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câncer
Sumário
1. Introdução. 2. Quaestio iuris submetida à apreciação do
Supremo Tribunal Federal – uma contextualização necessária. 3.
Relação Parlamento e agências reguladoras: novos contornos
das teorias da capacidade institucional e da reserva de
administração. 4. Conclusões. 5. Referências.
Resumo
O presente artigo tem como objetivo central o estudo do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 5.501, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, no afã de
repensar e ressignificar a efetividade do princípio da separação dos Poderes,
especificamente a respeito da novel teoria da reserva de administração, que, em seu
espectro de competências, deve afastar até mesmo a competência do Poder Legislativo
para tratar da matéria. Para tanto, o ponto de partida é o emblemático julgamento
realizado pela Suprema Corte, que resgatou a autonomia e a deferência aos órgãos
competentes do sistema público de saúde. O enfrentamento se baseará nas premissas
que levaram a suspensão da eficácia da Lei 13.269/2016 e, consequentemente, o uso da
fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”. A controvérsia baseou-
se no seguinte cenário: a inovadora substância, a despeito de ser teoricamente benéfica
para tratamento de portadores de câncer, não foi submetida a testes clínicos que
pudessem comprovar a sua segurança e eficácia, além de inexistir o necessário registro
sanitário perante o órgão executivo legalmente competente – Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). Nesse contexto, o Poder Legislativo seria competente
para superar a autonomia da agência reguladora e liberar a distribuição da substância?
Para chegar numa resposta desenganadamente negativa, discute-se a dinâmica das
relações interinstitucionais no Estado Democrático de Direito, no intento de suscitar
novas ideias que possam servir de base ao enfrentamento de temas relacionados às
modernas teorias da capacidade institucional e da reserva de administração, além da
necessária deferência aos arranjos institucionais ínsitos à separação dos Poderes.
Palavras-chave
1. Introdução
4
LUCCHESE, Geraldo. Globalização e regulação sanitária: os rumos da vigilância sanitária no Brasil.
(Tese de Doutorado em Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio
de Janeiro, 2001.
5
<http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/04/ministra-diz-que-pediria-prazo-maior-antes-de-liberar-
fosfoetanolamina.html> Acesso em: 20.05.2018.
6
Atual Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações - MCTIC, nos termos da Medida
Provisória 726/2016.
no âmbito do desenho institucional brasileiro – no que se denominará de reserva de
administração.
7
STF – ADI 969, Relator Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2006, DJ 20-10-
2006; ADI 3.343, Relator Min. Ayres Britto, Relator p/ Acórdão: Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado
em 01/09/2011, DJe 22-11-2011; ADI 3.075, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em
24/09/2014, DJe 05-11-2014; e RE 427.574 ED, Relator Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado
em 13/12/2011, DJe 13-02-2012.
supremacia de um dos Poderes, mas sim a cooperação entre eles, a fim de garantir aos
cidadãos melhores formas de proteção e efetividade dos direitos fundamentais.
8
VERONEZ, Luciana Chain. Atividade da fosfoetanolamina sintética em melanoma murinho
experimental. 80f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2012, p. 24.
9
PIVETTA, Marcus. A prova final da fosfoetanolamina. Disponível em:
<http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/05/17/a-prova-final-da-fosfoetanolamina/>. Acesso em
19.05.2018.
professor, os pedidos dirigidos à Universidade de São Paulo no sentido do fornecimento
dessa substância para a cura do câncer multiplicaram exponencialmente.
Ao se deparar com tal situação, em que cada vez mais enfermos buscaram
amostras da substância, a Universidade de São Paulo, em 2014, emitiu a Portaria IQSC
1.389/2014, impedindo a distribuição do mencionado composto em razão da falta de
testes, de pesquisas e de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa.
10
Pet 5828 MC, Relator Min. Edson Fachin, julgado em 06/10/2015, DJe 09/10/2015.
Apenas dois dias após a publicação da lei, a Associação Médica Brasileira
ajuizou ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI
5.501/DF) sustentando a incompatibilidade da opção legislativa em face dos direitos
constitucionais à saúde (arts. 6º e 196 da CRFB/88), à segurança e à vida (art. 5º, caput,
da CRFB/88), bem como à dignidade humana (art. 1º, III da CRFB/88). Em amparo de
sua pretensão, sustentou que a norma permite o uso da substância fosfoetanolamina
sintética por pacientes diagnosticados com câncer sem o necessário embasamento em
estudos conclusivos acerca da eficácia e dos efeitos colaterais da substância em seres
humanos, além da ausência do indispensável registro sanitário perante o órgão
executivo legalmente competente – Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A questão – uma das mais polêmicas dos últimos anos – é muito sensível e
envolve questões jurídicas distintas, cada qual com a sua devida importância.
Não é sem razão que foram editadas a Lei 5.991/73, que “Dispõe sobre o
Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e
Correlatos, e dá outras Providências”, a Lei 6.360/76, que “Dispõe sobre a Vigilância
Sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as Drogas, os Insumos Farmacêuticos
e Correlatos, Cosméticos, Saneantes e Outros Produtos, e dá outras Providências”, a
Lei 9.782/99, que “Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências”, bem como foi tipificado
como crime, com pena de 10 (dez) a 15 (quinze) anos de reclusão, a “Falsificação,
corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou
medicinais”, nomen iuris do crime previsto no art. 273, do Código Penal11.
11
Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou
medicinais:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
(...)
§ 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos
em qualquer das seguintes condições:
I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
(...)
VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.
exercer a vigilância sanitária de medicamentos12. Além disso, fixou standards para que
a Anvisa implemente, tecnicamente, seus comandos.
12
Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os
produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:
I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias;
13
FONSECA, Francisco José Defanti. Reserva de regulação da Administração Pública. Revista de Direito
Público da Economia, v. 57, p. 143-169, 2017.
registro e autorização de uso desse composto pela Anvisa, pontuando que “não se trata
de detalhe burocrático o produto não estar registrado como remédio – ele não foi
estudado para esse fim e não são conhecidas as consequências de seu uso” 14.
14
Disponível em: <http://www5.usp.br/99485/usp-divulga-comunicado-sobre-a-substancia-
fosfoetanolamina/> Acesso: 20.05.2018.
15
Disponível em:
<http://portal.anvisa.gov.br/documents/33836/349757/NOTA+T%C3%89CNICA+56+2015+-
+SUMED+-+Esclarecimentos+sobre+a+fosfoetanolamina/4b34c204-8924-4b14-9396-62224e7d1d8e>
Acesso: 20.05.2018.
11. Temos então que o caminho legal para o fornecimento de um
medicamento no país é a solicitação do registro, perante esta Agência,
para validação dos dados de qualidade, eficácia e segurança, com as
respectivas responsabilidades da empresa, além do monitoramento
pós-comercialização (Farmacovigilância) e os estudos clínicos fase
IV.
12. Não há na Anvisa qualquer registro concedido ou pedido de
registro para medicamentos com o principio ativo fosfoetanolamina.
Neste contexto, ressaltamos que também não há em curso qualquer
avaliação de projetos contendo a fosfoetanolamina para fins de
pesquisa clínicas envolvendo seres humanos.
16
Ofício 038/2016-PRESID/ADVOSF (Documento eletrônico nº 21). Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.js
f?seqobjetoincidente=4966501> Acesso: 18.05.2018.
17
FERREIRA, A K. et al. Anticancer Effects of Synthetic Phosphoethanolamine on Ehrlich Ascites
Tumor: An Experimental Study. Anticancer Research, International Journal of Cancer Research and
Treatment, January 2012 vol. 32 no. 1 95-104.
18
Disponível em: <https://www.nature.com/articles/bjc2013510>. Acesso: 25.05.2018.
19
MENEGUELO, Renato. Efeitos antiproliferativos e apoptóticos da fosfoetanolamina sintética no
melanoma B16F10. 2007. Dissertação (Mestrado em Bioengenharia) - Bioengenharia, Universidade de
São Paulo, São Carlos, 2007.
progressão do melanoma20”, mediante os testes realizados em
animais.
Diante desse contexto, percebe-se que a carta branca conferida pelo legislador
para o uso da substância fosfoetanolamina sintética não se deu alicerçado em qualquer
estudo que comprove a segurança e efetividade em seres humanos, mas, quando muito,
a partir de testes realizados in vitro e em animais, sem qualquer controle técnico e
regulatório pela autoridade competente.
Nesse ponto, é cediço que somente é possível afirmar que uma determinada
substância seja apta a resguardar o direito à vida e à saúde dos indivíduos quando tiver
eficácia e segurança comprovadas pela agência nacional responsável por certificar esses
critérios – a Anvisa – ou por entidades congêneres como, v.g., a “Food and Drug
Administration” (FDA) dos EUA, a “European Agency for the Evaluation of Medicinal
Products” (EMEA) da União Europeia, e a “Japanese Ministry of Health & Welfare”
do Japão. Não está dentro das capacidades institucionais do legislador, mediante uma lei
isolada, assegurar que uma determinada substância é eficaz para o tratamento de
determinada doença e ostenta segurança necessária para que seja fornecida aos
cidadãos, especialmente quando inexiste registro em qualquer outra entidade
governamental congênere.
21
ACKERMAN, Bruce. Good-bye Montesquieu. In: ACKERMAN, Susan Rose; LINDSETH, Peter L.
(Org.). Comparative administrative law. Edward Eugar Publishing, 2012.
22
ARABI, Abhner Youssif Mota. A tensão institucional entre judiciário e legislativo: controle de
constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Editora
Prismas, 2015, p. 48.
23
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário.7. ed.,
atualizada por Gustavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 6.
24
ACKERMAN, Bruce. The new separation of powers. Harvard Law Review, v. 3, p. 640, 2000.
desempenhe o seu papel, e que o outro não intente substituir nem usurpar a competência
de cada qual, no campo que se denominou de reservas (i.e., reserva de lei, reserva de
jurisdição e reserva de administração).
25
Para o doutrinador lusitano José Joaquim Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 5ª ed. Coimbra, 2002, p. 739.), trata-se de “um núcleo funcional de administração Canotilho
‘resistente’ à lei, ou seja, um domínio reservado à administração contra as ingerências do parlamento”. sobre a
26 reserva de
CORRÊA, Arícia Fernandes. Por uma releitura dos princípios da legalidade administrativa e da
reserva de administração; 2008, p. 261; Tese (Doutorado em Direito) - Universidade do Estado do Rio de adm
Janeiro; Orientador: Luís Roberto Barroso.
27
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 154.
Na linha do renomado doutrinador Sérgio Guerra28, “a regulação existe quando a
classe política se libera de uma parte de seus poderes a favor de entidades não eleitas
pelo povo, que são capazes de bloquear as decisões das eleitas”.
28
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas
administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 94-95.
29
ARAÚJO, Valter Shuenquener. Os quatro pilares para a preservação da imparcialidade técnica das
agências reguladoras. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 20, n. 120, Fev./Maio 2018, p. 64-91.
30
CYRINO, André Rodrigues. Direito constitucional regulatório: elementos para uma interpretação
institucionalmente adequada da constituição econômica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 232.
31
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
podem ser superadas por atos casuísticos de outros Poderes, sob pena de total
insegurança jurídica nos mercados regulados. Para Floriano de Azevedo Marques
Neto32, “os órgãos reguladores não são instância institucional para definição de
políticas. São sim espaços e instrumentos para efetivação destas, previamente definidas
pelo Executivo e pelo Legislativo”.
32
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu
regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 92.
33
PORTO, Renato Alencar. A decisão que atende à razoabilidade. Disponível em:
<https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/discutindo-a-relacao-congresso-e-agencias-
reguladoras-31082017 > Acesso: 20.05.2018.
34
ARAGÃO, Alexandre Santos. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo
Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 323.
muito bonitas na teoria, mas que, quando aplicadas na prática, se revelem desastrosas
para a própria concretização dos valores constitucionais”35.
Notadamente quanto à Anvisa, parece claro que se uma norma editada pelo
Poder Legislativo – Lei 9.782/1999 –, reconhecendo a necessidade contemporânea da
descentralização através da regulação – outorgou a uma agência reguladora a
competência para analisar a concessão de registros sanitários a medicamentos, não
poderá o legislador, casuisticamente e justificado por uma “comoção popular”, usurpar
a atividade executória e subverter o sistema regulatório vigente.
35
SARMENTO, Daniel. Interpretação Constitucional, Pré-compreensão e Capacidade Institucional do
Intérprete. In: Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm (coord.) Vinte anos
da Constituição Federal de 1988, 2009, p. 312-313.
substância no tratamento de determinada doença. A função protetiva do sistema único
de saúde, ligada ao controle das substâncias atinentes à saúde dos cidadãos, não poderia
ter sido solapada mediante atividade legislativa, porquanto resguardada
constitucionalmente sob o manto da atividade fiscalizatória que cabe à função
administrativa estatal.
Por essas razões, não poderia ter havido a edição de ato legislativo dispensando
os procedimentos administrativos necessários para que a substância venha a ser
considerada uma medicação e, assim, autorizado o seu fornecimento em todo território
brasileiro, por consistir flagrante violação ao princípio da separação de Poderes no
âmbito da reserva de administração. Com base nessas premissas, o Plenário do Supremo
36
Estudo no Icesp, realizado em 2017, sugere que fosfoetanolamina não é eficiente contra o câncer.
Disponível em: < https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-da-saude/estudo-no-icesp-sugere-que-
fosfoetanolamina-nao-e-eficiente-contra-o-cancer/> Acesso: 18.05.2018.
37
Voto do Ministro Luís Roberto Barroso. ADI 5501 MC, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno,
julgado em 19/05/2016, DJe 01.08.2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/stf-acordao-
fosfoetanolamina.pdf> Acesso: 20.05.2018.
Tribunal Federal, ao julgar a ADI 5.501 MC, por maioria de votos, deferiu a liminar38
para suspender a eficácia da Lei 13.269/2016 até o julgamento de mérito.
4. Conclusão
38
SAÚDE – MEDICAMENTO – AUSÊNCIA DE REGISTRO. Surge relevante pedido no sentido de
suspender a eficácia de lei que autoriza o fornecimento de certa substância sem o registro no órgão
competente, correndo o risco, ante a preservação da saúde, os cidadãos em geral. (ADI 5501 MC, Relator
Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 19/05/2016, DJe 01.08.2017).
É que, a controvérsia baseou-se no seguinte cenário: a inovadora substância, a
despeito de ser teoricamente benéfica para tratamento de portadores de câncer, não foi
submetida a testes clínicos que pudessem comprovar a sua segurança e eficácia, além de
inexistir o necessário registro sanitário perante o órgão executivo legalmente
competente – Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
5. Referências
ACKERMAN, Bruce. Good-bye Montesquieu. In: ACKERMAN, Susan Rose;
LINDSETH, Peter L. (Org.). Comparative administrative law. Edward Eugar
Publishing, 2012.