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Separação de Poderes e capacidades institucionais: o caso da pílula do

câncer

Thiago Lôbo Fleury1

Sumário
1. Introdução. 2. Quaestio iuris submetida à apreciação do
Supremo Tribunal Federal – uma contextualização necessária. 3.
Relação Parlamento e agências reguladoras: novos contornos
das teorias da capacidade institucional e da reserva de
administração. 4. Conclusões. 5. Referências.

Resumo
O presente artigo tem como objetivo central o estudo do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 5.501, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, no afã de
repensar e ressignificar a efetividade do princípio da separação dos Poderes,
especificamente a respeito da novel teoria da reserva de administração, que, em seu
espectro de competências, deve afastar até mesmo a competência do Poder Legislativo
para tratar da matéria. Para tanto, o ponto de partida é o emblemático julgamento
realizado pela Suprema Corte, que resgatou a autonomia e a deferência aos órgãos
competentes do sistema público de saúde. O enfrentamento se baseará nas premissas
que levaram a suspensão da eficácia da Lei 13.269/2016 e, consequentemente, o uso da
fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”. A controvérsia baseou-
se no seguinte cenário: a inovadora substância, a despeito de ser teoricamente benéfica
para tratamento de portadores de câncer, não foi submetida a testes clínicos que
pudessem comprovar a sua segurança e eficácia, além de inexistir o necessário registro
sanitário perante o órgão executivo legalmente competente – Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). Nesse contexto, o Poder Legislativo seria competente
para superar a autonomia da agência reguladora e liberar a distribuição da substância?
Para chegar numa resposta desenganadamente negativa, discute-se a dinâmica das
relações interinstitucionais no Estado Democrático de Direito, no intento de suscitar
novas ideias que possam servir de base ao enfrentamento de temas relacionados às
modernas teorias da capacidade institucional e da reserva de administração, além da
necessária deferência aos arranjos institucionais ínsitos à separação dos Poderes.

Palavras-chave

Pílula do Câncer – Lei 13.269/2016 – Poder Legislativo – Separação dos Poderes –


Anvisa – Reserva de Administração – Capacidade Institucional – Poder Judiciário.
1
Assessor de Ministro no Supremo Tribunal Federal. Ex-Assessor de Conselheiro do Conselho Nacional
do Ministério Público (2016). Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.
Citação sugerida:
FLEURY, Thiago Lôbo. Separação de poderes e capacidades institucionais: o caso da
pílula do câncer. In: ARABI, Abhner Youssif Mota; MALUF, Fernando; MACHADO
NETO, Marcello Lavenère. (Org.). Constituição da República 30 anos depois: uma
análise prática da eficiência dos direitos fundamentais. Estudos em homenagem ao
Ministro Luiz Fux. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 405-418.

1. Introdução

No dia 13 de abril de 2016, o Congresso Nacional promulgou a Lei


13.269/2016, que autoriza a comercialização e o uso da fosfoetanolamina sintética –
popularmente conhecida como “pílula do câncer” – por pacientes diagnosticados com
neoplasia maligna (i.e., câncer)2.

Deveras, apesar de todo o contexto humanístico que envolve o tema,


significando, para muitos, uma última esperança3 na luta contra uma doença tão terrível,
o fato incontestável é que a participação do Poder Legislativo desconsiderou toda uma
complexa estrutura regulatória desenvolvida no País: ao substituir o crivo da agência
reguladora responsável – Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) –, inovou
em ambiente que não possui expertise e, muito menos, capacidade institucional,
terminando por violar todo o arcabouço normativo das normas sanitárias vigentes no
Brasil por deixar de lado todo o procedimento técnico necessário para comprovar,
cientificamente, a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos que são
disponibilizados aos cidadãos.

De fato, é por intermédio do registro do medicamento junto à Anvisa que o


Estado poderá cumprir a determinação constitucional de tutelar o direito à saúde,
“garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
2
Lei 13.269/2016
(...)
Art. 4º Ficam permitidos a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse
ou uso da fosfoetanolamina sintética, direcionados aos usos de que trata esta Lei, independentemente de
registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa
substância.
3
Em temas técnicos e específicos, que fogem à dogmática jurídica, é necessário um olhar diferente
quanto à célebre frase de Ruy Barbosa, em 1898, ao defender que “a esperança nos juízes é a última
esperança”.
sua promoção, proteção e recuperação” (CRFB/88, art. 196), além de controlar,
fiscalizar e coordenar a disponibilização de medicamentos, sempre com base em
paradigmas científicos4.

O tema a respeito da autorização legislativa quanto à comercialização e uso de


substância (i.e., fosfoetanolamina – pílula do câncer) para tratamentos dos enfermos
sem a realização de testes clínicos que comprovem sua eficácia e segurança e,
consequentemente, sem registro sanitário perante o órgão executivo legalmente
competente – Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) –, suscita reflexões
sobre tema deveras atual na dogmática constitucional brasileira: além do direito à saúde,
a teoria da capacidade institucional – especificamente quanto à reserva de
administração – e a necessária deferência aos arranjos institucionais ínsitos à separação
dos Poderes.

Ora, se a sanção da Lei 13.269/2016 teve como objetivo atender a “comoção


da sociedade”5, tal como defendido pela então ministra interina do Ministério de
Ciência, Tecnologia e Inovação – MCTI6, Emília Curi, comprova-se o que o Ministro
Marco Aurélio há tempos defende nas sessões do Supremo Tribunal Federal: “os
tempos são estranhos”. É que, como será demonstrado, o Poder Executivo – mais
especificamente a Anvisa – é o locus, por excelência, de deliberações dessa natureza,
não podendo o Poder Legislativo intervir e criar um sistema paralelo e substitutivo da
instância técnica criada justamente para precisar, com maior capacidade epistêmica, o
que deve, ou não, ser fornecido pelo Estado.

O debate, portanto, traz a tona um viés diferente do que normalmente é posto


em discussão nas rodas acadêmicas de debate. Para além das dificuldades conhecidas e
amplamente debatidas acerca da judicialização da saúde – que envolve, dentre outros
aspectos, a determinação de fornecimento, pelo Poder Judiciário, de medicamento ainda
sequer registrado na Anvisa ou de tratamentos experimentais de alto custo –, o tema
suscita debates essenciais acerca dos limites de competência das entidades regulatórias

4
LUCCHESE, Geraldo. Globalização e regulação sanitária: os rumos da vigilância sanitária no Brasil.
(Tese de Doutorado em Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio
de Janeiro, 2001.
5
<http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/04/ministra-diz-que-pediria-prazo-maior-antes-de-liberar-
fosfoetanolamina.html> Acesso em: 20.05.2018.
6
Atual Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações - MCTIC, nos termos da Medida
Provisória 726/2016.
no âmbito do desenho institucional brasileiro – no que se denominará de reserva de
administração.

Em todo caso, a premissa que se busca defender é a mesma: um incentivo e


militância intelectual no sentido de preservar a autonomia do sistema regulatório
constante do ordenamento jurídico pátrio, além de fortalecer suas instâncias de
deliberação interna. Destarte, teremos a preservação da essência do princípio da
separação dos Poderes: cada órgão atuando nos limites de sua competência, o que
significa dizer, in casu, que o papel do Legislativo deve se restringir ao estabelecimento
de normas gerais que possibilitem a atuação específica da agência reguladora, e a
função do Judiciário na proteção do pleno funcionamento da dinâmica das relações
interinstitucionais no Estado Democrático de Direito atual.

Especificamente quanto ao embate Legislativo x Executivo no tocante à


autorização da distribuição e do uso de medicamentos, é consabido que o Congresso
Nacional, nos últimos anos, vem interferindo de maneira ilegítima nas competências da
Anvisa. Sob o pretexto de ser competente e responsável por elaborar normas gerais de
proteção e defesa da saúde (CRFB/88, art. 24, inciso XII), o legislador assumiu – ou
vem tentando – uma competência que não lhe cabe: a análise essencialmente técnica
sobre registro e controle sanitário dos medicamentos.

As implicações dessas ideias serão desenvolvidas ao longo desse artigo.


Contudo, é preciso deixar especificado que o ponto nodal, devidamente contextualizado,
cinge-se ao referencial denominado reserva de administração, que decorre do princípio
da separação de Poderes (CRFB/1988, arts. 2º e 60, § 4º, III). Sua aplicação – já adotada
em algumas decisões do Supremo Tribunal Federal7 – impõe a deferência do Legislador
e do Judiciário em relação ao juízo técnico do Poder Executivo e de suas agências
reguladoras, e impede que um juízo político ou jurídico – sem expertise, portanto –
interfira de forma indevida num procedimento de natureza tipicamente administrativa.
Trata-se de arranjo constitucional que busca argumentos não para justificar uma

7
STF – ADI 969, Relator Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2006, DJ 20-10-
2006; ADI 3.343, Relator Min. Ayres Britto, Relator p/ Acórdão: Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado
em 01/09/2011, DJe 22-11-2011; ADI 3.075, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em
24/09/2014, DJe 05-11-2014; e RE 427.574 ED, Relator Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado
em 13/12/2011, DJe 13-02-2012.
supremacia de um dos Poderes, mas sim a cooperação entre eles, a fim de garantir aos
cidadãos melhores formas de proteção e efetividade dos direitos fundamentais.

Pois bem. Nesse contexto se insere a controvérsia posta no presente caso.

2. Quaestio iuris submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal – uma


contextualização necessária

Certamente, vivenciamos o período mais fértil da história da humanidade em


termos de conquistas científicas, avanços terapêuticos e aprimoramento de tecnologias
que levam a inúmeras descobertas e inovações, inclusive no setor farmacêutico,
responsável pela salutar e nobre missão de garantir uma proteção da saúde com a
elevação do bem-estar e a cura de doenças.

Nesse contexto surgiu a análise sobre determinada substância que,


supostamente, seria a cura – ou um tratamento muito eficaz – para uma das doenças
mais aterrorizantes da atualidade: o câncer.

A fosfoetanolamina8 é um composto orgânico produzido naturalmente pelos


seres humanos, sendo encontrada nos tecidos, órgãos e leite materno. No Brasil, desde
1990, cápsulas do composto fosfoetanolamina sintética (que posteriormente ficaram
conhecidas como pílula do câncer) começaram a ser produzidas de forma artesanal9 por
Gilberto Orivaldo Chierice, à época professor titular do Instituto de Química de São
Carlos da Universidade de São Paulo (IQSC-USP) – atualmente aposentado.

Durante muitos anos o docente distribuiu a substância gratuitamente para


pacientes com câncer terminal. A notícia se disseminou. Apesar da substância não ter
sido produzida na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, mas no
Departamento de Química, de forma artesanal e em caráter experimental por um

8
VERONEZ, Luciana Chain. Atividade da fosfoetanolamina sintética em melanoma murinho
experimental. 80f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2012, p. 24.
9
PIVETTA, Marcus. A prova final da fosfoetanolamina. Disponível em:
<http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/05/17/a-prova-final-da-fosfoetanolamina/>. Acesso em
19.05.2018.
professor, os pedidos dirigidos à Universidade de São Paulo no sentido do fornecimento
dessa substância para a cura do câncer multiplicaram exponencialmente.

Ao se deparar com tal situação, em que cada vez mais enfermos buscaram
amostras da substância, a Universidade de São Paulo, em 2014, emitiu a Portaria IQSC
1.389/2014, impedindo a distribuição do mencionado composto em razão da falta de
testes, de pesquisas e de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa.

A edição de tal norma interna desencadeou uma onda de protestos, campanhas


e passeatas objetivando que autoridades liberassem a distribuição e o uso. Ao mesmo
tempo, milhares de pessoas com câncer ingressaram em juízo em busca de provimentos
liminares que obrigassem a USP a fornecer a substância. O ápice da polêmica em torno
da pílula do câncer se deu quando determinado advogado buscou, no Supremo Tribunal
Federal (PET 5.828), provimento jurisdicional objetivando a disponibilização da
substância para a sua mãe, portadora de câncer em fase terminal. O ministro Edson
Fachin acatou o pedido10. A decisão causou uma avalanche de ações e enormes filas na
porta da USP. histórico

Frente à repercussão dos efeitos da substância e da incessante oposição da


comunidade científica – que defendia a ausência do procedimento regulatório específico
que atestasse a segurança e a eficácia no combate a o câncer – o Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação criou, em 2015, uma equipe de trabalho para realização de
estudos que atestassem a segurança e eficácia da substância.

Apesar dos pareceres contrários à fosfoetanolamina emitidos pelo referido


Ministério, no dia 13 de abril de 2016, em meio a comoção popular, foi publicada a Lei
13.269/2016, que autoriza o uso da substância por indivíduos diagnosticados com
câncer. Para esse efeito, o referido normativo autoriza tais pacientes a utilizar a referida
substância, desde que observem os seguintes condicionantes: (i) apresentem laudo
médico que comprove o diagnóstico da doença; e (ii) assinem termo de consentimento.
Mas não só. O novel diploma permite a produção, manufatura, importação, distribuição,
prescrição, dispensação, posse ou uso da fosfoetanolamina sintética, independentemente
de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos
clínicos acerca dessa substância.

10
Pet 5828 MC, Relator Min. Edson Fachin, julgado em 06/10/2015, DJe 09/10/2015.
Apenas dois dias após a publicação da lei, a Associação Médica Brasileira
ajuizou ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI
5.501/DF) sustentando a incompatibilidade da opção legislativa em face dos direitos
constitucionais à saúde (arts. 6º e 196 da CRFB/88), à segurança e à vida (art. 5º, caput,
da CRFB/88), bem como à dignidade humana (art. 1º, III da CRFB/88). Em amparo de
sua pretensão, sustentou que a norma permite o uso da substância fosfoetanolamina
sintética por pacientes diagnosticados com câncer sem o necessário embasamento em
estudos conclusivos acerca da eficácia e dos efeitos colaterais da substância em seres
humanos, além da ausência do indispensável registro sanitário perante o órgão
executivo legalmente competente – Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

3. Relação Parlamento e agências reguladoras: novos contornos das teorias da


capacidade institucional e da reserva de administração legislativo x agências:
reserva de adm

No caso, o diploma legal – Lei 13.269/2016 – cuja constitucionalidade


questionada no Supremo Tribunal Federal ensejou calorosas e valiosas discussões
acerca da compatibilidade constitucional da autorização legal do uso da substância
fosfoetanolamina sintética num cenário de incerteza e de dispensa do seu registro
sanitário “enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância”.

A questão – uma das mais polêmicas dos últimos anos – é muito sensível e
envolve questões jurídicas distintas, cada qual com a sua devida importância.

De um lado, deve ser ressaltado que o tema de fundo transparece a expectativa


de inúmeras pessoas acometidas de uma doença gravíssima (i.e., câncer), esperançosas
em encontrar a cura definitiva para o seu mal, seja de forma menos dolorosa do que os
procedimentos tradicionais como a quimioterapia ou a radioterapia, seja em virtude do
alegado baixo custo da substância, seja por depositar nela a ultima ratio para conseguir
obstar o avanço de uma doença por vezes irreversível. Trata-se do direito de ter
esperança e se valer das mais diversas formas de tratamento para tentar sua
sobrevivência.
De outro, e não menos importante, está a necessidade de observância de
estudos clínicos para que uma determinada substância seja incorporada à categoria de
medicamento, a fim de evitar problemas graves de saúde pública em razão do
fornecimento de uma determinada matéria desacompanhada do aval das agências
responsáveis pela fiscalização medicamentosa e sanitária do país.

Não é sem razão que foram editadas a Lei 5.991/73, que “Dispõe sobre o
Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e
Correlatos, e dá outras Providências”, a Lei 6.360/76, que “Dispõe sobre a Vigilância
Sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as Drogas, os Insumos Farmacêuticos
e Correlatos, Cosméticos, Saneantes e Outros Produtos, e dá outras Providências”, a
Lei 9.782/99, que “Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências”, bem como foi tipificado
como crime, com pena de 10 (dez) a 15 (quinze) anos de reclusão, a “Falsificação,
corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou
medicinais”, nomen iuris do crime previsto no art. 273, do Código Penal11.

Denota-se, claramente, que a extensa legislação editada tem a finalidade de


levar a efeito o “controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos
farmacêuticos e correlatos” em circulação no país e, assim, evitar possíveis problemas
de saúde pública.

Nesse ponto, importantíssima ao deslinde da controvérsia, a Lei 9.782/1999, ao


estabelecer todo o sistema nacional de vigilância sanitária, atribuiu à Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) – autarquia sob regime especial vinculada ao
Ministério da Saúde, na condição de órgão em nível nacional –, a competência para

11
Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou
medicinais:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
(...)
§ 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos
em qualquer das seguintes condições:
I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
(...)
VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.
exercer a vigilância sanitária de medicamentos12. Além disso, fixou standards para que
a Anvisa implemente, tecnicamente, seus comandos.

Destarte, e esse é talvez o ponto chave da presente controvérsia, a norma tem


por objetivo deslegalizar matérias específicas, que predicam de uma regulação infensa a
interesses políticos e a apelos populares. Especificamente no que tange à produção de
medicamentos, existe todo um processo legal regulatório que, no afã de garantir que
determinado medicamento é dotado de segurança e de eficácia, encontra-se permeado
de análises técnicas, e não políticas. Abro um parêntese para refutar a visão romântica
de que seja possível a separação entre regulação e política. Apesar disso, é evidente que
a atuação técnica das agências reguladoras reduz – ao menos em tese – os efeitos
políticos sobre a função especializada que desempenham13.

Estabelecidas essas premissas, a questão centra-se em averiguar se a


determinação de fornecimento da substância fosfoetanolamina sintética, “enquanto
estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância” (art. 4º, in fine, da Lei nº
13.269/16), sem a observância das normas estabelecidas pela Anvisa – órgão
tecnicamente competente – está ou não compreendido no âmbito de atuação do Poder
Legislativo, ou se viola o cerne da moderna análise principiológica da separação dos
Poderes.

Inicialmente, é importante chamar a atenção, no ponto, que o próprio legislador


reconhece não se tratar de uma medicação, mas de uma “substância”, já que não possui
o devido registro na Anvisa e ainda se encontra em fase de “estudos clínicos”, de modo
que a liberação do seu uso (lato sensu) se deu mediante uma penada do legislador, sem
que se tenha o impacto dessa substância sobre a saúde das pessoas e da saúde púbica
como um todo.

A própria Universidade de São Paulo, local onde foram iniciadas, de forma


independente, as pesquisas com a substância, fez questão de divulgar comunicado se
posicionando a respeito da fosfoetanolamina, ocasião em que ressaltou a inexistência de

12
Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os
produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:
I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias;
13
FONSECA, Francisco José Defanti. Reserva de regulação da Administração Pública. Revista de Direito
Público da Economia, v. 57, p. 143-169, 2017.
registro e autorização de uso desse composto pela Anvisa, pontuando que “não se trata
de detalhe burocrático o produto não estar registrado como remédio – ele não foi
estudado para esse fim e não são conhecidas as consequências de seu uso” 14.

Já no âmbito da Anvisa, merece destaque, também, os esclarecimentos


prestados através da Nota Técnica 56/2015/SUMED/ANVISA15, que informou a
inexistência de registro da fosfoetanolamina, a ausência de comprovação da sua
eficácia, os riscos que há com o fornecimento desse produto despido de qualquer
controle estatal, além de explicitar todo do procedimento ordinário para registro de um
medicamento na referida agência. Por se tratar de matéria eminentemente técnica,
mostra-se oportuno transcrever os principais pontos, in verbis:

(...) 5. Fundamental destacar que a concessão de registro sanitário


consiste em ato administrativo vinculado, isto é, dependente, de
maneira intrínseca, da prévia solicitação por parte do interessado na
fabricação e comercialização do produto, o qual requeira a concessão
desse registro para posterior avaliação da Agência.
(...)
6. Para comprovação de segurança e eficácia são apresentados no
dossiê de registro, dentre outros documentos, relatórios de estudos não
clínicos (não realizados em seres humanos) e relatórios de estudos
clínicos fase I, II e III (realizados em seres humanos). A análise desses
dados é pautada na relação benefício/risco do medicamento. São
registrados os medicamentos cujos estudos comprovem que os
benefícios superam os riscos. A fim de minimizar os riscos ou danos,
é necessário que o medicamento seja de boa qualidade, seguro e
eficaz, e que seja usado de forma racional.
(...)
10. Além dos requisitos clínicos, para serem registrados nos Brasil os
medicamentos devem apresentar no dossiê garantias sobre a
qualidade, o prazo de validade e condições de armazenamento. Estes
requisitos são obrigatórios e o não cumprimento de especificações de
qualidade consideradas imprescindíveis, pode resultar em sérias
implicações na saúde dos pacientes. Dessa forma, para garantir a
qualidade, a segurança e a eficácia dos medicamentos, a sua produção
e liberação para o uso deve ser baseada no cumprimento da
regulamentação sanitária.

14
Disponível em: <http://www5.usp.br/99485/usp-divulga-comunicado-sobre-a-substancia-
fosfoetanolamina/> Acesso: 20.05.2018.
15
Disponível em:
<http://portal.anvisa.gov.br/documents/33836/349757/NOTA+T%C3%89CNICA+56+2015+-
+SUMED+-+Esclarecimentos+sobre+a+fosfoetanolamina/4b34c204-8924-4b14-9396-62224e7d1d8e>
Acesso: 20.05.2018.
11. Temos então que o caminho legal para o fornecimento de um
medicamento no país é a solicitação do registro, perante esta Agência,
para validação dos dados de qualidade, eficácia e segurança, com as
respectivas responsabilidades da empresa, além do monitoramento
pós-comercialização (Farmacovigilância) e os estudos clínicos fase
IV.
12. Não há na Anvisa qualquer registro concedido ou pedido de
registro para medicamentos com o principio ativo fosfoetanolamina.
Neste contexto, ressaltamos que também não há em curso qualquer
avaliação de projetos contendo a fosfoetanolamina para fins de
pesquisa clínicas envolvendo seres humanos.

Já nas informações prestadas pelo Senado Federal16 para subsidiar o


julgamento da ADI 5.501, no intento de defender a opção legislativa de proceder ao by-
pass institucional, foram colacionadas manifestações da comunidade científica sobre o
assunto, não menos desanimadoras quanto à fosfoetanolamina sintética como substância
promissora a ser desenvolvida para virar medicamento a ser desenvolvido, como se
observa das seguintes conclusões:

(i) Em artigo publicado na Anticancer Research17, a conclusão


apresentada é a de que “a fosfoetalonamina é uma potencial droga
anticâncer”.
(ii) A revista britânica Nature18 apontou trabalho publicado no British
Journal of Cancer com o seguinte resultado: “A fosfoetanolamina
sintética possui efeitos anticâncer em camundongos com APL
(Leucemia Promielocítica Aguda) através da inibição da expansão em
clones, sugerindo que a fosfoetanolamina é um interessante composto
para o tratamento da leucemia”;
(iii) Uma dissertação de mestrado defendida no departamento de
Bioengenharia da USP, campus São Carlos, “mostra as vantagens da
fosfoetanolamina sobre quimioterápicos em uso comercial e a
presença de diminuição significativa de tumores em animais (...)19”.
(iv) Uma dissertação de mestrado na Faculdade de Medicina de
Ribeiro Preto demonstrou “o papel inibidor da fosfoetanolamina na

16
Ofício 038/2016-PRESID/ADVOSF (Documento eletrônico nº 21). Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.js
f?seqobjetoincidente=4966501> Acesso: 18.05.2018.
17
FERREIRA, A K. et al. Anticancer Effects of Synthetic Phosphoethanolamine on Ehrlich Ascites
Tumor: An Experimental Study. Anticancer Research, International Journal of Cancer Research and
Treatment, January 2012 vol. 32 no. 1 95-104.
18
Disponível em: <https://www.nature.com/articles/bjc2013510>. Acesso: 25.05.2018.
19
MENEGUELO, Renato. Efeitos antiproliferativos e apoptóticos da fosfoetanolamina sintética no
melanoma B16F10. 2007. Dissertação (Mestrado em Bioengenharia) - Bioengenharia, Universidade de
São Paulo, São Carlos, 2007.
progressão do melanoma20”, mediante os testes realizados em
animais.

Diante desse contexto, percebe-se que a carta branca conferida pelo legislador
para o uso da substância fosfoetanolamina sintética não se deu alicerçado em qualquer
estudo que comprove a segurança e efetividade em seres humanos, mas, quando muito,
a partir de testes realizados in vitro e em animais, sem qualquer controle técnico e
regulatório pela autoridade competente.

Nesse ponto, é cediço que somente é possível afirmar que uma determinada
substância seja apta a resguardar o direito à vida e à saúde dos indivíduos quando tiver
eficácia e segurança comprovadas pela agência nacional responsável por certificar esses
critérios – a Anvisa – ou por entidades congêneres como, v.g., a “Food and Drug
Administration” (FDA) dos EUA, a “European Agency for the Evaluation of Medicinal
Products” (EMEA) da União Europeia, e a “Japanese Ministry of Health & Welfare”
do Japão. Não está dentro das capacidades institucionais do legislador, mediante uma lei
isolada, assegurar que uma determinada substância é eficaz para o tratamento de
determinada doença e ostenta segurança necessária para que seja fornecida aos
cidadãos, especialmente quando inexiste registro em qualquer outra entidade
governamental congênere.

Outrossim, a controvérsia, para além da importantíssima discussão a respeito


do dever do Estado de promover e tutelar o direito à saúde, fornece importantíssimos
standarts de atuação dos Poderes Legislativo e Judiciário frente às competências das
entidades regulatórias num contexto de capacidades institucionais e deferência às
escolhas realizadas pelos órgãos especializados em determinado assunto. Reserva de Adm

Destarte, na medida em que o ordenamento jurídico brasileiro impõe que o


controle dos medicamentos deve ser realizado com base em um aparato técnico
"sendo vedado,
em princípio, a especializado, titularizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, desenvolve-se
edição de
normas sobre a
um espaço de atuação exclusiva, sendo vedado, em princípio, a edição de normas sobre
matéria pelo a matéria pelo Poder Legislativo. Trata-se do que foi denominado de reserva de
Poder
Legislativo"
20
VERONEZ, Luciana Chain. Atividade da fosfoetanolamina sintética em melanoma murino
experimental. 2012. Dissertação (Mestrado em Imunologia Básica e Aplicada) - Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto, University of São Paulo, Ribeirão Preto, 2012
reserva de adm: "expressão derivada
do princípio da separação dos
poderes"

administração, expressão derivada do princípio separação dos Poderes, entendida como


um campo decisório de incumbência privativa do Poder Executivo, e, nesse caso, da
agência reguladora – Anvisa. "um campo decisório
de incumbência do
A premissa merece ser melhor desenvolvida. Poder Executivo"

Em sua concepção contemporânea, a ideia de separação de Poderes21 envolve


um arranjo institucional pensado como uma forma de limitar o arbítrio da função
política. Como adverte o jovem constitucionalista Abhner Youssif22, o princípio da
separação dos Poderes “no início de sua formulação política era visto com uma função
de reforço dos poderes, mas adquiriu, ao longo do tempo, outra função igualmente
importante, que é a da própria sustentação da democracia, pela limitação que um
poder exerce sobre o outro”.

Em regra, os Poderes da República devem ser autocontidos e deferentes aos


outros, num estímulo constante e recíproco em que cada órgão tome, com
exclusividade, decisões dentro da seara de sua especialização. Nessas situações, muitas
vezes falta a um dos Poderes a capacidade institucional e a expertise para decidir e
avaliar o efeito sistêmico de suas decisões.

Especificamente ao tema de fundo a que me proponho neste artigo, é


necessário conceber a correta divisão de funções existente entre Poder Legislativo e
Poder Executivo em sua função administrativa. Enquanto aquele possui, como função
essencial, a criação – ou revisitação – de normas destinadas a reger a vida coletiva23,
este deve, através de atos administrativos, aplicar as normas editadas pelo legislador e
outorgar efeitos concretos, com destinatários específicos e situações bem indicadas.

Apesar da evidente articulação entre as funções, é essencial à ótima


administração da coisa pública o desempenho, de modo independente, pelo órgão que
possui capacidade institucional para tanto24. Embora seja consabida a existência de um
sistema de freios e contrapesos (checks and balances), faz-se mister que cada Poder

21
ACKERMAN, Bruce. Good-bye Montesquieu. In: ACKERMAN, Susan Rose; LINDSETH, Peter L.
(Org.). Comparative administrative law. Edward Eugar Publishing, 2012.
22
ARABI, Abhner Youssif Mota. A tensão institucional entre judiciário e legislativo: controle de
constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Editora
Prismas, 2015, p. 48.
23
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário.7. ed.,
atualizada por Gustavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 6.
24
ACKERMAN, Bruce. The new separation of powers. Harvard Law Review, v. 3, p. 640, 2000.
desempenhe o seu papel, e que o outro não intente substituir nem usurpar a competência
de cada qual, no campo que se denominou de reservas (i.e., reserva de lei, reserva de
jurisdição e reserva de administração).

Deveras, em relação à reserva de administração25, trata-se de atribuição do


Poder Executivo relacionado a um domínio de funções administrativas que devem ser
desempenhadas sem margem para interferências legislativas ou judiciais – imune,
portanto, de qualquer avaliação externa. Nos termos da precisa lição de Arícia Corrêa
Fernandes, em sua tese de doutorado intitulada “Por uma releitura do princípio da
legalidade administrativa e da reserva de Administração”, apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a
reserva de administração constitui “um espaço autônomo – e, por isso, insubordinado e
auto-responsável – de exercício da função administrativa, normativa e concretizadora
da tutela dos direitos, infenso à sub-rogação legislativa e jurisdicional, à vista do
princípio da separação de poderes”.26

À luz desse entendimento, o administrativista da Universidade Estadual do


Estado do Rio de Janeiro, Gustavo Binenbojm, ao ressaltar a existência de espaços de
conformação próprios do administrador, destaca que “se ao invés de tratar de matérias
genéricas e abstratas, o legislador for além de seu mister próprio e editar atos com
efeitos concretos que envolvam matéria tipicamente administrativa, haverá uma
transgressão das competências inerentes à separação funcional de Poderes”27.

Em síntese, trata-se de uma questão pragmática: em decorrência tanto da


celeridade quanto da complexidade das relações sociais na atualidade, o Poder
Legislativo não dispõe de estrutura e muito menos de especialização para lidar com
entraves técnicos e específicos da sociedade contemporânea. Daí é que se justifica o
deslocamento de competências do Legislativo para o Executivo, especialmente em
relação às agências reguladoras, naquilo que se denominou de reserva de administração.

25
Para o doutrinador lusitano José Joaquim Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 5ª ed. Coimbra, 2002, p. 739.), trata-se de “um núcleo funcional de administração Canotilho
‘resistente’ à lei, ou seja, um domínio reservado à administração contra as ingerências do parlamento”. sobre a
26 reserva de
CORRÊA, Arícia Fernandes. Por uma releitura dos princípios da legalidade administrativa e da
reserva de administração; 2008, p. 261; Tese (Doutorado em Direito) - Universidade do Estado do Rio de adm
Janeiro; Orientador: Luís Roberto Barroso.
27
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 154.
Na linha do renomado doutrinador Sérgio Guerra28, “a regulação existe quando a
classe política se libera de uma parte de seus poderes a favor de entidades não eleitas
pelo povo, que são capazes de bloquear as decisões das eleitas”.

Consectariamente, no afã de possibilitar a tomada de decisões pontuais e


estratégicas das agências reguladoras, o ordenamento prevê instrumentos que garantem
a efetivação plena de autonomia estrutural (i.e., orçamento, equipe qualificada,
funcionários, equipamentos) para gerenciar o campo econômico regulado. Nos termos
da brilhante lição do Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ,
Dr. Valter Shuenquener de Araújo29, “é recomendável que a organização estatal das
atividades econômicas e dos serviços públicos seja feita por uma entidade autárquica
dotada de uma verdadeira autonomia reforçada”.

Como consequência, para permitir o exercício autônomo e técnico do seu


papel, a necessidade premente é blindar ao máximo suas decisões técnicas das
influências e dos anseios políticos e garantir todo o aparato técnico especializado capaz
de construir uma decisão que acomode os impactos econômico e social da área
regulada. Na linha dos ensinamentos do Professor André Rodrigues Cyrino30, “uma
concepção moderna de separação de Poderes deve estar ligada à existência de órgãos
profissionalizados insulados, em maior ou menor grau, da política”, pois a
implementação das normas depende de considerações e análise multifacetadas de
conteúdo técnico.

Uma ressalva é importante: é cediço, e inafastável, competir ao Poder


Legislativo a criação de regras gerais e abstratas para tratar dos trâmites necessários
para aprovação de medicamentos no Brasil. Apesar disso, o ordenamento jurídico, no
contexto da sociedade contemporânea, marcada por sua liquidez31, crescente
especialização e particularidades dos mercados, construiu um sistema de competências
que expressamente atribui às agências reguladoras determinadas atribuições que não

28
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas
administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 94-95.
29
ARAÚJO, Valter Shuenquener. Os quatro pilares para a preservação da imparcialidade técnica das
agências reguladoras. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 20, n. 120, Fev./Maio 2018, p. 64-91.
30
CYRINO, André Rodrigues. Direito constitucional regulatório: elementos para uma interpretação
institucionalmente adequada da constituição econômica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 232.
31
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
podem ser superadas por atos casuísticos de outros Poderes, sob pena de total
insegurança jurídica nos mercados regulados. Para Floriano de Azevedo Marques
Neto32, “os órgãos reguladores não são instância institucional para definição de
políticas. São sim espaços e instrumentos para efetivação destas, previamente definidas
pelo Executivo e pelo Legislativo”.

Como bem ressalta o prestigiado Diretor de Regulação Sanitária da Anvisa,


Renato Alencar Porto, as razões que impõem o prestígio e a deferência às decisões
técnicas das agências reguladoras remetem “a uma enorme vantagem do órgão
regulador: as agências aglutinam métricas muito mais precisas para aferir o custo-
benefício da atuação do Estado, porque estão debruçadas não apenas nas teorias e/ou
vontades políticas, mas na observação e atuação diária de seu objeto de regulação”.
Além disso, ressalta, com autoridade, que “as agências são, ainda, oxigenadas por
métodos e doutrinas desenvolvidas dentro e fora do país, num grau de aprofundamento
dos temas que dificilmente se vê no Legislativo – cuja iniciativa é, por natureza, muito
mais ampla e generalizante”33. No mesmo sentido, Alexandre Santos de Aragão destaca
que o critério técnico das agências se destaca, “principalmente, pelo fato dos seus atos e
normas demandarem conhecimento técnico e científico especializado para que possam
ser emanados, aplicados e fiscalizados” 34.

De fato, a legislação aplicável, ao outorgar competências às agências


reguladoras, sob o pressuposto que detém maiores níveis de informação e de
conhecimento técnico, além de aptidão operacional e prática capazes de desenvolver de
forma mais adequada a regulação de mercados tão complexos, garantiu a capacidade
institucional para tomar decisões específicas sobre os assuntos de sua expertise. Nos
bem pontuados termos de Daniel Sarmento, “a cegueira diante das capacidades
institucionais dos intérpretes da Constituição pode gerar perspectivas hermenêuticas

32
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu
regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 92.
33
PORTO, Renato Alencar. A decisão que atende à razoabilidade. Disponível em:
<https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/discutindo-a-relacao-congresso-e-agencias-
reguladoras-31082017 > Acesso: 20.05.2018.
34
ARAGÃO, Alexandre Santos. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo
Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 323.
muito bonitas na teoria, mas que, quando aplicadas na prática, se revelem desastrosas
para a própria concretização dos valores constitucionais”35.

Notadamente quanto à Anvisa, parece claro que se uma norma editada pelo
Poder Legislativo – Lei 9.782/1999 –, reconhecendo a necessidade contemporânea da
descentralização através da regulação – outorgou a uma agência reguladora a
competência para analisar a concessão de registros sanitários a medicamentos, não
poderá o legislador, casuisticamente e justificado por uma “comoção popular”, usurpar
a atividade executória e subverter o sistema regulatório vigente.

Nessa conjuntura, no caso específico da pílula do câncer, não poderia o Poder


Legislativo, que não possui expertise no assunto e desconhece seus meandros, se
imiscuir na questão para autorizar o uso (lato sensu) de uma substância cuja
controvérsia sequer está resolvida na seara médica. Tampouco poderia desconsiderar o
preceito constitucional que incumbe ao sistema de saúde, através da Anvisa, a atribuição
de controlar e fiscalizar a substância fosfoetanolamina sintética previamente à sua
distribuição para a população em geral, sob pena de afrontar não só a competência para
tanto, mas o próprio direito constitucional à vida e à saúde dos cidadãos recebedores da
referida substância sem eficácia e riscos comprovados.

Não é demais lembrar que a capacidade institucional envolve a determinação


de qual poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria,
especialmente quando em jogo tema que envolve aspectos técnicos ou científicos de
grande complexidade, como ocorre no presente caso. Como bem ressaltado pelo i.
Ministro Marco Aurélio, Relator da ação no STF, existe “um espaço reservado às
decisões técnicas das entidades reguladoras, em face das quais os Poderes Legislativo
e Judiciário terão de ser deferentes”, na medida em que “existem atos administrativos, Marco Aurélio
sobre
de natureza técnica, cuja competência é privativa da Administração Pública, a qual reserva de
adm
não pode ser substituída por outra entidade detentora de poder”.

Nesse cenário, descabia ao legislador autorizar o uso da fosfoetanolamina


sintética, porquanto não ostenta conhecimento técnico específico sobre a questão para
se sobrepor ao órgão administrativo responsável pela autorização do uso da referida

35
SARMENTO, Daniel. Interpretação Constitucional, Pré-compreensão e Capacidade Institucional do
Intérprete. In: Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm (coord.) Vinte anos
da Constituição Federal de 1988, 2009, p. 312-313.
substância no tratamento de determinada doença. A função protetiva do sistema único
de saúde, ligada ao controle das substâncias atinentes à saúde dos cidadãos, não poderia
ter sido solapada mediante atividade legislativa, porquanto resguardada
constitucionalmente sob o manto da atividade fiscalizatória que cabe à função
administrativa estatal.

Como ressaltado, as pesquisas desenvolvidas não foram – nem são36 –


conclusivas acerca dos benefícios e dos riscos que envolvem a utilização da
fosfoetanolamina sintética na condição medicamentosa, de modo a permitir que seja
liberado o seu manejo para a população previamente à conclusão dos estudos exigidos
pela agência responsável pelo controle de todas as medicações em território nacional.
Vale referência a sempre lúcida e didática lição do Ministro Luís Roberto Barroso, que,
em seu voto na ADI 5.501, prelecionou que: “em tema de tamanha relevância, que
envolve pessoas fragilizadas pela doença e com grande ânsia para obter a cura, não há
espaço para especulações. Diante da ausência de informações e conhecimentos
científicos acerca de eventuais efeitos adversos de uma substância, a solução nunca
deverá ser a liberação para consumo”37. Nessa linha, não é admissível que o
Parlamento se substitua à agência responsável no exercício da atividade administrativa,
isentando determinada substância à realização de análises clínicas e de registro
sanitário, ou melhor, deixando de lado a comprovação da segurança e da eficiência do
composto, além da própria regulação.

Por essas razões, não poderia ter havido a edição de ato legislativo dispensando
os procedimentos administrativos necessários para que a substância venha a ser
considerada uma medicação e, assim, autorizado o seu fornecimento em todo território
brasileiro, por consistir flagrante violação ao princípio da separação de Poderes no
âmbito da reserva de administração. Com base nessas premissas, o Plenário do Supremo

36
Estudo no Icesp, realizado em 2017, sugere que fosfoetanolamina não é eficiente contra o câncer.
Disponível em: < https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-da-saude/estudo-no-icesp-sugere-que-
fosfoetanolamina-nao-e-eficiente-contra-o-cancer/> Acesso: 18.05.2018.
37
Voto do Ministro Luís Roberto Barroso. ADI 5501 MC, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno,
julgado em 19/05/2016, DJe 01.08.2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/stf-acordao-
fosfoetanolamina.pdf> Acesso: 20.05.2018.
Tribunal Federal, ao julgar a ADI 5.501 MC, por maioria de votos, deferiu a liminar38
para suspender a eficácia da Lei 13.269/2016 até o julgamento de mérito.

4. Conclusão

Como destacado ao longo deste artigo, verificou-se, na prática, uma


transferência de funções do Poder Legislativo ao Poder Executivo, derivando um
reconhecimento de espaço normativo virtuoso às agências reguladoras por dois motivos
principais: (i) complexidade dos setores econômicos e da inviabilidade do Poder
Legislativo de responder de forma adequada e célere às necessidades do dia a dia dos
administrados; e (ii) aptidão técnica das agências que lhes permite desenvolver respostar
ágeis e específicas no domínio regulado, mercê da evolução provocada por novos
desafios tecnológicos.

Com efeito, os standards de atuação das agências reguladoras devem adequar-


"os standards da
se, sempre, à expertise técnica que possibilita, como fator de legitimação, sua atuação das
agências
interferência na atuação dos particulares. Nesse cenário, surge a teoria da reserva de reguladoras
administração, que, ao outorgar às entidades regulatórias funções de caráter devem adequar-
se, sempre, à
predominantemente técnico em sua atuação, deve afastar, em regra, a competência do expertise
técnica"
Poder Legislativo para tratar da matéria, em respeito ao sistema erigido em torno da
separação dos Poderes.

A partir dessas premissas, essencial o estudo do julgamento da Ação Direta de


Inconstitucionalidade 5.501, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, que enfrenta
matéria fática e jurídica apta a repensar e ressignificar a efetividade do princípio da
separação dos Poderes ao sinalizar um resgate da autonomia e da deferência aos órgãos
competentes do sistema público de saúde.

38
SAÚDE – MEDICAMENTO – AUSÊNCIA DE REGISTRO. Surge relevante pedido no sentido de
suspender a eficácia de lei que autoriza o fornecimento de certa substância sem o registro no órgão
competente, correndo o risco, ante a preservação da saúde, os cidadãos em geral. (ADI 5501 MC, Relator
Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 19/05/2016, DJe 01.08.2017).
É que, a controvérsia baseou-se no seguinte cenário: a inovadora substância, a
despeito de ser teoricamente benéfica para tratamento de portadores de câncer, não foi
submetida a testes clínicos que pudessem comprovar a sua segurança e eficácia, além de
inexistir o necessário registro sanitário perante o órgão executivo legalmente
competente – Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Assim, a pergunta que o presente artigo buscou responder é a seguinte: seria o


Poder Legislativo competente para superar a autonomia da agência reguladora e liberar
a distribuição pílula do câncer?

A resposta, em consonância com o entendimento da maioria do Supremo


Tribunal Federal, é desenganadamente negativa, especialmente em respeito à salutar
dinâmica das relações interinstitucionais no Estado Democrático de Direito, que impõe
respeito à capacidade institucional de cada Poder, além da necessária deferência aos
arranjos institucionais ínsitos à separação dos Poderes.

Consectariamente, a Lei 13.269/2016, ao autorizar o uso da substância


fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com câncer, a despeito da falta
de testes clínicos que comprovem a sua segurança e eficácia, e da ausência de registro
sanitário perante a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, viola à reserva
de administração, que decorre do princípio da separação de Poderes, na medida em que
não cabe ao Parlamento substituir o juízo técnico da agência regulatória por opção
eminentemente política.

Estabelecidas essas teses, o objetivo maior é exortar o debate a respeito da


salutar aplicação de método dialógico que estimule a preservação do atual sistema
erigido em torno do princípio da separação de Poderes, em que cada órgão desempenha
seu papel, em clima de complementariedade, de onde deriva o respeito recíproco do
campo próprio e indelegável das escolhas políticas do Legislador e das opções técnicas
das agências regulatórias.

5. Referências
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LINDSETH, Peter L. (Org.). Comparative administrative law. Edward Eugar
Publishing, 2012.

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640, 2000.

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