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BLUESMAN
ou como se afogar num mar sem água

Dramaturgia Diego Ferreira


ROTA DE FUGA

(Silêncio constrangedor)

Eu sempre tive dificuldade em começar uma conversa, um diálogo. (Pausa) Como


se começa um diálogo? Eu sinceramente não sei. Mas quando se trata de algo
pessoal, o início é sempre meio complicado, pelo menos para mim. Soa como
iniciar uma conversa com uma pessoa desconhecida no meio da rua. O que se deve
dizer primeiro? Oi? Estou aqui, já comecei…

(Silêncio)

Agora que comecei, já deveria ter ficado um pouco mais fácil, afinal de contas já
teve a introdução… mas no fundo eu sei que não será fácil, falar o que eu tenho
para dizer. Mas vamos lá… (Respiro) Durante muitos anos eu fiquei si-lên-ci-a-do
sem poder dizer aquilo que eu precisava dizer para o mundo. | Vocês precisam me
escutar. | Sim, escutar, e não ouvir. Talvez, depois de escutar, vocês entenderão
melhor porque meus olhos ficam marejados ao assistir filmes que falam sobre a
vida das pessoas que lutaram contra a discriminação racial, que dão a dimensão de
quanto isso pode nos ferir por dentro. Preste muita atenção, pois pelo fato de
estarmos aqui (aponta o palco) isso pode parecer ficção, mas não é. É vida real.
Vida concreta. Vida pulsante. A vida me ensinou a ser negro numa sociedade
racista. Repito. A vida me ensinou a ser NEGRO. Embora quase ninguém admita
que seja racista, eu não tive outra escolha a não ser aprender a lidar com essas
pessoas. Desde muito cedo, eu fui jogado no mundo das pessoas brancas, então sei
muito bem sobre o que vou falar. Enquanto criança vivi dentro da verdade crua do
racismo. Quando alguma criança queria ser racista comigo, ela era da forma mais
direta, não havia meandros ou subterfúgios. Crianças são verdadeiras e não

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possuem esses artifícios. Aprendem aos poucos enquanto crescem. E crescem.
Crescem. E por mais que elas possam não saber exatamente o que é racismo e
como ele funciona, elas praticam. Elas te excluem do grupo. Te chamam de
macaco. De cabelo ruim. Te dão todo tipo de apelido para tentar te atingir porque
simplesmente não foram com a sua cara e querem te ferir. Praticam! É esquecido
que toda criança preta sofre muito. Minha mãe me dizia para não brigar na escola,
eu fui parar na diretoria muitas vezes, e tantas outras mudei de escola, tantas outras
mudei, tantas, tantas outras mudei de escola, percebam, eu mudei, eu, apenas EU
mudei, mas no fundo eu tinha certeza de que ela sabia que eu estava me
defendendo, que eu estava sobrevivendo. Eu estava. Mas a porrada não era o jeito
certo de lidar com esse problema. Não mesmo. Eu descobri minha voz quando eu
percebi que eu não me encaixava em lugar nenhum, que eu estava preso numa
caixinha. Eu comecei a me incomodar quando me diziam que pelo fato de eu ser
preto eu tinha que fazer isso, ou aquilo outro. Que pelo fato de eu ser preto eu tinha
que ouvir somente aquele tipo de música. Que eu tinha que me vestir e me
comportar da forma como ou outros queriam que eu me comportasse. Então eu
tentei pegar uma rota de fuga, eu juro que eu tentei, mas daí eu comecei a pensar o
quanto isso não era saudável, onde a sociedade vê o preto como violento, daí eu
caio nesta armadilha. A única preocupação na minha cabeça era ser agressivo, já
tinha tentado tanto, de tantas formas ser visível, notado, respeitado, de forma
“fofinha”, “simpática”, “educada”, mas não adiantou. Eu precisei ser agressivo
para ser notado, e agressivo é tudo que eles esperam que eu seja, um perfeito
estereótipo, eu estava focado em ser agressivo, e ai eu entrei no velho dilema
shakespereano do “ser ou não ser”, e ESSA era a questão.
Ser ou não ser agressivo.
Ser.
Não ser.
Me questionava mas ao mesmo tempo me passava na cabeça que era a única forma
que eu tinha de ser notado, e perceber o quão perverso é tudo isso, pois você
precisa entrar no estereótipo para ser notado. Precisei dar um grito violento para
existir. Minha maior preocupação é quebrar essas caixinhas e resgatar de fato o que
foi tirado da gente. E o que foi tirado da gente? Eu não estou aqui para ser um
modelo, bonito, plastificado, embalado numa caixinha elegante, estou aqui para ser
legitimo, legível, estou me expondo, falo de mim, falo de outros iguais a mim,
nossa existência já é uma luta.
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A melhor forma que eu achei de lutar contra tudo e contra todos foi por meio da
palavra, do estudo e da arte. (Respiro)
Certo dia minha avó, que era da igreja, me disse em relação às brigas da escola:
-Escuta meu filho, tem uma palavra que diz assim: Eu, porém vos digo que não
resistais ao homem mau, mas a qualquer que te bater na face direita, ofereça lhe
também a outra…
E eu respondi:
- Mas vó eu não tenho mais faces... Já me bateram tanto, mas tanto, mas tanto que
não tenho mais face… E isso é muito triste... Mas eu não me abati e hoje estou
aqui, com as minhas duas faces prontas, mas não mais para apanhar, mas se
necessário for bater, agredir com minhas palavras e se necessário for, com minha
força. Nestes tempos tumultuados em que vivemos não há espaços para sutilezas.
Então meus amigos, quando vocês tiveram seus filhos, lembre-se que eles podem
estar fazendo alguém sofrer na escola. É bom ensiná-los, criando seus filhos para
não serem racistas, porque estamos criando os nossos para reagir. Estamos criando
os nossos filhos para não silenciar mais. Estou criando os meus para reagir.
Se posicionem.
Se posicionem.
E se posicionem.
Estudem.
Entendam o que as estruturam provocam e estejam aptos a romper as estruturas. É
preciso destruir para construir… É preciso destruir para construir... É preciso
DESTRUIR. Eu não tenho descanso. E a partir de agora vocês também não terão.
Vocês não terão.

ONDE ESTÃO OS NEGROS?

Se eu não posso fechar meus olhos para isso, vocês também não fecharão, não
mais, pois eu estarei aqui para lembrá-los, adverti-los, todos os dias se for
necessário, que vocês precisam tomar uma atitude proativa contra o racismo. Não é
possível que vocês olhem ao redor dos espaços privilegiados que vocês freqüentam
e ainda achem normal que não haja pelos menos metade das pessoas negras
freqüentando esses mesmos espaços e que estejam na mesma posição que vocês.
Aqui mesmo, nesse teatro, (luz de serviço/platéia) olhem, observem, é um lugar de
privilegiado. A pergunta que carregarão até o túmulo de vocês toda vez que
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entrarem nesses espaços é: On-de es-tão os ne-gros?! Onde estão os negros?!
Onde estão?! Essa pergunta vai ressoar na cabeça de vocês a partir de agora,
(sussurra baixinho: onde estão os negros?) assim como tem ressoado na minha
durante esses últimos anos. Eu estou cansado de carregar esse peso sozinho e
vocês terão que carregá-lo comigo. Daqui por diante não queiram parecer
descolados ao falar sobre cotas raciais sem entender o que são e a real extensão das
políticas afirmativas. Não façam sociologia/filosofia/antropologia de apartamento.
Chega aqui na minha quebrada para entender de perto o que passamos. Te quero
aqui, dentro dos becos e vielas, pulando as pontes de madeira do valão, se
esquivando das balas de canhão. Não queiram falar sobre nós a distância, de modo
remoto, de dentro do teu apê cheio de mármore branco e ambientado com ar
condicionado potência máxima. Não me façam passar vergonha ao ter que
desmenti-los para explicar que não existe democracia racial no Brasil. E nem por
um segundo pensem em banalizar a nossa luta, a nossa história individual e
coletiva para utilizar isso como argumento de autoridade ou para deslegitimar as
nossas causas, as nossas batalhas diárias. Cada uma das histórias que sofremos fica
gravada na nossa mente com muito mais detalhes do que gostaríamos de lembrar.
Eu sou negro, sempre fui e morrerei sendo, tendo travado as minhas batalhas mais
difíceis internamente e pelas quais vocês não podem sequer sonhar como foram.
Então não diminuam nosso sofrimento. Em todos esses anos de luta por igualdade
foi derramado muito sangue, muito sangue, sangue de verdade. Gente que morreu
por liberdade. Gente que morreu vítima de genocídio, extermínio ou como queiram
chamar. Gente que ainda morre nos dias de hoje por conta do racismo.
(Texto informativo dito velocidade rápida) O jovem Pedro Gonzaga, de 19 anos,
morreu em 14 de fevereiro de 2019 no Supermercado Extra, enforcado por um
segurança, por conta do racismo. O doutor Flávio Ferreira Sant´Ana foi morto em
03 de fevereiro de 2004 pela polícia do Estado de São Paulo por conta do racismo.
O trabalhador Robson Silveira da Luz foi preso, torturado e morto em maio de
1978 pela polícia do Estado de São Paulo por conta do racismo. A menina Ághata,
racismo. Evaldo dos Santos virou peneira, seu corpo negro foi atingido com 80
tiros, adivinha: racismo. Marielle foi assassinada. Assassinada. Cláudia Ferreira foi
arrastada. Amarildo, Pedro, Matheus, Jorge, Maria… George Floyd foi morto com
o joelho de um policial pressionando seu pescoço até a morte mesmo ele gritando
que não conseguia //

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(Suspensão)

Mesmo ele gritando que não conseguia

(Suspensão)

Mesmo ele gritando que não conseguia RESPIRAR // AR // ele não conseguia
RESPIRAR e logo a seguir assistimos a mesma cena desta vez aqui no Brasil onde
a… aquela senhora vivenciou a mesma cena, e eu digo aquela senhora porque a
maioria dos jornais não citou o nome daquela senhora, negligenciaram e diziam
apenas "mulher negra", e uma das coisas mais tristes é quando viramos apenas
estatística, pois não pessoalizam nossas histórias, e por muito pouco aquela
senhora não teve sua vida ceifada da mesma forma que o Floyd e ela gritava a
mesma frase que não conseguia // RESPIRAR…

(Pausa)
(Silêncio)
(Respiração)

Não consigo respirar…

//AR//

(Longa pausa)
(Silêncio)

E logo em seguida assistimos novamente uma cena idêntica a do Floyd, desta vez
em Austin. E depois na Flórida, e depois em Cachoeirinha, e depois em Manaus,
São Paulo, Salvador, Porto Alegre como aconteceu com o Beto dentro do mercado
francês racista... Perceba, eu disse a MESMA cena, e não foi cena de teatro não. Eu
gostaria de dizer que a brutalidade fosse apenas uma cena teatral, que por si só já
seria absurda que é a cena de um joelho de um policial branco na cara de um negro
dizendo que não consegue respirar e que em algum momento alguém gritaria
CORTA e a cena se desfizesse, mas infelizmente a cena é real e acontece
praticamente todas as noites, todos os dias, todas as horas como uma peça de teatro
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e todos os dias negros têm sido exterminados por quem deveria protegê-lo. (Ironia)
Quem chama nosso discurso de vitimista, está convidadissimo a experimentar o
que é o vitimismo embaixo do joelho de um policial. Vai ver quem vai? /Quem vai
experimentar? /aposto que ninguém. Experimenta nascer preto, pobre na periferia
você vai ver como são diferentes as oportunidades. (Mais ironia) E existem
milhares de outros casos que poderiam ser citados aqui ao longo desses anos de
“abolição da escravatura”. As manchetes dos jornais deveriam estar estampadas
com a frase: “Extra, extra, extra: a abolição foi declarada há mais de 130 anos, mas
a sociedade brasileira ainda não superou as chagas do racismo e pensa que ainda
vive no período colonial”.
(Informal) A cada 23 minutos temos um jovem negro assassinado no Brasil. Vocês
precisam lutar contra o racismo tanto ou mais do que nós porque ele também
interfere na vida de vocês, ainda que vocês não percebam. Vocês não terão mais
desculpas para se omitir. Vocês sabem o que acontece, como acontece e onde
acontece. Vocês sabem que por vezes os comentários e atos mais racistas são ditos
e feitos fora da nossa presença porque hoje nós nos fortalecemos cada vez mais e
não deixaremos mais as coisas passarem impunes. E quando virem isso acontecer:
sejam firmes e se posicionem! Sejam tão chatos quanto vocês acham que eu estou
sendo. Só assim as coisas vão começar realmente a mudar. Vocês sabem que os
seus amigos brancos abertamente racistas no fundo têm medo? De nos encarar. E
no fim, eles se tornarão tão poucos que definharão sozinhos. “Ao final,
lembraremos não das palavras de nossos inimigos, mas do silêncio de nossos
amigos”. Nós estamos em pé e atentos. Toda pessoa que usa vitimismo como
argumento em discussão racial é mau caráter para querer negar aquilo que está
mais do que comprovado. Tudo o que disse até aqui não é um ataque, não é uma
ressalva, é um lembrete de que nossas vidas estão sendo ceifadas. “Se você fica
neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Se você não
silencia… Você é um Bluesman. (Eco sussurrado da palavra Bluesman toma conta
da sala, vozes diferentes falando Bluesman)

DISPOSITIVO BLUESMAN (Projeção em vídeo apenas com o rosto em grande


proporção de uma mulher negra ou reprodução de voz off)

1903. A primeira vez que um homem branco observou um homem negro. Não
como um animal agressivo ou força braçal desprovida de inteligência. Desta vez,
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percebe-se o talento, a criatividade, a música. O mundo branco nunca havia sentido
algo como o blues. Um negro, um violão e um canivete. Nasce na luta pela vida,
nasce forte, nasce pungente. Pela real necessidade de existir. O que é ser
Bluesman? (eco sussurrado) É ser o inverso do que os outros pensam. É ser
contracorrente. Ser a própria força, a sua própria raiz. É saber que nunca fomos
uma reprodução automática da imagem submissa que foi criada por eles. Foda-se a
imagem que vocês criaram. Foda-se. Não sou legível, não sou entendível. Sou meu
próprio Deus, meu próprio santo, meu próprio poeta. Me olhe como uma tela preta,
de um único pintor. Me olhe como um Basquiat. Só eu posso fazer minha arte. Só
eu posso me descrever. Vocês não têm esse direito. Não sou obrigado a ser o que
vocês esperam. Não sou obrigado. (Fim do Dispositivo)

Não sou obrigado. Não sou. E digo mais. Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos
ricos. O primeiro ritmo que tornou pretos livres. A partir de agora considero tudo
blues. O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues. O funk é blues, o soul é
blues, eu sou Blues. Tudo que quando era preto era do demônio. E depois virou
branco e foi aceito, eu vou chamar de blues. É isso, entenda Jesus é blues. E se
você não se enquadra ao que esperam. Você é um Bluesman (eco)...

ESTRANGEIRO

Eu, cabelo crespo, pele negra, calça colorida, moletom e chinelos nos pés, abro a
porta da casa onde moro numa condição muito diferente daquela onde cresci. Toda
a minha vida, vivi em dois cômodos, era quarto, cozinha, banheiro. Quarto,
cozinha, banheiro. Lembro das frestas, frestas é modo de dizer, lembro dos buracos
e frestas e a única coisa boa é que eu tinha acesso liberado às estrelas todas as
noites, exceto quando chovia, porque quando chovia mano o bicho pegava. Minha
mãe dizia para eu ficar dentro do guarda-roupa disputando espaço com os ratos,
pois era o único lugar da casa que não chovia. Hoje, onde eu moro é bastante
distante das frestas onde eu via as estrelas. Onde eu moro é um sonho mano. Não
que eu more num casarão chique e o escambal, não é isso. É que é diferente da

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realidade de onde eu vim. Nunca tive um quarto só pra mim. Hoje, eu, um negro de
favela, de periferia, há dois anos vivo num dos bairros centrais da cidade. E é
justamente aí que eu me sinto um estrangeiro caminhando na minha própria rua.
Na favela, querendo ou não, as pessoas são parecidas comigo, dá para ser mais
invisível… eu sempre pensei que a melhor maneira de viver tranqüilo seria sendo
transparente, passar através das paredes, não ter cor, nem cheiro, que os olhares das
pessoas te atravessassem e vissem as pessoas atrás de você, como se você não
estivesse lá. É uma tarefa difícil ser transparente, sempre foi um sonho antigo ser
transparente, um sonho de ser invisível. Quando eu era moleque, bem pequeno, eu
colocava aqueles sacos de pão na cabeça, aqueles sacos de papel e brincava com
minha mãe de ser invisível. Funcionava como se fosse uma mágica. Colocava na
cabeça e pá, sumia, desaparecia. Era brincadeira. Eu estava ali. E minha mãe
entrava no jogo e perguntava: cadê meu filhote? Cadê? E eu embaixo daquele
pacote me divertia e fingia em ser invisível. Agora eu não tenho mais esse desejo
de ser invisível, pois as coisas mudaram. Quando eu passo tem muito contraste,
pois eu caminho como quem dança passos largos, o tronco oscilante, a cabeça a
acompanhar uma espécie de ritmo interior que contamina o corpo todo, o blues…
ah… o blues…

REDUÇÃO DE DANOS

Estamos em 2021 no sul do Brasil e muitas vezes, eu disse muitas vezes, várias
vezes, muitas, muitas, muitas vezes, eu já fui olhado como ameaça, quando eu
caminho de volta para casa há senhoras que se assustam, gente que guarda o
celular, que atravessa a rua, que não senta do meu lado no ônibus, essas coisas.
Vou sempre ali no mercado comprar as minhas coisas e uma vez percebi que
estava sendo seguido… pensei: hoje eu não vou deixar barato! Cheguei ao caixa,
paguei primeiro e pedi para chamar o gerente. Ele veio, branco, e eu falei: Venho
aqui quase toda a semana, e pela primeira vez percebi um funcionário da segurança
me seguindo. Sei que tu vai dizer que isso é comum, que trabalham pela redução

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de danos e que ele estava cumprindo o seu trabalho, que também eu sei que não é
todo mundo que é seguido. Se quiser me seguir não deixem que eu perceba, não
deixem eu perceber, porque da próxima vez vou chamar a polícia, porque isso é
discriminação. Exijo um pedido de desculpas. Ele pediu. E então eu falei. Eu não
vou deixar de vir aqui, porque moro perto, tenho o direito de estar aqui e não quero
ser importunado fazendo as minhas compras. Se quiser me perseguir não deixem
eu perceber, porque da próxima vez vou chamar a polícia. Como se chamar a
polícia servisse de alguma coisa. As vezes fico pensando que foi exatamente isso
que ocorreu naquele mercado com o Beto. Sucessivas perseguições. A sombra do
onipotente no mercado. Sou sempre acompanhado. Vigiado. Metralhado com
olhares suspeitos e que muitas vezes se transformam em violência. Por que é que
eles só seguem algumas pessoas? Isso é crime. E isso é a minha vida toda na
periferia também. Ou seja, eu sou sempre uma potencial ameaça por ser um negro
da favela. Mas como sabem que sou da favela? Pelo meu jeito, o meu modo de ser.
Aqui, não se vê criança na rua, tem muito carro, é muito movimentado, tem muita
grade. As crianças não interagem entre elas. Não vejo criança jogando bola,
jogando taco, brincando na calçada. Hoje a interação não acontece e se existe é do
portão pra fora. Isso aqui nunca vi. Estranho muito isso, é como se a vida estivesse
presa, é como se eu fosse um passarinho na gaiola, não tem interação com a
diferença. As pessoas têm medo. Além da falta de tempo. As pessoas têm medo.
As pessoas só trabalham. É… quando chego de madrugada, fico apreensivo. É fácil
eu ser visto como um não morador. Tem a ver com a cor, o modo de vestir e o jeito
de andar. Tudo em mim parece uma linguagem estrangeira neste lugar. Sou um
estrangeiro e aqui posso me afogar num mar sem água. Posso me afogar? Ou vão
me afogar? As pessoas estão projetadas para me afogar. Eu não sei nadar, mas
aprendi a nadar num mar sem água. A vida me ensinou a nadar para eu não me
afogar. // AR// Não consigo respirar. As pessoas estão projetadas para me afogar.
Eu virei uma ilhazinha no meio do mar e as últimas ondas estão me fazendo
afogar.

PROJETADO PARA ME FERIR

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Isso também tem a ver em ser um estrangeiro dentro da sua própria família, dentro
do que você entende enquanto lar. Minha família era metade branca e metade
preta. Branca por parte de minha mãe e preta por parte de meu pai. Logo meu pai
veio a falecer e eu tive que ir morar com a família de minha mãe, onde todo mundo
era branco, foi um pulo muito doido e eu completamente inserido num mundo
onde só tinham brancos, num role onde eu comecei a estudar em escolas brancas,
eu passei por dez colégios, cinco públicos e cinco privados, graças a bolsas que a
família conseguia e comecei a entender que dentro da própria família existia
racismo, saca... e isso é uma parada que eu fui entender só agora e entender que
por mais que uma pessoa não tivesse a intenção de me ferir, ela foi projetada para
me ferir, ela foi projetada a vida toda para me ferir, e ela conseguia, pois me feria
muito, pois mesmo me amando do fundo do coração aquelas pessoas foram
projetadas para me ferir. Entende? E a escola também foi dura e todo esse processo
eu acabei que eu me neguei completamente a estar naquele espaço que não me
pertencia, por que eu não era bem visto, por que eu não era bem vindo, daí eu
larguei na sexta série tentando buscar o meu lugar, a minha casa não era o meu
lugar, a rua era meu lugar, com os moleques da rua. A rua me atraia muito mais
que a escola. Tem uma música dos racionais que diz que “toda criança sofre muito
na escola”, e eu penso nisso até hoje, pois se esquecem que toda a criança preta
sofre muito mais. Eu acredito que todos nós temos tendências depressivas. Sendo
que é uma coisa que precisa ser combatida, talvez não combatida, mas
compreendida. É sobre a saúde que a gente não tem e precisa achar. Tudo pra mim
perpassa o homem negro. O preto é simbolizado como força, sempre muito forte. E
eu não tinha com quem falar sobre fragilidades. Eu? Logo eu? Frágil? Não... Isso
não é pra mim. Se eu falasse de depressão, poderia ser encarado como fraco. Além
do mais isso é visto como problema de branco. Depressão. Frescura. Eu demorei
quase um ano desde o momento em que recebi o diagnóstico. Eu não tinha
coragem de falar sobre esse assunto. Eu simplesmente não tinha coragem. Eu não
tinha força. Eu achava que ia ser ridicularizado. Eu não posso mostrar que sou
fraco. Saca? E chegou um momento que eu percebi que tudo isso estava me

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destruindo por dentro. E eu já quis me matar tantas vezes, imagina quantas pessoas
não passam por isso. Homem não chora, foda-se, mas eu to chorando. As
expectativas em mim estão me matando. Foda-se as expectativas. Tentei terapeuta,
psicólogo, psiquiatra, um bagulho que eu sempre tentei ir, mas eu sinto uma falha
da psicologia quando se trata de pessoas negras é esquecido que a gente sofre
muito na infância. Independentemente da sua classe social, eu acredito que todos
nós temos tendências depressivas, até mesmo suicidas e isso não é dito, isso não é
discutido e é um problema real que precisa ser discutido, combativo, quer dizer,
não combativo, mas entendido, porque isso te dói, isso te destrói por dentro.
Precisamos falar sobre a saúde que a gente não tem e precisa achar. Precisamos
falar para não se afogar e afundar num mar de lama, num mar de angústias. E isso
tem a ver com um estado espiritual, ancestral.

JESUS NEGRO

Percebe que o mundo está condicionado a te ferir mesmo na religião? Sempre que
eu entrava numa igreja eu via santos brancos, o “salvador” branco, barbudo, olhos
azuis, o negro não estava conectado com isso, sempre condicionado a algo ruim. A
algo demoníaco. E isso foi muito ruim para mim. É preciso encarar a ferida do
processo de embranquecimento do Cristo e o fortalecimento que este dá a
comportamentos e ações de intolerância racial e religiosa no Brasil de hoje. Usar a
imagem e a mensagem de Jesus para promover a intolerância e a perseguição
religiosa já é um papel que não cabe mais àqueles que se dizem seguidores de
Cristo. Se Jesus voltasse hoje matavam ele de novo com uma bala autografada,
porque essa história de bala perdida não existe, mano, a bala perdida tem alvo e
endereço certo. Então matavam Jesus de novo e chamava de comunista, coxinha e
esquerdopata por pensar demais no povo. Não posso deixar de me perguntar como
seria nossa igreja e nossa sociedade se aceitássemos que Jesus era negro; igual o

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Jesus da Mangueira, o Jesus do nosso tempo, o Jesus do funk, do asfalto, do
samba, do grafite, do rap, o Jesus que toma dura da polícia, que mora aqui, justo
aqui, do nosso lado. O Jesus da favela. Que fosse idêntico ao Jesus retratado no
Auto da Compadecida. Que ele resista, renasça, que sua luta seja a nossa luta e
parte de nós. O que aconteceria se enfrentássemos a realidade, que não é outra
senão a de um corpo negro pregado na cruz, abatido, torturado e executado com 1,
2, 3, 80, 111 tiros publicamente por um regime opressor. Talvez nossa atitude
mudasse se compreendêssemos que a injusta prisão, abuso e execução às quais o
Jesus histórico foi submetido têm mais com as nossas histórias, tem mais a ver
com as experiências dos indígenas ou dos refugiados do que com aqueles que
detêm o poder da igreja e que se apropriaram da imagem de Cristo. Pode parecer
radical, mas não paro de pensar sobre o que poderia mudar se fôssemos
conscientes de que a pessoa chamada de Deus pelos cristãos NÃO era branca, mas
que o salvador do mundo foi um judeu do Oriente Médio. Por isso eu afirmo: Jesus
é negro e lhe pintaram de branco e olhos azuis. Mas o espírito santo não tem cor e
é transparente como a água cristalina, que alimenta todas as raças. Exatamente
como a água...

MAR MORTO ou COMO SE AFOGAR NUM MAR SEM ÁGUA

Durante muito tempo fiquei me perguntando sobre tudo isso que a gente vive, todo
esse caos aí fora, todas as lacunas que ainda faltam ser preenchidas, e quando
penso em tudo isso a primeira coisa que me vem à cabeça // é água... Sim água...
Estranho né, poderia ter pensado em qualquer coisa, mas a água é uma substância
encontrada em grande quantidade do nosso planeta, entretanto, nem toda essa água
disponível pode ser aproveitada pelo homem e nem todos os homens tem acesso a
ela. Ela é desperdiçada, mal aproveitada. E eu consigo criar uma relação com isso,
eu consigo criar uma conexão com isso, de que nós negros, estamos aqui, tentando,
conseguindo, cavando, avançando e retrocedendo, construindo e destruindo rochas,
vivendo e sobrevivendo, somos maioria neste país como a água no planeta,
entretanto somos desvalorizados, renegados, ridicularizados, mortos. A água,
limpa, purifica, cura, salva, batiza, irriga as plantas, mata a sede e mata por
afogamento. E tem como se afogar num mar sem água? // Existe afogamento sem
água? // EXISTE AFOGAMENTO NUM MAR SEM ÁGUA? //Existe? Existe
racismo sem racista? Existe? Onde estão os racistas? Eu pergunto isso, pois sempre

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quando essa questão surge me parece que ninguém é! A negativa vem de imediato.
É sempre o outro, nunca você, pois as tuas atitudes sempre terão uma justificativa
que vai inverter a lógica e ainda dizer que sou eu que estou errado, que sou eu que
estou maximizando a questão ou então me colocando enquanto vitima social, e...
(Exaustão) Estou exausto, estou cansado, (respiração) mas ainda tenho muito ar,
ainda consigo respirar e isso por si só já me torna forte o suficiente para seguir
lutando com todas as minhas forças contra tudo e contra todos que tentam me
calar. Que tentam me sufocar, que tentam, tentam, tentam e não vão conseguir.

Eu ainda tenho ar.

Inércia. Propriedade geral da matéria. Inércia. Considere um corpo não submetido


à ação de forças ou submetido a um conjunto de forças de resultante nula; nesta
condição esse corpo não sofre variação de velocidade. Inércia. Meu corpo não
submetido a nenhuma, a qualquer ação de forças, meu corpo não submetido a
nenhum conjunto de forças, eu disse nenhum conjunto de forças, sejam elas
policiais, sejam elas políticas, eu disse policiais, sociais, religiosas, bélicas, sejam
elas policiais, eu disse policiais. Meu corpo não subalternizado.

(Respiração)
Estou cansado e às vezes esse meu cansaço me coloca pra baixo sabe, tira o meu
eixo, e eu fico um trapo, frágil, acabado, esgotado, parecendo que estou à deriva no
mar morto, boiando... Largado... Dizem que essa região do mar morto é a maior
região de depressão do mundo e infelizmente esse é o lugar que muitos pretos se
encontram hoje, a deriva no mar morto, um mar tão inabitável, que não possui
movimento e não consegue se movimentar. Sem reação, sem força, abatido. Dizem
que neste mar a pessoa é capaz de flutuar, que seu corpo fica boiando, pois tem
uma concentração muito grande de sal e isso torna a força do mar inerte. Muitos de
nós hoje, estão inertes, sem forças para lutar, estão abatidos, calados ou até mesmo
mortos. Foram ceifados. E captar isso é dolorido. E fotografar isso é foda.
Fotografar o silêncio é tão difícil. Fotografar o medo é tão difícil. Fotografar a
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insegurança é tão difícil. Mas é preciso captar e fotografar esses momentos da vida
também. Porque mesmo no mar morto existe vida e onde existe vida tem
resistência pela sua própria existência. Estamos vivos, reagindo e nadando no mar
morto onde há muito tempo nossos corpos apenas boiavam. Estamos nadando.
Nadando e nos cuidando para não nos afogar. Estamos nos cuidando para não nos
afogarem. Estamos cuidando. E a travessia pelo mar segue. Estamos sempre
atravessando um mar. Seja no porão ou no convés. Estamos sempre atravessando,
mas não mais nos afogaremos, atravessando e chegando nas margens. Sim,
estamos chegando nas margens, nas bordas e por ali vamos ficando... Nas margens
dos rios, dos mares e das cidades... Estamos atravessando, chegando e ficando nas
margens... Margem... Marginal, marginalizando. Marginalizado. Sou marginal. Sou
periférico. E isso hoje faz muito sentido pra mim. Quando as pessoas se referem à
outra chamando de marginal, favelado ou periférico dão uma conotação de
bandido, criminoso, mas ser marginal é estar à margem, ser periférico é estar fora
do centro, na periferia, e ser favelado é morar na favela, na comunidade e na
verdade é isso que somos. Sou marginal, mas não sou bandido. Não sou ladrão.

ROSA DO MORRO

Hoje aqui eu falo de mim e de tantos outros. Mas o que quero dizer é que quando
se fala de um homem preto, favelado, há de se considerar muita coisa. Nascemos,
crescemos e quase sempre morremos em meio à violência, seja ela física ou
simbólica, é parte do nosso modo de existência. Nós com certeza já vimos,
pegamos ou tivemos armas de fogo, já matamos, sim, já matamos ou quisemos
matar, já quase fomos mortos ou temos primos e amigos que foram mortos em
situações violentas. Nunca vou esquecer que nos tempos de escola perdemos um
colega para a violência por causa de uma bola. Sim, ele e seus amigos jogavam
bola na rua e ela caiu no pátio de um policial que sacou a arma e matou o menino.
Simplesmente ceifou sua vida durante um jogo de futebol entre meninos. E tudo
isso fica gravado na nossa cabeça. Desde a infância temos uma relação muito
próxima com a morte. Somos abusados psicologicamente pela sociedade branca
que não entende o que é ser um homem negro e periférico. Não temos o
“privilégio” de refletir sobre nós mesmos, nossos sentimentos, afetividades e
emoções. A sobrevivência é sempre mais urgente! Somos ensinados desde pequeno
a sermos fortes e não choramingar pelos cantos, internalizando isso e vivendo

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assim todos os dias de nossas vidas. Não sabemos muito sobre amor, apenas
reconhecemos o amor materno como à expressão mais verdadeira desse
sentimento. Não só acreditamos como vemos isso em seu dia a dia nas periferias,
em suas primeiras relações amorosas. Nós ouvimos, assistimos e internalizamos
sem refletir o que está acontecendo, pois, muitos de nós não temos nem referências
e nem ferramentas para isso. E uma das minhas referencias não é nenhuma estrela
da TV não, minha referencia é mulher forte, de fibra, guerreira, literalmente
guerreira, pois faz guerra todos os dias para criar dignamente seus filhos. A
realidade é que a grande maioria nasce e cresce sem ter a figura de um pai, carrega
quando muito apenas o sobrenome. Minha mãe é uma dessas mulheres, mas minha
vó também… Dona Rosa… ah Dona Rosa era uma mulher forte, evangélica que
não admitia que eu baixasse a cabeça para nada. Hoje ela já não está mais aqui
nessa terra, hoje ela não está aqui para ver o que está acontecendo nesse país, mas
quando eu me lembro dela dói aqui dentro, mas ao mesmo tempo eu me alegro e
lembro do bolo de cenoura que ela fazia com aquela cobertura durinha de
chocolate. Tantos momentos juntos, tanta luta, tanto amargor que ela não deixava
transparecer, nunca vi a minha vó chorar, sempre atenta a tudo e a todos. Lembro
que ela fazia todos sorrir e por dentro ela estava chorando muitas vezes. Eu via
todo o peso do mundo sobre as costas daquela mulher, mas ela não se entregava na
sua luta diária, fio da navalha, senzalas, cesáreas, cicatrizes, varizes. Prá nós foda é
quem enfrenta a guerra enquanto amamentava e os tanques são os de roupas sujas
sem amaciante. Duro não é... Qual é a tua guerra? Qual é? (Pausa) Até meu jeito é
dela e eu sinto falta até dos defeitos dela, esses dias achei uma carta com a
caligrafia dela e o papel ficou todo molhado com minhas lágrimas. Olha… Eu ouso
dizer que vi Deus e ele era uma mulher preta…
(Ator canta a música "Rosa do Morro" de Inquérito)

Pela escura, pé rachado, filho nos braços lata na cabeça


Sobe a ladeira, Dona Rosa, a rosa do morro, a rosa que é preta
Saiba você, que nem tudo são flores, no jardim que ela vive
Tem miséria e tem crime... a polícia oprime!

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Mas é de lá que ela veio, é lá que ela vive, é de lá que ela gosta!
Onde as casas são feitas de madeirite... Rosa!

Rosa, rosa, rosa do morro rosa


Rosa, rosa, rosa do morro rosa

Nos caminhos por onde ela andou, viu rosas bem diferentes dela
Viu rosa branca, rosa vermelha e até rosa amarela
Então ela se perguntava meu Deus por que tanto minha cor incomoda?
Se nem todas as rosas... São cor de rosa!

Rosa, rosa, rosa do morro rosa


Rosa, rosa, rosa do morro rosa

MEMÓRIA LIQÜÍDA / IDENTIDADE

No Ocidente, o passado é como um animal morto. É uma carcaça escolhida pelas


moscas. Essas moscas eles chamam de historiadores. Mas na minha cultura o
passado vive. Meu povo se sente assim em parte porque a morte não nos separa de
nossos ancestrais. Isso me faz refletir sobre meu próprio passado. Sobre minha
memória. Sobre minha identidade. Quando hoje, paramos para pensar e refletir
sobre a memória, a primeira coisa que vem a cabeça é a memória do celular e se
ela tem espaço suficiente para guardar mais memórias. Fotos, vídeos, áudios,
textos, tudo lá. E o celular é algo que praticamente todos têm. E memória todos de
certa forma também tem. O que muda é a forma como a memória é tratada, como é
construída, como é processada, a forma como ela é compartilhada. Esses tempos
me peguei vendo um álbum de fotografias e percebi que o acervo da minha
infância é praticamente nulo, fotos parcas que foram perdidas no tempo ou sequer
foram registradas. Minhas primeiras fotos são aquelas 3x4 que tem no documento
de identidade, sabe. Aquelas fotos sem expressão nenhuma, que tu sai com cara de
que não ta gostando de nada. Cara de quem ta incomodado. Pois geralmente estas

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fotos são formais, o negrão aqui não pode dar aquele sorriso. Foto para a carteira
de identidade. Vocês acham que a foto que está no documento realmente
representa a identidade de vocês? Pois é... E isso diz muita coisa. Que tipo de
pessoa consegue produzir memória, esse grande vácuo, que é desenvolvido por
essa falta de acesso a memória. As minhas lembranças estão guardadas aqui
(aponta a cabeça), e aqui (aponta o peito). As minhas memórias são liquidas como
o sangue da cabeça de um homem que estava esparramado na esquina da minha
rua no meio fio do paralelepípedo. Essa é uma das lembranças que tenho do meu
tempo de menino. Esse é uma das minhas memórias. Percebe? Percebe como são
construídas as memórias? Lembro que morávamos mais para baixo e como de
costume estávamos brincando no meio da rua, jogando bola com as travas da
goleira feitas com tijolos de seis furos, e sempre que um carro vinha, a partida era
paralisada e os tijolos removidos, o carro passava e a partida recomeçava. De
repente escutamos um estampido, pá, e mais um, pá, pá. Largamos a bola e
corremos para nossas casas ou adentrávamos no primeiro portão aberto que
encontrávamos. Baixada a poeira, retornamos para a rua e antes de todos chegamos
à esquina, onde jazia um corpo no chão. O sangue escorria da cabeça do morto que
quando o corpo pendeu provavelmente bateu na quina do paralelepípedo, mas
também escorria das três marcas de bala que tinha cravadas no peito. Essa é uma
das memórias que tenho da minha infância. Percebe? A morte no asfalto. A morte
disputando espaço com a brincadeira. Uma das coisas que me lembro deste
episódio é que em poucos segundos juntou uma aglomeração de pessoas que
ficaram em volta do corpo, comentando, sussurrando e querendo saber o que de
fato tinha acontecido. Naquela época ninguém tirou fotos, pois naquele tempo não
existiam celulares. Percebe a diferença do registro da memória? Percebe que se
esse mesmo fato acontecesse hoje, teríamos vários registros sobre o mesmo fato, a
imagem do corpo crivado de balas estaria passeando por vários celulares, várias
timelines e rapidamente a notícia se espalharia. Os assassinatos em via pública
continuam acontecendo, cada vez mais freqüentes, principalmente de corpos
negros, o que mudou é o registro. Percebe a diferença? Percebe? Uma história de
vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa qualquer,

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mas existe para transformar. Existe para comprovar aquilo que vivemos, e
eternizamos numa imagem. Por isso precisamos resgatar nossa memória e afastar
as moscas que teimam em sobrevoar nossas carcaças.

EU FIZ NADA – PROTOCOLO DE MORTE

Mestre só usa roupas brancas. Quando não está jogando capoeira, o chapéu na
cabeça – que deixa à mostra longos dreadlocks – é praticamente sua marca
registrada. Se for necessário identificá-lo por outra característica marcante basta
encarar seus olhos verde-acinzentados. Certo dia ele estava com o filho de cinco
anos no colo, na calçada da comunidade onde mora, quando cinco policiais de uma
viatura o abordaram. Ele não sabia, mas a diligência, que já havia visto passar na
rua, estava à procura de um suspeito por roubo. O suposto autor do crime estaria
em roupas escuras de motoqueiro, com cabelo curto e seria jovem. Eu disse que o
suspeito estaria usando roupas escuras com cabelo curto e jovem. Aos 45 anos, as
mechas grisalhas na barba ou cabelo denunciam a maturidade do Mestre. A única
possível semelhança com o suspeito era o fato de ser negro. E foi o bastante para
que a Polícia Militar valesse de seus protocolos de morte contra o capoeirista.
Revólver engatilhado, golpe mata-leão, a ida a um hospital para receber sedação e
à delegacia para ser fichado foram os procedimentos destinados ao Mestre pelos
agentes do Estado. Proteger o filho teria sido sua desobediência e desacato. “Fico
imaginando o meu povo quando não tinha ninguém para dar apoio. E quem não
pode fazer isso? É essa situação do nosso país, né? Nunca mudou nem vai
mudar… E está piorando”, disse ao sair do DP, exausto, eu disse exausto e com a
voz falha, depois de sofrer por quatro horas diferentes manifestações de racismo
institucional. A chegada da polícia na porta da comunidade não foi diferente de
outras vezes; com a ordem típica, aos berros, do “mão na cabeça”. Mestre não se
espantou. “São 520 anos de perseguição ao povo negro. Ninguém seria alvo de um
revólver engatilhado em nenhum outro lugar da cidade. “Mas aqui é diferente; é o
único local de negros na região.” Dessa vez, porém, Mestre estava com seu filho.
“Meu menino brincava na calçada e veio correndo pro meu colo, com medo”,

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explica. “Como eu ia colocar mão para o alto com ele no braço?”E ainda tinha
arma apontada para os dois. “É muito fácil o poder se aproveitar de circunstâncias
para atacar lideranças negras. É muito fácil saber do meu papel naquela
comunidade. Enxergo uma perseguição a mim e ao que eu represento. A capoeira
atinge a todos, de maneira consciente e inconsciente. “Muda o sistema.” “Vi o
revólver na minha direção e, por conseqüência, diante do rostinho do meu
menino! Foi por isso que eu avisei aos policiais, de maneira muito tranqüila, que
ia colocar a criança pra dentro da vila.” Não deu tempo de poupar o filho do
desrespeito. Ao virar as costas, o capoeirista foi pego pelo mata-leão do policial.
“Teve amigo capoeirista que depois me perguntou por que não me defendi. Sabe
por quê? Eles queriam que eu reagisse. A nossa luta não é de hoje e sei que a
saída é pela voz, é gritar, falar, chamar a comunidade, os jornalistas. E educar
nossas crianças.” Todo líder negro é morto, cê consegue entender?

ALVO = PRETO
ALVA = BRANCO
ALVO = PRETO
ALVA = BRANCO
ALVO = PRETO
ALVA = BRANCO
ALVO = PRETO
ALVA = BRANCO

A cena foi vista por várias pessoas. “O Mestre caiu no chão, na escadinha da viela,
e ainda protegeu a criança com o próprio corpo”. “Queriam que eu reagisse”.
Mestre conta que sentiu tontura, o princípio de um desmaio e rapidamente as
algemas foram apertadas em seu pulso. “Puxaram forte, mesmo, prendendo a
circulação, pra machucar. E aí me lembro de pedir por socorro e só querer saber do
meu menino.” A criança foi amparada por moradores e pela mãe. Na confusão, o
casaco do capoeirista foi rasgado e ele perdeu os sapatos. Fazia menos de 10 graus

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na cidade naquela noite. Sua calça – branca, vale lembrar – ficou sem o botão que
a prendia na cintura. Ao ser levado para o camburão, o capoeirista passou pelo
constrangimento de ficar de cuecas na rua. Foi também nessas condições que
chegou ao hospital público. Frio, pés descalços, calça branca imunda sem o botão
que a prendia na cintura: enquanto estava algemado, o professor, eu disse o
professor, entendam: o professor passou pelo constrangimento de ficar de cuecas
no hospital e na delegacia. Ele achou que iriam cuidar de seus pulsos na
emergência. Mas Mestre não foi atendido por clínico geral nenhum. Os policiais o
deixaram na viatura, ainda com a algema apertada, e uma psiquiatra apareceu ali,
pronta para medicá-lo. “Eu gritei que não queria tomar nada, era a única coisa que
eu poderia fazer.” E, de fato, só por causa de seus gritos os alunos e amigos, que
haviam seguido a viatura da polícia, conseguiram testemunhar o momento em que
o capoeirista manifestou sua recusa em receber sedativos. “Eles mentiram,
disseram que ele estava em atendimento quando nem tinham tirado o mestre do
camburão. Todo camburão teu um pouco de navio negreiro justamente por evocar
imagens como esta”. Não é uma mentira menor, é uma prática de rotina, de
ocultação de vítimas. Sem curativos ou qualquer intervenção médica, o professor
foi obrigado a assinar um papel afirmando que se recusou a receber socorro. E
assim, com as mãos presas, agora inchadas pelas algemas, calças pendentes, cuecas
à mostra, foi levado para ser ouvido pelo Delegado.

“Eu fiz nada”

Repetia. “Eu fiz nada” É preciso dar nome ao que ocorreu: racismo. Diferentes
manifestações de racismo institucional foram praticadas pela polícia e até mesmo
pelo hospital público. O que ele viveu são exemplos concretos de práticas
escravistas que permanecem no âmago do Estado brasileiro. Apenas o fato de ser
negro o incriminou? Para começar, a escravidão nunca acabou e nem temos
democracia. É a partir disso que temos que analisar todo o ocorrido. A polícia
chega desse jeito, e de maneira natural, porque somos negros e isso precisa ser
levado a sério de uma vez. Ao evocar esse episódio saúdo Mestre Moa e Mestre

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Nenê que foram executados pela polícia justamente por serem mestres. Justamente
por serem pretos.
Por isso, nestes tempos tumultuados em que vivemos não há espaço para sutilezas.
Nosso choro verte lágrimas amargas que transbordam a imensidão do mar e às
vezes eu me sinto uma ilhazinha, pequenina no meio do oceano, mas não podemos
nos deixar afogar mesmo estando neste pequeno amontoado de terra. Professores,
mestres, líderes comunitários são referencias para nós, são griôs, estão à frente de
muitos, a serviço de muitos, apenas com seu peito e raça como escudo. Estão na
linha de frente. São primeiro. Imagina sendo o primeiro em alguma coisa, a
primeira pessoa a alcançar o topo de uma grande montanha, o primeiro a cruzar um
oceano num barco a vela, o primeiro atleta a levantar centenas e centenas quilos
numa disputa de halterofilismo, agora imagina sendo o primeiro numa disputa na
qual você não deveria estar e uma competição na qual você não é nem cogitado
num território no qual a sua disposição e paixão em fazer parte é tratada com
chacota, com risadas. O dedo, desde pequeno geral te aponta o dedo, desde
pequeno eles querem que a gente seja mais humilde, baixe a cabeça e não sonhe
alto. No olhar da madame eu consigo sentir o medo, cê cresce achando que cê é
pior que eles, irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo. Ladrão...
Então peguemos de volta o que nos foi tirado. Mano ou você faz isso ou seria em
vão o que nossos ancestrais teriam sangrado. De onde eu vim quase todos
dependem de mim. Todos temendo o meu não, todos esperam o meu sim. Do alto
do morro rezam pela minha vida, do alto do prédio pelo meu fim. Mas mesmo
estando no meio do oceano, numa pequena ilha, não se deixe afogar, não se
permita afogar. Mergulhe. Respire. Nade. Lágrimas são só gotas, meu corpo é
enchente. Eu sou uma ilhazinha no meio do mar e as ondas não vão me afogar.

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