pouco mais de cem metros e aproveitando o empuxo de sua
investida, explodiu mais de cinquenta corpos demoníacos que
trombaram em seu corpo de aço. Sua desenvoltura foi de tamanha
grandeza que nessa trajetória conseguiu desviar dos celestes e acertar
apenas os demônios.
O barulho de armas se chocando começava a diminuir aos
poucos. Até aquele momento, Haziel não tinha visto nenhum celestial
cair. Mas a tempestade de corpos demoníacos caindo e explodindo era
grande. Meio a um aglomerado de anjos, Haziel viu um enorme
demônio, plainando e batendo com seus grandes punhos contra corpos
angelicais. Cada uma de suas asas devia ter quase dez metros. Seus
chifres o fizeram se lembrar de Baal, mas nem de perto ele tinha a
maldade que o grande duque tinha nos olhos. Sua pele escura refletia a
luz do sol.
Haziel avançou e como um felino, passou no meio de cinco
anjos, rodopiando e entortando o corpo, por fim acertando o grande
demônio com as duas pernas juntas. O monstro foi arremessado a pelo
menos trezentos metros. Mas o golpe não foi o suficiente para aturdi-
lo, pois pegou em seu ombro e ele sentiu apenas o impacto poderoso.
381
Ele rodopiou no ar e parou de frente para a legião angelical. Seus
braços estavam flexionados, com as mãos fechadas. Com a cabeça
baixa e os olhos estreitos, vermelhos, encarava Haziel nos olhos. Ele
foi se aproximando devagar. Alguns anjos ameaçaram ir para cima
dele, mas Haziel impediu.
– Deixem comigo! – O louro sorriu.
O demônio estava a vinte metros do anjo e de repente parou.
– Haziel! Não pensei que o veria novamente.
– Diferente de você, eu sempre tive essa certeza! – O anjo ficou
sério e segurou a bainha direita, com a própria mão direita.
– Vejo que guarda rancor de sua hospedagem no inferno.
– Imagina. Não posso dizer isso. Mas com certeza não
descansarei enquanto não acabar com todos vocês. – A pigmentação
nos olhos azuis do anjo começou a oscilar em ondas mais escuras.
– Você tem a sua chance agora – disse o demônio.
– Eu não tenho dúvida disso! – Subitamente Haziel sorriu.
Quando o demônio ia abrir a boca para falar algo, o anjo
avançou tão rápido que nem ele e nem nenhum dos celestes pôde ver.
O movimento não durou mais do que um centésimo de segundo.
Haziel já estava em cima de sua cabeça e com a mão, puxou a
mandíbula do monstro para cima. Com o outro braço, já com a espada
em punho, apenas a penetrou na jugular do monstro, moveu para o
lado, abrindo um corte de dez centímetros e reapareceu junto aos
celestes.
Todos assistiram o sangue sair do pescoço do demônio em como
numa cachoeira. Ele tentou tapar o buraco com as mãos, mas o sangue
passava entre seus dedos. Ele fez menção de atacar Haziel, mas suas
asas começavam a perder a força e ele quase caiu. Desse momento em
diante, suas asas começaram a bater desordenadas. Seu corpo se

382
debatia no ar, voando para todos os lados. A última coisa que o
demônio disse foi:
– Como? – Seus olhos, quase sem vida, vidrados nos de Haziel.
Em seguida ele despencou, desaparecendo dentre as nuvens.
Depois de dois segundos, todos os anjos sentiram a onda da
explosão de seu corpo. Este espalhou as nuvens em uma esfera que se
expandia, perdendo força.
Barrattiel tinha seus olhos arregalados, encarando Haziel. Ele
tentava dizer algo, mas não conseguia.
– Aquele era...
– Gusion? Sim. Eu sempre quis acabar com ele.
– Sim! Mas da forma como fez... – Barrattiel não tinha palavras.
Haziel olhou para trás e viu uma multidão de anjos plainando no
ar. Nenhum deles mais lutava, justificando a queda de todos os
infernais. O louro sorriu e disparou na direção em que tinha ido a
legião de Yesalel. O comandante tinha diminuído a velocidade, a fim
de que fossem interceptados por Haziel, ao final do combate. Foi
exatamente isso o que aconteceu. Logo o louro avistou a legião
voando ao longe, em direção ao Brasil.

***
Caliel avançou para cima da mulher nua e fez um corte no ar
com a sua espada, de cima para baixo. O cavaleiro foi rápido, mas não
tanto, pois um pequeno corte floresceu acima de seu seio direito. Ela
olhou para baixo, surpresa. O ruivo fez um giro com o corpo e passou
a lâmina na região de seu abdômen. Se ela não tivesse dobrado o
corpo para trás em desespero, teria sido cortada ao meio.

383
Ela encarou o ruivo por um décimo de segundo e disparou a
toda velocidade. Caliel ficou parado por um momento, sem reação e
disparou atrás dela. A pedra rubra de sua espada pulsava com vontade
própria. Ele e o cavaleiro voavam a dezenas de milhares de
quilômetros por hora, rasgando as nuvens em turbilhões, que os
seguiam, presas as pontas de seus pés. Estavam equiparados em
velocidade.
Caliel nunca pensou que pudesse perseguir uma presa, como
naquele momento. Em seu coração, tinha sido acesa uma chama
guerreira que queimava a mil graus. O poder ele já tinha, agora faltava
a experiência. A mulher voando na sua frente, sem roupas, sem
sombra de dúvidas habitava o corpo de Sun, ou pelo menos era uma
cópia dela.
Em determinado momento, ela olhou para trás com um sorriso
provocante e disparou ainda mais rapidamente, abandonando o anjo.
Caliel tentou acompanhá-la, mas foi impossível. Em poucos segundos,
ela já desaparecia no horizonte do Sexto-Céu. Se ela tinha aquela
velocidade, então até aquele momento ela estava brincando com ele.
Nesse momento, ele se sentiu estúpido e teve sorte de não perder a
vida. Um lapso momentâneo o fez lembrar-se de Aron e ele disparou
em direção à torre dos tronos.
Em poucos minutos, o ruivo alcançou seu objetivo e voou pelos
corredores da construção, até chegar à biblioteca. Ele pousou e ia
seguindo para o corredor que daria na sala do monumento, quando viu
um papel com o nome dele, em um lugar estratégico. Ele andou e
abriu o papel, era simples e amarelento. Com uma tinta azul brilhante,
estava escrito:

384
Caliel, estou na Terra com os dois humanos. Você terá que vir
do modo mais difícil, sendo que não estou aí para facilitar. Não tenho
certeza, mas acho que nos encontrará na antiga morada de Aron.
Ass. Misael.

Caliel estreitou os olhos e alçou voo, percorrendo os corredores


e explodindo pela saída da torre, em direção à Terra. Falar com outros
anjos ficaria para depois. Naquele momento ele tinha que encontrar
seu humano.

385
CAPÍTULO 48

Yesalel conduzia a legião de celestiais em direção ao Brasil,


com Haziel ao seu lado. Beelzebuth e Barrattiel seguiam quase
colados neles. O grandalhão não parava de olhar e admirar as asas
alaranjadas de Beelzebuth.
Na frente, Yesalel reparava no olhar de Haziel e este tinha
alguma coisa diferente, mas ele não sabia dizer o quê. Subitamente
Haziel olhou para ele e o viu o encarando.
– O que foi? – O louro sorriu, sem graça.
Yesalel manteve a compostura e respondeu:
– Estou apenas feliz em vê-lo! – Um sorriso se fez em seu rosto
e ele olhou para a frente. Estreitando os olhos, disse: – Prepare-se!
Tem algo a nos confrontar, adiante.
Não eram muitos, mas uma silhueta de forma muito estranha
voava em direção aos guerreiros. Tinhas asas grandes e duas patas
enormes que balançavam para lá e para cá, sem parecer ter ossos.
Poderia ser uma espécie de rabo duplo.
Yesalel conduziu os guerreiros para que eles fossem parando aos
poucos. Calculando mais um menos um quilômetro da criatura, todos
já estavam parados. Aquele demônio não era rápido, sendo que
quando voava, parecia que despencaria a todo momento.
– Eu não acredito no que eu estou vendo! – Beelzebuth tinha
seus olhos semicerrados e a mão sobre eles.
– O quê? – indagou Barrattiel.
– Olhe com atenção! – Apontou Beelzebuth.

386
Todos os anjos penetraram seus olhos e aos poucos, a silhueta
foi ganhando cor.
– Não pode ser! São os humanos! – Yesalel tinha os olhos
maiores do que o normal. Venham Haziel e Barrattiel comigo, vamos
interceptá-los.
Em menos de dez segundos, a cem metros dos humanos, já
tinham total nitidez do que viam. Misael voava e parecia já estar em
seu limite de exaustão. Segurando, com todas as forças, um bolo de
correntes nas mãos, puxava os dois humanos como pêndulos,
amarrados cada um em uma balança. O que mais chamou atenção do
trio de guerreiros não foi a cena bizarra, mas sim os berros dos
humanos de pavor, que não paravam.
Antes que Yesalel dissesse algo, Haziel e Barrattiel avançaram,
indo em direção aos humanos. Haziel segurou Aron e Misael soltou a
corrente, deixando que a balança despencasse.
– Você não tem ideia de como estou feliz em vê-lo, Haziel! –
Aron o segurava forte.
– Eu imagino! – disse o anjo, criando um projeto de sorriso.
Barrattiel segurou Hector e Misael também soltou a corrente
nesse momento.
– Amigo! É bom te ver novamente! – disse o indiano.
– O prazer é meu, Hector! – Barrattiel meneou a cabeça.
Misael soltou um grunhindo de satisfação e soltou o corpo todo,
deixando-o mole. Apenas suas asas melhoraram e mantiveram a
rigidez.
– Obrigado! Obrigado! – ele disse aos guerreiros. – Eu não
tenho mais idade para essas coisas.
Juntos, todos avançaram na direção do restante da legião de
guerreiros e quando próximos, Yesalel perguntou:
– O que aconteceu?
387
– Olá, Comandante! – Aron estava nitidamente feliz em vê-lo. –
O senhor quer saber o que aconteceu, desde quando? – soltou um riso.
Nesse momento, Beelzebuth explodiu perto deles, aparecendo
de uma plainada em alta velocidade. Em suas mãos, segurava as
correntes que Misael tinha soltado.
– Achei melhor pegá-las, pois poderiam acertar algum humano.
– Obrigado, Beelzebuth! Excelente ideia. – Yesalel meneou a
cabeça a ele. – Haziel, não podemos ter Aron conosco. É muito
arriscado! – Nesse momento, o comandante reparou em Hector de
verdade, pela primeira vez. Yesalel o encarou por dois segundos e
voltou para Haziel. – Pode levá-lo daqui? Ou melhor, levá-los?
– Pode contar comigo! – respondeu o louro.
– Eu vou junto! – disse Barrattiel.
– Não será necessário. Creio que chegarei mais rápido, sozinho.
– Haziel apertou os punhos e pegou um humano em cada braço.
Barrattiel se decepcionou, mas no fim entendeu.
Haziel meneou a cabeça a Yesalel, a Beelzebuth, por fim se
aproximou de Barrattiel e olhando em seus olhos, disse:
– Temos muito que conversar, meu irmão! – Haziel disparou,
desaparecendo daquela região em um piscar de olhos.
Todos os anjos se impressionaram com tamanha velocidade.
Yesalel abriu um sorriso, orgulhoso, já sabendo o que estava por vir.

***
Bariel tinha seus braços cruzados atrás do corpo. Seus cabelos
prateados refletiam o dourado do sol, juntamente com seus olhos
cromados. Seu traje claro, ornado com detalhes dourados e azuis,
balançava, acompanhando o vento frio daquele final de tarde. O

388
cenário à volta dele era de pura destruição, com prédios destruídos e
alguns tombados. Mas naquele momento a atmosfera estava calma. O
único barulho vinha da conversa de alguns guerreiros que usavam tom
de voz sutil.
– Comandante!
Bariel se virou.
– Olá, Dana. No que posso ser útil?
– O senhor tem algum plano caso este cavaleiro tão poderoso
aparecer?
– Eu sempre tenho um plano! – Bariel deu alguns passos e se
aproximou mais da mulher anjo, de cabelos negros e olhos verdes. –
Você é muito nova. Com o tempo vai entender que nós, guerreiros,
precisamos ter pelo menos alguns planos se algum deles falhar.
– Obrigada, Comandante! Gostaria de ter escolhido os
guerreiros desde o início.
Bariel sorriu e colocou a mão em sua cabeça.
– Eu tenho certeza de que você agiu da maneira mais correta
possível. O Pai direcionou seu coração e desde o início Ele soube que
você seria uma guerreira.
Ela sorriu e disse:
– O senhor acha que muitos anjos principados ainda escolherão
uma casta?
Bariel arqueou as sobrancelhas.
– Não acho que muitos. Mas alguns sim.
Súbito, uma luz brilhou na altura da primeira camada de nuvens
e uma horda de demônios alados, com pelo menos cem demônios
robustos, começou a voar em direção a legião angelical, que continha
dezenas de milhares de guerreiros.
– O que é aquilo? – Hariel apontou a horda.

389
Os infernais – respondeu Bariel. – Estou achando que eles estão
querendo se suicidar.
Quando eles se aproximaram, cerca de trezentos metros, foram
surpreendidos por uma esfera vermelha, escaldante. Esta os acertou e
com uma explosão devastadora, pulverizou todos eles. Aparecendo
repentinamente, como autor da investida, Astaroth, que flutuou até
Bariel. Seu rosto estava com aparência preocupada.
Bariel soltou a espada da bainha com um clique e ficou
segurando sua empunhadura. O duque do inferno flutuou até ficar a
apenas cinco metros dele.
– Hariel, você sabe o que fazer – disse Bariel, sem tirar os olhos
de Astaroth. – O que você quer? – Indagou o comandante ao demônio,
ríspido.
Hariel deu um passo para trás e se retirou. Um pouco mais atrás,
ela alçou voo e desapareceu no horizonte.
– É difícil dizer o que vou dizer – começou Astaroth. – Então
vou ser direto. Preciso da ajuda de vocês, Comandante.
– Como você pode pedir a nossa ajuda, depois de tudo o que
fez? – Bariel deu um passo à frente e tirou a espada.
Astaroth se afastou dois metros e voltou bem devagar.
– Eu sei que errei. Eu não sei o que acontece comigo. Mas agora
fui tocado pelo coração do Pai. Sinto sua presença comigo e sei que
Ele me guiará na trajetória correta – Astaroth se aproximou ainda
mais.
Nesse momento, Bariel reparou que seus olhos rubros, agora
estavam brancos.
– Eu acredito em você! – disse o comandante, guardando sua
espada.
Todos os anjos ficaram satisfeitos com a presença de Astaroth,
ainda mais naquela nova situação. Apenas um entre todos ficou
390
desconfiado e preferiu se afastar um pouco. Hariel seguiu até os
irmãos de espírito, Mazarak e Daniel e naquele momento percebeu o
olhar desconfiado dos dois.
– Vocês também não caíram nessa?
– Com certeza, não! – respondeu Daniel. Suas olheiras ainda
estavam profundas.
– Vamos ver o que ele dirá quando me vir! – Mazarak se
deslocou em direção a Astaroth.
– Espere! – Hariel esticou o braço, mas não agarrou nada.
Astaroth andava ao lado de Bariel, no corredor de anjos, quando
do meio dos guerreiros, Mazarak entrou na frente deles, encarando
Astaroth.
– Olá, Astaroth! – disse o duque da luz.
O demônio parou imediatamente e respirou fundo. Em seguida,
aproximou-se de Mazarak e sem nenhum suspense, envolveu-o em um
abraço.
– Me desculpe, irmão! – Astaroth disse ao pé de seu ouvido. –
Eu prometo compensar tudo que te fiz. – Nesse momento ele viu
Daniel, no meio dos outros anjos, encarando-os. – E ao seu irmão de
espírito.
Subitamente o vento começou a soprar mais forte. A poeira da
rua começava a se levantar e rodopiar com a força do vento. Este, que
começava a aumentar seu assovio sem parar, em poucos segundos, já
tinha a força de um furacão. Um funil negro, com relâmpagos,
começou a se formar na frente dos anjos. Sua força não combinava
com seu tamanho, pois este começou a fazer com que todos os
destroços de prédios destruídos, na região, começassem a se erguer do
chão e a levitar. Eles subiam como se uma força os puxasse para cima.

391
Após os destroços alcançarem mais de cem metros de altura, a
força que os puxava para cima se extinguiu e eles despencaram em
uma poderosa chuva de detritos gigantes.
Muitos anjos se protegiam, colocando as asas sobre suas costas.
Alguns alçavam voo, explodindo os pedaços de concreto e aço, com
seus corpos. Muito deles até chegaram a segurar os detritos com os
braços e posicioná-los com segurança no chão.
O barulho forte do furacão cessou repentinamente e quando
Bariel olhou, viu a figura de um anjo com chifres pequenos. Com
certeza, aquele era o cavaleiro de quem Haziel falou. Seu olhar era
obscuro, como Bariel nunca tinha visto.
– Quero falar com Haziel! – A voz do cavaleiro soava raivosa.
– Haziel não está aqui. Fale comigo! – Bariel segurou a
empunhadura de sua espada.
O Cavaleiro pousou, tocando o solo com sutileza e andou até
ficar cara a cara com o comandante. Bariel se manteve em sua
compostura, segurando sua empunhadura, com o peito estufado. Seus
narizes quase se tocaram.
– Eu não falo com qualquer um. Eu falo apenas com Haziel.
– Sou o primeiro comandante dos guerreiros divinos. Você pode
falar comigo.
– Eu não tenho paciência para isso! – O cavaleiro agarrou o
pescoço de Bariel com apenas um braço e começou a apertar.
O comandante começou a apertar seu antebraço, mas nunca
tinha sentido músculos tão duros e poderosos. Sua respiração já não
funcionava mais e sabia que não tinha muito tempo para se
desprender, antes que sua traqueia fosse esmagada. Ele sentiu a garra
forçar ainda mais e viu quando Dana se aproximou, com um grito do
cavaleiro, desferindo-lhe um soco no rosto.

392
O soco serviu apenas para irritá-lo. Com a mão livre, Morte lhe
acertou um tapa com as costas da mão. Nenhum anjo que viu aquela
cena se lembrou de ver um golpe tão poderoso. O peso foi tanto que a
cabeça da mulher anjo explodiu, deixando no lugar apenas seu tronco
que oscilou e caiu.
Bariel tentou gritar, mas não conseguiu. Seu rosto estava
vermelho e inchado. As veias em volta de sua íris prateada estavam
estouradas.
– Onde está Haziel?
O cavaleiro esperou um segundo e a mesma mão que usou para
matar Dana serviu para acertar o rosto do comandante com um
violento soco. Todos os ossos de sua face se partiram imediatamente e
ele caiu no chão, quando soltou a mão mortal do cavaleiro.
Nenhum anjo teve coragem de se aproximar. A não ser por
Mazarak, que começou a correr na direção do cavaleiro, quando viu
uma figura imponente, pousando próximo a eles.
– Você quer a mim? Aqui estou! – disse Haziel, colocando os
humanos no chão. – Afastem-se! – ele pediu aos humanos.
Aron e Hector entraram para o meio dos guerreiros e quando o
indiano passou por um deles, quando encarado, teve uma sensação
estranha no peito. Ele deixou para trás e continuou correndo atrás de
Aron.
Astaroth acabara de ver o que ainda não acreditava ter visto.
Diante dele, passaram aqueles mesmos olhos que enxergou no
mexicano, depois na africana, em seguida na menina japonesa e agora
naquele homem que do nada surgiu na frente dele. Seu coração
começou a bater mais forte e ele se retirou, seguindo os humanos
sorrateiramente.

393
O cavaleiro tinha um olhar de satisfação, enquanto Haziel se
aproximava dele. O anjo parou a dois metros dele, enquanto via
alguém recolher Bariel do chão.
– Anjo?! Vim mesmo atrás de você. Quero saber apenas se
estarão ao meu lado, em minha proposta.
– Você poderia ter perguntado isso a Bariel! – Haziel fitou um
guerreiro se afastando com o corpo desacordado do comandante.
– Mas nem o conheço!
– Você também não me conhece. Apenas ouviu falar sobre mim.
Se tivesse perguntado a ele, saberia que nunca o ajudaríamos contra
qualquer criação do Pai.
O cavaleiro do apocalipse abriu um sorriso.
– Você está me dizendo que não me ajudarão?
– Exato!
– Então se não estão comigo, estão contra mim!
– Eu conto com isso! – Haziel fechou os punhos ainda mais
forte e deixou que sua energia começasse a emanar em ondas pelo seu
corpo. – Se você quiser lutar, eu serei seu oponente.
– Te darei um minuto para pensar – disse o cavaleiro.

***
Astaroth não perdia os humanos de vista. Eles se afastaram ao
ponto de ficarem quase duzentos metros do ponto onde Haziel os
deixou.
Aron se sentou em uma viga de concreto, quase juntamente com
Hector.
– O que você acha que vai acontecer lá? – apontou o indiano.

394
– Para te falar a verdade, eu não tenho a mínima ideia. Acho que
eles estão apenas conversando.
Subitamente, uma explosão naquele ponto. Astaroth não perdeu
tempo e avançou na direção dos humanos.
– Rápido! Saiam daqui. Preciso de vocês fora dessa região.
Sigam-me! – O duque começou a correr para trás de um prédio
tombado.
Vendo o anjo correr, os dois humanos começaram a segui-lo.
Eles pularam algumas pedras e venceram alguns obstáculos. Em
menos de trinta segundos, já estavam fora do alcance de qualquer
celestial, encobertos por um grande prédio caído.
Astaroth os aguardava, imponente. Tinha sua cabeça baixa e
quando olhou para os humanos, seus olhos brilharam em rubro. Não
tinha só conseguido o quarto cavaleiro, mas de brinde, o único
humano com a energia azul, junto.
Aron achou muito estranho o tom de seu vermelho, mesmo
assim continuou se aproximando.
– Você vai nos dar proteção? – indagou Aron.
– Você pode contar com isso! – O sorriso malévolo de Astaroth
ficou evidente.
– Corra! – disse Aron para Hector e começou a correr.
O indiano não conseguiu avançar como ele e foi agarrado pela
camiseta, sentindo um puxão. Mas tendo uma reação espontânea,
levantou os braços e deixou que o pedaço de tecido escorresse pelos
seus braços.
Astaroth ficou segurando a camiseta na mão e viu quando o
indiano começou a correr, despido da parte de cima. Sem perder
tempo, avançou como um raio e segurou Hector, envolvendo seu
braço forte pelo peito dele e a mão tampava sua boca.

395
Aron olhou para trás e viu seu amigo agarrado pelo demônio.
Nesse momento ele se sentiu poderoso e sem medo. Então começou a
correr na direção dos dois. Um vulto negro passou ao seu lado e parou
na frente de Astaroth. Era Mazarak.
– Você nunca me enganaria! – disse o duque da luz. – Solte o
humano.
– Eu não vou soltá-lo. Eu preciso dele. – Hector se debatia em
suas mãos.
– Por que você precisa dele?
– Isso é assunto meu! – Astaroth estava evidentemente furioso.
– Eu nunca permitirei que você o leve. – Mazarak começou a
andar na direção de Astaroth.
O demônio começou a dar alguns passos para trás.
– Não se aproxime, se não, quebro o pescoço dele.
– Se você precisa dele, não o matará!
– E quem disse que preciso dele vivo?
Hector arregalou os olhos, balançou a cabeça para os lados e
soltou um murmúrio por baixo da mão de Astaroth.
Nesse momento, Aron teve a ideia de ir buscar algum guerreiro
para ajudar Mazarak e começou a correr. Aquele era o único humano
que teve contato nos últimos meses e não deixaria que um demônio o
levasse como fez com Sun. Em menos de vinte segundos, encontrou
um guerreiro com olhos castanhos e o chamou, com desespero,
explicando a situação em menos de cinco segundos. Alguns outros o
escutaram e todos começaram a segui-lo em uma pequena tropa.
Astaroth sabia que a paciência de Mazarak estava se esgotando.
Em seguida, viu algumas dezenas de guerreiros dobrando a esquina. O
duque da luz olhou para trás, também vendo os guerreiros e quando
voltou seu olhar novamente para Astaroth, uma confiança tinha
surgido em seus olhos. Nesse momento, ele fechou os punhos e
396
Astaroth soube que aquele era o momento. Jogando Hector alguns
metros para cima, no exato momento em que viu Mazarak se
deslocando para cima dele, fez apenas um movimento muito rápido e
acertou um soco direto na face do duque da luz, que foi arremessado,
com violência, contra os outros guerreiros. Em seguida, o demônio
alçou voo e pegou Hector ainda no ar, desaparecendo como um raio
entre as nuvens.
Aron caiu de joelhos, com os olhos cheios de lágrimas. Aquele
foi o momento em que o ódio pelos demônios se acendeu com
verdadeiro poder em seu peito. Primeiro tinham tirado a esposa dele.
Agora seu melhor amigo, que apesar de terem se conhecido há um
pouco mais de um dia, sua ligação tinha sido forte. Subitamente ele
escutou um estrondo, vindo da região onde Haziel tinha ficado. Nesse
momento, ele soube que o combate havia começado, mas nem deu
bola e se manteve exatamente do mesmo jeito. Os mesmos guerreiros
que tinham ido ajudar Mazarak passavam por ele, voltando. Um deles
o agarrou e o jogou no ombro, alçando voo.
Olhando para baixo, a única coisa que Aron viu foi uma nuvem
de fumaça enorme. Um aglomerado de anjos alçando voo e um pouco
mais acima, poderosos lampejos de luz, aqui e ali.
Haziel percebeu imediatamente que o cavaleiro estava apenas
brincando com ele. Mas isso não o intimidava. Só o fazia ficar ainda
mais furioso. Em certo momento, a mão direita do anjo brilhou como
fogo e ele desferiu um soco direto que acertaria o rosto do cavaleiro.
Mas Morte foi ágil e esquivou a cabeça para o lado. Haziel aproveitou
o movimento de seu corpo e com a outra mão tirou a espada da
bainha. Dando um giro completo, passou a lâmina sobre o cavaleiro
que tinha dobrado seu corpo para trás.
Morte sorriu para Haziel e disparou na vertical, vencendo
quilômetros em poucos segundos. Haziel foi atrás dele, voando com a
397
mesma desenvoltura. Subitamente o cavaleiro parou e o anjo foi na
sua direção, a fim de acertá-lo. Mas quando o choque dos corpos
aconteceria, o cavaleiro desapareceu como um raio e reapareceu atrás
de Haziel. O anjo girou o corpo, tentando lhe acertar um soco cruzado,
mas o cavaleiro desapareceu novamente e quando o soco passou, o
cavaleiro reapareceu no mesmo lugar. Com um sorriso sarcástico,
acertou uma poderosa joelhada no abdômen do anjo que quase
vomitou seu estômago.
Haziel se recuperou rápido o suficiente para segurar o joelho do
cavaleiro com uma mão. Nesse momento, o anjo sorriu e acertou o
rosto de Morte com um poderoso soco. Em seguida mais um soco e
mais um.
Os olhos do cavaleiro viravam para trás nesse momento, pois ele
sentiu verdadeiramente o impacto dos golpes. O anjo era forte, mas
ele era mais. Com a mão direita, cravou os dedos no antebraço de
Haziel. Com a esquerda, segurou seu bíceps e com um movimento
espetacular, quebrou o braço do anjo como uma frágil madeira.
Haziel gritou de dor e escutou o cavaleiro falando:
– Você tem certeza de que não vai me ajudar?
Um pouco agonizante de dor o anjo respondeu:
– Eu nunca ajudarei alguém que vai contra os ideais do Pai.
– Então você é um tolo! Eu posso te dar muito mais do que você
já sonhou.
– Eu tenho tudo que eu preciso no amor de meu Pai.
O cavaleiro entortou o braço de Haziel um pouco mais. O anjo
grunhiu de dor.
Uma legião de celestes plainava ao redor do combate, esperando
o momento certo para atacar o cavaleiro. Haziel precisava apenas
tomar o controle da situação para que isso fosse possível.

398
Subitamente, todos viram um pequeno clarão no céu, entrando
na atmosfera como um cometa. A atenção do cavaleiro foi desviada
totalmente para aquele ponto. Ele largou o braço de Haziel e
desapareceu como um raio. O anjo fez menção de segui-lo, mas Morte
foi tão rápido que ninguém pôde ver para onde ele foi. Em poucos
segundos, o braço de Haziel já estava cicatrizado.
Com Bariel em seu estado atual, o próximo a dar ordens naquela
situação era Haziel. O anjo não possuía nenhuma patente, mas seu
poder já falava por si próprio. Ele plainou até Mazarak e Barrattiel,
que juntos, compunham também a legião que rodeava o combate dele
com o cavaleiro.
– Mazarak! Precisarei da sua ajuda – disse Haziel.
– Pode contar com isso, guerreiro.
– Precisamos localizar aquele ser, pois não sei do que ele é
capaz.
– Se vocês vão atrás dele, gostaria de ir junto.
– Não, Barrattiel. Precisamos de você aqui para ajudar a liderar
a legião de guerreiros. – As asas de Haziel batiam devagar.
– Deixem comigo, que o ajudarei a conduzi-los. – Chavakiah se
aproximou dos guerreiros. – Em minha emanação, nos segundos
porvindouros, pude localizar Yesalel a uma hora da costa brasileira.
Hariel está a toda velocidade, a uma hora deles. Calculo que eles
podem estar de volta, voando a uma velocidade considerável, em
menos de quatro horas.
Haziel encarou Chavakiak por um momento.
– Você consegue nos dizer exatamente onde se encontra o
cavaleiro nesse momento?
Chavakiah estreitou os olhos e disse:
– Não agora! Mas quase todas as potências celestes, podem – ele
sorriu.
399
CAPÍTULO 49

Caliel preferiu se desmaterializar para procurar Aron, sendo que


preferia não ser visto pelos humanos. Depois de quarenta minutos que
saiu do Céu, atravessou a passagem perto de Águas Vermelhas e voou
por cidades, chegando à casa de Aron; a casa que julgava não existir
mais. Diferente do que ele imaginava, estava exatamente em seu
devido lugar, como se aquilo tudo anteriormente não tivesse
acontecido. O teto estava intacto e nenhuma rachadura se desfilava por
ela. Era como se tudo antes não tivesse acontecido.
Caliel desceu até a laje da casa e a atravessou, tocando o solo de
madeira da sala. A casa inteira estava escura, obtendo apenas a pouca
luz que passava pelas janelas de vidro.
Caliel não sentia a energia de seu guardado, mesmo assim
preferiu continuar procurando. Entrou primeiro no quarto principal,
depois se deslocou pelo corredor, até o quarto que saía da cozinha.
Também estava vazio, assim como a cozinha. O ruivo voltou alguns
passos e parou em frente à porta do porão. Com um leve toque, ela se
abriu e repentinamente o anjo foi sugado para dentro, caindo em um
escuro sem fim. Em poucos segundos, a porta que daria na casa foi
desaparecendo, deixando o anjo em um pesadelo, sozinho.
A pedra da lira começou a pulsar e Caliel acendeu sua áurea
rubra, podendo enxergar pelo menos seu corpo. Ele flutuava devagar,
tentando enxergar algo na devasta escuridão. Naquele momento, já
tinha certeza de que tinha sido levado à mesma dimensão de antes.
Pensando nisso, teve a certeza de que encontraria uma passagem. Só
não sabia onde e quando.

400
Ao longe, percebeu certo movimento e nesse momento apagou
sua áurea, ficando invisível a qualquer olho. Uma luz confusa em
dourado e escarlate começou a se aproximar cautelosamente. A
poucas centenas de metros dele, começou a vislumbrar algo que não
achou possível. O ruivo estava pasmo. Seu estômago estava apertado e
fios de eletricidade atravessavam sua espinha. Diante dos olhos dele,
plainando no escuro, passavam Haziel segurando Hector e ele próprio
segurando Aron.
Pela primeira vez em toda a sua vida, pensou que estava
sonhando. Os anjos não sonhavam, pois não dormiam. O mais
próximo que chegavam disso, era quando entravam em seus
momentos de concentração. Mas nesse caso, suas mentes ficavam
ligadas e dominavam todos os seus pensamentos. Não era isso que
estava acontecendo naquele momento, deixando óbvio para ele que
era tudo real.
A pedra de sua lira começou a pulsar novamente, mas rápido ele
colocou a mão em cima, tampando a luz rubra. Ele via Haziel e ele
próprio se afastarem, ao mesmo tempo em que o brilho da pedra da
lira ganhava força e começava a pulsar mais forte. Em poucos
segundos, a luz era tão poderosa que começou a atravessar sua mão,
como em uma emanação de energia própria. Pouco tempo depois, ele
viu que o grupo parou. Nesse momento, a luz já estava tão forte que
ele não podia contê-la.
Subitamente, o negro foi cortado por um rasgo e uma luz
começou a irradiar desse buraco aberto. O grupo começou a avançar
para aquele ponto de luz a toda velocidade. Caliel observou e viu que
seu corpo inteiro queimava em um chama rubra. O ponto mais
brilhante era a pedra de sua lira que pulsava constantemente. O brilho
que se controlava sozinho começou a perder brilho. O buraco aberto
no negro começou a perder tamanho exatamente nesse momento. Foi
401
aí que Caliel percebeu o que estava acontecendo, lembrando-se de que
ao avançarem para aquele furo, há algumas horas, ele viu uma áurea
queimando com todo seu poder. Essa áurea era ele próprio e de fato
estava controlando a abertura do buraco.
Algo chamou a atenção do anjo nas cordas do instrumento e ele
tocou uma corda. O brilho pulsou mais forte e o buraco ganhou
diâmetro. Em seguida, ele puxou mais uma corda, vendo a mesma
coisa se repetir. Como um mestre talentoso em música, o ruivo
começou a dedilhar sua lira, esbanjando um lindo som que parecia ter
vida própria, dançando em auroras e se desprendendo do instrumento,
acompanhando suas notas e melodias.
Subitamente, Caliel sentiu uma presença nas costas e parou de
dedilhar sua lira. Sem pensar no que o espreitava, tendo como foco
salvar seu guardado, começou a bater as asas velozmente e voltou a
tocar o instrumento, acendendo seu brilho novamente. Ele via o grupo
se aproximar do rasgo a uma velocidade surpreendente e sabia que
para eles passarem para fora daquela dimensão, ele era a única chave.
Por isso, continuou tocando o instrumento e seus dedos só
aumentavam a velocidade, dedilhando cada vez mais notas por
segundo.
Finalmente sua outra versão, Aron e os outros chegaram e
atravessaram o rasgo. Mas exatamente nesse momento, ele sentiu a
presença se aproximando rápido, logo sentindo uma pancada na nuca.
Seus dedos rolaram pelas cordas, tocando notas involuntárias,
desafinando toda a melodia. A última coisa que Caliel viu, antes de
apagar, foi a rachadura no breu se fechando.
Quando abriu os olhos, aos poucos começou a ver umas luzes
compridas, brilhando nas laterais de sua cabeça. Com o foco de seus
olhos ganhando vida, a luz foi deixando evidente o que acontecia. Ele

402
estava preso a uma mesa fria, com as mãos erguidas para cima, presas
por uma espécie de corda de luz branca.
– Eu achei que você nunca acordaria.
Caliel olhou na direção de seus pés e além de vê-los amarrados
pela mesma corda, viu Shaiah sentada à beira da rocha onde seu corpo
se deitava.
– Então foi você que nos colocou naquela dimensão desde o
começo?
– O que você acha? – Ela se levantou e contornou a cama, até
ficar em frente a cabeça do anjo. Usava um vestido de seda, branco,
amarrado na cintura por um tecido do mesmo material. Os pés
estavam descalços, pisoteando o piso branco. Ela soltou o nó do
vestido e deixou que o tecido caísse, deixando-a completamente nua.
– Você se incomodaria de vestir essa roupa?
– Você não gosta? – Ela sorriu e inclinou a cabeça um pouco
para baixo, escondendo os seios com os braços.
Caliel a ignorou e virou a cabeça para o outro lado. Subitamente
sentiu o peso da moça em cima dele.
– O que você está fazendo?
– Será que você resistirá agora? – Ela lambeu o rosto dele.
– Pare, por favor! – O anjo virou a cabeça para o lado e com o
canto do olho, viu a mulher descendo para a parte de baixo de seu
corpo, completamente sensual.
Repugnante, Caliel não pode fazer nada. Depois de um tempo,
ela subiu e o encarou.
– Isso não serve para nada?
– Como te disse antes, você nunca conseguirá o que quer,
comigo!

403
– Então para que o Pai colocou isso em vocês, anjos
masculinos? – Ela fez sinal de aspas com os dedos e rolou para o lado,
pisando o chão, pegando o tecido de seda branca.
– Eu não sei te dizer o porquê disso, mas sei que Ele teve os
seus motivos. – Caliel a encarou por alguns segundos e depois
arqueou as sobrancelhas. – Por que me mantém preso, sendo que pode
me matar?
Ela abriu um sorriso um tanto desconfortante. Nesse momento já
estava vestida.
– Vocês não têm a mínima ideia do que está acontecendo?! – Ela
balançava a cabeça para os lados.
– O que está acontecendo?
O anjo ficou encarando a moça por longos segundos, enquanto
ela apenas balançava a cabeça para os lados. De repente, ela se
aproximou e tocou as cordas de luz. Todas elas se dissiparam e pela
primeira vez naquela sala, Caliel se viu livre. Com um pulo, ele
pousou do outro lado da rocha e ficou em prontidão, para qualquer
eventualidade.
– Fique calmo! Não pretendo afrontá-lo. – A antiga angelical
contornou a mesa e ficou de frente para o anjo, que se manteve
desconfiado.
– Por que você está fazendo isso? – perguntou o anjo.
Com um sorriso sincero, ela respondeu:
– Porque percebi, nos últimos tempos, que meu aliado é louco.
– Você pode me dizer o que está acontecendo?
– Eu acho que não devo, mas pelo visto, estou lutando do lado
errado, indo contra toda a centena de anos que passei – uma pequena
pausa. – Nesse caso eu te contarei.
Ela virou a cabeça para o lado, como atenta em algo.

404
– Rápido. Você tem que sair daqui. – A mulher encarou Caliel. –
Ele está chegando!
– Quem está chegando? Como saio daqui?
– Rápido, por aqui. – Ela se esquivou para os pés da rocha e se
agachou. Um ponto de luz flutuou a partir de seu indicador e tocou os
pés da rocha. A enorme pedra branca começou a se erguer com um
ruído e parou aos quarenta e cinco graus.
– Você está sugerindo que eu entre aí?
– Sim, se você quiser viver.
Caliel se inclinou um pouco para a frente e viu apenas cinco
degraus, até a escuridão tomar conta da escada.
– Você tem cinco segundos – ela disse, com desdém.
O anjo respirou fundo e desceu os degraus. Olhando para cima,
viu a porta se fechando em cima dele. Na escuridão total, logo escutou
os passos de quem a Sun falsa disse que chegaria. O som de sua voz
estava abafado, mas seu tom grave era evidente. Concentrando-se um
pouco mais, o anjo começou a filtrar o som que passava pelos átomos
que compunham aquela rocha, até chegarem aos seus ouvidos.
– Acho que depois disso, eles já devem saber com quem estão
lidando! – disse a voz grave.
– Os celestes com certeza. Mas e os seres do inferno, ainda
esperam nossa ajuda?
– Com certeza não! – A voz grave não soou tão confiante.
– O que você acha que conseguiremos com esse tal livro da
vida?
– Eu não sei ao certo. Mas sinto uma ligação com ele, mesmo a
muitos anos luz de distância.
– Morte, posso saber como você ficou sabendo desse livro?
Uma pausa antes que a voz grave falasse:

405
– Eu simplesmente sei que ele existe e sei que dele, poderei
extrair um poder tão grande que superará ao desse tal Deus.
Caliel se espantou ao escutar isso e mesmo não acreditando,
começou a desconfiar que estava lidando com seres muito além de sua
compreensão. Com certeza não se tratava de anjos ou de demônios.
Então seriam o quê?
– O que você precisa que eu faça? – indagou a antiga celestial
falsa.
A voz grave de Morte ficou calada por alguns segundos.
– Conseguir saber onde esse livro está, pelo visto você não
conseguiu. Então preciso saber notícias sobre os três anjos em criação.
Tenho algumas coisas também para ver, antes de nossa última
investida.
Caliel escutou o barulho de asas e logo percebeu que apenas
uma das duas presenças tinha ficado na sala. Mas qual? Subitamente a
rocha rangeu e um feixe de luz apareceu, logo deixando evidente a
porta anterior. A imagem da mulher apareceu e com a cabeça, ela
pediu para que ele subisse. Com alguns passos, ele se pôs na sala e
enquanto via a mulher descer a pedra, ela indagou:
– Acho que agora você entende com o que estamos lidando –
disse ela arqueando as sobrancelhas. – Além do fato é claro de ele
querer escravizar a raça humana, o qual sou contra.
– Eu entendo com o que estamos lidando. Só não entendo por
que se importa com os humanos e por que agora quer nos ajudar.
– Tem coisas que são irrelevantes no momento! – O olhar dela
se perdeu por um instante. – Você acha que quero esse cara com o
poder desse Deus de vocês? – Ela deu de ombros.
– O que você sugere que eu faça agora?

406
– Agora você vai passar pela abertura que você do passado
passou e vai segui-los. Seu dever é protegê-los, pois demos início a
um ciclo temporal, quando você voltou no tempo.
– Isso quer dizer que tudo que aconteceu ainda não aconteceu?
– Não, isso quer dizer que você se deslocou da sua linha do
tempo e isso criou um erro temporal. Agora você deve acompanhar de
longe toda a sua trajetória até aqui, nessa nova linha do tempo, para
que vocês dois possam unir suas consciências.
– Existem dois de mim agora?
– Exatamente. E você nunca poderá deixar que ele te veja.
– Por quê?
– Porque na pior das hipóteses, você dois desaparecerão juntos.
O anjo arregalou os olhos.
– E na melhor delas?
– Um de vocês apenas desaparecerá.
Caliel engoliu a seco e indagou:
– E você nessa história? Existem dois de você?
– Não, eu posso estar na linha do tempo que eu bem entender.

***
No inferno, Astaroth e Leviatã aguardavam o último cavaleiro
começar a florescer, era um pequeno embrião. Logo foi isso o que
aconteceu. Um ponto orgânico apareceu nadando no centro da cápsula
e começou a se multiplicar.
– É disso que estou falando! – Astaroth tinha os braços cruzados
quando olhou para Leviatã. – Os outros dois já estão preparados?
– Sim! – O demônio reptiliano meneou a cabeça. – Precisamos
apenas despertá-los.

407
– Quem são os demônios que vão fazer isso?
– Para a africana, será Nihasa. Para o mexicano, Rimmon.
– Você não acha que Rimmon para o mexicano complicará um
pouco as coisas?
– Eu não penso assim. Acho que por ele ser o único dos quatro
humanos com a maldade no coração, Rimmon deve fazer um grande
trabalho em seu espírito.
– É, vamos ver o que vai sair disso! Os dois estão de acordo?
– Não, apenas Nihasa.
– Isso faz as coisas piorarem. – Astaroth respirou fundo. – Bom!
Vou confiar em você. Essa não é a minha praia. Onde estão os dois?
– Nihasa está atrás daquela porta, refrescando-se com uma
bebida humana. Rimmon está prestes a chegar.
Nesse momento, os dois demônios escutaram um estrondo vindo
do túnel que dava naquele galpão subterrâneo. Nenhum deles se
moveu, já sabendo do que se tratava. No túnel do elevador, poeira e
fragmentos de rocha estouraram no chão, em uma avalanche.
Subitamente, um demônio foi atirado daquele ponto, batendo seu
corpo na parede, ao final do galpão. Do meio da poeira, outro
demônio saiu de costas, segurando sua espada. Seguido dele, surgindo
também dos fragmentos de rocha estourada, um grande demônio
soltou um rugido que tremeu a rocha sólida das paredes.
– Realmente, parece mesmo que Rimmon não está concordando.
– Astaroth ainda tinha seus braços cruzados.
O enorme demônio tinha cerca de três metros de altura, com seu
corpo forte como rocha. Seus músculos eram enormes, porém sem
definição. Sua pele marrom, quase verde, tinha milhares de poros que
se abriam e fechavam o tempo todo. Sua feição lembrava um ogro
horripilante. Com um movimento, ele esmagou o demônio que

408
segurava a espada contra a parede e encarou Astaroth. Como um
touro, ele avançou com um rugido para cima dele.
Leviatã pulou na parede e escalou até uma barra de aço que
ficava no teto. Lá ele ficou esperando o impacto dos corpos acontecer.
Astaroth manteve seus braços cruzados, até quase o momento
em que o demônio iria agarrá-lo. Os braços robustos de Rimmon
abriram juntamente com sua boca cheia de dentes agudos. Astaroth
estreitou os olhos e com um movimento espetacular, girou seu corpo
para trás, acertando os dois pés de cheio no monstro.
Rimmon sentiu os impactos e seu corpo foi arremessado para
trás, quase dez metros, caindo no chão e quicando uma vez. Astaroth
se aproximou dele com passos calmos e parou ao seu lado.
– Se você não concordar com isso, farei novamente, só que mil
vezes mais forte.
Rimmon levantou a cabeça para encará-lo. Isso durou dois
segundos, quando sua cabeça pendeu e bateu no chão. Astaroth olhou
para trás a tempo de ver Leviatã tocando o chão, ao saltar do cano de
metal.
– Eu acho que ele aceitou – disse o duque louro.

409
CAPÍTULO 50

Como o cavaleiro que habitava o corpo da Sun instruiu, Caliel


seguiu o grupo que continha ele de outra linha do tempo e os outros,
por todos os lugares que ele próprio tinha passado. Depois que saiu da
dimensão da escuridão, foi para o inferno e seguiu o grupo, até que
eles saíssem de lá. Seguiu ele próprio quando levou os humanos à
torre dos tronos, para falar com Misael. Mas ficou aguardando,
plainando do lado de fora. Subitamente uma coisa inesperada
aconteceu.
– Vejo que ainda não foi descoberto. Parabéns!
Quando ele se virou, deparou-se com a Sun falsa novamente.
Seus olhos se arregalaram e por um momento ele achou que ela fosse
atacá-lo, sendo que agora estava em outra linha do tempo e
provavelmente aquela entidade não o conhecia.
– Fique tranquilo! Sou eu – ela disse. – Como te disse, estou em
qualquer linha do tempo.
– Então quer dizer que quando eu estava lá dentro – o anjo
apontou a torre –, você estava aqui fora com outra versão de mim?
– Não, pois esse é o primeiro loop. Eu te mandei para o passado,
antes de perceber que estava do lado errado. Não cometerei o mesmo
erro novamente, pois se isso acontecesse, outro de você seria criado.
Mas exatamente você pararia de existir, junto com essa linha do
tempo. Até eu tenho limites. – Ela riu. – Para eu criar uma linha, tenho
que apagar a outra.
– Como isso é possível?
– Eu conseguir mexer com o tempo?

410
– Não! Você possuir um poder que só está nas mãos do Pai.
Quando uma linha do tempo é eliminada, o que acontece com o
espírito dos seres nela?
– Eles são eliminados junto.
Caliel se espantou. Ela acrescentou:
– Não leve ao pé da letra. O espírito que habita, por exemplo,
aquele anjo, o Haziel, de outra linha, é o mesmo espírito que habita ele
dessa linha. Então o espírito nunca morre e apenas se transfere de
corpo.
– Me pergunto como você sabe disso tudo, se existe há tão
pouco tempo?
– Porque eu não aprendi isso. Eu nasci com isso – disse ela,
séria. – Agora não podemos perder tempo. Nos próximos minutos
enfrentarei o outro de você. Existe uma grande legião reunida em
Orlando, na Flórida. Siga para lá e aguarde, que você encontrará seu
guardado.
Caliel meneou a cabeça. Ela acrescentou:
– Lembre-se! Não deixe que o outro de você te veja. Agora vá.
O anjo explodiu o vento e seguiu em direção à passagem
próxima a cidade de Orlando. Quando afastado, olhou para trás e viu
quando a Sun falsa começou a chocar seu corpo contra a torre. A
curiosidade não permitiu que ele prosseguisse e já alguns quilômetros
afastado, observou enquanto sua outra versão saía da torre, para
encontrar pela primeira vez a entidade.

***
Astaroth e Leviatã tinham acabado de instalar Rimmon e Nihasa
na serpentina de energia e com feixes de luz trevosa. Esferas

411
cintilantes saíam de seus tubos ligados a suas artérias e se chocavam
contra a cápsula que já tinha seus embriões formados. Logo nos
primeiros minutos, já deu para perceber que o embrião que recebia a
energia de Rimmon e a do mexicano iria se desenvolver muito mais
rápido.
Passando cinco minutos, eles perceberam que aquele, com
certeza, seria o mais rápido de todos, que surpreendentemente, após
apenas oito minutos, já tinha o tamanho de uma criança de dez anos.
Apenas sua forma que ainda era uma incógnita.
No próximo minuto, enquanto seu corpo começava a se
desenvolver musculoso, fios acinzentados começaram a crescer em
sua cabeça. A pele, com certeza, ficaria branca como desde que ele
floresceu. As mãos tomaram forma, tendo os dedos perfeitos
humanamente. Com os pés aconteceu a mesma coisa. Tirando suas
orelhas, que se alongaram uns dez centímetros a mais, fechando em
pontas agudas, o corpo inteiro ficou igual ao de um humano. Os
cabelos ficaram cumpridos e claros. Subitamente, a criatura abriu os
olhos e tentou respirar. Imediatamente um olhar de desespero
apareceu e ele se debateu no tanque, estourando o material
transparente, parecido com vidro. Seu corpo nu escorreu para o chão,
junto com o líquido denso de cor azulada.
Astaroth andou até ele e se abaixou ao seu lado. O cavaleiro
levantou a cabeça e seus olhos verdes encontraram os rubros do
duque. Com os olhos arregalados e com um movimento rápido, ele
pulou para cima de Astaroth e o abraçou, como quando um filho
desesperado abraça sua mãe. O duque não teve tempo de reagir diante
daquela impressionante velocidade, pois se tivesse, aquela história
teria tomado outro rumo.
O cavaleiro se afastou e o encarou a apenas vinte centímetros de
distância.
412
– Eu conheço você – disse ele, com um sorriso. – Você é o
homem dos meus sonhos.
Nesse mesmo momento, Astaroth percebeu que aquele olhar
ainda era o do Mexicano, que até o último momento, seguiu-o de livre
e espontânea vontade. E se naquele cavaleiro, tivesse restado apenas
sua última memória, tendo como o único rosto conhecido, o dele?

***
Haziel aguardava ansiosamente, já na sétima tentativa de uma
potência, em localizar Morte. O primeiro deles esgotou suas forças ao
passar de quinze minutos e não teve nenhuma indicação de onde se
encontravam os cavaleiros. O segundo deles já passava de dez
minutos conectado à natureza e até aquele momento não tinha tido
êxito.
– Será que alguém mais poderoso poderá localizá-lo? – indagou
o louro a Chavakiah, que mantinha seus braços cruzados.
– Não é questão de força. Se não o estão localizando, é porque
ele não está nesse mundo – respondeu o general das potências. –
Vamos aguardar, pois ele vai ter que aparecer uma hora. Nem que
precisemos de cem potências para encontrá-lo.
– Encontrei-o! – disse a potência, que exibia seus traços como o
vento. – Ele está em São Paulo.
Nesse momento, Haziel explodiu suas asas para alçar voo.
– Espere! Ele está subindo na vertical, muito rápido. Eu o estou
perdendo! Ele sumiu.
– Como ele sumiu? – indagou o louro.
– Eu não sei! Ele foi inúmeras vezes mais rápido do que um
raio.

413
Todos os anjos ao redor se espantaram com a notícia.
– Como ele pode ser tão mais rápido do que um anjo? – O
general das potências fitou o Sol.
– Creio que estamos falando de algo parecido com a velocidade
dos arcanjos. – Yesalel se aproximou de Hariel.
Atrás deles, a legião inteira que seguia para o Brasil voltava para
aquela região, pousando aos poucos. Hekamiah era um deles e logo
ele se aproximou, querendo ouvir o que Yesalel tinha a dizer.
Inesperadamente e superando as expectativas, o segundo
comandante retornara ao seu grupo principal, a fim de lutar, com todas
as forças, contra as forças do maligno.
Yesalel subiu em cima de um ônibus tombado com um salto e
ficou fitando o horizonte por um pouco mais de dez segundos. O céu
azul dos últimos instantes de claridade e o Sol banhavam a cidade
destruída, com seus tons claros. Os raios do Sol lampejavam
vigorosamente, enquanto ele ia se escondendo por trás dos destroços
da cidade.
– Meus caros guerreiros celestiais, fui nomeado o segundo
comandante, por nosso Pai e como todos vocês, carrego no peito a
chama dos querubins, os guardadores do trono divino. Não posso
esperar para dizer o que temo, pois todos devem estar preparados para
o que estamos prestes a enfrentar. A lenda dos quatro cavaleiros do
apocalipse é verdadeira. Sendo assim, a última batalha que vivemos
não foi somente uma curta e pequena batalha. Foi o início de uma
guerra que determinará o destino de todos nós. Como nunca – ele tirou
a espada da bainha e a levantou –, lutaremos a favor da honra de nosso
Pai e de sua criação.
O barulho de metal se raspando, quando todos os anjos tiraram
suas espadas da bainha, foi enorme. Em seguida vieram os clamores

414
de guerra. O comandante aguardou, até que o barulho diminuísse e
assim, prosseguiu:
– Algumas coisas más estão por vir, mas outras coisas boas
também estão. Temos que ser cautelosos e ao mesmo tempo furiosos,
para que tenhamos a força suficientemente grande, a fim de segurar as
pontas, até que as coisas boas cheguem. Como nós sabemos e
entendemos há milênios, nosso Pai sempre tem algo guardado, e
sempre sabe o antes, o agora e o depois. Tenho certeza de que Ele tem
a sua hora para tudo. – Nesse momento, o segundo comandante enfiou
a mão no bolso de sua veste clara e fitando Haziel sutilmente, tateou a
esfera cintilante com a mecha de um dos querubins sagrados. – Sendo
assim, conto com todos vocês, pois essa será a nossa luta final!
Os gritos dos anjos foram tão altos quanto quando um pedaço de
uma montanha se deslocava, trazendo uma grande avalanche abaixo.
As espadas de irmãos e irmãs tilintavam sobre o último raiar do sol
daquela tarde. Talvez o último que veriam.
Haziel se aproximou de Yesalel e se ofereceu para enfrentar o
cavaleiro, quando fosse a hora. Mas Yesalel negou o pedido, já
sabendo que ele não estava preparado ainda.
– Haziel, quando for a hora, o primeiro da fila a enfrentá-lo
seriei eu. Você ajudará muito mais...
– Comandante... Comandante! – Um anjo pousou ao lado de
Yesalel um tanto eufórico. – Temos uma pequena legião, com duas
dezenas de guerreiros, reunida a dez quilômetros daqui. Elyon está
liderando o grupo e aguarda orientações.
– Orientações sobre o quê, meu caro? – indagou o segundo,
virando-se para ele.
Nesse momento, o guerreiro entristeceu seu olhar, abaixando as
sobrancelhas.

415
– Pediram-me para lhe informar que é provável que Astaroth
tenha conseguido o quarto humano.
– Como isso aconteceu?
– Por algum motivo, o indiano foi mais importante para ele do
que Aron e o acabou levando, deixando o humano da alma azul.
Nesse momento, Yesalel se lembrou de que apesar do brilho
divino nos olhos do indiano, ao final da janela de sua alma, ele viu a
escuridão.

416
CAPÍTULO 51

São Paulo, zona central – 15 horas


Seu computador estava ligado e pela aparência de sua tela,
estava ajustado para poupar o máximo de energia que podia. Aquele
homem trabalhava sem parar em cima da matéria mais importante de
sua vida. O apocalipse, naquele momento, não lhe atormentava. Única
coisa que lhe afligia era ter todo aquele material em mãos e não poder
divulgá-lo. A máquina estava ligada em um pequeno gerador,
barulhento, movido a combustível líquido. Próximo dele, mais cinco
se enfileiravam para manter a máquina ligada, sendo que qualquer
eventualidade poderia acontecer.

Na tela, o primeiro arquivo dizia: anjo bom e anjo mal, qual será
qual? – Ele apertou a tecla enter e o vídeo abriu no player selecionado.

Na imagem: um anjo louro com asas brancas e um anjo moreno


com asas negras disputavam forças no centro da cidade. Um deles
acendeu uma centelha rubra na palma da mão e nesse momento a
câmera começou a se movimentar a toda velocidade, tentando se
afastar o máximo possível daquele ponto. Subitamente, no áudio,
enquanto a imagem mostrava-se embaralhada e trêmula, um poderoso
estrondo, em seguida a câmera foi coberta por fragmentos e a tela se
apagou.

O segundo arquivo estava titulado de: centelhas tempestuosas.

417
Ao clicar, o player pulou mostrando a imagem de luzes
douradas, passando a toda velocidade, como mísseis. Cinco delas
passaram em um intervalo de quatro segundos. Em seguida, um
homem de meia idade virou a câmera para ele e disse:
– Serão extraterrestres?

O terceiro e último arquivo dizia: uma bomba nuclear nas


próprias mãos?

No arquivo, mostrava um poderoso combate entre uma mulher


anjo, loura e uma criatura escura, com asas grandes. Em outro ponto, a
câmera filmou outros dois seres, também provavelmente anjos,
enfrentando mais daquelas criaturas. As explosões e a velocidade com
que se moviam deixava muito difícil o cinegrafista registrar a cena, até
que de repente, ele foi surpreendido por uma grande pedra que o
acertou em cheio, esmagando-o. Apenas sua câmera sobreviveu à
tragédia. Ainda gravando, menos de cinco segundos depois, ela foi
pega por alguém que corria em alta velocidade. Quando o homem
virou a câmera para ele, deu-se para ver que era o mesmo homem que
clicava nos vídeos, abrindo um por um e assistindo, roendo as unhas.

Olhando a tela do computador, impaciente, ele levou as mãos à


cabeça e puxou os cabelos lisos para trás, inclinando e debruçando as
costas sobre o encosto. No lado direito da mesa, pegou sua xícara de
café e deu um gole. Em seguida, tirou um cigarro de seu maço e o
acendeu, dando um primeiro e longo trago. Levantando-se, viu-se
fazendo algo que só via acontecer em novelas brasileiras. Nunca
achou que aquilo fosse possível, mas se pegou falando sozinho,
contando suas ideias para ele próprio. Viu personagens fazendo isso
inúmeras vezes e nada o deixava mais irritado que aquilo, pois
418
considerava uma tentativa ridícula do autor em tentar mostrar o que
seu personagem estava pensando.
Deixando isso de lado, continuou sussurrando para ele mesmo:
– Tudo pronto! Agora eu só preciso de uma coisa. Ajude-me,
por favor? – Ele tinha as mãos entrelaçadas. – Eu preciso apenas de
energia. É! Creio eu. – Ele olhou para o chão e levou o dedo à boca. –
Pelo menos eu acho que o Google estará com seus servidores em
prontidão, quando isso acontecer.
Tendo para ele como algo divino naquele momento, ele escutou
um estouro alto do lado de fora. Em seguida, a luz amarela de seu
quarto se acendeu. Não acreditando, ele correu para a cozinha e tocou
o interruptor, acendendo a luz daquele ambiente. Um grito de
felicidade pulou de sua garganta e então correu para o quarto.
Sentou direto na poltrona do computador, sem mesmo antes se
dar o trabalho de trocar a tomada do gerador para a tomada elétrica e
começou a digitar. O navegador estava aberto e o primeiro site que
tentou acessar foi o Google. Foi aí que os problemas começaram. Mas
ele já estava preparado para todos eles.
O site não entrou, mas ele identificou que o problema era a rede
de internet. Sustentava-se com seus blogs e precavido, tinha quatro
redes de internet. Se uma falhasse, ele poderia se conectar a outra e
assim, sucessivamente. Já na segunda opção, conseguiu a rede que
queria e acessou então o Google. Como previa, o site estava no ar.
Agora viria a batalha que considerava a mais árdua.
Seus blogs teriam que estar no ar e com empresas, milhares de
vezes menores do que o Google como servidores para eles, com
certeza encontraria problemas para encontrar alguma delas ativa.
Sendo assim, foi exatamente o que aconteceu. Depois de inúmeras
tentativas, em todos os oito que possuía, sentia-se frustrado em não
poder colocar suas matérias em nenhum deles. Nem o Yahoo
419
conseguia estar no ar. De fato, o Google era o monstro da internet que
ele sempre considerou.
Uma ideia o fez pular da cadeira e ele sabia que aquela seria a
última. Lembrou-se de uma plataforma que comprou alguns anos atrás
e a hospedou em um servidor. Logo ele esqueceu tudo isso, pois seus
outros negócios estavam dando certo e a desativou. O servidor
utilizado para isso era do Google. Sua conta ainda era a mesma
daquela época. Então ele poderia ter sua própria plataforma para
divulgar a matéria e não precisaria de terceiros.
O homem abriu o campo de login e senha do monstro Googano,
(como ele o chamava) e começou a digitar.

Nome: andrilrk82
Senha: ***********
*ACEITO*

420
PARTE TERCEIRA

DESCOBERTOS

421
CAPÍTULO 52

Ignorando o pedido da entidade, para seguir até Orlando, Caliel


1, a versão da realidade alternativa, seguiu sua outra versão até o
Brasil, onde ele encontraria a casa de Aron intacta. Mas diferente do
que imaginou e como deveria ter acontecido antes, no lugar da casa,
só tinha o terreno, deixando claro que a morada tinha sido mesmo
engolida pelo universo escuro.
Sem deixar ser visto, Caliel 1 ficou à espreita, vendo sua outra
versão plainar a duzentos metros do chão, observando o terreno vazio.
Pondo-se em seu lugar, ele soube exatamente o que passava em sua
cabeça. Naquele momento, ele começou a se sentir desamparado, pois
a partir dali ele já não sabia mais o que viria a seguir. Única coisa que
sabia foi o que a cavaleira lhe disse: que uma legião se encontrava em
Orlando, na Flórida. Ele poderia seguir para aquele local, mas sua
outra versão não saberia o que fazer. Então ele preferiu ficar para
tentar dar um jeito de lhe entregar aquela informação. Um pensamento
lhe ocorreu: será que o Pai sabia o que estava acontecendo? Por um
momento ele se sentiu idiota, pois era óbvio que o pai sabia tudo o que
acontecia.
Caliel 2 olhou para cima e explodiu na vertical, subindo o mais
rápido que podia. Caliel 1 o seguiu, sabendo exatamente o que ele
queria que também era exatamente o que ele próprio queria. Aron
estava em algum lugar no planeta e o local mais propício era em
Orlando. Se ele não podia interferir na história, então sua outra versão
teria que saber o que fazer, assim como ele sabia.

422
Muitas coisas embaralhavam a mente de Caliel 1, sendo que
com certeza coisas foram alteradas, a partir do momento em que a
casa não estava mais lá, quando o 2, chegou. Quando ele pegou a carta
que Misael deixou para ele há algumas horas, dizendo que
provavelmente estariam na antiga casa de Aron, ele contava que a casa
de fato estaria lá. Mas se na versão antiga da história a casa estava lá e
agora que não estava mais, as coisas tinham mudado? Onde estava
Aron?
Aquele pensamento começou a mastigar seu corpo por dentro e
ele não pensou em outra opção, a não ser abandonar sua outra versão e
explodir para Orlando, em sua maior velocidade. Deduziu que levaria
muitas horas para chegar lá. Sendo assim, preferiu seguir até a
passagem que ficava perto de águas vermelhas, a fim de se lembrar de
alguma que desembocaria próximo à costa dos Estados Unidos. Mas o
mais próximo que sua mente localizou foi a passagem de Yukon, no
Canadá. Essa era conhecida por poucos guardadores. Poucos desses a
utilizaram mínimas vezes, sendo que seu perigo era grande. Ele não
tinha tempo a perder, pois cada minuto era precioso e nada era mais
importante para ele do que ter Aron sob suas asas.
Em pouco tempo, Caliel sobrevoava a cidade de Águas
Vermelhas. A passagem se aproximava e sua concentração para
acertar a porta de saída, exatamente onde ele queria, era grande. Ele
precisava, pois só tinha uma chance e se errasse, poderia ir parar em
um lugar completamente desconhecido até para ele. Sablon, um
guardador altamente poderoso, desapareceu há quase 10.000 anos,
tentando atravessar aquela passagem.
Em determinado momento, Caliel ficou parado, apenas
plainando no ar, vislumbrando o pedaço do céu que tinha a porta da
passagem. Para que tudo desse certo, ele tinha apenas que se
concentrar no ponto de chegada. O que ele não sabia e era exatamente
423
isso que temia é o que seu corpo encontraria na passagem até o
Canadá, mesmo que fosse por míseros milésimos de segundos. Dos
cinco anjos que passaram por ela, um desapareceu. O outro levou mais
de dois meses para chegar ao seu destino e quando chegou, não se
lembrava de nada de seus últimos meses. Os outros três chegaram a
salvo, porém, dois deles perderam a memória dos últimos 2000 anos,
antecedentes ao seu evento. Apenas um atravessou sem problemas.
Caliel seria o sexto.
O anjo se sentia completamente concentrado e confiante. Sabia
que podia atravessar aquela grande barreira, pois o que importava era
apenas sua obrigação e no caso, o que seu coração mandava era
proteger seu guardado. Em uma súbita explosão com um rajar de suas
asas, ele penetrou na passagem, desaparecendo em um pequeno ponto
de luz que vibrou e criou uma ondulação no ar, distorcendo a imagem
naquele ponto, por um breve momento.
Antes de desaparecer completamente no vortex, Caliel teve um
último pensamento, foi simples e este foi sobre ele mesmo, só que a
versão 2. O que sua outra versão estaria fazendo naquele exato
momento? Isso foi o suficiente para ele ser desviado para um lugar
que sua mente levou como se fosse o exato lugar em que ele deveria
estar.

424
DIA 01

Caliel trajava um terno Armani, chumbo e óculos escuros. Nas


mãos segurava apenas seu tablet de última geração. Era um jovem
elegante e abriu um sorriso, levantando os óculos, quando o sedan
prata estacionou quase colado na calçada. O vidro elétrico desceu e
uma linda mulher piscou para ele.
– Eu não acreditei quando você disse. Mas assumo que estou
impressionada!
– Eu te disse o quanto vale a minha palavra – respondeu o ruivo,
voltando os óculos no lugar e andando até o carro.
A mulher abriu a porta e ele entrou, sentando-se e puxando o
cinto de segurança. Ele virou a cabeça para o lado. A ruiva o encarava
com seus olhos verdes e estreitos. A primeira coisa que ela fez foi
pegar na coxa do anjo e deslizar sua mão até a virilha dele. Ele pegou
a mão dela e delicadamente a colocou sobre as próprias coxas que se
encontravam de baixo de seu vestido preto.
– Teremos tempo para isso depois! – ele soltou uma piscadela.
A ruiva respirou forte.
– Por que eu fico tão louca por você? – Ela colocou na marcha
automática e pisou no acelerador, olhando para ele mais uma vez,
antes de se concentrar na direção.
Após cinco minutos com os dois conversando sobre trabalho, a
mulher seguiu para o estacionamento subterrâneo de um prédio
espelhado, com mais de vinte andares. Ela parou em uma vaga
marcada com a sigla D2 e seguiram juntos de encontro ao elevador.
Com o botão acionado, agora eles aguardavam para subirem aos
andares mais altos.
– Os meninos estão aí?

425
– Todos eles e se encontram muito ansiosos. Principalmente os
irmãos.
– Haziel e Dayana estão assim desde que lançamos a ideia. –
Caliel deu uma olhada na tela do tablet.
– Você deve imaginar agora, então. – A ruiva soltou uma
piscadela.
Os dois ficaram mudos, enquanto o elevador marcava em seu
painel, 22, 23 e depois 24, soltando o barulho similar ao de um sino. A
porta se abriu e os dois saíram para um corredor, onde do lado
esquerdo tinha uma grande porta de vidro, escrito Corpotec, em azul.
Atrás da porta, tinha uma bancada, onde duas recepcionistas atendiam.
O ruivo passou por elas dando boa tarde e a ruiva seguiu atrás dele,
por um corredor com o chão acarpetado em chumbo.
Quando chegaram a uma sala afastada dez metros da recepção,
um louro alto saiu de uma outra sala e antes de se jogar no sofá
branco, fitou Caliel. Seu terno cinza tinha um corte perfeito, deixando-
o mais elegante do que parecia ser. Seus cabelos eram sedosos e caíam
na altura dos ombros, desfiados.
– Então minha mina de ouro chegou! – disse ele fitando o ruivo
com seus olhos azuis.
Nesse momento, uma mulher loura, com os cabelos até a
cintura, olhos azuis e um terno com o mesmo tecido do terno do louro,
chegou por outro corredor.
– Olha ele aí! – disse ela.
– Onde está Daniel, irmã? Temos que comemorar! – disse o
louro à loura, levantando-se e se prostrando ao lado dela.
Caliel tinha um grande sorriso de satisfação no rosto.
– E aí, você não vai dizer nada? Só vai ficar aí parado,
encarando-nos com essa cara de bobo? – indagou o louro alto a Caliel.

426
– Haziel sempre com pérolas delicadas. – Caliel guardou os
óculos escuros e tirou o tablet do bolso de seu terno.
O louro alto se aproximou dele, juntamente com a loura. A ruiva
estava um pouco de canto, apenas assistindo, sem tirar o sorriso do
rosto.
– Vocês veem esses gráficos? – Caliel apontou a tela do tablet.
Os dois irmãos aproximaram suas cabeças, olhando com
atenção. Então o ruivo acrescentou:
– Essas são todas as nossas possibilidades de sucesso, já
considerando todas as pedras que encontraremos pelo caminho.
– Todas elas? – O louro ironizou.
– Confie em mim. – Caliel levantou as sobrancelhas e riu. –
Pensei em todas elas.
– Perfeito, era tudo o que eu precisava saber! – O louro se virou
para a loura. – Dayana, por favor, tente localizar Daniel. Eu e Caliel
iremos até o escritório em Perdizes.
Dayana hesitou um pouco, com os olhos arregalados, e depois
disse:
– Farei isso!
– Perfeito! – respondeu ele.
Os dois homens seguiram pelo corredor e a ruiva ficou com a
loura. Em alguns minutos, já estavam pegando o sedan preto no
estacionamento. Quem dirigia era o louro. Quando começavam a subir
a rampa, que daria na rua, antes da cancela se abrir, o ruivo viu um
segurança que considerou o mais intimidador que já tinha visto na
vida. Com mais de dois metros de altura, careca e olhos escuros, seu
terno escuro era apenas um detalhe. Quando Caliel passou o
encarando, o grandalhão alargou um sorriso suficientemente cativante,
para impressioná-lo. Quando o carro passou por ele, o louro disse:

427
– Esse aí é o Bárbaro. Pelo menos é assim que o conheço. Acho
que ele não gosta muito de mim. – O louro alto sorriu e engatou a
segunda marcha, já deslizando os pneus dianteiros no asfalto.
Eles percorreram a cidade pelos próximos vinte minutos,
falando sobre o projeto. Chegaram a uma mansão branca, com cara de
empresa. O carro imbicou e o grande portão cinza começou a se abrir,
deslizando pelo trilhado. O sinal que ficava ao lado da guarita, com o
vidro completamente escuro, ficou verde e a cancela se abriu. O louro
pisou no acelerador e o carro seguiu pelo piso de blocos de concreto,
divididos por grama verde.
O carro contornou a grande casa e chegou a um estacionamento
no fundo, com espaço para pelo menos vinte carros. O sedan escuro
estacionou e os dois homens desceram, rumando para uma porta dupla
de madeira. O louro tirou um cartão do terno e passou no local
indicado. Com um estalo, a porta se abriu. Nesse momento, Caliel
observou e viu pelo menos duas câmeras apontando para eles,
piscando suas luzes vermelhas. Ele as fitou uma última vez e entrou
na casa, atrás do louro, deixando-as, na parte externa da casa.
A parede clara e a decoração fria davam ao lugar uma decoração
sem vida. A única luz, naquele momento, entrava pelas janelas dos
cômodos que eles passavam ao atravessar aquele grande corredor.
Alguém ali gostava de frio, pois o ar condicionado estava em seu
máximo. O último cômodo, este que ficava ao final do corredor,
estava mais escuro. Alguns lampejos dourados aconteciam aqui e ali.
Em poucos segundos, eles cruzavam a linha que separava o
corredor do cômodo que imediatamente o ruivo percebeu o quão
grande era. Uma biblioteca com pelo menos mil livros ficava ao lado
direito, com livros enfileirados, em um móvel de madeira com pelo
menos vinte lances. Ao lado desse móvel, tinha uma escada em
caracol que dava no piso superior daquele cômodo, piso que era
428
completamente possível ser visto de baixo e que também abrigava um
pedaço da biblioteca que só terminava em seu teto. Ao lado da escada,
depois de uns dois metros, uma lareira queimava com todo o seu
fulgor. Isso explicava o ar condicionado no talo.
Ao lado do móvel, um homem de costas, troncudo, não muito
alto, de terno escuro, vislumbrava o fogo queimar. Quando ele se
virou, Caliel reparou em sua bengala com ponta de metal. Ele se
aproximou do ruivo, com passos mancos e estirou a mão, esboçando
um sorriso sincero.
– Então você é Caliel?! Creio que temos algo em comum. Muito
prazer! Yesalel.
Caliel tinha seus olhos arregalados quando esticou a mão. Não
conhecia aquele homem imponente, mas por algum motivo seu
coração acelerou naquele momento.
– Sim papai, esse é Caliel – disse o louro alto.
– É um prazer conhecê-lo, senhor!
O homem de meia idade sorriu e se dirigiu ao filho.
– Haziel, você poderia nos servir alguma bebida, por favor?
– É claro, papai. – O louro sorriu e se descolocou até o móvel,
que ficava na parede direita.
– Daí não. Preciso de algo mais quente.
O louro, que já tinha aberto a porta superior do móvel, sorriu e
foi até a escada de caracol. Ele a subiu e no segundo andar
desapareceu por uma porta no fundo do cômodo.
– Você quer se sentar? – indagou Yesalel, apontando para o sofá
escuro.
– É claro, obrigado! – Caliel se sentou.
– Eu prefiro ficar em pé. – Yesalel segurou a bengala com as
duas mãos na frente do corpo. Sua postura era invejável. Seu sorriso
não deixava o rosto.
429
Eles ficaram se encarando por alguns segundos, com Yesalel
sorrindo e Caliel um tanto sem graça.
– Então você é o missionário! – disse Yesalel.
Caliel juntou as sobrancelhas.
– Desculpe! Eu não entendo.
– Eu li a respeito de seu trabalho para com a minha empresa.
Minhas expectativas vêm crescendo após cada apresentação de meus
gêmeos. – Você conhece Dayana, né? Ela é linda! – Yesalel olhou
para a parede atrás de Caliel e andou até ela, tocando um quadro na
parede, com a foto de uma mulher loura, muito parecida com Dayana,
porém com uns anos a mais. – Ela é muito parecida com sua mãe. Mas
não herdou nem 20% de sua garra. – Haziel sim. Ele não tem limites.
Quando coloca algo na cabeça, vai até o fim, mesmo que alguém
possa sair ferido (podemos dizer assim). – Yesalel se virou. – Mas
vamos falar do que interessa. Você sabe o quanto é arriscada essa
aposta que faremos?
– Sim senhor, eu compreendo. Mas estou confiante, pois fiz
todos os cálculos possíveis e não temos margem de erro.
– Eu confio em você, pois também trabalhei em minhas
probabilidades.
Caliel sorriu e viu quando Haziel descia a escada em caracol,
segurando uma garrafa e três copos empilhados.
– Era disso que eu estava falando, filho! – disse Yesalel,
pegando a garrafa nas mãos, vislumbrando seu rótulo. Por favor,
sirva-nos! – Ele entregou a garrafa a Haziel.
O louro enfileirou os três copos na mesa de centro, de madeira
rústica, e serviu grandes doses. Ele entregou o primeiro copo ao pai, o
segundo a Caliel e o terceiro, ele segurou, colocando uma das mãos no
bolso da calça.
– Brindo ao nosso projeto e grande objetivo em frente.
430
– Brindo a você, meu filho, que conseguiu este prodígio. –
Yesalel olhou Caliel com o canto dos olhos, vendo seu sorriso
envergonhado.

***
Algumas horas se passaram e mais de uma garrafa da melhor
cachaça que Caliel já tinha bebido na vida foi consumida. A bebida
não condizia com aquele homem de meia idade, mas era caseira e
naquele momento, Caliel entendeu por que ele quis exatamente ela.
Era simplesmente uma bebida divina. Por um momento Caliel se
sentiu estranho, pois nunca tinha ouvido aquela palavra, divina e de
onde ela tinha surgido.
Haziel estacionou o carro na frente da pousada que Caliel ficaria
hospedado. O ruivo saiu do carro e com um aceno de mãos, eles se
despediram. O sedan escuro saiu e Caliel seguiu para a entrada da
pousada. Ao subir os degraus, que daria na recepção, por algum
motivo ele parou e olhou para o outro lado da rua. Duas figuras o
encaravam das sombras. Bêbado e com sono, o ruivo apenas entrou,
olhou a hora, fez uma ligação e adormeceu.
Caliel abriu os olhos após o sono e a primeira coisa que fez após
sentir seu coração acelerar, foi saltar da cama e ir até a sacada olhar na
direção que tinha visto as sombras dos dois homens estranhos. A
praça, com árvores verdes, mesas e cadeiras de concreto e um
parquinho enferrujado, estava vazia. Apenas um gato saltou no banco,
cheirou algo e pulou de volta no chão, correndo para outra direção.
O ruivo entrou no quarto novamente e tirou sua regata branca,
seguindo para o banheiro. Olhou na tela do celular e viu marcado o dia
12/11. Em duas dezenas de minutos, tomou banho, escovou os dentes

431
e arrumou os cabelos. Após isso, foi até o armário e abriu a gaveta,
pegando uma muda de roupa que já tinha deixado separada para o dia
seguinte de sua chegada. Uma camiseta polo branca, uma bermuda
azul e um par de sandálias.
Pronto, o ruivo trancou a porta do quarto e começou a descer as
escadas, até chegar à parte externa do hotel. Antes disso, passou pelo
homem que ficava na recepção, um grisalho com os olhos azuis, tão
claros quanto uma piscina rasa. Caliel desceu as escadas que deram na
calçada e virou para o lado direito. Ele pegou o celular do bolso e
clicou no Facebook. Nesse momento, observou uma van preta, parada
do outro lado da rua. Isso fez se lembrar de cenas clichês de filmes,
captando a de um específico que gostou bastante. O momento de que
se lembrou foi quando o automóvel saiu cantando pneu no filme, e foi
exatamente isso que aconteceu na vida real. É claro que riu nesse
momento, mas logo parou, pois o carro parou ao seu lado, do outro
lado da rua e um homem careca, forte, saiu de lá, vindo em sua
direção. Caliel não esperou para perguntar e começou a correr.
Naquele momento, ele percebeu que devia ter escutado sua
amiga e em vez de comprar as sandálias, devia ter comprado um par
de tênis normais. Dessa maneira estaria pelo menos no dobro da
velocidade. Em um movimento súbito, ele as deixou que voassem para
trás e ganhou mais velocidade, correndo descalço.
Sem reparar por onde passou e sem olhar para trás, Caliel
chegou ofegante a uma praça. Um carrinho de hot dog tinha seu
funcionário trabalhando e atendendo algumas pessoas. Em uma
quadra, um jogo de futebol, com pelo menos dez garotos, estava em
andamento. Ao lado de um muro velho e branco, um par de tênis
descansava embaixo do sol. O ruivo passou por eles e sem se
preocupar com o tamanho, pegou-os e saiu dali o mais rápido
possível.
432
Um quarteirão na frente, ele parou para calçar os tênis. O pé
direito estava calçado e já percebendo que lhe caíam bem, enquanto
amarrava o pé esquerdo, a mesma van dobrou a esquina da rua e veio
em sua direção, comendo o asfalto com seus largos pneus. O ruivo se
levantou antes de terminar o laço e começou a correr. Cinquenta
metros à frente, viu um muro branco com no máximo um metro e
oitenta de altura. Ele foi à sua direção e o escalou como um gato. Com
mais um pequeno puxão com os braços, já estava no teto de uma casa.
Nesse momento, ele agradeceu as aulas de Taikondo que o deixaram
mais ágil.
Do teto, ele viu a van estacionando e dois homens saíram dela.
Um louro com cabelo liso e um asiático. Eles correram na direção do
mesmo muro, encarando-o de baixo. Caliel não esperou e começou a
correr em direção contrária, alcançando rapidamente o teto da casa
vizinha. Em uma rápida olhada para trás, ele viu quando o asiático, já
no teto da primeira casa, corria em sua direção.
Caliel dobrou da casa seguinte para a casa da direita. Seu teto
com telhados vermelhos em formato de pirâmide, talvez dificultasse a
perseguição dos homens que obviamente queriam pegá-lo a todo
custo. Na primeira pisada, um pouco abrupta do que deveria, Caliel
quebrou as três primeiras telhas, raspando a canela na lâmina, abrindo
um corte largo, mas não muito profundo. Naquele momento ele não
sentiu nem dor, mas soube que deveria ir com mais cautela. Esse erro
lhe custou quase dez metros de aproximação.
Com oito passos na frente dos homens, o asiático beirava o
telhado e já colocava seu primeiro pé para começar a subir.
Desesperado, Caliel jogou seu corpo para o outro lado da casa e
começou a rolar telhado abaixo. Sem nem lugar para se segurar, seu
corpo caiu rumo ao chão da garagem da casa. A sorte jogou ao seu
lado, como ele achou que só poderia ser possível em um filme de
433
Hollywood e uma rede esticada recebeu o peso de seu corpo. Ela não
aguentou e rasgou, mas amorteceu sua queda. Ele sentiu apenas uma
dor aguda no cotovelo direito.
Caliel olhou para cima e viu que os homens ainda não o tinham
alcançado. Rapidamente ele se levantou e correu até o portão de aço.
Trancado, ele pensou em subir no telhado novamente e pular para a
rua. Mas nesse momento a primeira perna do asiático tocou a caixa de
registro de água que ficava a quase dois metros do chão. Sem opção,
Caliel viu a porta da sala aberta e invadiu a casa, correndo. Estava
vazia, até certo ponto, quando da cozinha, surgiu uma mulher gorda,
com um avental molhado. Ela gritou e correu. Foi quando Caliel
dobrou uma porta à direita e saiu em um quintal interno da casa,
forrado com diversas flores verdes e coloridas.
O cubículo, com mais de dez metros quadrados, tinha seus
muros com mais de quatro metros de altura. Pensando em voltar,
Caliel viu quando o asiático ia passando na frente da porta, correndo e
quando o viu, parou e começou a andar devagar na sua direção. O
louro parou logo em seguida e ficou parado, aguardando.
Com o coração acelerado no limite, Caliel viu uma corrente
pendendo do muro direito. Caía a um metro e meio do chão. Ele
correu e segurou nela com todas as forças, puxando seu corpo para
cima. Ela não cedeu, então ele começou a escalá-la.
Vendo isso, o asiático correu e tentou segurar os pés do ruivo.
Mas Caliel já tinha desenvolvido uma grande parte da corrente. O
olhos-puxados fez o mesmo que ele e começou a escalá-la. Por ser
mais pesado que Caliel, sua desenvoltura foi também inferior.
Logo o ruivo debruçava no muro e jogava seu corpo para o
outro lado, caindo em cima de um monte de caixas de papelão. Ele se
levantou rapidamente e olhou o avanço do asiático que inclusive, era
grande. Ele seguiu a corrente com os olhos e percebeu que ela estava
434
presa a dois robustos parafusos. Única coisa que pensou foi em
começar a chutar a corrente, até ela se quebrar.
Com um chute do ruivo, o asiático que já alcançava o terceiro
metro, sentiu a corrente de aço tremer e se deslocar alguns centímetros
para sua esquerda. Sendo assim, agilizou suas pegadas e começou a
subir mais rápido. Novamente sentiu mais um impacto no aço e esse
veio junto a um estalo.
Caliel tinha estourado um dos parafusos e tomava distância para
acertar o terceiro chute. Quando ia avançar, foi agarrado por trás, por
braços fortes. Era o louro. No momento em que o asiático começou a
segui-lo pela corrente, o louro deu a volta no quintal e subiu,
escalando os portões da casa. Colocando sua adrenalina, juntamente
com sua atenção, nos chutes, Caliel não percebeu seu avanço.
Olhando à frente, o ruivo já via a cabeça do asiático, que abriu
um sorriso, quando o viu naquela situação. Subitamente Caliel sentiu
eletricidade correndo pelas suas veias e uma força extrema surgiu. Foi
quando ele abriu os braços musculosos do louro, com os seus,
parecendo duas alavancas. Um grito surgiu em sua garganta e livre,
avançou contra o asiático, acertando-lhe um chute com a sola do pé,
no peito. A força do golpe o fez virar contra o muro de um metro que
daria no quintal interno da casa. Mas que daquele ponto de vista,
parecia um poço largo, quadrado.
Quando Caliel se virou para o louro e encarou seus olhos, ambos
escutaram quando o corpo do asiático bateu no chão. Nesse momento,
o louro avançou para cima dele com um soco. Caliel viu seu relógio
prateado saindo de baixo de seu terno cinza, quando ele levantou a
mão, refletindo a luz do Sol. Caliel esquivou para baixo, passando por
baixo de seu braço. Em seguida veio outro soco, com a mão esquerda
do louro e este o acertou o abdômen. Imediatamente o ruivo quase pôs
tudo que havia em seu estômago para fora, dobrando o corpo para a
435
frente. Em seguida, recebeu uma joelhada no nariz. Essa o jogou para
trás e já desnorteado, quando bateu as costas no chão, viu tudo rodar e
a nebulosidade tomou conta de si.
As próximas imagens que viu foram entrecortadas. Primeiro o
louro avançou as duas mãos abertas, em direção à sua cabeça. Em
seguida, ele viu o céu azul e as nuvens voando em alguma direção. O
próximo quadro foi um tanto mais angustiante. O asiático caindo ao
seu lado, com os olhos abertos, mortos. Muita água caiu em cima
deles, sem parar. Depois, tudo negro, absoluto, eternamente.

436
DIA 02

Caliel despertou suado. A cama embaixo de suas pernas estava


ensopada. A camiseta regata, branca, grudada no corpo. Seus cabelos
ruivos, agora em um tom mais escuro pelo suor, lambiam sua testa.
Agradeceu por ser apenas um sonho.
Enquanto se despia, ele pegou o celular na mão, quando viu sua
tela piscando com alguma mensagem. O ícone era do Facebook. Mas
não foi isso que fez seu celular cair de sua mão e sim a data que
marcava em sua tela, 12/11. Essa foi a data que foi dormir. Lembrava-
se exatamente de ter pegado o celular na mão antes de dormir e visto a
data 12/11. Como ele podia ter acordado no mesmo dia que dormiu?
Única coisa que o confortava era que o celular era um aparelho
eletrônico e poderia dar problema. Nesse caso, ele ligou a TV e
colocou no noticiário. Dois longos minutos se passaram, até que a data
pulou na tela ao seu canto superior direito. Marcava 12/11. Nesse
momento, sua cabeça começou a formigar e ele se viu meio àqueles
filmes de ficção científica. Era óbvio que sua mente sempre ia longe,
quando se tratava de viajar em sua própria cabeça. Mas aquilo era real
e como ele sairia daquele dia?
Quando ele olhou a tela novamente, entortou a cara, pois outra
informação o fez sentir-se um idiota. Rapidamente ele pegou o celular
na mão e o desbloqueou. O ícone verde, com a silhueta de um
telefone, foi clicado e logo ele acionou as últimas ligações. É, ele se
sentia um completo idiota. Era óbvio que a data seria a mesma, pois
chegou ao hotel por volta das duas horas da manhã e agora estava
acordando ao meio-dia. Pensou que o sonho realista tinha mexido com
a sua cabeça. Subitamente uma imagem pulou na sua mente, apenas
por centésimos de segundos. Isso foi o suficiente para lhe dar uma
enxaqueca que ele chegou a cair no chão. Sua cabeça latejava tão
437
forte, como nunca tinha acontecido em sua vida. Mas foi uma curta
enxaqueca, pois após um minuto, as pulsações começaram a diminuir
de intensidade e a imagem começou a surgir novamente na sua mente.
Mas agora era mais clara e estava parada como uma foto.
Era a imagem de um homem nem bonito e nem feio, branquelo.
Estava com vestes brancas, mas sujas. Seu cabelo era escuro, mas algo
chamou a atenção de Caliel. Eram seus olhos. Azuis, mas não azuis
normais. Tinham um brilho próprio, como se uma constelação vivesse
dentro deles. Por alguns minutos ele pensou sobre aquilo, mas com
certeza devia ser o personagem de algum filme antigo que vira.
Após isso, Caliel pegou sua cafeteira eletrônica e a encheu com
a água da torneira do banheiro. Tirou um pote de sua mala e com seu
conteúdo cheio de pó de café, ele encheu o recipiente da máquina de
café. Após menos de cinco minutos, já tinha sua xícara fumegante em
mãos. Em cima do guarda-roupa antigo, Caliel viu uma pequena pilha
de jornais que pareciam não ser mexidos por ninguém. Nem por
funcionários e nem por hóspedes. Sem TV, ou qualquer meio de
entretenimento, pois seu celular estava carregando, ele pegou um dos
jornais e foi para a sacada, folheá-lo. Aquele era um exemplar do mês
de novembro do ano anterior ao que ele estava.
Uma das matérias de chamada na capa, que ocupava um espaço
menor do que 10 cm de largura e 2 de altura, falava do avanço do
magma do supervulcão de Yellowstone. Lembrou-se que tinha visto
algumas matérias sobre aquele fenômeno há alguns anos e muito se
falou nisso, durante um tempo. Mas como tudo, após longos meses de
medo, o assunto foi sendo coberto por outro assunto de grande
importância e acabou soterrado.
Após se lembrar disso, Caliel olhou para a frente, mas enquanto
pensava, o jornal abaixou um pouco e liberou seu campo de visão à
frente. Da praça, na frente do hotel, dois homens o encaravam.
438
Quando seus olhos se cruzaram, os dois começaram a correr para o
lado oposto ao do ruivo. O que ele conseguiu ver apenas é que tinham
as roupas sujas e rasgadas. Provavelmente mendigos atormentados.
Ele entrou, jogou o jornal na cama, colocou a xícara de café,
com o fundo ainda cheio, no criado mudo e pegou o celular. Faltavam
quase quarenta minutos para Haziel chegar, sendo que tinham
combinado 13:20. Sem pressa, ele foi para o banheiro e depois de
quinze minutos, saiu com a toalha em volta da cintura. Mais vinte
minutos para ele estar pronto, com uma bermuda sport, tênis de cano
baixo e uma camisa de manga curta. Nos próximos minutos, até
Haziel chegar e mandar uma mensagem, ele ficou fuçando no celular,
ainda plugado no carregador.
O louro e o ruivo deixavam o hotel. Haziel tinha belos óculos
escuros, fazendo com que Caliel quisesse pegar os dele. Em alguns
segundos, ele escondia seus olhos azuis, atrás do plástico reforçado
dos óculos. Haziel acionou um botão e depois de um clique, a capota
do carro começou a se abrir, deixando a grande estrela amarela e
ardente à vista.
– Aonde vamos? – indagou o ruivo.
– Você vai ver. – Sorridente, Haziel levantou seus óculos
escuros e pisou no acelerador.
Haziel estacionou em uma rua estreita do centro e quando os
dois saíram do carro, ele apertou o botão do alarme, fazendo a capota
do carro subir e ele se trancar. O louro jogou a cabeça para o lado e o
ruivo o seguiu, por uma viela, suja. A rua era sem saída e ao seu final,
eles entraram em uma porta de aço à esquerda. Precisaram de seis
lances de escada para chegarem ao terceiro andar.
Caliel não conhecia Haziel há muito tempo e com certeza estava
achando aquele lugar muito estranho. Completamente fora dos
padrões que sua família demonstrava ter.
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– O que é esse lugar, cara?
– Espere um pouco que garanto que não se arrependerá! – O
louro olhou para ele e continuou andando, até chegar na frente de uma
das portas que compunham aqueles corredores. Ele bateu três vezes,
com um intervalo curto entre as batidas.
Caliel ficou afastado quase um metro e meio. Haziel o chamou
para mais perto, mas ele disse que estava bem e colocou as mãos no
bolso. Logo após isso, a três trancas foram abertas e um jovem careca,
com não mais de vinte e cinco anos abriu a porta.
– Haziel, brother! O barato já acabou? – Um sorriso cresceu em
sua boca.
– Cê sabe como é né. – Haziel soltou uma piscadela –
Mulher...Mulher... Mulher – e entrou na casa.
Caliel ficou encarando o careca debruçado na porta com os
braços cruzados, quando ele falou, inclinando o queixo:
– E você ruivo... Vai ficar parado aí?
Um frio subiu pelo estômago de Caliel e ele deslizou para dentro
do apartamento, passando pelo careca, rapidamente. Ele parou ao lado
de Haziel, ainda sorridente.
– E aí, qual é a boa, negão? – disse o careca a Haziel, enquanto
ainda fechava a porta.
– Negão? – Caliel sussurrou para Haziel.
– Esse é um bordão dele – respondeu o louro alto. – Então
Misael, preciso de mais quinhentos gramas.
– Se tá mó chaminé hein, mano. Quem diria? – Misael sorriu e
abriu a porta de um armário, tirando três sacolas de dentro. Saindo da
frente, ele deslizou a mão por cima delas e se virou para Haziel. – De
qual delas?
Haziel coçou o queixo e cutucou Caliel, que tinha seus olhos
espantados.
440
– O que acha?
Sentindo-se como um rato em um labirinto sem saída, ele sabia
que a única chance de conseguir o negócio de sua vida, era ao lado
daquele homem. Nesse caso, ele preferiu não ir contra suas vontades e
disse:
– Das três. – O ruivo deu de ombros e sorridente, olhou para
Haziel que o olhou com as sobrancelhas sérias. – Exatamente. Por que
você não pega das três? Creio que cada uma delas deve te dar uma
viagem diferente.
Haziel alargou um grande sorriso nesse momento.
– Boa ideia, Caliel e por que não pensei nisso antes?
– Achei uma ótima ideia – disse Misael, enquanto pegava o
produto das sacolas. – Quanto de cada?
– Trezentos de cada – disse Haziel, apontando os sacos com o
dedo.
– Como eu disse, uma excelente ideia – praguejou Misael.
Haziel tirou um bloco de dinheiro do terno e entregou ao
traficante.
– Aqui tem apenas para quinhentos gramas, pois só vim
preparado para isso.
O careca fechou a cara por alguns segundos e ficou encarando o
louro. Em seguida, abriu o sorriso novamente, entregou-lhe a sacola e
o abraçou.
– Da nada, meu irmão. Mas cê sabe que esse lance tem que ser
pago mesmo amanhã, certo?
Nesse momento, um homem moreno, com a mesma altura de
Haziel, porém com o dobro dos músculos, entrou pela porta, trajando
um terno preto. Sua cara era séria e com certeza, nenhum sorriso sairia
daquele rosto. Misael acrescentou:

441
– Se não, vou ser obrigado a mandar Hekamiah atrás de você
Hahahah... É brincadeira! Apenas pague. Estarei aqui amanhã até as
17:00.

***
No carro, Caliel tinha um sorriso idêntico ao de uma criança
quando acabava de aprontar.
– Cara, o que nós acabamos de fazer?
– Acabamos de comprar ricoxe – disse Haziel, levantando o
saco. Seu sorriso não escondia seu orgulho.
– Eu sei disso. Mas não imaginava que você gostava!
– Não é para mim. É para um cliente.
Caliel respirou fundo nesse momento e limpou a testa com um
lenço branco que pegou no porta-luvas.
– Ufa! Eu pensei que você gostava.
– É! Eu não disse que não gostava – respondeu o louro,
colocando os óculos escuros e engatando a primeira marcha.
Das 14h até as 14:30h, o carro chegou ao seu objetivo – um
prédio residencial com quase trinta andares. Haziel deixou o carro no
estacionamento de visitantes e ambos seguiram para a portaria, com
vidro blindado, filmado. O porteiro falou no interfone, antes que
Haziel apertasse o botão:
– Visitante?
– Sim, apartamento 301, por favor. Diga que Haziel está aqui
embaixo.
– Só um minuto, por favor.
– Obrigado! – Haziel se virou para Caliel.
– Aonde você vai levar agora? – indagou o ruivo.

442
– Espere até chegarmos lá em cima. – O louro apontou com a
cabeça. – Dessa vez, garanto que você vai gostar.
– Mais suspense. – Caliel revirou os olhos.
Nesse momento, o portão abriu com um clique e Haziel
empurrou o aço. Caliel seguiu atrás dele e em menos de dois minutos,
já entravam no elevador. O louro apertou o botão do trigésimo andar,
que inclusive era o último e o elevador começou a se mover
rapidamente.
Um segundo por andar, no máximo e a porta já se abria para um
amplo hall de entrada. O chão de mármore ficava sob um tapete persa
e as paredes eram pintadas de branco. Quadros de paisagens
enfeitavam o lugar. A única porta, robusta, de madeira maciça, pintada
de branco, estava entreaberta. Haziel olhou rápido para Caliel e com
um sorriso, fez um último suspense, antes de abrir a porta.
O ruivo não conseguiu descrever a imagem à frente, sem que
seus olhos brilhassem. Jovens garotas, muito bonitas, desfilavam por
um quintal com dois ambientes. O coberto tinha apenas uma piscina e
parecia aquecida. Três meninas estavam no meio dela conversando.
Quando elas se viraram para encará-los, deu para ver que estavam sem
a parte de cima do biquíni.
– Olá, garotas! – disse Haziel. – Adivinhem o que eu trouxe para
vocês?
As jovens arregalaram os olhos, quando Haziel ergueu o saco
com as drogas.
– Uhuuuuu! – todas gritaram em uníssono.
Haziel apenas sorriu e partiu para o ambiente aberto.
– Gostosoo! – uma delas gritou, enquanto eles se viraram.
Quando Caliel deu de cara com o sol iluminando aquela
paisagem com dezenas de garotas, seu coração quase saltou do peito.
Apenas algumas delas tinham seus biquínis completos. Tudo bem que
443
eram tão pequenos que praticamente dava para se ver tudo. Pelo
menos ainda estavam com eles. Não que isso fosse ruim ou bom. A
piscina com água cristalina, a cascata artificial, o bar como ilha central
e as dezenas de garotas, fizeram Caliel pensar que estava em um dos
seus mais agradáveis sonhos.
– Aladiah! – Haziel chamou um garoto com uns dezessete anos
que se aproximou rapidamente.
– E aí, irmão? Cê tá aqui? – Aladiah coçou a cabeça.
– É, eu estou! O que quero saber é o que você está fazendo aqui?
– A... Poxa!
– Eu o trouxe, Haziel. Deixe o garoto! – Um homem jovem,
envolveu o garoto pelo pescoço e o apertou de brincadeira, até que ele
gritasse de dor. Em seguida, soltou-o, mas continuou a abraçá-lo,
encarando Haziel, com um sorriso. – Você não acha que ele já tem
idade o suficiente para participar das nossas festinhas?
– A mãe dele sabe disso, Daniel?
– A mãe dele não, mas seu pai deu todo o apoio.
Haziel respirou fundo e ficou mudo por alguns segundos.
– Sendo assim, quem sou eu para ir contra o nosso pai? – Haziel
olhou para Aladiah, arqueando as sobrancelhas.
– Às vezes, parece que papai é mais novo do que você.
– Imagino! – O louro riu. – É que não é você que sua mãe
pegará para cristo, falando que minha mãe não me criou direito. Você
sabe o ciúme que ela tem da minha mãe e tudo é motivo para colocar
o nome dela nas coisas. Mas irmãozinho, já que papai deixou, vá lá
pegar uns peitinhos. – Haziel piscou com um dos olhos. – Guarda
isso! – Ele deu a sacola com as drogas para Daniel, quando o meio
irmão se virou.
– Então esse é o famoso Caliel? – Daniel se aproximou dele e
lhe estendeu a mão.
444
Caliel retribuiu o gesto com um sorriso.
– E você é o grande Daniel?!
Daniel olhou para Haziel, ainda segurando a mão de Caliel.
– Você falou de mim para ele?
– Não! – respondeu o louro.
Todos, naquele meio, riram e começaram a conversar. Um
garçom passou oferecendo doses de tequila. Todos eles aceitaram,
inclusive duas louras que se aproximaram e seguraram uma no braço
de Haziel e outra no de Caliel.
– Amei a cor do seu cabelo! – ela disse a Caliel.
O ruivo observou que Haziel já se entretinha, jogando seu
charme de cabelos louros, olhos azuis e corpo atlético, para cima da
outra e respondeu:
– E eu adorei a cor de seus olhos! – Ele nem achou lá tanta coisa
aqueles olhos verdes, mas disse para entrar no clima.
As cinco doses de tequila ficaram prontas e todos seguraram os
copinhos. Alguns deles chuparam o limão antes, o sal depois e depois
a bebida. Outros beberam, depois fizeram isso. Apenas Caliel ficou
segurando o copo e virou a seco, quando todos começaram a acelerá-
lo para beber. Ele soltou quase um rosnado quando sentiu a bebida
descer por sua garganta. Foi quando escutou alguém dizendo: o limão
e o sal!
Com os olhos vermelhos, Caliel levantou a cabeça e os viu em
cima da bandeja. Hesitante e desconfiado, ele os pegou sem acreditar
que curariam aquela sensação. Mas colocando os dois na boca quase
ao mesmo tempo, ele percebeu que a verdade prevalecia e aquilo
resolveu um problema. Mas isso não deixou que outro fosse criado.
Sua boca agora estava muito amarga, com aquele limão com casca
mastigado entre seus dentes. Ele viu outro garçom se aproximando
com cerveja e aproveitando a ocasião, para não ser nojento cuspindo
445
algo, pegou um copo e virou, fazendo com que tudo que estava em sua
boca, descesse com o líquido. Quando tudo terminou, ele respirou
fundo e olhou para a loura ao seu lado. Ela sorriu para ele, estreitou os
olhos e pegou em suas bochechas.
– Você é um fofo!
Após algumas horas, quando a festa já tinha se esvaziado
consideravelmente, Caliel, Haziel e Daniel estavam em uma roda,
cada um com a sua devida parceira. Uma das meninas e Daniel tinham
cigarros acesos. Baralhos estavam distribuídos na mesa, já sujos e
molhados. Subitamente Haziel se levantou.
– Dan, você pode pegar aquilo?
– Só se for agora, primão – disse o homem, levantando-se.
Antes de ir, ele se inclinou para a frente e deu um bitoca em sua
parceira, morena, de olhos azuis.
– É aí, Caliel. Está se divertindo? – indagou Haziel, mantendo-
se de pé.
Com os olhos vermelhos e baixos, Caliel respondeu com a voz
um tanto mole.
– E você tem dúvida? – Ele deu uma cafungada no pescoço de
sua loura.
Em duas dezenas de segundos, Daniel voltou, segurando a
sacola. Ele a entregou para Haziel que a abriu e olhou dentro. Com
uma mão, ele tirou um recipiente de plástico comprido. Mais ou
menos de seu centro, em um ângulo de quarenta e cinco graus, saiu
um funil de aço, preso a um cano fino. O louro o colocou sobre a mesa
branca, com as cartas de baralho. Antes de tirar a sacola menor de
dentro da maior, ele encarou todos na roda com um sorriso. Quando
ele deixou o saco transparente com seu conteúdo à mostra, escutou
gritos e uhuuuus a valer.
– Que é isso, cara? – Aladiah segurou o saco.
446
Haziel puxou de volta para ele.
– Não é pro seu bico. Talvez daqui a um ano. Por enquanto, eu o
deixo assistir. – Haziel alargou o sorriso e disse em som de deboche. –
Talvez você ainda possa ajudar para ninguém fazer besteira.
– O que é que está acontecendo aqui?
Todos olharam espantados na direção da entrada, para o lado
externo da cobertura, onde ficava a piscina.
– Você quer me matar do coração? – Daniel riu alto e correu na
direção de Hariel, dando-lhe um abraço. Ele apontou as cadeiras em
volta da mesa. – Sente-se prima, que você chegou na hora certa. – Em
seguida, ele correu de volta e arrastou uma cadeira para a loura.
Ela sorriu e se aproximou da roda, cumprimentando a todos
apenas com o olhar.
– Como ela é linda! – sussurrou uma das meninas, para a
parceira de Caliel.

Hariel se sentou e meneou a cabeça, soltando uma piscadela


para Daniel.
– Irmão! Como assim, você compra – Hariel olhou a sacola
rapidamente – ricoxe e não me avisa?
Haziel baixou as sobrancelhas e a encarou.
– Eu tentei. Mas acho que você devia estar em uma das suas
“visitas de negócio”. – Ele fez o sinal de aspas com as mãos.
– Ah! Eu estava – disse ela, sem tirar o sorriso dos lábios.
– Ok, ok... Vamos logo botar fogo nisso. – Daniel enfiou a mão
na sacola e pegou um pouco da droga vermelha.
– Espere! – Haziel colocou a mão em cima da dele. – Temos que
fazer todo um ritual.
– Ritual? – Daniel jogou a cabeça para a frente e soltou a droga
na sacola.
447
Haziel deu de ombros.
– Não é bem um ritual. – O louro deixou a sacola na mesa e se
inclinou. – Mas li na internet que algumas regras tinham que ser
seguidas, para não termos problemas.
– Quais são elas?
– Espera aí. Eu tenho um... – Desajeitado, ele enfiou a mão no
bolso e tirou um papel amassado.
Hariel riu em deboche e olhou para o lado. Suas mãos sobre as
coxas. Haziel a encarou e ignorou. Logo acrescentou:
– Regra 1: pelo menos uma pessoa tem que estar sã, para
conduzir os demais.
Nesse momento, todos olharam para Aladiah, que quase caiu da
cadeira. Haziel balançou a cabeça e continuou:
– Regra 2: quem usar a droga, não pode beber álcool pelas
próximas quatro horas. Regra 3 e não menos importante: usar menos
de dez gramas por pessoa em cada sessão. – Haziel mostrou as
palmas. – Acho que nesse caso, podemos ir ao limite, né?!
Algumas pessoas riram.
– Quem vai ser o primeiro? – Haziel procurou alguém com os
olhos e os dele encontraram os de Caliel.
Todo mundo olhou para o ruivo nesse momento. Ele se levantou
abanando as mãos.
– Espera aí. Eu não!
– Ahhhhh. Está com medo de quê? – indagou Haziel.
– Não é medo! É que...
– É que, o quê? – O louro alargou o sorriso.
– Como vai ser isso?
– Eu li que não é nada demais. É uma viagem que vai levá-lo a
conversar com o engenheiro.

448
– Hahah Tá... Com o engenheiro? – Seu tom foi uma oitava mais
alto.
– É só uma brisa. Vai logo! – insistiu Haziel.
– Por que tem que ser eu? – O ruivo levou as mãos à cintura.
– Porque você é o felizardo que descobriu como avançar com o
projeto.
Caliel respirou fundo. Encarou todos na roda o encarando e
disse:
– Tá bom vai. – Em seguida, esticou a mão e ia pegando a droga
amarela.
– Não! – disse Haziel, piscando para ele. – A vermelha.
Ele pegou a vermelha e já conhecendo o objeto comprido de
plástico que Haziel tirou antes da sacola, ele o pegou e colocou a erva
no funil, ligado ao fino cano, no centro do objeto. Daniel esticou o
braço para lhe entregar o isqueiro. Caliel o pegou a ia acendendo o
fogo.
– Espere! – disse Haziel. – Acho melhor você se sentar.
– Boa! – O ruivo soltou uma piscadela e se sentou. Antes de
acender a chama, encarou todo mundo e sorriu. – Vamos lá!
O fogo pegou e dando uma respirada com a boca envolvendo o
recipiente, a droga começou a ser consumida, transformando-se em
um chumaço de brasas. Pelo vidro transparente, deu para ver a fumaça
sendo puxada para dentro e seguindo seu rumo até a boca do ruivo,
desaparecendo e percorrendo sua trajetória, até suas moléculas serem
quebradas e enviadas ao cérebro.
Caliel afastou o recipiente da boca e encarou a todos. Sentia-se
completamente normal. Mas isso não durou mais do que cinco
segundos. Ele viu quando Haziel disse:
– E aí?

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Quando ele tentou responder, seu corpo foi tomado por um
formigamento surpreendente que o paralisou completamente. Depois
disso, ele viu Hariel se levantando e vindo na sua direção, gritando:
– O bongue! Vai cair, segura. – Ela avançou para mais perto
dele. Subitamente asas brancas começaram a crescer em suas costas e
suas vestes ficaram brancas. Assim aconteceu com todos que o
olhavam em uma roda. No tempo em que as asas cresciam, Haziel
falou alguma coisa e correu para outro lado, sumindo de seu campo de
visão.
– Ele está voltando! – disse Daniel, agora sem camiseta e com
grandes asas brancas.
Atrás de Daniel, Caliel pôde ver um cenário catastrófico.
Milhares de criaturas horríveis que pareciam ser apenas de uma raça,
plainavam no ar, enfrentando humanos com asas brancas. Mais abaixo
do ponto em que o ruivo estava, batalhões desses seres, com asas
brancas, enfrentavam mais dos seres escuros e horripilantes.
No meio da gigante batalha, ele viu uma grande esfera branca
pulsante, brilhando inúmeras vezes mais forte do que o Sol. Afastado
duzentos metros da esfera, um grupo diferente chamou a atenção do
anjo. Cinco criaturas grandes queimavam em um fogo que na sua
cabeça surgiu com o nome de “fogo divino”. Ele não sabia o que
significavam aquelas palavras, mas sabia que era algo bom. Muito
bom.
Uma dessas criaturas virou o rosto para ele e
inconfundivelmente ele soube de quem era aquele rosto, meio todo
aquele fogo. Era de Haziel. Nesse momento, sua visão começou a
ficar mais turva do já estava e gritos começaram a soar, cada vez mais
abafados.
– Ele está apagando...
– Caliel...
450
– Façam alguma coisa...
– Estamos tentando...
De repente, ele próprio começou a se ver deitado no chão.
Enquanto sua consciência subia, deixava evidente a imagem dele
estirado em uma rocha que se erguia de um pico rochoso. Asas
brancas, grandes, estavam esticadas como folha de papel molhado.
Mais de dez humanos com asas, alguns que ele já conhecia,
rodeavam-no. Um reflexo estranho, com o formato de uma cúpula,
mostrou-se em volta deles quando o raio do Sol bateu naquele ponto.
Enquanto subia, pôde ver à sua direita um montante de humanos com
asas. Todos sussurravam palavras em tom baixo, olhando para as
nuvens. Quanto mais visão ganhava, maior era a destruição que via.
Não era só aquele ponto, mas até onde seus olhos alcançavam, a
destruição era iminente.
Ele começou a subir tão rápido que rapidamente tudo abaixo foi
se transformando em um mapa muito real. As nuvens começaram a
passar pelo seu lado a toda velocidade. Medo? O que era medo? O Sol
brilhava forte no horizonte. Sua consciência parecia ganhar velocidade
a cada segundo e depois de pouco tempo, ele já começou a ver a curva
do planeta. Foi aí que ele descobriu o que era medo. Como se fosse
sugado para baixo, sentiu uma força magnífica o puxando de volta.
Subitamente seus olhos encontraram a terra marrom e ele avançou,
penetrando nela, encontrando uma escuridão total. Por um breve
momento, sua consciência parou naquele lugar e como um raio, um
rosto gigante, com sorriso maligno de uma japonesa, surgiu e
desapareceu da sua frente.

451
DIA 03

Caliel acordou entre duas espreguiçadeiras, dentro dos limites da


sombra de um guarda-sol. Na piscina, viu uma bola colorida e
algumas partes de cima de biquínis boiando. Foi nesse momento que
ele percebeu que estava completamente nu. Rapidamente puxou um
tecido azul que repousava sobre uma das espreguiçadeiras e se cobriu,
enrolando-o na cintura. Com o canto do olho, viu a imagem de Haziel
ainda dormindo, encostado com a cabeça em um pilar que segurava o
teto da churrasqueira. Perto de Haziel, estava Daniel. Quando Caliel
se aproximou dele, viu que seu rosto estava maquiado e no peito, ele
tinha um biquíni rosa.
Olhando o sol, imaginou que estavam nas primeiras horas da
manhã, pois ele tinha acabado de surgir. Quando foi andar até Haziel,
Caliel tropeçou em uma espreguiçadeira e caiu, fazendo um tremendo
barulho.
Haziel deu um pulo, colocando-se em pé como um gato e
observando à sua volta. Quase como Caliel, estava nu, mas no pé tinha
chinelos. Ele virou o rosto e encontrou Caliel se levantando. Ele se
aproximou do ruivo e quando chegou perto dele, abraçou-o de lado,
dando um puxão em seu corpo.
– Você não é fácil não hein, ruivo!
Caliel sorriu sem graça. Haziel o soltou e se espreguiçou.
– Cara! Quanto tempo nós dormimos?
– Acho que pouco, pois o Sol... – Caliel ia apontando o Sol,
quando percebeu que ao invés de surgir, ele estava se escondendo.
Eles não estavam nas primeiras horas da manhã e sim, nas últimas da
tarde.
– É, eu sei! Também estou assim – disse Haziel. – Você é muito
louco, cara. Que viagem foi aquela?
452
– Eu não me lembro de nada!
– Ainda bem – o louro riu alto. – Você espantou quase todo
mundo daqui. Meu irmãozinho até desistiu de fazer a primeira viagem
da vida dele e pela sua cara, acho que ele nunca mais vai querer saber
disso. Por um lado, isso é bom né. – Haziel olhava o chão.
– Você não quer colocar uma roupa não? – indagou Caliel.
– Estou bem assim! – Haziel abriu os braços – Essa brisa.
– Você não quer colocar uma roupa não, cara? – Daniel
apareceu coçando os olhos, borrando ainda mais a sua maquiagem.
Haziel olhou para ele e imediatamente começou a rir.
– Se for que nem a sua, com certeza não! – disse entre um riso e
outro.
Foi nesse momento que Daniel reparou pela primeira vez em seu
biquíni rosa, acompanhado pela calcinha fio dental branca. Ele deu de
ombros e saiu arrastando seus chinelos, tirando o biquíni do meio das
nádegas.
Subitamente Haziel deu um pulo.
– Cara, que horas são?
– Acho que umas seis – respondeu Caliel.
– Puta, que merda! – Haziel correu, pegou sua calça que estava
jogada na pia da churrasqueira e começou a colocá-la apressadamente.
– O que foi? – Caliel perguntou.
– Misael... A droga... Cinco horas, lembra?
– Isso é grave?
– Você não faz ideia!
Rapidamente Caliel também se trocou e sem se despedirem de
Daniel, saíram correndo.
Haziel quase não percebeu, quando pegaram o elevador e
passaram pelos guardas. Sua mente estava a mil quilômetros por hora

453
e a única coisa que passava nela era a possibilidade de Misael ir até
sua casa cobrar o dinheiro.
– Você está bem para dirigir? – Caliel o assustou com a
pergunta, pois nesse momento já estavam na frente do carro.
Caliel nem precisou da resposta ao ver o olhar de Haziel. Então
ele pediu e pegou a chave dele. Apertando o botão do alarme, as
portas se abriram e eles entraram.
– Para onde?
– Para a minha casa!

***
Caliel e Haziel já tinham entrado na rua da casa de Yesalel e
rumaram para ela. No muro alto, ao lado direito da casa, uma figura se
encostava e sua cara não estava nem um pouco amigável.
– Puta merda. É Misael! – disse Haziel.
– Você acha que ele vai pesar por causa de uma hora e meia?
– Não! Eu acho que ele vai pesar porque eu não tenho a grana.
Subitamente, Caliel pisou no freio e o carro parou com uma
derrapada.
– Como assim, você não tem a grana? – perguntou Caliel.
– Pronto, agora você chamou a atenção dele! – Haziel se
encolheu o máximo que pode no banco, enquanto via Misael se
aproximar.
– Ah loirão... Então você está aí! – Misael debruçou no carro e
enfiou a cabeça pela janela. – Você não acha que se esqueceu de algo?

454
Haziel ficou mudo por um momento. Em seguida, puxou a
maçaneta da porta e Misael se afastou para ele sair.
– Sobre isso! – disse o louro.
– Sobre isso o quê?
– Tive alguns problemas e não consegui sua grana para hoje...
O rosto de Misael começou a se embrutecer, imediatamente.
– Eu não vou nem deixar você acabar de se explicar. Eu não
tenho nada a ver com isso! Preciso dessa grana hoje, porque se não
quem terá problemas, serei eu.
– Mas Misael... Eu não tenho como consegui-la agora. – Haziel
mostrou as palmas.
Misael deu de ombros e respondeu:
– Ok! Então eu te dou meia-hora. – O careca nem esperou
Haziel se manifestar e atravessou a rua, entrando em seu conversível.
Haziel enfiou a cabeça dentro do carro e encarou Caliel, que
tinha seu rosto assustado.
– E agora? – indagou o ruivo.
– E agora? Fodeu! – Haziel olhou para um lado por um instante.
– Seu celular está com bateria?
Sem questionar, Caliel tirou o aparelho do bolso, desbloqueou e
o entregou a Haziel.
– Obrigado! – respondeu o louro, inclinando o corpo e deixando
apenas a região de sua barriga à vista.
– Daniel? Pensei que você estaria dormindo... Haha. Desculpa!
Putz, cara, preciso de um favorzão. O cara das drogas está na porta da
minha casa e eu não tenho a grana para pagá-lo. – Uma breve pausa,
455
enquanto Daniel falava algo do outro lado da linha. – Eu sei, mas foi o
calor do momento. Foi culpa também do ruivo. – Nesse momento, ele
abaixou e com um sorriso arteiro, encarou Caliel. Daniel falou mais
alguma coisa e depois Haziel respondeu. – É, estou brincando... Doze
conto.
Nesse momento, Caliel percebeu que o tom da voz de Daniel
aumentou consideravelmente, pois ele começou a escutar os gritos do
outro lado da linha. Haziel abaixou novamente, tampando a entrada de
voz no telefone (Daniel não parava de gritar do outro lado). Com um
sorriso sem graça no rosto, disse:
– Eu acho que ele não vai ajudar!
Caliel arregalou os olhos e indagou:
– O que a gente vai fazer?
Haziel desligou o telefone, enquanto Daniel ainda gritava do
outro lado da linha.
– Acho que agora, nossa única alternativa é meu pai!
– Como assim? Pirou?
– Onde você sugere que consigamos essa grana, agora?
Caliel o encarou, mudo. Haziel acrescentou:
– Tenho que falar com ele.
–Você é filho dele, tranquilo. Mas eu vou rodar grandão!
– Imagina! Ele precisa de você. – Haziel olhou seu relógio de
pulso. – Tem que ser e tem que ser agora. Já se passaram dez minutos.
Nesse momento, o coração dos dois acelerou, quando eles viram
o Dodge preto dobrando a esquina, com o som no talo. Como já

456
imaginado, ele estacionou atrás do carro de Misael. As quatro portas
se abriram e homens começaram a brotar de dentro.
– Você acha que temos outra opção? – indagou Haziel,
encarando o grupo de homens ao longe.
– Vai logo – disse Caliel.
Ele ficou no carro, enquanto Haziel correu para dentro da casa.
Encarou os homens com um sorriso frouxo, de dentro do carro. Nesse
momento, ele percebeu que sua mão ainda estava no volante e a
soltou, envergonhado.
Encostados no grande carro preto, estavam Misael e quatro
recém-chegados. Um deles era o brutamontes que Caliel já tinha visto
no dia anterior, quando compravam as drogas. O tal de Hekamiah. Ao
lado dele, tinha um louro alto. Ao lado do louro, um negro baixo, mas
troncudo e por último o asiático de cabelos compridos. Aquele
asiático não lhe era estranho.
Caliel começou a batucar no volante e a cantarolar para ele
próprio. Evitava ao máximo olhar para aqueles homens assustadores.
O tempo não passava. Olhando no relógio do carro, viu que apenas
três minutos tinham se passado, desde a partida de Haziel. Olhando
rapidamente para o grupo de homens, ele percebeu que nenhum deles
tirava os olhos dele.
Misael começou a se aproximar do carro e em poucos instantes
já debruçava na janela. Caliel evitou olhar para ele até esse momento.
O traficante enfiou a cabeça dentro do carro, fazendo com que Caliel
afastasse seu corpo da porta. O olhar daquele homem, naquele
momento, era tenebroso.
– Já faz seis minutos que seu amigo saiu daqui, como uma
gazelinha. Será que ele te abandonou? – Misael demonstrou um
sorriso de deboche. – Nesse caso, pelo menos eu tenho você.

457
Nesse momento, o portão de aço começou a se mover e só
quando ele estava completamente aberto, três figuras passaram por
ele. Na frente, apareceu Yesalel, mancando com uma das pernas e
segurando sua bengala, firmemente. Atrás dele, surgiu um homem
com mais de dois metros de altura. Seus cabelos eram negros e
grandes. Uma mecha prateada por falta de pigmentação saía de sua
franja. Seus olhos eram de um azul tão claro que pareciam prateados.
Alguns metros atrás dele, surgiu Haziel, um pouco recolhido. Ele veio
direto para Caliel.
Quando Misael, que nesse momento se recostava no carro que
Caliel dirigia, viu Yesalel e o grandalhão indo de encontro aos seus
homens, ele atravessou a rua.
Haziel entrou pela porta do passageiro e disse, enquanto
vislumbrava o encontro dos dois grupos:
– Vamos ver como Misael se sairá com meu pai e Bariel.
– Quem é Bariel? – indagou Caliel.
Haziel riu um pouco, antes de responder:
– Eu não posso dizer que ele é segurança do meu pai, porque ele
já passou dessa fase faz tempo. Mas posso dizer que ele é um bom
amigo, além de ser um excelente lutador.
– Mas o que ele poderá fazer contra armas? Porque não acho que
esses caras estão para brincadeira.
– Você verá!
Eles ficaram observando e viram quando Yesalel se aproximou
do grupo de homens e parou em suas frentes, apoiando os dois braços
na bengala. Ele disse algo e em seguida Misael deu dois passos para se
aproximar dele. Yesalel tirou um envelope do bolso, entregou a
Misael e cochichou algo em sua orelha. Em seguida, Yesalel se virou,
olhou para Bariel, que tinha ficado logo atrás dele e começou a andar
458
na direção contrária. Bariel seguiu atrás dele. Misael ficou com a boca
aberta e depois essa cara se fechou, transformando-se em uma feição
evidente de raiva.
Dez metros caminhados, quando Yesalel passava pelo carro que
se encontravam Haziel e Caliel, ele encarou o louro nos olhos e disse:
– Para casa. Agora!
Haziel respirou fundo e encarou Caliel nos olhos, antes de abrir
a porta do carro e começar a sair. Foi quando eles escutaram:
– Você também. – Yesalel encarava Caliel seriamente.
Caliel também ia saindo do carro, quando Haziel voltou para dentro.
– Entra com o carro – disse o louro.
Caliel fechou a porta e ligou o motor. Colocou na primeira
marcha e embicou na entrada. Ainda bem! Tudo estava resolvido –
pensou ele. Mas ao pensar nisso, não reparou na cara de Misael e nem
imaginava o que se passava em sua cabeça. Quando eles atravessaram
o portão da casa, Misael deu a volta em seu carro, ligou o motor e
partiu. O grupo de homens seguiu atrás dele, com um deles
conduzindo o Dodge.

***
Dentro da grande casa, a atmosfera estava pesada, envolvida
pelos gritos de Yesalel para Haziel.
– Você tem ciência do quão grave foi sua atitude, Haziel? Se a
mídia fica sabendo de uma coisa dessas, nossa empresa e toda a nossa
vida pode ir para o ralo. Eu não posso te deixar de castigo, porque
você já é um homem. Mas eu posso te dar umas boas porradas, pois

459
um homem de 28 anos não toma essas atitudes que você tem tomado.
E sua irmã tem algo a ver com isso?
– Não! Ela nem imagina que isso aconteceu. – Haziel cruzou
rapidamente seu olhar com o de Caliel nesse momento.
Bariel se mexeu apenas para alongar a coluna, no outro lado da
sala. Yesalel ficou encarando Haziel por quase um minuto, antes de
dizer:
– Você vai tirar umas férias obrigadas, da empresa.
Haziel levantou a cabeça e encarou o pai com os olhos
arregalados. Yesalel acrescentou:
– Terá um mês para pensar no que fez.
– Um mês? Poxa...
– Você quer um ano?
– Não, eu fico com um mês! – disse Haziel, levantando-se e
saindo da sala.
Nesse momento, o coração de Caliel acelerou e quase saiu pela
boca, quando Yesalel se virou para ele, Caliel disse:
– Peço desculpas por isso, senhor!
– Não precisa – respondeu Yesalel. – Conheço bem, meu filho, e
melhor, conheço vocês, jovens. – Ele se aproximou do sofá e se
sentou, chamando Caliel para se sentar.
Enquanto o ruivo se aproximava do confortável sofá de couro,
escutou Yesalel dizer:
– Eu já fui jovem um dia e se estivesse no seu lugar, prestes a
fechar um grande negócio, faria a mesma coisa. Como dizer não ao
meu futuro sócio? – Yesalel viu Caliel se sentando.

460
– Senhor, estou surpreso! Sinceramente, não esperava por essa.
No mínimo, achei que o senhor me expulsaria daqui, educadamente, é
claro.
Yesalel abaixou a cabeça e soltou uma risada.
– Isso é porque você não me conhece, Caliel. Não aqui. –
Yesalel ficou sério de uma hora para a outra e com uma brisa surgida
do nada, a atmosfera do ambiente mudou. – Você não é quem pensa
ser. Isso não é real.
Caliel olhou a garrafa de bebida quase vazia. Yesalel a olhou
com um sorriso e disse:
– Fique tranquilo! Eu não estou bêbado.
Mais uma brisa e as luzes voltaram ao seu verdadeiro vigor.
– Do que o senhor está falando? – indagou o ruivo.
Yesalel jogou a cabeça para trás, confuso. Caliel acrescentou:
– O que o senhor quer dizer com: eu não sei quem sou?
– Do que você está falando? – Yesalel demonstrou ainda mais
confusão.
Nesse momento, na janela, por trás da cortina que dava na rua
escura, eles vislumbraram um clarão, seguida do barulho de uma
explosão. Yesalel pulou do sofá e por um breve momento, pareceu ter
a agilidade de uma pessoa normal e não de um manco. Ele firmou a
bengala no chão e começou a caminhar o mais rápido que pode, na
direção da porta. Nesse momento, Bariel já o tinha alcançado e andava
ao seu lado. Caliel o seguiu, alguns metros afastado. Logo atrás deles,
Haziel chegou correndo.
– O que foi isso? – ele perguntou, enquanto corria pelo corredor,
para se aproximar dos outros dois.

461
– Eu não sei, filho. – Yesalel destrancou a fechadura da porta e
saiu para o quintal, junto com Bariel.
Caliel e Haziel seguiram atrás deles. Todos dobraram para o
quintal mais estreito que daria na rua e começaram a caminhar, como
um bando de lobos ferozes.
Quando chegaram ao portão principal, vislumbraram uma
pequena cena de destruição. Com aço retorcido. Fogueiras ardentes,
queimando aqui e ali. No chão, uma pequena cratera se abriu embaixo
da explosão.
Todos estavam surpresos e boquiabertos com a imagem.
Ficaram ali por um pouco mais de um minuto, quando Bariel percebeu
um movimento e quando olhou, o reflexo da Lua resplandeceu no
metal da arma. Ele gritou: abaixem-se. A arma disparou uma rajada
longa, arrancando estilhaços da madeira das árvores, no jardim da
mansão. Haziel e Caliel pularam cada um para um lado. Bariel
segurou Yesalel e os dois caíram juntos na grama.
Fora da casa, um carro cantou pneu e saiu em fuga daquele
local. Bariel se levantou rapidamente, correu até Haziel.
– Cuide de seu pai – disse ele. Depois correu e pulou em sua
moto, dando partida e empinando na direção dos bandidos.
Cuide de seu pai?– pensou Haziel.
– Não pode ser! – Ele se levantou como um felino e
praticamente se jogou para perto do pai. Sangue. Ele viu muito
sangue. Seu pai se mexeu. Estava vivo. – Pai?
– Filho? – tosse agonizante.
Haziel debruçou quase em cima de Yesalel.
– Não fale nada. Nós vamos te levar para um hospital. – O
desespero na voz de Haziel era aterrorizante.

462
Caliel ficou de canto, assistindo a um filho desesperado,
esperançoso em salvar a vida do pai. Mas ele não era da família. Seu
coração já tinha se tomado pelo ardor da verdade.
– Papai, fica comigo?! – Haziel gritou em lágrimas.
Yesalel começou a se mexer novamente. Sangue escorreu de sua
boca e com uma última tentativa de fazer algo, ele olhou para Caliel
com seus olhos buscando alguma imagem.
– Tente apenas se lembrar. – Ele virou a cabeça para Haziel. –
Eu te amo filho!
Yesalel morreu nos braços de Haziel. Subitamente, o louro
soltou um grito tão alto que deve ter acordado toda a vizinhança.
Caliel viu algo em seus olhos que pensou ser imaginação. Nos fundos
dos olhos de Haziel, começavam a queimar duas pequenas chamas.
Bariel chegou nesse momento e pulou da moto. Seu motor ficou
ligado. Segurando o ombro, aproximou-se do pai e do filho. Seus
olhos penetraram o corpo moribundo de Yesalel e um brilho de
angústia surgiu.
– Você está ferido – disse Caliel, olhando o ombro de Bariel de
perto.
– Não foi nada. Pegou de raspão. – Bariel se agachou ao lado de
Haziel e o abraçou, envolvendo o abdômen do rapaz com seu braço.
Em seguida, ele o puxou para cima. Haziel fez força para se manter
onde estava. Mas Bariel fez ainda mais força e o colocou de pé,
envolvendo-o em um abraço.
Nos braços de Bariel, Haziel deixou que suas lágrimas lavassem
seu rosto e escorressem para sua roupa, molhando juntamente as
vestes de Bariel.
– Você sabe pilotar uma moto? – Bariel perguntou para Caliel,
com Haziel ainda envolvido em seus braços.
463
– Acho que sei. Meu pai já me mostrou como trocar as marchas
uma vez, quando eu tinha 16...
– Ótimo! – Bariel o cortou. – Vá para o seu hotel e aguarde
minha ligação.
– Você tem o meu númer...
– Tenho. Agora vá, rápido.
Caliel correu para a moto, que já estava ligada e pulou em cima
dela. Ficou um pouco confuso com a embreagem na mão, mas sem
perder tempo, engatou a primeira marcha. Na saída a moto morreu.
Ele colocou em ponto morto, ligou-a e fez tudo novamente. Dessa vez
ele saiu e observou Bariel entrando na casa quase carregando Haziel.
Provavelmente ele voltaria para buscar o corpo de Yesalel, quando
deixasse Haziel em segurança.
Mesmo conduzindo a moto com cautela, Caliel atravessou o
trecho até seu hotel em apenas dez minutos. Estacionou o veículo de
qualquer jeito e começou a subir as escadas, correndo. Chegando em
seu andar, ele avistou, no parapeito do corredor, dois homens o
observando da praça. Provavelmente eles eram os mesmos vultos que
ele vira há quase dois dias, mas agora estavam embaixo da luz e era
possível ver suas aparências. Um era branquelo e o outro tinha a pele
marrom. Dessa vez eles não correram e Caliel considerou afrontá-los.
O medo o impediu e ele seguiu para o quarto.
Rapidamente ele destrancou a porta e entrou. Apenas um minuto
depois, três batidas na porta. O desespero tomou conta de si e ele
começou a olhar para todos os lados, querendo se refugiar. O único
lugar possível era a janela ao lado da porta que inclusive, foi por onde
ele viu aquele homem de terno preto. Ele parou para pensar e deduziu
que se aquele homem queria pegá-lo, ele não bateria na porta. Nesse
caso, ele poderia e devia ser um mandado de Bariel. Caliel se
aproximou da porta, hesitou por um momento e em seguida, abriu-a.

464
Do outro lado da porta, um homem asiático, na casa dos
cinquenta anos, abriu um sorriso que Caliel nunca tinha visto. Não
soube por que, mas se sentiu muito bem naquele momento e não teve
dúvidas em pedir para que ele entrasse. O homem meneou a cabeça e
entrou no quarto. Caliel fechou a porta e o encarou.
– Graças a Deus! – disse o asiático.
Caliel fez uma cara confusa nesse momento. Em seguida
indagou:
– Eu te conheço?
– Podemos dizer que sim. Como eu já esperava, você não se
lembra de nada! O asiático mordeu os lábios e olhou para o chão.
– Meu nome é Obadiah. Isso o faz se lembrar de algo?
Caliel pensou por um momento e logo soube que não o
conhecia. Mas de uma coisa ele sabia. Sentia-se muito bem ao seu
lado.
– Não! Eu não me lembro de nada.
– Não tem problema. Vamos começar do início. Você é um
garoto inteligente e tenho certeza de que compreenderá tudo.
Caliel já tinha avaliado aquele homem como um sábio, apenas
pela sua postura e forma de falar. Por algum motivo ele se sentia
protegido ao seu lado. Não porque ele era alto e forte. Mas por outro
motivo, o qual ainda não tinha identificado. Ele lhe queria perguntar
um monte de coisas, mas sabia que se apenas escutasse, teria suas
respostas.
– Caliel, quando eu digo o nome Aron, você se lembra de algo?
– Sim! – respondeu o ruivo, com um sorriso. – Eu tive um
cachorro com esse nome. Que saudades de Aron! Nunca vi um

465
cachorro tão bobo. – Caliel olhava para cima, enquanto se lembrava de
seu labrador arteiro.
Obadiah riu.
– Certo! A resposta não foi ruim. Ainda mais pelo fato de você
sentir saudades dele.
– Estou confuso! Do que se trata isso? – Caliel coçou a cabeça.
– Primeiramente, vamos começar com uma história – começou
Obadiah. – Um dia, o criador de tudo teve uma ideia. Com isso, ele
gerou os arcanjos. Depois o universo. Em alguns planetas desse
imenso cosmos recém-criado, ele decidiu que teriam vida. Algumas
inteligentes, outras não. Em um determinado planeta, ele investia na
criação de sua mais frágil obra e logo soube que teria que trabalhar
com passos grandes, até chegar a ela. O primeiro destes passos, foi a
criação de uma raça titulada de Anjos. Estes que teriam características
dos humanos, mas eles eram mais hábeis e fortes. Todos esses anjos
foram criados com um elemento no espírito, chamado de Zelado. Esse
elemento faria jus às suas missões que seria conduzir a raça humana a
se proliferar. Infelizmente, em um terço desses anjos foi despertado
algo que até então não existia. O ciúme. Todos eles sentiram ciúme de
seu criador e começaram a achar que eram mais do que apenas
zeladores, para que uma nova raça tivesse seu êxito. Inesperadamente,
um dos arcanjos, os primogênitos, saiu de sua morada e abandonou o
Céu que o criador tinha feito para viver com eles. Seu nome era
Lúcifer. A notícia se espalhou rapidamente e mesmo sem querer, ou
saber disso na época, Lúcifer deu o que alguns dos anjos ciumentos
queriam. Um estopim. Com isso, eles tiveram a coragem de se rebelar
contra seu criador e seus irmãos. Quem não ficasse ao lado deles, seria
exterminado e assim foi, até o Criador dar aos arcanjos o poder para
dividir estes anjos em castas. Os serafins. Os guerreiros. Os
guardadores. As dominações. As potências. As virtudes. Alguns
poucos anjos ainda se mantiveram apenas como anjos. As maiores
castas, em números, foram a dos guerreiros, dominações e
466
guardadores. Os guerreiros tiveram a missão de lutar contra os
revolucionários e com a ajuda dos querubins, os quatro guardadores
do trono do Criador, eles foram atirados ao Sheol. Lá eles criaram um
reino que hoje se chama inferno. Como planejador, o Criador
concebeu a raça humana. Mas esse não foi o final. Os antes angelicais,
depois infernais, tendo seus corpos deformados na queda, envolvidos
por fogo ardente, tiveram sua única missão de deter a cria de Deus.
Com várias investidas...
– Desculpe... Obadiah, correto? Só me deixa ver se entendi. Esse
tal Deus é o criador?
– Exatamente! – respondeu o homem, sorridente.
– Obrigado. Pode continuar, por favor.
– Pois não! – O asiático meneou a cabeça e continuou: – Depois
de várias tentativas de extinguir a raça humana, com o objetivo de
mostrar ao Criador que os humanos foram um erro, os infernais foram
soterrados no mundo obscuro e proibidos de pisar no mundo dos
homens. Com ajuda dos arcanjos, utilizando magia celestial para
manter a barreira intacta, raramente um deles conseguia sair por
alguma brecha. Mas isso era inevitável e percebendo isso, os humanos
mais importantes para a procriação da raça foram abençoados com a
graça de um guardador, para ajudá-los e protegê-los. Um desses
guardadores evoluiu muito com o tempo, guardando, de pessoas
normais até Reis e faraós. Como em tudo, existe o nascimento, a
evolução e a morte. Não foi diferente para essa raça, que como escrito
no livro da vida, também teria o seu apocalipse. Chegou a hora deste
guardador proteger seu último humano. Essa tarefa foi tão bem feita
que ele recebeu a chama dos querubins e acabou sendo gerado como o
primeiro de uma nova raça. Meio guardador e meio guerreiro. O
guardador dos tronos.
– Obadiah, desculpe! Eu me perdi. Quem são esses tronos? E o
livro da vida?

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– Caliel, nós não temos muito tempo. Vou responder essas
perguntas. Mas saiba que algumas coisas são mais importantes do que
outras e vou focar nelas. Respondendo sua pergunta, os tronos são
guardadores mais evoluídos que não lidam diretamente com os
humanos. O livro da vida é simplesmente um livro que contém toda a
história da raça humana. Voltando, a última tentativa do inferno de
extinguir a raça humana foi a mais poderosa até hoje e a primeira
batalha foi vencida pelo Céu. Após isso, o inferno concebeu os
cavaleiros do apocalipse e um deles está tendo acesso a mente deste
guardador. Ele está recluso em mundo dentro da própria mente,
vivendo alguém que não é ele. Agora a pergunta Caliel. O que você
acha disso?
Caliel respirou fundo. Seus olhos não piscavam. Ele ficou mudo
por um momento.
– Eu, sinceramente, achei um ótimo roteiro. É claro que existem
algumas pontas soltas. Mas é fácil corrigi-las. Nada que uns dois ou
três filmes não resolvam.
– Como eu queria que Auriel estivesse aqui! – disse Obadiah.
– Conheço alguém com o nome parecido. Essa Auriel trabalha
com você em cinema?
O sentimento de decepção de Obadiah foi grande, mas ele não
deixou transparecer.
– Caliel, vou tentar algo diferente.
– Antes que você tente algo. Posso saber do que se trata isso?
Obadiah foi muito rápido e respondeu:
– Você já sabe. Estamos falando de um roteiro. – Obadiah soltou
uma piscadela e retomou: – Me responda uma pergunta: você
tem a memória de algo de sua infância?

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Caliel riu alto.
– É claro! Me lembro de muitas coisas.
– Me conte a sua memória mais antiga.
Caliel colocou o dedo indicador nos lábios e olhou para cima,
pensativo. Demorou um pouco para responder:
– Creio que se trata de minha cachorra. Lembro-me apenas de
colocá-la em pé no sofá e de não a deixar voltar à sua posição original.
Ela ficava bonitinha naquela posição. Uma linda cocker caramelo.
– Você lembra o nome dela?
– É claro! Pitula.
– Certo! Conte-me a sua segunda memória mais antiga.
– Desculpe, mas em que isso é relevante para o roteiro? – Caliel
colocou o calcanhar sobre a outra perna.
– Posso te dizer que tudo que falamos aqui é relevante para o
roteiro. Agora me conte a sua segunda memória mais antiga.
– Lembro-me do meu pai chegando em casa e colocando a
maleta preta em cima da mesa. Depois afrouxando o nó da gravata.
– Você se lembra o nome do seu pai?
– Com certeza! Gregório.
– Perfeito! Fale-me sobre uma lembrança que tem com o seu
pai, após os seus dezoitos anos.
– Eu não tenho! Infelizmente ele faleceu junto à minha mãe,
quando eu tinha essa idade.
– Como eu suspeitava! – Obadiah remexeu os olhos.
– Suspeitava o quê? Que meus pais faleceram?
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– Não! – Obadiah fez uma grande pausa, pois o que iria falar em
seguida poderia mudar a atmosfera do lugar. – Eu suspeitava de que
você estava vivendo a memória de outra pessoa.
Caliel ficou com a boca aberta, encarando Obadiah. Seus
cotovelos sobrepunham suas coxas e sua coluna estava curvada.
– Nós ainda estamos falando do roteiro?
– Não, Caliel! Agora estamos falando da vida real.
– Ok! Essa conversa está ficando estranha. – O ruivo se
levantou. – Eu tenho algumas coisas para fazer. Foi um prazer
conhecê-lo.
Obadiah encarou Caliel, enquanto ele se aproximava dele para
lhe estender a mão. Obadiah retribuiu o gesto e se levantou da cadeira,
segurando a mão de Caliel. Os dois homens andaram até a porta e
Caliel a destrancou, puxando-a. Obadiah deu um passo para o lado de
fora e meneou a cabeça. Caliel acenou e ia fechando a porta com um
sorriso inibido. Obadiah colocou a mão na porta e indagou:
– Posso te fazer apenas mais duas perguntas? Prometo que não
demora mais do que dez segundos.
Caliel abriu a porta novamente e ficou na passagem da porta,
com os braços cruzados. Obadiah entendeu isso como um sim.
– Quantos anos você tem?
– Trinta e quatro.
– Conte-me uma memória sua, de depois dos trinta.
– Fácil! – Caliel estendeu a mão para começar a contar nos
dedos, mas as memórias custaram para vir. Ele forçou um pouco.
Coçou a cabeça. – Ok! Isso é estranho!

470
Obadiah ficou apenas o encarando com um sorriso, dizendo “te
falei!”. Caliel acrescentou:
– Tive um trauma nas últimas horas e com certeza essa é a
explicação. Perdi a memória recente. – Sua pele estava um pouco mais
rosada pelo nervoso.
– Memória recente, Caliel? De quatro anos para cá?
– Tá bom! O que você quer de verdade? – indagou o ruivo,
impaciente.
– Te mostrar a verdade.
– Essa é a verdade. – Caliel revirou os olhos e começou a
beliscar o antebraço efusivamente. – Você não está vendo? Agora por
favor, preciso que você vá embora e me deixe em paz.
– Eu irei. Mas preciso que você me prometa que se lembrar de
algo, vai entrar em contato comigo. – Obadiah lhe entregou um cartão.
Caliel o pegou, agradeceu, prometeu, com desdém, e fechou a
porta na cara do homem. Em seguida, o ruivo entrou e olhou a hora no
celular. Eram 23:59.

471
Dia 04

Caliel se sentou na cama, ofegante. Tentava se lembrar de sua


vida em seus últimos quatro anos, mas estes não lhe vinham à cabeça.
Ele não quis dar o braço a torcer, mas era óbvio que estava
acontecendo algo muito estranho. No mínimo, ele tinha perdido a
memória. Mas por quê? Para falar a verdade, ele não ficou
traumatizado com nada. Apenas medo. Isso ele sentiu muito. Mas isso
também não era o suficiente para arrancar a memória de quatro anos
de uma pessoa.
Bariel lhe pediu para ficar no quarto do hotel, até segundas
ordens. Mas depois do papo que considerou o mais estanho de sua
vida inteira, ele ficou impaciente. Com isso, pegou a chave do hotel
no criado mudo, saiu do quarto, trancando-o e começou a andar pelo
corredor, rumo à escada. De cara, ele percebeu que os mesmos dois
homens de duas horas atrás ainda o encaravam da praça. Nervoso, ele
decidiu confrontá-los.
Caliel começou a descer as escadas em direção à calçada.
Mesmo vendo isso, os dois homens se mantiveram no lugar e
continuaram o encarando. O ruivo começou a se aproximar deles. O
rosto mostrava fúria.
– Vocês não têm o que fazer? O que eu tenho que vocês não
param de me olhar?
Não! – respondeu o branquelo. – Você precisa se lembrar.
– Que merda! – Caliel esfregou a cabeça enquanto parava na
frente deles. – Mais dois loucos? Abriram a porta do hospício?
– Queríamos que fosse isso – disse o homem com a pele
marrom, descendente de indiano.
– Quem são vocês?
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– Nós somos você, Caliel – respondeu o branquelo.
– Que resposta ridícula. Quem são vocês?
– Para ser mais claro, podemos dizer que somos sua mente
falando com você. Isso é claro para você, mas um poder maior não o
está deixando entender. Você sabe que não poderíamos estar
verdadeiramente aqui, não como Obadiah, pois somos humanos.
Dessa maneira, seu subconsciente nos criou para tentar ajudá-lo a
descobrir a verdade.
Caliel ficou sério por um instante e respirou fundo.
– Eu não acredito nisso. Tem alguém fazendo uma brincadeira
de muito mau gosto. Vocês estão tramando isso para mim, desde a
morte de Yesalel?
– Caliel! Veja bem! Ninguém está brincando com você. Muitos
anjos estão tentando salvá-lo fora daqui e não há outra maneira de
fazer isso, sem você se lembrar.
– Me lembrar do quê, merda?
– De quem você é. – O indiano foi quem se manifestou dessa
vez.
– Eu sei quem eu sou. Meu nome é Caliel. Nasci em São Paulo e
morei na zona Leste a minha vida inteira. Meus pais morreram quando
eu tinha dezoito anos. Uma grande amiga me ajudou a superar tudo
após isso e eu me cas... – Caliel ficou mudo, pensando no que ia falar.
Depois se sentou na calçada, evidentemente angustiado. – O que está
acontecendo?
– Você precisa se lembrar – disse o branquelo, olhando-o nos
olhos.
– Caliel? – Uma voz o chamou de longe, quase de dentro de sua
mente.

473
Quando ele olhou para trás, viu Bariel no banco do motorista de
uma van branca.
– O que você está fazendo?
– Estava conversando com eles... – quando o ruivo olhou para a
frente, os dois homens haviam sumido. Olhando para cima, viu-se
engatinhando sobre a calçada úmida. Rapidamente ele se levantou e se
aproximou do carro de Bariel.
O grandalhão o encarava com uma cara de interrogação.
– Entre! Nós temos que ir a um lugar.
O trajeto não demorou mais do que cinco minutos. Bariel subiu
uma rampa e na parte plana, cerca de dez metros acima, Caliel
vislumbrou uma cena que parecia surgir de filmes de ficção científica.
Pelo menos algumas dezenas de pistas e viadutos se entrelaçavam,
com alguns viadutos chegando a mais de cinquenta metros de altura,
tendo suas quedas bruscas, com graus acentuados. O que aquilo
chegava mais perto de parecer era de se imaginar dezenas de
montanhas russas de asfalto, entrelaçadas. O tamanho era incalculável.
No mínimo, cobria o tamanho de uma cidade grande.
Caliel não se lembrava de ter dormido, então aquilo não poderia
ser um sonho. Mas como uma cidade futurista daquele tamanho
poderia existir naqueles dias? – pensou ele. Será que ele estava
dormindo, dopado em algum lugar, com cientistas mexendo em seu
cérebro? Bizarro! Era óbvio que não. Nesse momento, ele se lembrou
de Obadiah e ainda mais recente, dos dois homens na praça. Por um
momento, considerou o que eles falaram, mas se estapeou na testa por
pensar nisso.
– Você está bem? – indagou Bariel, no volante.
– Estou! Tinha um inseto me enchendo o saco. – Caliel
respondeu, envergonhado.

474
– Certo! – Bariel deu uma risada forçada. – Agora vamos, que
preciso te mostrar uma região que você ainda não conhece muito bem.
Não conheço muito bem? – Caliel ironizou em seu próprio
pensamento.
– Como é o nome desse lugar?
– Você vai dizer no final de nossa viagem – respondeu Bariel,
pisando no acelerador.
Eles começaram a descer por uma ladeira tão íngreme que Caliel
não conseguiu imaginar como o carro não saiu rolando ladeira abaixo.
Nem se aqueles pneus fossem especiais, suportariam a força da
gravidade puxando o carro para baixo. Ainda se fosse uma ladeira
curta, com quinze, ou vinte metros. Mas não. Aquela tinha no mínimo
quinhentos.
O ruivo segurava na alça acima de sua cabeça e tinha seus dedos
cravados na lateral do banco, com todas as forças. Olhando para
Bariel, ele parecia tranquilo, como se estivessem em uma simples rua
movimentada por crianças brincando.
– Você está bem mesmo? – indagou Bariel.
– É claro que estou! – respondeu Caliel, com os olhos
arregalados e a testa molhada em suor. Queria saber aonde aquilo iria
dar.
Nesse momento, Caliel percebeu que a ladeira havia acabado e
eles entravam pela boca de um túnel largo. A escuridão durou apenas
um pouco menos de dez segundos. A cena de cidade grande futurista
foi deixada para trás e agora fora substituída por campo e vegetação.
A noite virou dia. Uma manada de vacas pastando ornava o terreno da
direita. Ornava porque não eram vacas normais. Suas rajadas tinham
uma cor diferente. Uma cor que Caliel não conseguiu dar um nome,
ou dizer alguma cor que se aproximasse daquela. Impressionado, ele

475
olhou para o lado e quem estava ao volante não era mais Bariel. Era
uma mulher com quase quarenta anos de idade, mas com aparência de
trinta.
Um susto fez o ruivo olhar para a frente e de repente ele não
estava mais dentro do carro. Estava sentado em um banco à beira da
estrada, com aquela mulher estranha. Linda. Mas estranha. Ela tinha
um pacote de amendoins na mão e esticou o braço, oferecendo a ele.
Caliel não fez menção de aceitar ou não e se levantou do banco com
um pulo.
– Quem é você? Onde estou?
– Fique calmo, Caliel. Por favor, sente-se.
– Não até você me dizer quem é você e onde estou.
– Meu nome é Auriel e você já sabe quem eu sou. – Ela olhou
profundamente nos olhos dele.
Auriel? Caliel se lembrou que o tal Obadiah falou esse nome
para ele, pois ele identificou com o nome de Hariel. Naquele momento
foi o inverso.
– Você conhece algum Obadiah?
– É claro que conheço. Você também conhece. – Ela jogou um
punhado de amendoins na boca.
– Se você quer dizer que cinco minutos de papo faz eu conhecer
alguém, então tá! Eu conheço.
– Não, Caliel. Você o conhece de verdade!
O ruivo abriu um sorriso irônico.
– Desde quando?

476
– Desde sempre. Por favor, sente-se! – Ela apontou a mão para
seu lado esquerdo, onde o banco estava vazio.
Caliel hesitou, então ela acrescentou:
– Caliel! Peço apenas dez minutos de sua atenção e quando eu
acabar, você pode fazer o que quiser.
– O que você vai fazer?
– Te contar uma história.
– O que vocês são? Um culto que historinhas? – ironizou ele.
– Sente-se, por favor! – Ela apontou novamente com a mão.
Caliel deu de ombros, aproximou-se e se sentou. Sabia que não
tinha nada melhor para fazer naquele lugar que inclusive não sabia
onde era, ou como foi parar lá.
– Você já deve ter percebido que as coisas estão diferentes – ela
começou.
– Com certeza! Estar na cidade, entrar em um túnel e sair no
campo, com uma pessoa dirigindo e depois não é mais ela. Com
certeza as coisas estão diferentes e é por isso que acho que estou
sonhando.
– Não, você não está sonhando. Só que existe um mundo que
você não está reconhecendo.
– Que mundo?
– Sua cabeça. Você não é quem pensa ser.
– Eu já ouvi isso hoje.
– Vou tentar te fazer entender. Você olha para mim e acha que
me conhece, mas ao mesmo tempo, sabe que nunca me viu. Como
você explica isso?
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– Então, eu não explico.
Auriel respirou fundo, encarando-o e disse:
– Eu tenho como te mostrar a verdade, mas preciso que você
tente acreditar no que eu vou te contar, pelo menos um pouco. Só
assim você poderá começar a abrir os caminhos para a verdade.
Caliel disse, após soltar uma migalha de risada:
– Ok! Farei o possível.
– Como nós sabemos, você já encontrou Obadiah e ele te contou
uma grande história.
– Sim, um belo roteiro.
– Não era um roteiro. Lembre-se. Tente acreditar que garanto
que sua visão sobre tudo mudará.
Caliel meneou a cabeça e ela continuou:
– Eu vou ser o mais direta possível. Sobre a história que
Obadiah te contou, aquele guardador é alguém que você conhece
muito bem. Tão melhor que esse “eu” que você acha que conhece.
Aquele guardador é você. – Ela fez uma pausa para avaliar a reação
dele.
Caliel levantou os braços e disse:
– Ok, ok! Tentar acreditar, já sei. – Em seguida, cruzou os
braços e manteve um sorrisinho no canto da boca.
– Só de você estar me escutando, já estamos dando um grande
passo.
– Um passo para o quê?
– Eu sinto que não precisarei responder essa pergunta. Mas
preciso que você responda a minha.
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– Como é o nome de seu pai, completo?
– Aron Bertunes.
– E o seu?
– Caliel Bertunes Junior... – O ruivo franziu o cenho nesse
momento.
Auriel alargou seu sorriso ao ver a cara de confusão de Caliel.
– Estranho né? Como você pode ter Junior no nome, se seu
nome não é o mesmo de seu pai. O que eu quero que você entenda é
que existe uma maldição sobre você. Uma muito poderosa. É claro
que agora começo a perceber que ela tem as suas falhas. Dessa
maneira, saiba que minhas esperanças aumentaram.
Dessa vez Caliel não disse nada. Sua cara de confusão era muito
grande, para ele conseguir traduzir algo que se passava em sua cabeça
naquele momento.
Auriel continuou conduzindo aquela conversa e vendo a reação
de Caliel, uma grande esperança nasceu em seu peito, pois ela sabia
que tinha conseguido plantar a sua semente.
– Eu assumo que tem acontecido coisas estranhas ultimamente.
Pensando agora, não me lembro onde conheci Haziel. Ou mesmo sei
qual é o projeto que estamos trabalhando. Antes de morrer, Yesalel
disse que eu tinha que me lembrar. No dia anterior a esse, tive uma
viagem muito louca, onde seres com asas forravam a imagem.
Auriel respirou fundo nesse momento e seus olhos brilharam.
Mas Caliel estava concentrado, olhando para baixo e contando seus
pensamentos. Então ele não viu. Caliel continuou:
– Em geral, perdi os últimos quatro anos da minha vida e não
imagino o porquê.

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– Eu não quero te confundir mais, mas tenho que trabalhar sua
mente, para que você se lembre de tudo o mais rápido possível. Você
concorda que o dia está lindo? – Auriel passou os olhos pelo céu.
Caliel concordou com a cabeça. Então Auriel perguntou:
– Como você acha possível estarmos em um dia, sem Sol?
– Não é possível. – Caliel começou a procurar o astro. – Ele
deve estar escondido atrás de alguma nuvem.
Nesse momento, como em um passe de mágica, todas as nuvens
evaporaram, deixando o céu limpo, completamente azul, e sem Sol.
– O quê? – Caliel deu um pulo do banco e afundou mais seus
olhos no céu azul. Ele os coçou e olhou novamente. – Não é possível!
– É, Caliel. É possível. – Auriel se aproximou dele e colocou a
mão em seu ombro, por trás. – Como eu te disse. Esse “eu” você não
conhece como o seu outro “eu”. Estamos dentro da sua mente e quem
controla aqui de verdade é apenas você.
Caliel não piscava. Seus olhos azuis lampejavam o azul limpo
do céu. Nunca seu coração bateu tão forte, como naquele momento.
Ele nunca quis que um acontecimento fosse um sonho, como ele
queria que aquele fosse.
– Muito bem, Caliel. Você está abrindo os caminhos, posso
sentir! – Auriel esticou a palma da mão. Um fóton de luz divina
floresceu e brilhou como uma estrela solitária no céu escuro, acima de
sua palma. A esfera começou a subir devagar, ainda ocupando a região
da mão da moça.
– Pegue!
Caliel sentiu algo em seu coração que nunca tinha sentido até
então. Ele não hesitou e esticou a palma da mão. A microscópica
célula de luz, tão brilhante quanto uma estrela, contando suas

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proporções, começou a flutuar para a mão do ruivo. Quando ela
flutuou por cima de sua pele, um grande calor floresceu daquele ponto
e na velocidade de um raio, passou pelo seu corpo como um choque
elétrico e se dissipou em seu coração. Ele caiu nesse momento e
ligeiro, colocou as mãos atrás para amortecer a queda.
Auriel esticou a mão para ele.
– Não perguntarei se está bem, pois sua mente nunca permitiria
você propriamente se machucar.
Caliel agarrou a mão dela e quando se pôs em pé, olhou suas
palmas. Elas nem ao menos estavam vermelhas. Ele não sentia um
pingo de dor.
– Como eu te disse – ela tocou a testa dele com o indicador –,
apenas você pode controlar sua mente.
Caliel ficou mudo por um momento, pensativo. Após alguns
instantes, sem perturbação pela parte de Auriel, ele reformulou tudo
que juntou de informação até aquele momento e indagou:
– Se isso não é um sonho, então o que posso fazer para conhecer
o meu verdadeiro eu?
Auriel sorriu.
– Caliel, eu nunca disse que isso não é um sonho. Você nunca
poderia estar em um tão profundo. Você é o único em nossa história
que pôde saber o que é isso. Não que você saiba de alguma coisa
agora. Mas sei que saberá, e será logo.
– Considerando que tudo que você falou seja verdade, então
você também não passa de um fruto da minha imaginação?
– Não! Eu não estou mesmo aqui. Com um trabalho imenso,
transferi a minha consciência para dentro da sua e temos muitos
envolvidos protegendo nossa casca espiritual, do lado de fora. – Ela

481
apontou para qualquer direção. – Você aceita ir a um lugar onde tudo
é possível?
– Visando tudo isso, é claro! – Caliel olhou para os dois lados da
estrada, vendo-a deserta. – Este lugar é próximo?
– Depende do seu ponto de vista. – Auriel deu um sorriso
gracioso.
Subitamente, um carro branco parou na estrada de frente para
eles e o vidro foi aberto. Conduzindo o veículo, estava Obadiah, com
seu terno preto.
– Na hora exata – disse Auriel, aproximando-se do veículo e
abrindo a porta. – Ela gesticulou para que Caliel entrasse.
O ruivo não hesitou e entrou no carro, pulando para o banco de
trás. Auriel entrou e fechou a porta.
– Obrigado, Obadiah! – disse Auriel.
– Por nada. Às suas ordens.
Caliel se recolheu no canto direito do carro e observando o
campo verdejante, não parava de pensar nas suas últimas horas. De
repente, sua vida tinha virado de cabeça para o ar. A coisa que ele
mais queria era sair daquele terrível pesadelo. Subitamente uma
ladeira de terra vermelha se materializou à direita da pista, cem metros
à frente, desaparecendo em um terreno com folhas altas.
– Exatamente, Caliel! – disse Auriel.
Obadiah virou o volante e entrou na rua estreita. O carro
começou a subir e quando a ladeira acentuou seu grau, os pneus
começaram a deslizar. O motorista, parecendo experiente, engatou a
primeira e em vez de pisar fundo, diminuiu a força da perna e deixou
que o carro subisse suavemente. Essa foi a ladeira mais íngreme. Nas
próximas o carro subiu sem deslizar.

482
– Eu conheço esse lugar!
– É claro que conhece. Você já passou muitos dos seus dias aqui
– disse Auriel, virando-se para ele.
Um grande muro branco surgiu ao lado direito da estrada de
terra e ia ficando mais próximo a cada segundo. Quando eles
começaram a contorná-lo, Caliel viu um logotipo verde, parecido com
um cata-vento, pintado na parede branca. Os finos galhos das árvores,
ao lado esquerdo do carro, batiam de vez em quando no vidro, quando
mais compridos.
Não demorou muito tempo para eles chegarem a um portão de
grades de aço, pintadas de verde. O carro parou e Auriel abriu a porta,
descendo em seguida. Ela puxou o banco para Caliel descer e quando
ele o fez, sentiu uma nostalgia profunda. Não sabia o porquê, mas o
clima tinha tudo a ver com aquilo.
– Mais uma vez, obrigada, Obadiah!
O asiático meneou a cabeça e abriu um sorriso. Auriel fechou a
porta e parou ao lado de Caliel, que encarava o portão de três metros
de altura. Do outro lado, ele via o que parecia ser um estacionamento
de carros. O chão era uma mistura de terra, areia e pequenas pedras.
Quando ele deu um passo à frente, imediatamente o portão começou a
se abrir. Mais alguns passos e os dois estavam dentro do terreno.
Com certeza, aquele não era um lugar estranho para Caliel. Mas
por que sua memória sobre ele estava tão nebulosa? Isso era uma coisa
que ele só poderia descobrir fazendo o que estava fazendo,
explorando.
Ao lado esquerdo de Caliel, em um altar de grama verde, com
sete metros de altura, uma fileira de chalés ocupava seu espaço.
Exatamente ao seu lado direito, tinha uma escada que descia. Um
pouco à frente da escada, pegando a sua diagonal direita, outra escada
que descia. Mas essa dava para ver que daria em um estreito corredor

483
de piso frio, com cactos o contornando. Ele optou ir pela direita e
descer a grande escada.
Auriel apenas o acompanhava, tentando ser o mais discreta
possível. Pisava o mais fraco que podia, para que seus pés não
remexessem as pedras abaixo, fazendo barulho de cascalho. Tudo que
ela queria é que Caliel se mantivesse concentrado. Assim sua missão
estaria concluída e mais um irmão seu estaria a salvo.
Caliel começou a descer os primeiros degraus pintados de
branco. A essa altura ele já via a grande piscina abaixo. Um trampolim
simples ficava em um lado e na lateral, um pequeno tobogã com duas
voltas exibia sua cascata martelando a água. Subitamente, Caliel viu
bolhas, como se estivesse se afogando. Em seguida, mais um flash
com ele colocando a mão na beira da piscina. Com certeza aquilo era
uma memória.
O ruivo continuou andando e agora contornava a piscina com
suas águas cristalinas. Ele andou até o limite desse terreno e ao final
dele, encontrou uma cerca de aço, com quase um metro e meio de
altura. Afastado quase vinte metros da cerca, uma estátua branca se
erguia. Mas ele não conseguiu identificar sua origem. Nesse caso,
Caliel pulou a cerca e foi avaliar o monumento, pois algo de familiar
tinha em sua arte.
Quando Caliel chegou perto da estátua, uma sensação estranha
tomou conta de si. Era a imagem de um homem de barba e cabelos
compridos, com os braços abertos, como se fosse abraçar o mundo.
Ele nunca tinha visto aquela imagem, mas por algum motivo a achava
familiar.
– Esse é o filho espiritual do criador – disse Auriel, às suas
costas.
Caliel olhou para trás a encarando e depois para a cerca que
provavelmente ela também pulou, para se aproximar dele tão rápido.

484
De frente para a estátua, descia uma rua de paralelepípedo,
curvilínea. Caliel olhou a última vez para a estátua e começou a descer
essa rua. Em pouco tempo, ele encontrou o tapete de grama verde
mais belo que tinha visto em sua vida – pelo menos era isso o que ele
achava. Contornando o terreno verde, inúmeras churrasqueiras de
tijolos vermelhos assavam carnes e legumes – dava para sentir o
cheiro. Mas nenhum humano podia ser visto. Elas estavam desertas,
soltando fumaça por suas chaminés.
Ao fundo do terreno, duas escadas laterais davam no que parecia
ser uma quadra de esportes coberta. Sua cobertura estava a mais de
vinte metros de altura, então a estrutura era imponente. Caliel andou
até ela e escolheu a escada de concreto da esquerda, para subir no
terreno que nivelava a quadra. Ele começou a contornar uma cerca,
parecida com a da piscina, que separava a quadra do externo. Por um
pequeno portão de um metro de largura, ele adentrou o salão de jogos.
Linhas, de pelos menos quatro cores, separavam os esportes,
tendo em vista suas regras diferenciadas. Caliel identificou quatro:
futebol, basquete, vôlei e tênis. Ele andou até o círculo central que
marcava o início de uma partida de futebol e parou.
Auriel ficou fora da quadra, distante uns vinte metros, apenas o
observando. Ela tinha os braços cruzados, como uma mera humana e
um luminoso sorriso.
Caliel olhava para cima, observando o aço que segurava a telha
da quadra. Uma imagem veio à sua cabeça. Uma bola branca, presa
entre dois canos de aço. Homens chutavam outra bola em sua direção,
na esperança de acertá-la e desprendê-la. Subitamente essa imagem
fora substituída por outra, e essa mostrava meninos pequenos,
correndo e chutando uma bola colorida. Eram dois times diferentes.
Uma das crianças chamou sua atenção. Era ele. Driblava outras
crianças com a agilidade de um adulto. Reparando melhor, aquela
criança não poderia ser ele, pois seus cabelos eram castanhos escuros.
Mas ele sentia que era ele.
485
O menino recebeu a bola do goleiro e começou a correr. Ele
driblou um menino, jogando a bola para a direita. Caliel acompanhou
o movimento com o olhar e seus olhos encontraram algo que ele não
imaginava. Agora era ele de verdade. Estava agachado sobre uma
rocha que se erguia do morro verde, do outro lado da quadra. Em suas
costas tinha um enorme par de asas brancas. Suas vestes eram claras,
quase como um vestido e nos pés calçava uma sandália marrom. O
susto foi imenso e por que ele estava vendo ele próprio como um
daqueles seres de seu sonho?
Um nome veio a sua cabeça, Aron. Quem era Aron? Aron era a
criança com a bola. Seu coração bateu mais forte e ele respirou fundo.
O menino correu na sua direção com a bola e nesse momento ele viu
seus olhos. Caliel já tinha visto aqueles olhos. Eram os olhos de um
daqueles homens que ele conversou na praça, ou achou que
conversou. Seu coração bateu mais forte.
Caliel começou a correr na direção da cerca verde escura da
quadra e a pulou, apoiando uma mão. Em seguida, correu na direção
do morro verdejante e começou a subi-lo. Um pouco mais acima e
mais íngreme, o ruivo tropeçou e segurou em um galho para não cair.
Isso o atrasou não mais do que dois segundos e ele continuou subindo,
segurando onde podia. Quase ao final do muro, trinta metros acima,
ele parou.
Auriel não esperava tal reação e começou a seguir Caliel. Ela
não precisou pular a cerca e passou por ela, como se seu corpo não
fosse feito de matéria. E não era. Ela começou a subir o morro e para
isso não precisou tocar o chão. Em pouco tempo encontrou Caliel
abaixado, com a mão sobre algo.
Ainda estava ali – pensou o ruivo. Um círculo formado com dez
pedras redondas. Aquilo representava um acontecimento da infância
de Aron, seu guardado. Perto da quadra, uma vez ele encontrou um
gambá morto. Foi o primeiro animal morto que viu de perto. Caliel
lembra exatamente o que Aron sentiu, pois ele também o sentiu. O
486
humano recolheu o animal com cuidado e o levou até aquele lugar.
Cavou um buraco, enterrou-o e marcou com aquelas pedrinhas. Agora
Caliel se lembrava de tudo.
Ele olhou para cima, observando o restante de três metros do
morro e por cima, o céu azul, sem sol. Inclinando-se, ele caminhou e
quando chegou ao topo, do outro lado, a trezentos metros de distância,
muito abaixo de onde ele estava, em um horizonte plano, um
redemoinho rodava na terra, como um monstro.
Auriel se aproximou e parou ao seu lado, observando o monstro
rodopiante.
– Agora só depende de você! – Ela o encarou e sorriu.
– Obrigado, Princesa! – Os olhos do ruivo lacrimejavam.
Ele começou a andar e em seguida a correr, morro abaixo, em
direção ao monstro. Subitamente uma luz dourada contornou seu
corpo e asas brancas se materializaram de suas costas. Com uma
rajada, ele foi jogado para o alto, tendo controle total sobre elas. Ele
deu uma volta, contornando o redemoinho. Uma respiração profunda
foi preciso, antes de ele mergulhar e desaparecer, junto ao monstro.

487
CAPÍTULO 53

Após muitas horas lacrados, os olhos de Caliel se abriram. A


primeira coisa que viu foi a áurea poderosa da princesa dos tronos,
Auriel, unida a dele. Ela estava abaixada ao seu lado direito. Do seu
lado esquerdo, estava Obadiah, com aparência cansada. Em um
círculo que fazia a volta neles três, pelo menos vinte guerreiros
montavam guarda à sua volta. Entre eles estava Hariel e Hekamiah.
Olhando para cima, Caliel percebeu que ele, os dois tronos e o
monte de guerreiros estavam dentro de uma pequena redoma
translúcida. Sentindo toda a vibração de seu poder, correndo por suas
artérias, com um salto ele se pôs em pé, despertando a atenção dos
guerreiros que se viraram para ele. Auriel também se inclinou e se
aproximou de Caliel. Obadiah sentou-se no chão.
– Você acabou de enfrentar uma grande batalha, meu querido
irmão – disse a princesa, olhando adiante, no horizonte. – Mas não
maior do que a que temos pela frente!
Caliel se virou e se aproximou da beira da rocha com formato de
boca de crocodilo que despontava de uma montanha. De lá ele pode
ver algo que o fez saber exatamente do que a princesa falava.
Centenas de metros abaixo, milhares de milhões de celestiais e
infernais estavam em uma batalha, a qual com certeza era a imagem
mais sangrenta que Caliel já tinha visto. Até onde os olhos do ruivo
alcançavam, anjos e demônios de todas as castas se enfrentavam na
Terra e no Céu, dando seu sangue e seu espírito, pelo seu ideal.
Subitamente, a uma centena de metros acima de Caliel, uma
expansão de luz irradiadora o cegou por alguns segundos. Com a mão
em cima das sobrancelhas, ele penetrou seus olhos de guerreiro e
conseguiu ver de onde partia a luz. Cinco figuras celestiais grandes
488
queimavam suas chamas como fogueiras a bilhões de graus. Logo ele
reconheceu os querubins, guardadores do trono de Deus. Mas eles
eram quatro e ali tinha um quinto elemento. A luz começou a
diminuir, deixando o quinteto mais à vista. O que viu chocou mais a
Caliel do que tudo ultimamente. Uma das cinco criaturas, obviamente
era Haziel. Eles estavam de frente para quatro criaturas que logo
Caliel identificou como os quatro cavaleiros do apocalipse.
A maior guerra de todos os tempos estava travada.
Fim do livro 2
Posso dizer que o mundo de A Guerra dos Anjos é muito maior
para mim, do que o meu próprio mundo real. O real é relativo, nesse
caso!
Até o próximo!

489
EPÍLOGO

– Pai! – disse Miguel –, nós, seus primogênitos, espíritos


superiores do Sétimo Céu, pedimos permissão para ir até o mundo dos
homens e interferir na guerra que se sucede entre nossos irmãos.
Desde que lhes foi dado o total livramento, as batalhas pelo Teu nome
não tem fim e todas terminam da mesma forma. Com sangue!
– Meus primogênitos – ecoou uma voz, saindo como um trovão,
partindo da luz ofuscante branca, na frente dos cinco arcanjos. Uma
parte da região era o espaço, com seus astros brilhantes, a outra parte
era a luz –, pensei muito sobre isso e hoje, sei que temos que utilizar
os fantasmas das primeiras eras. A permissão está dada, minhas
crianças. Junto a vocês, irá seu irmão mais velho, pois ele já está
pronto.
Nesse momento, um ponto da luz branca brilhou mais forte e
uma silhueta de luz humanoide caminhou de lá, em direção aos
arcanjos, pisoteando o espaço. Seu corpo completamente de ouro,
agora estava coberto no peito e na parte da pélvis, por uma veste
branca no estilo grego. Nos pés tinhas sandálias também de ouro.
– Lúcifer! Meu irmão! Não tenho palavras para expressar as
saudades que senti! – disse Rafael, aproximando-se dele e lhe dando
um abraço.
Lúcifer retribuiu o abraço, apertando-o com mais força ainda.
Após muitos segundos, eles se soltaram e o primogênito de todos
esticou o braço, materializando uma espada de ouro.
– Meus caros irmãos arcanjos, está na hora de lutarmos ao lado
de nossos irmãos angelicais, a favor da cria mais frágil de nosso Pai.
A humanidade!

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AGRADECIMENTOS

Não posso começar esses agradecimentos sem primeiramente


agradecer àquela que me colocou no mundo. Não porque ela é minha mãe e
me deu a oportunidade de viver. Claro que isso é maravilhoso. Mas além
disso, ela é minha principal leitora, que lê e revisa cada linha que lhe
entrego. Por isso eu lhe agradeço do fundo do meu coração e para sempre.
Agradeço ao meu irmão, que apesar de não gostar de ler fantasias, ou
mesmo qualquer romance fictício, pois é um homem que lê apenas quando
se trata de negócios, sempre está e esteve por dentro de tudo relacionado à
“A Guerra dos Anjos”. O nome do primeiro livro, inclusive, foi ele quem
deu, vasculhando sua maravilhosa mente recheada de ideias.
À minha esposa, que é uma lutadora, pois me aguentar o dia inteiro
falando sobre seres com asas, o quanto eles são rápidos, não é fácil. Ou
mesmo sobre uma conversa de quanto tempo um anjo como o Haziel, por
exemplo, demoraria para ir do Brasil aos Estados Unidos. Ela é pé no chão
e só conversa e me ajuda porque me ama.
À Juliana Checo, minha amiga e fiel leitora. Desde o início de minha
vida literária, acompanhou-me em cada linha escrita. Nunca falou mal de
nada. É uma mulher/menina engraçada, pois se peço a ela para me criticar,
ela fala: eu gosto de tudo que você escreve. Obrigado, Jú!
Ao meu amigo/irmão Apolo Roberto, muito mais irmão do que
amigo. Amigo, porque não tem meu sangue e irmão porque esteve ao meu
lado em minha vida toda. Deu-me dicas e opiniões valiosas sobre a história.
Por fim, agradeço a todos vocês, leitores, que com mensagens muitas
vezes inocentes, levaram-me às alturas, dando-me forças para continuar a
trilogia. No momento em que escrevo esse texto de agradecimentos, pontuo
exatamente a caminhada final dos últimos capítulos da trilogia, que é o
livro “A Guerra dos Anjos, o Arrebatamento”.
Obrigado e rumo ao terceiro livro!

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Skoob de Domínio Espiritual


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Se você chegou aqui antes de conhecer o livro 1, baixe no link:


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Conheça outros trabalhos do autor


http://autorarleyfranca.com.br/

Ainda em 2020, ambientado nesse mesmo universo


HQ Kabaru – O Anjo Renagado

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