A fotografia pode ser concebida sem a possibilidade do primeiro plano. O cinema,
não: “O primeiro plano é a alma do cinema”, dizia [Jean] Epstein. Por qual razão? É preciso, sem dúvida, que haja muitas. O primeiro plano parecia situado, no que concerne à história e ao devir do cinema, em uma encruzilhada. Ele representa o ponto crucial de uma soma de efeitos entrecruzados, que especificam o cinema como meio, como arte e como “linguagem”. Se o cinema é efetivamente um meio “quente”, implicando a participação afetiva intensa do público e criando reações emocionais fortes com base na escala técnica da proximidade dos planos, das modulações intensivas da imagem, o primeiro plano se situa, então, na subida em direção ao ponto de intensidade máxima, de calor máximo: “Agora a tragédia é anatômica” (Epstein de novo). O regime afetivo da imagem, definido pelo primeiro plano, prescreve então certas formas essenciais do cinema como arte, ou até mesmo como programa de “gêneros”: suspense, horror, erotismo. A Tragédia se torna anatômica, o que quer dizer que seu espaço se restringe e se fecha sobre o corpo, sobre movimentos ínfimos na superfície do corpo (o mundo se estreita), ao mesmo tempo em que estes se tornam eventos absolutos. Através do primeiro plano, o cinema realiza uma mudança de escala do mapa dos eventos: um sorriso se torna tão importante quanto um massacre, “uma barata em primeiro plano parece cem vezes mais temível que uma centena de elefantes tomados em plano de conjunto” (Eisenstein). O grande e o pequeno trocam suas dimensões, e o cinema inventa fisicamente “a tragédia à altura da barata”: [a novela] A metamorfose [de Franz Kafka] é contemporânea do primeiro plano; o pesadelo de Gregor Samsa é um pesadelo de cinema. É por meio dessa mudança de regime e de escala dos eventos – uma mudança também de sentido, uma chacoalhada retórica, um novo privilégio da sinédoque e das figuras alinhadas pelos vasos comunicantes da metáfora e da metonímia – que o cinema participa da modernidade: daí, sem dúvida, a importância que as diversas vanguardas atribuem, nos anos 1920, ao primeiro plano. O primeiro plano efetivamente cumpre no espaço do cinema um papel, a um só tempo, terrorista e revolucionário: revolucionário na medida em que, invertendo a hierarquia das proporções, dos eventos, dos corpos, fazendo se tornar grande o pequeno e pequeno o grande, ele instaura por e com a montagem uma nova ordem das aparências e das imagens, desvinculada da realidade “tal como ela é”: sabemos que esse é um leitmotiv de Eisenstein, ao qual muitos vão se opor em nome do bom senso, da eficácia, da dramaturgia clássica ou, mais tarde, do neorrealismo, da democracia, de [Roberto] Rossellini e de [André] Bazin. O primeiro plano é, nesse sentido, um caso particular da fermentação e do despedaçamento de signos almejados pela manipulação formalista, futurista ou dadaísta, cujo espírito se conjuga à instabilidade da época revolucionária. Terrorista, enfim, o primeiro plano, porque ele procede de uma violência aplicada ao espaço indiferenciado, à homogeneidade dos corpos, e não deixa nenhuma escolha ao olho dos espectadores: cabeças enormes, cabeças cortadas, membra disjecta, é assim, sabemos, que aparecerão aos olhos do público surpreso os primeiros planos aproximados do cinema. O olho dos espectadores – formado pela contemplação de quadros, de paisagens, de panoramas, da cena homogênea do teatro ou do music-hall – não estava preparado para se confrontar a uma visão outra que mediana ou “de conjunto”. Nada espantoso então que as vanguardas, que pretendiam forçar os limites da visão mediana, do pensamento mediano, do “um pouco de realidade”, tenham visto no primeiro plano o instrumento por excelência de transgressão desses limites. As atrações sanguinolentas de A greve [Sergei Eisenstein, 1925] e o olho navalhado de Cão Andaluz [Luis Buñuel e Salvador Dalí, 1930] derivam, através de ideologias diferentes, de uma mesma concepção terrorista do primeiro plano, de uma mesma vontade de impô-lo ao público (quiçá de fazê- lo pular da cadeira) através de imagens de sangue e de morte. O primeiro plano, então, deriva inicialmente de um regime físico da imagem, de um regime afetivo, intenso, de uma microfísica dos eventos que não deriva mais da cena, do quadro, do teatro, mas de um espaço aberto, infinito, fragmentário, finalmente liberado das medidas normativas da perspectiva, da profundidade de campo, do ponto de fuga: “Mudança absoluta das dimensões dos corpos e dos objetos na tela”. Mas também comunicação absoluta dos corpos e dos objetos por associação mental, a combinação metáforo-metonímica: o olho navalhado se associa poeticamente a uma lua cheia atravessada por uma nuvem fina. As cabeças de bois agonizando se combinam com os grevistas metralhados pela milícia. Pouco importa aqui que, num caso, a montagem se justifique pelo automatismo do inconsciente e, no outro, pelo didatismo militante, ou seja, que num caso a associação seja “involuntária” e no outro “consciente”. O que conta é que a violência do primeiro plano, longe de constituir um fim, uma “última palavra” na cadeia das imagens, parece exigir, ao contrário, sua proliferação, sua combinação para produzir sentido – montagem, em suma, e montagem “intelectual”. O primeiro plano induz diretamente um regime pictográfico da imagem de cinema; é a imagem-signo por excelência, quiçá a imagem-letra. De Eisenstein a Godard, é toda uma corrente intelectual do cinema que se agencia de forma incômoda e agressiva em função de um uso sistemático do traço forte e do primeiro plano. O filme-manifesto, o filme-panfleto, o filme militante dos anos 1970 reencontra esse uso de soco do primeiro plano proposto por Eisenstein (que opunha ao cine-olho de Vertov seu “cine-punho”), mesmo que eles se proclamassem mais voluntários de Vertov, menos compromissados com o poder stalinista. O primeiro plano, redução da imagem à superfície, combina-se eletivamente com os slogans escritos, com as cartelas caras a Godard: “Não uma imagem justa, mas justo uma imagem”. A imagem não é mais o reflexo nem a metonímia da realidade (uma parte do campo, um enquadramento valendo pelo todo); ela se torna um signo puro sem profundidade, sem mundo por trás [arrière-monde], não valendo senão por sua combinação com outras imagens, com outros signos. A esse ascetismo responderão nos anos 1980 as orgias da publicidade e do videoclipe. O primeiro plano reencontra aí sua função afetiva intensa, sua agressividade sedutora. Mas vemos que, para passar do manifesto à publicidade, basta uma simples camada de laquê, de verniz ou de brilhante em maior ou menor quantidade. O comentário vai junto. É que o primeiro plano está no centro de uma ambiguidade constitutiva: a imagem se apresenta em seu mais alto grau de ambivalência, atração e repulsão, sedução e horror. O rosto mais aureolado de fotogenia é uma tela frágil que dissimula um horror fundamental. Há algo de máscara mortuária em [Greta] Garbo, Marlene [Dietrich] ou Katharine Hepburn. Foi preciso sempre uma ínfima espessura em maior ou menor grau, uma invisível tela de tule ou de gaze: o primeiro plano designa esse ponto-limite, esse equilíbrio precário, entre o ponto de distanciamento mínimo a partir do qual o objeto, digamos o rosto, aparece na sua fotogenia, na sua luz de glória, e o ponto um pouco mais aproximado onde aparecem os poros, os pêlos, as espinhas – onde a sedução descamba em repulsão, em horror, onde a beleza homogênea da Gestalt se decompõe em elementos heterogêneos. [John] Cassavetes, em Faces [1968] e em todo seu cinema, é o grande artista “abstrato-lírico” (como diria Deleuze) dessa sedução e desse horror do rosto sob o regime do primeiro plano: nesse nível intensamente físico da imagem, os eventos se fragmentam ao ponto de cessar de fazer sentido e as sensações ultrapassam os sentimentos. Um cinema “abstrato” se torna possível, que ao mesmo tempo retoma a mais alta modernidade artística e toca de perto a natureza estilhaçada, catastrófica e fundamentalmente irrepresentável do tecido dos eventos no mundo contemporâneo. O limite, a tentação e o grão de real – ou de loucura – do primeiro plano estão no desaparecimento de toda representação.
Pascal Bonitzer
(Artigo originalmente publicado na Revue belge du cinéma, nº 10, “Le gros Plan”, 1984. Traduzido do francês por Luiz Carlos Oliveira Jr.)