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NEM TUDO É FICÇÃO

O TRISTE FIM DE JAIR MESSIAS BOLSONARO


JOSÉ
EDUARDO
AGUALUSA

NEM TUDO É FICÇÃO 26.09.2019 às 10h15 José Eduardo Agualusa

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Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem
serventia. Mas no subsolo há muito nióbio

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Ilustração: Susa Monteiro

J
air acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava
uma secretária e recebia os lhos, os ministros e os assessores militares mais próximos. Alguns estranhavam. Entravam tensos e
descon ados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha
de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: – Não estou sabendo, mas não vou
entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.

Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da
Alvorada. Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair o cializara a mudança de nome: – Alvorada é coisa de
comunista! — esbracejara: – Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa di culdade em pronunciar a palavra, umas vezes
saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura

rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trémulas procurou a Glock 19 que sempre deixava sob o travesseiro.
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– Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a Glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua
frente:

– Quem está aí?

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se xaram nos dele como
uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos. Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe
aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com
os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

– Porra! Quem é você?

– Tenho muitos nomes – disse o velho. – Mas pode me chamar Anhangá.

– Você não é real!

– Não?

– Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele, mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas
comissuras dos lábios:

– Em todo o caso, sou o seu sonho mau. Vim para levar você.

– Levar para onde, ó paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

– Vou levar você para a oresta.

– Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que
acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio.
Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens
em relação ao ouro são as cores e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso do que o ouro...

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado – era uma onça enfurecida, lançando-se contra o Presidente:

– Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da
oresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

– Você não pode me deixar aqui. Sou o Presidente do Brasil!

– Era – rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o Presidente. Não havia sinais dele.

– Cheira a onça – assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério. Ao saber do
misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio. Os artistas e escritores
soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os cientistas

soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio. Os pobres, nos morros do Rio de
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Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas pala tas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio. As mães de santo, nos terreiros,
soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os índios, nas orestas, soltaram um
fundo suspiro de alívio. As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio. O Brasil, en m, soltou um
fundo suspiro de alívio – e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair
Messias Bolsonaro.

(Crónica publicada na VISÃO 1385 de 19 de setembro)

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JOSÉ EDUARDO AGUALUSA


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