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A ANTROPOLOGIA DE PAULO DE TARSO

Quem é o homem para que dele te lembres?


E o filho do homem, para que o visites? (Sl 8,5)

Pelo Pe. Dr. Valdir Marques, SJ


Belo Horizonte, MG

Síntese: A complexa linguagem paulina sobre o ser humano não pode ser
satisfatoriamente entendida através do estudo da ocorrência de cada termo
antropológico, apenas a partir de seu contexto literário. A Soteriologia
cristológica paulina é que nos leva a entender quem é o homem, o gênero
humano ou o indivíduo na mente de Paulo e na mente de Deus, que desde
antes da Criação jamais se esqueceu de sua criatura.
Abstract: The complex pauline language about the human being cannot
be understood satisfatorily simply through the study of each occurrence of
each anthropological term within its literary. The pauline christological
soteriology is what leads us to understand who is man, individual and hu-
man gender, in Paul’s mind, and, therefore, in the mind of God, Creator,
who since before the creation of the world desired to maintain with him the
human gender.

Introdução

Quando São Paulo estudava em Jerusalém (At 22,3), o Sl 8 era co-


nhecido como uma das informações mais importantes da Sagrada Escri-
tura sobre o significado do gênero humano para Deus. Remetia direta-
mente à lembrança de Gn 1,26-27,1 o relato da Primeira Criação, da qual
retoma as afirmações principais. Este é um hino2 de louvor a Deus pela
obra da Criação do gênero humano. Não era considerado salmo real, isto
é, de glorificação do reino temporal dos reis de Israel. Porém, São Paulo
o considera profecia do Cristo Ressuscitado, em 1Cor 15,25-27.

1. Cf. Sl 8,6-9, especialmente, os vv. 7-9: “Para que domine as obras de tuas mãos, sob seus pés tudo colo-
caste: v.8: as ovelhas e bois, todos, e as feras do campo também; as aves do céu e os peixes do mar, quando per-
corre ele as sendas dos mares” (Trad. B.J.). São paráfrases de Gn 1,26-28, em que o Gênero humano é criado
como Imagem de Deus, com poder sobre todos os seres vivos criados.
2. Cf. a Introdução da TOB aos Salmos.
Antropologia de Paulo de Tarso 517

São Paulo terá meditado longamente o Sl 8, especialmente os vv.


5-10, indagando-se sobre seu significado cristológico. Em Cristo Res-
suscitado, “filho do homem”, porque “nascido de mulher” (Gl 4,4-6),
encontrou a resposta e, na Ressurreição de Cristo, viu a Nova Criação
(2Cor 5,17; Gl 5,15; Cl 3,10), em que Deus superou a Antiga. Quando
São Paulo, em 1Cor 15,25-27, se refere ao Sl 8,6 (“Tu o puseste pouco
abaixo dos anjos, de glória e honra o coroaste”), vê aí uma profecia da
entronização de Cristo Ressuscitado à direita de Deus.3
Ora, o Cristo Ressuscitado não é outro homem, senão o Jesus de Na-
zaré, que, “segundo a carne”, é da estirpe de Davi (Rm 1,3). É o mesmo
que, nascido de mulher e debaixo da Lei (Gl 4,4), morreu pelos pecados
dos homens sob a Lei, fazendo de todos os que nele crêem filhos de Deus
(Gl 4,5-7). O mesmo Jesus ressuscitado é o Cristo, o Ungido, que, em suas
duas condições, divina (cf. Cl 1,13-15) e humana (Fl 2,6-8), mostra o que
é o Homem, para que Deus dele se lembre (Sl 8,5). Isto é, é no Cristo, Fi-
lho de Deus, preexistente à Criação, e no Jesus nascido de mulher que São
Paulo encontra toda a explicação do que seja o ser humano, que jamais foi
esquecido por Deus. A humanidade incorporada em Cristo Ressuscitado
(1Cor 12,12-27) e por Ele renovada (2Cor 5,17) com Cristo é uma só Hu-
manidade Nova, é o Homem Novo (Cl 3,10), tem em Cristo sua cabeça
(Ef 1,22; 4,15; Cl 1,18; 2,19). Somente São Paulo elaborou uma teologia
do Corpo de Cristo, Corpo que inclui todo o gênero humano (Gl 3,28).
Renovando, assim, o gênero humano, Deus “torna a se lembrar” deste
Homem, o Novo, para dele jamais se esquecer (Sl 8,5).

1. A problemática salvífica de 1Ts leva à compreensão da


soteriologia paulina

Quando São Paulo terminou sua primeira Carta aos tessalonicenses,


escrevendo 1Ts 5,23, não imaginou quanta dificuldade criaria para os
teólogos: “O Deus da paz vos santifique completamente, e que vosso ser
inteiro, vosso espírito, vossa alma e vosso corpo, sejam guardados de
modo irrepreensível para a Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo”. A difi-
culdade que este texto provocou entre os teólogos resultou da leitura
inadequada que fizeram dos termos, “espírito”, “alma” e “corpo”, inter-

3. R.B. HAYS, Echoes of Scripture in the Letters of Paul, Yale University Press, New Haven/London
1989, p. 84. Embora seja São Paulo o primeiro a deixar por escrito esta exegese, não terá sido ele quem por primei-
ro relaciona com Cristo Ressuscitado o Sl 8, mas sim, a Igreja Primitiva.
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pretados sob o ponto de vista filosófico posterior. Atribuíam a São Paulo


uma anthropologia que ele jamais teve em mente. Nem mesmo a pode-
ria ter, uma vez que sua fonte terminológica, a LXX, ignora o termo ant-
hropologia, assim como o linguajar judaico e helenístico de seu tempo.4
As três palavras que só emprega em 1Ts 5,23,5 “espírito-pneuma”,
“alma-psyché” e “corpo-sôma”, deram muito que pensar aos teólogos que
viram nelas a totalidade do ser humano, como se São Paulo desse menor
importância a outros termos usados para descrevê-lo. Alguns filósofos e
teólogos patrísticos concluíram: São Paulo via o ser humano em “tricoto-
mia”, isto é, em três partes, como se ele entendesse o ser humano como
um “composto” de partes separáveis;6 outros diziam que o ser humano ti-
nha somente “corpo-sôma” e “alma/vida-psyché”, a “dicotomia”.
Tal linguagem sobre o ser humano, São Paulo a recebeu do judaís-
mo, de sua formação em Tarso e em Jerusalém. Porém, nunca chegou a
sistematizar, de modo organizado e definitivo, o que gostaríamos que ti-
vesse feito numa área da filosofia ou da teologia que hoje chamamos de
Antropologia.
Mas, o que São Paulo quis realmente dizer em 1Ts 5,23?
Ao escrever este versículo, o que lhe importava imediatamente era
advertir os tessalonicenses para que estivessem espiritual e moralmente
prontos para o juízo de Deus, tão próximo, na Parusia de Jesus. Esta
mensagem era tão importante que, podemos imaginar, se São Paulo não
pudesse lhes escrever uma carta inteira, ao menos um bilhete lhes man-
daria, contendo apenas 1Ts 5,23 ou 1Ts 3,13, que diz praticamente o
mesmo. Não era este, portanto, o momento para tratar de uma Antropo-
logia a partir dos termos “espírito”, “alma” e “corpo”.
É a compreensão desta advertência paulina, em vista da salvação fi-
nal, portanto, que nos introduz à chamada Antropologia soteriológica
paulina.
“Espírito-pneuma”, “alma/vida-psyché” e “corpo-sôma” são termos
antropológicos muito importantes para São Paulo. Embora ele mesmo
4. H.G. LIDDELL/R. SCOTT, A Greek-English Lexicon (revised and augmented throughout by Sir Henry
Stuart Jones, with the assistance of Roderick McKenzie), Clarendon Press, Oxford 1940. Este léxico, composto a
partir dos autores gregos clássicos e helenísticos, ignora o termo anthropologia.
5. B. RIGAUX, Saint Paul, les Épîtres aux thessaloniciens, Lecoffre, Paris 1956, p. 596s.
6. A.A. HOEKEMA, Crated in God´s Image, Eerdmans, Grand Rapids 1986, apud J.K. CHAMBLIN, Psi-
cologia, em: G.F. HAWTHORNE/R.P. MARTIN/D.G. REID (eds.), Dizionario di Paolo e delle sue lettere, San
Paolo, Cinisello Balsamo 1999, p. 1255,1271. Cf. também http://www.monergismo.com/textos/antropologia_bi-
blica/tricotomia_hoekema.htm#_ftnref6, artigo de A.A. HOEKEMA, consultado em 08/06/09.
Antropologia de Paulo de Tarso 519

não quisesse dizer que são os mais importantes para sua compreensão do
que seja o ser humano, usou-os de modo que os tessalonicenses o enten-
dessem suficientemente, em vista do que estava para acontecer: o julga-
mento da humanidade na Parusia.
O que o “espírito-pneuma” diz em 1Ts 5,23? Para São Paulo, o espí-
rito é aquela expressão do ser humano pela qual se comunica com Deus,
que lhe manda seu Espírito: 1Cor 2,10-12; é no “espírito-pneuma” que o
indivíduo se conhece a si mesmo, a Deus, aos demais e com todos se co-
munica (1Cor 5,3-4; Cl 2,5).7 Se há comunicação interpessoal e com
Deus, está implicada uma ética, um procedimento pelo qual o ser huma-
no será julgado no Dia da Parusia.
O que diz São Paulo com “alma/vida-psyché” de 1Ts 5,23? Diz nos-
sa condição de seres vivos ao longo de nossa existência temporal,8 assim
como são vivos os outros seres criados: multiplicam-se, comunicam-se,
relacionam-se mutuamente. Ora, isto implica igualmente uma ética com-
portamental, objeto do juízo de Deus no Dia da Parusia (1Ts 1,10).
E o que São Paulo entende por “corpo-sôma” em 1Ts 5,23? Por “cor-
po-sôma” podia entender muitas coisas. É em nossa condição corpórea e
física que nos comunicamos com Deus e com os outros também. Haven-
do tal relacionamento interpessoal,9 está implicada uma ética pela qual
seremos julgados na Parusia.
Portanto, São Paulo não pretendeu dar uma síntese antropológica em
1Ts 5,23, pois não era isto que os tessalonicenses precisavam saber, mas
sim, que quem chegasse ao Dia da Parusia contaminado pelo Pecado em
seu “espírito-pneuma”, “alma-psyché” e “corpo-sôma”, seria objeto da
Ira divina (1Ts 1,10). Nem Jesus Cristo o poderia salvar. Portanto, esta-
mos diante de uma visão salvífica paulina, isto é, São Paulo empregou es-
tes termos em chave soteriológica, e não, primeiramente, antropológica.

2. A soteriologia leva a entender a antropologia

Ora, quando falamos de visão salvífica da humanidade, estamos en-


trando numa área da teologia paulina que se chama teologia da salvação,
7. J.K. CHAMBLIN, o. c., p. 1264: o “espírito-pneuma” é a capacidade humana de conhecer-se a si mesmo
(1Cor 2,11), aos outros (1Cor 5,3-4), e a Deus (Gl 6,18; Rm 8,16).
8. IDEM, p. 1262, onde são dados como exemplos Rm 11,3; 16,4; 2Cor 1,23.
9. J.D.G. DUNN, A Teologia do apóstolo Paulo, Paulus, São Paulo 2003, p. 87, a propósito de “cor-
po-sôma”.
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ou melhor, Soteriologia. É esta a chave para entendermos, portanto, os


usos dos conceitos usados por São Paulo para descrever o ser humano.
Isto, porque a Soteriologia pressupõe uma humanidade criada sem Peca-
do e, depois, corrompida por ele, tornando-se necessitada de salvação.
Por fim, salva por Cristo, a humanidade não é mais a mesma. Para São
Paulo, não há Soteriologia sem Cristologia. E, consequentemente, não
há uma Soteriologia desvinculada de tudo o que implica a Cristologia: a
Eclesiologia, a Pneumatologia, a Ética, a Espiritualidade e a Escatologia
paulinas.
São Paulo conhecia vários outros termos antropológicos recebidos
de sua formação judaica10 e greco-helenística, porque ele tinha sido for-
mado tanto no judaísmo como no helenismo.11 Judaísmo e helenismo ti-
nham suas Antropologias próprias, e São Paulo aprendeu melhor a judai-
ca que a helenística. Mais do que isto, teve que adaptá-las à sua compreen-
são do Evangelho, porque a realidade do Cristo ressuscitado mudava con-
sistentemente toda sua visão do que fosse o homem, o gênero humano.
Em 1Ts 5,23, São Paulo não incluiu um termo extremamente impor-
tante para a Antropologia que recebeu de sua formação judaico-hele-
nística: “coração-kardía”. Outro termo antropológico extremamente im-
portante para São Paulo é “carne-sárks”. Não aparece em 1Ts 5,23.12 Isto
deve bastar para entendermos que São Paulo não quis dar a totalidade do
ser humano através dos termos antropológicos que reúne em 1Ts 5,23.
Nem se preocupou com “dicotomia” ou “tricotomia”.13
A lista de termos antropológicos herdados por São Paulo é grande:
“gênero humano/homem-ânthropos”; “espírito-pneuma”, “alma/vida-
psyché”, “corpo-sôma”, “coração-kardía”, “carne-sárks”, “sangue-hái-
ma”, “pecado-hamartía”, “macho-ársen”, “marido/varão-anér”, “fê-
mea-thély”, “mulher-gyné”, “vida-dzoé”, “morte-thánatos”.
Como São Paulo entendeu todos estes termos em seus escritos?

10. W.R. STEGNER, Giudeo, Paolo come, em: G.F. HAWTHORNE/R.P. MARTIN/D.G. REID, o. c.
11. E.M. YAMAUCHI, Ellenismo, em: G.F. HAWTHORNE/R.P. MARTIN/D.G. REID, o. c., p. 533s.
12. H.G. LIDDELL/R. SCOTT, o. c. Este léxico desconhece os equivalentes gregos para “tricotomia”, em-
bora tenha dichotomia. São Paulo não encontraria no grego de seu tempo esta terminologia, mesmo que a procu-
rasse.
13. P. van IMSHOOT, Homem, em: A. van den BORN (org.), Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Vozes,
Petrópolis 1971, col. 87. Van Imshoot fez profundo estudo sobre a antropologia do Antigo Testamento. Não en-
controu ali uma dicotomia ou tricotomia antropológica. Portanto, a São Paulo nenhum dado sobre tal antropolo-
gia era disponível, nem no Texto Hebraico nem na Septuaginta.
Antropologia de Paulo de Tarso 521

Se os estudássemos um por um, seguindo a lista de seus usos em


cada carta, teríamos grande dificuldade em entendê-los. Porém, se os le-
mos considerando a visão salvífica do plano de Deus para o gênero hu-
mano a partir da Encarnação e Ressurreição de Seu Filho, tudo fica bem
mais claro. E é este o prisma pelo qual os estudaremos aqui: a) como o
homem foi criado perfeito por Deus (Gn 1,26-27; 2,7), b) a condição em
que se encontrou depois do Pecado (Gn 3,6-7), c) e em qual condição se
vê transformado pela salvação dada por Jesus Cristo, após o batismo, à
espera da Ressurreição.
São Paulo escrevia suas cartas, atendendo à compreensão que seus
destinatários tinham de cada termo que usasse em referência ao ser huma-
no e levando em consideração a linguagem e a cultura próprias de suas co-
munidades. Assim, um termo antropológico pode ter um determinado sig-
nificado para uma comunidade e outro para outra.14 Numa mesma carta,
um mesmo termo pode variar de sentido conforme seu contexto. E São
Paulo sabia lidar com estas diferenças. Ele mesmo nunca se preocupou
em manter uma coerência terminológica rígida, tal como gostaríamos que
tivesse, porque não pretendia fazer uma Antropologia filosófica.15

3. O ser humano tal como saiu das mãos de Deus

Como era o homem, o “ânthropos”, criado por Deus, segundo a tra-


dição judaica de Gn 1,26-30 e 2,7? Em alguns textos, São Paulo se refere
à condição do homem recém-criado, em seu estado de perfeição origi-
nal, ideal de sua renovação depois de redimido e feito Homem Novo (Cl
3,10). Era um estado de perfeição, porque ainda não sucumbira ao Peca-
do, não fora condenado à morte pela Lei (Rm 6,23) nem necessitava da
redenção para ele obtida pelo Filho de Deus, que, no lugar dos homens,
morreu sob a Lei (Gl 4,4-5). Vários termos podem ser claramente enten-
didos apenas antropologicamente, sem conotação ética à luz da condi-
ção do homem sem Pecado.
São Paulo sabia de memória Gn 1 e 2. Todo rabino devia saber.16 Gn
1 não usa tantos termos antropológicos como São Paulo em suas cartas.

14. P.GRECH/G. SEGALLA, Metodologia per uno studio della teologia del Nuovo Testamento, Marietti,
Torino 1978, p. 88.
15. IDEM.
16. J. BEKER, Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia, Paulinas, São Paulo 2007, p. 85.
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Na versão grega da Septuaginta, Gn 1,26-27 usa apenas ânthropos para


dizer o gênero humano17, não o indivíduo. Depois usa “macho-ársen” e
“fêmea-thély”, tendo em vista a bênção pela qual os seres humanos se
multiplicarão. E todas as demais criaturas do mundo verão, no incontá-
vel número de seres humanos, a Imagem de Deus nos homens e mulhe-
res (Gn 1,26). Este é o único motivo pelo qual Gn 1 se refere à diferencia-
ção sexual dos seres humanos: sua multiplicação, revelando em cada ser
humano os infinitos atributos divinos. Para “imagem”, os tradutores
gregos de Gn 1,26s usaram o termo grego eikôn, que São Paulo tomará
para ver no Cristo ressuscitado a verdadeira imagem de Deus (Rm 8,29;
2Cor 3,18; 4,4, Cl 1,15; 3,10). Por outro lado, Deus nos faz imagem do
Cristo ressuscitado, assim como Ele é a verdadeira Imagem de Deus en-
quanto Filho de Deus e primícias da “Nova Criação” (1Cor 15,20; Gl
6,15; 2Cor 5,17). São Paulo também diz que todo homem é Imagem de
Deus em 1Cor 11,7, enquanto descendente de Adão. A imagem de Adão
vai desaparecer nos ressuscitados para dar lugar à imagem de Cristo, o
Novo Adão (1Cor 15,49).
De Gn 2,7 São Paulo herdou a Antropologia judaica pela qual Deus
criou o homem do barro e lhe deu Seu sopro para que vivesse. Isto quer
dizer que o ser humano se manifesta em dois aspectos inseparáveis: o
corpóreo (de barro) e o incorpóreo (com sopro vital).18
Como São Paulo afirma o aspecto corpóreo do ser humano? Ele usa
para isto o termo “corpo-sôma” e “carne-sárks”.
“Corpo-sôma”, no caso de 2Cor 4,10, não tem conotação positiva ou
negativa do ponto de vista da culpa ou da salvação. É simplesmente o
corpo humano em sua realidade física, como a de qualquer descendente
de Adão, tanto antes como depois do Pecado. Em seu corpo leva as mar-
cas da morte de Cristo: 2Cor 4,10, as cicatrizes do apedrejamento em
Listra (At 14,19, cf. Cl 1,24).
“Carne-sárks” é o mesmo, isto é, o corpo humano em sua concretude
física, o que é apenas um dos sentidos que São Paulo atribui a este termo.
Assim, São Paulo fala de um espinho em sua carne (2Cor 12,7), para di-
17. O texto hebraico de Gn 1 usa o termo “Adam”, que é ambíguo, pois diz tanto o indivíduo Adão como o
gênero humano. Isto provocou interpretações errôneas, como as que, no ambiente rabínico, admitiam que somen-
te o homem, e não a mulher, era imagem de Deus; cf. J. JERVELL, Imago Dei: Gn 1,26f im Spätjudentum, in der
Gnosis und in den paulinischen Briefen, Göttingen 1960. Esta ambiguidade foi superada pelos tradutores gregos
de Gn 1,26-28, que não traduziram o hebraico “Adam” por uma forma grega Adam, que diria o indivíduo Adão,
mas sim, pelo genérico ânthropos, o gênero humano todo. Demonstraram entender, deste modo, que também a
mulher foi criada como imagem de Deus.
18. J.K. CHAMBLIN, o. c., p. 1260s.
Antropologia de Paulo de Tarso 523

zer certamente uma doença física, embora alguns19 a entendam em senti-


do figurado, para dizer algum problema espiritual ou pastoral. Do mes-
mo modo, São Paulo usa “carne-sárks” em Gl 4,14: foi por uma doença
física que pregou o Evangelho aos Gálatas.
Mas São Paulo diferencia a condição corpórea da incorpórea, em-
pregando o termo “espírito-pneuma”, ao lado de “corpo-sôma”. O texto
claro sobre isto é 1Cor 7,34: todos devem se ocupar, em tudo, no relacio-
namento com o Senhor Jesus, tanto em “corpo-sôma” como em “espíri-
to-pneuma”. Isto, porque, para São Paulo, “corpo-sôma” não diz exclu-
sivamente uma realidade física, mas o “eu pessoal”, a identidade indivi-
dual que vai subsistir mesmo depois que o corpo físico desaparecer, dan-
do lugar ao “eu-corpo-sôma” espiritual (1Cor 15,44).
Outro modo de São Paulo afirmar o aspecto incorpóreo é o uso do
termo “coração-kardía”, como em 1Ts 2,17: se os tessalonicenses estão
em Tessalônica e São Paulo em Atenas, está unido a eles “pelo coração”,
incorporalmente. Isto é possível, porque para São Paulo “coração-kar-
día” diz o íntimo da pessoa, com muitas qualidades volitivas, emocionais
e racionais.20 Esta é uma das formas pelas quais o ser humano manifesta
o que vai dentro de si.
São Paulo ainda vê o ser humano em duas manifestações diferentes
de seu ser: a interior e a exterior21 (2Cor 4,16).
O exterior é dito por “carne-sárks”, embora “corpo-sôma” também
seja manifestação da pessoa em seu relacionamento com os outros e
com o mundo que a rodeia. “Carne-sárks” diz a compleição física, os
traços étnicos, que distinguem grupos raciais e familiares, como diz São
Paulo em Rm 9,3: ele amava tanto a seus irmãos judeus que quase deixa-
ria o próprio Cristo para permanecer com eles, os que nunca aceitaram
Jesus como seu Messias; aqui, “carne-sárks” diz parentesco de sangue
(Cf. Rm 11,14).
Em Rm 2,28-29, ele distingue o íntimo, o interior do homem, por
meio de “coração-kardía”, do seu exterior, dito por “carne-sárks”. As-
sim, no v.28: “o verdadeiro judeu não é aquele que como tal se mostra
exteriormente, nem a verdadeira circuncisão é a da carne, v.29: mas é ju-

19. J. MURPHY-O’CONNOR, Paulo: biografia crítica, Loyola, São Paulo 2000, p. 325-326.
20. J.K. CHAMBLIN, o. c., p. 1268.
21. IDEM, p. 1261.
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deu aquele que o é no seu interior, e a verdadeira circuncisão é a do cora-


ção, segundo o espírito e não segundo a letra ...”
O íntimo de cada pessoa também pode ser dito por seu “espírito-pne-
uma”, que somente ela conhece e manifesta: 1Cor 2,11: “quem dentre os
homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele
está?”
São Paulo não faz distinção clara quanto ao aspecto interno e exter-
no, ou ao aspecto corpóreo e incorpóreo da pessoa. Para ele, o incorpó-
reo se manifesta exteriormente (o “espírito-pneuma”), se a pessoa assim
o deseja, e isto pode acontecer pela exteriorização do que tem no “cora-
ção-kardía” e em sua “vida-psyché”. Todas estas manifestações se dão
na pessoa, no “eu individual”, que São Paulo entende como “corpo-
sôma”, de natureza tanto física como espiritual, corpórea e incorpórea,
interior e exterior. Mas, dizendo estas coisas, São Paulo não está fazendo
uma Antropologia filosófica.22
“Coração-kardía” é o termo que São Paulo prefere para se referir à
natureza interior do homem.23 Mas, ao falar de “coração-kardía”, São
Paulo não dá a entender o coração meramente físico, porque não trata de
anatomia;24 nem mesmo em 2Cor 3,3, onde diz que no coração dos co-
ríntios está escrita a carta de Cristo. Não faria sentido abrir o peito de
cada coríntio para ver se esta carta estava fisicamente gravada no cora-
ção deles.
O “coração-kardía” manifesta exteriormente as emoções, como: o
temor, alegria, sofrimento etc.; como: as paixões todas, amor ou ódio,
desejo ou aversão, gozo, tristeza ou dor, esperança ou desespero, audá-
cia ou temor e ira.25 Por incrível que nos possa parecer, é no “coração-
kardía” que se processam raciocínios e deliberações da vontade, como
em Rm 6,17: é com o coração que o homem obedece ao Evangelho.26
Mais claro ainda é o texto de Rm 1,21: os vãos pensamentos “dos cora-
ções” dos homens levam-nos a corromperem tudo o que a sã razão co-
nhece por certo, para acabarem decidindo pelo errado.

22. J.K. CHAMBLIN, o. c., p. 1260: a psicologia paulina é mais prática que científica, quando muito,
pré-filosófica.
23. IDEM, p. 1261s.
24. IDEM, p. 1261: São Paulo jamais atribui uma função incorpórea a um órgão físico em particular.
25. Para uma lista das paixões, como questão espiritual, cf. A. ROYO MARIN, Teologia de la perfección
cristiana (BAC 114), Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid 2001, p. 367.
26. J.D.G. DUNN, Christology in the Making, Westminster, Philadelphia 1980, p. 100.
Antropologia de Paulo de Tarso 525

O “corpo-sôma” exprime o relacionamento da pessoa com as outras


e com o mundo. O corpo não é intrinsecamente mau; é apenas um cons-
titutivo da natureza humana, boa desde a Criação, sem, portanto, impli-
cação ética direta.27 É o caso de 1Cor 6,13: “o corpo não é para a prosti-
tuição e sim para o Senhor”; de 1Cor 7,4: nem a mulher nem o marido
têm direito exclusivo ao próprio corpo, mas ambos têm direito mútuo a
seus corpos. São Paulo lembra, aqui, Gn 2,24, em que “corpo-sôma” e
“carne-sárks” têm o mesmo sentido.
Mas “carne-sárks” pode dizer todo o gênero humano, todo ser huma-
no, seja sob o Pecado, seja livre dele. Diz criaturas frágeis, entregues a si
mesmas em Rm 6,19; Gl 1,16; 1Cor 15,50. Ao lado de “sangue-háima”,
diz o ser humano em relação de inferioridade, quando comparado com a
divindade: Ef 6,12.
“Carne-sárks” diz igualmente a família, o clã, a origem étnica de
uma pessoa: Jesus era da família, geneticamente falando, de Davi: Rm
1,3 (cf. Rm 4,1 e 9,3). Não se trata ainda de “Carne-sárks” com conota-
ção negativa, porque fonte do Pecado (Gl 5,19-21; 2Cor 7,1).
O termo “vida-psyché” diz a vida que o ser humano tem como qual-
quer ser vivo criado por Deus: Gn 2,7: é o sopro vital, que São Paulo
afirma em 1Cor 15,45. Porém “vida-psyché” pode significar a existên-
cia, o que mais vale para uma pessoa, como a que São Paulo queria dedi-
car aos tessalonicenses em 1Ts 2,8; cf. Fl 2,30; Rm 2,9; 11,3; 13,1; 16,4;
2Cor 1,23. “Vida-psyché”, como “corpo-sôma”, é um constitutivo an-
tropológico do homem, sem imediata implicação ética.28 Esta “vida-psy-
ché” não subsiste, se não houver um “corpo-sôma”, material ou espiritu-
al (1Cor 15,45). Dentro do “corpo-sôma”, a “vida-psyché” designa a vi-
talidade física como a espiritual: Rm 11,3; 16,4; 2Cor 1,23; 1Ts 5,23.
O homem criado por Deus, portanto, manifesta-se sob muitos aspec-
tos de sua natureza. Isto é dito por “vida-psyché”, “espírito-pneuma”,
“corpo-sôma” e “carne-sárks”.
Por estranho que pareça, o “coração-kardía”, na concepção judaica,
também pensa, processa conhecimentos: 2Cor 4,6: “... Deus que disse:
‘das trevas brilhe a luz’, foi Ele mesmo quem reluziu em nossos cora-
ções para fazer brilhar o conhecimento de sua Glória, que resplandece
na face de Cristo”. Ou em 1Cor 2,9: “... o que os olhos não viram e os ou-

27. J.K. CHAMBLIN, o. c., p. 1262.


28. IDEM.
526 V. Marques

vidos não ouviram, e o que não chegou ao (conhecimento do) coração do


homem, isto Deus preparou para aqueles que o amam”. Mais claro é Rm
1,21: “... pois, tendo conhecido a Deus, não o honraram como Deus nem
lhe renderam graças; pelo contrário, perderam-se em vãos raciocínios, e
seus corações insensatos ficaram nas trevas”.
Mas o judaísmo não foi a única fonte da linguagem antropológica à
disposição de São Paulo. O greco-helenismo forneceu-lhe conceitos que
no judaísmo poderiam ter conotações diferentes. A “mente-nous” diz a
inteligência, a razão que raciocina, pensa, filosofa, aprende, acumula
conhecimentos, discerne e emite juízos sobre suas escolhas: Rm 7,23:
“... mas percebo outra lei em meus membros, que luta contra a lei de mi-
nha razão”. A “razão-nous” é capaz de emitir juízos morais que a vonta-
de executa, o que implica comportamento ético. Assim, São Paulo exor-
ta os romanos a “renovar a mente” para conhecerem e cumprirem a von-
tade de Deus: Rm 12,2. Em Rm 14,5 diz: “há quem distingue um dia do
outro e quem acha que todos são iguais; cada um se decide conforme o
raciocínio de sua mente”.
Em breve resumo: foi visto, até aqui, sumariamente, como o ser hu-
mano foi criado perfeito pelas mãos de Deus na Primeira Criação, em di-
mensão corpórea e incorpórea, interior e exterior. Nenhuma implicação
moral ou ética entra em questão até este momento, uma vez que o Peca-
do ainda não aconteceu.

4. O ser humano sob o pecado

Rm 5,12-21 é o texto-chave, onde São Paulo dá as causas da corrup-


ção do gênero humano no Pecado do primeiro homem, Adão, corrupção
que terminará na “Morte-thánatos”. E desta “Morte-thánatos” seremos
salvos pelo Novo Adão, Cristo Ressuscitado, que dá origem ao “Ho-
mem Novo” (Ef 4,22-24), ou à “Nova Criação” (2Cor 5,17).
Quando aconteceu o Pecado (Gn 3,6), a harmonia da natureza huma-
na criada (Gn 1,26-28) entrou em colapso. Daí em diante, a condição
do homem passa a ser outra. Todas as expressões de sua vida, existên-
cia, aspectos naturais e espirituais passam a se manifestar negativa-
mente. Entrou em cena o “Pecado-hamartía”, termo fundamental de
Rm 5,12-21. A Humanidade toda, enquanto indivíduo e gênero, está sob
seu império: Rm 3,9; 6,20; Gl 3,22.
Antropologia de Paulo de Tarso 527

Agora, a corporeidade que a “carne-sárks” manifesta exteriormente


é a de submissão ao “Pecado-hamartía”: Rm 8,3. Assim, a pessoa revela
em si as obras do Pecado: Gl 5,19-21.
Uma vez sob o império do Pecado, as demais expressões da natureza
humana se mostram corrompidas: “o espírito-pneuma” ficou impuro,
como a “carne-sárks”, e deve ser purificado: 2Cor 7,1. A “mente/ra-
zão-nous” é dominada pela “carne-sárks” pecaminosa: Cl 2,18: “... nin-
guém vos subjugue, iludido por sua mente carnal”.
Sob o efeito do “Pecado-hamartía”, o “coração-kardía” ficou insen-
sato, isto é, sua capacidade de discernir o bem e o mal é falha: Rm 1,21.
Pior ainda, o “coração-kardía” se endureceu, e a inteligência ficou obs-
curecida: Ef 4,18.
O “corpo-sôma” passou a ser objeto do “Pecado-hamartía”: Rm 6,6,
e como tal, deve ser “desfeito”, o “corpo-sôma da psyché”, por meio da
“Morte-thánatos”: Rm 6,7, para que na Ressurreição a pessoa ressurja
no “corpo espiritual” que lhe será dado por Deus: 1Cor 15,44. O mesmo
“corpo-sôma”, com base numa vida apenas terrena, a “vida-psyché”,
está destinado a desaparecer: 1Cor 15,42-45.
Sob o Pecado, o ser humano não é isento de culpa, porque manifesta
as obras do Pecado, através de seu “espírito-pneuma”, de sua “vida-psy-
ché”, de seu “coração-kardía”, de sua “mente-nous”, de seu “corpo-sô-
ma”. Nesse estado, merece como pena a “Morte-thánatos”: Rm 1,23,
pois o preço do Pecado é a Morte: Rm 6,23.
Assim, em 1Ts 5,23, o pneuma, a psyché e o sôma tinham a marca
negativa do Pecado antes que Cristo os purificasse através do batismo.
Como a humanidade poderia sair desta condição desesperadora, uma
vez que por si mesma não tinha condições de superar o mal que o Pecado
significa?
Em breve resumo: o ser humano, criado perfeito pelas mãos de Deus
na Primeira Criação, foi corrompido pelo Pecado do Primeiro Homem,
Adão. Agora manifesta esta corrupção em dimensão corpórea e incorpó-
rea, no seu interior e exterior. Entra em questão a implicação moral ou
ética, uma vez que o Pecado já aconteceu. São Paulo passa a usar os vá-
rios termos e conceitos antropológicos impregnados pela marca negati-
va do Pecado, tanto do gênero humano como do indivíduo. A Morte que
para a Primeira Criação não era cogitada, estabelece seu império sobre
os filhos de Adão (Rm 5,12 a 7,24). Torna-se o grande inimigo a ser des-
truído pela Ressurreição de Cristo (1Cor 15,24-25).
528 V. Marques

5. O ser humano após a ressurreição do Filho de Deus

Também aqui, Rm 5,12-21 é o texto mais iluminador, porque a “Mor-


te-thánatos” é vencida pela Vida do Ressuscitado: Rm 5,17. Assim, Cris-
to que dá a “Vida-Dzoé”, é o centro de nossa atenção neste item. Notar:
“Vida-Dzoé” aparece em lugar de “Vida-psyché” do homem meramente
criatura, mesmo em sua perfeição assim que saiu das mãos de Deus na
Primeira Criação.
É com a Encarnação do Filho de Deus, feito homem, porque nascido
de mulher na plenitude dos tempos, Gl 4,4, que o destino da humanidade
se transforma. Já não há condenação para os que aceitaram o Filho de
Deus como seu salvador: Rm 8,1. Tudo se transformou desde que Deus
veio ao mundo.
Gl 4,4-6:
v.4: “Quando chegou a plenitude do tempo,
Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da Lei,
v.5: para reunir os que estavam debaixo da Lei,
a fim de que recebêssemos a adoção filial.
v.6: E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito
de Seu Filho, que clama: ‘Abba, Pai’”.
“Nascido de mulher” é o modo com que São Paulo diz que Jesus
Cristo é de natureza humana. Como filho de Adão, perfeito homem,
como todos os demais, antes do Pecado.
Assim como Deus fez o gênero humano na Primeira Criação (Gn
1,26-28), nasce o novo gênero humano na “Nova Criação-kainé ktísis”,
em que o Filho de Deus ressuscitado dá a “Vida eterna-Dzoé aiônios”,
que somente Deus tem (1Cor 15,45). Cristo vencerá a “Morte-thánatos”
(1Cor 15,24-26), preço do “Pecado-hamartía” (Rm 6,23), que ainda do-
mina os homens em processo de salvação até sua Parusia (1Ts 5,23).
Chegado o Homem Jesus, Filho de Deus, morto e ressuscitado (1Ts
1,10), a todos os seres humanos é dado participar de sua natureza divina.
Esta participação já é realidade no momento em que, batizados, fomos
revestidos de Cristo (Gl 3,27) e nos tornamos filhos de Deus como Ele
(Gl 3,26), tendo recebido Seu Espírito Santo (Gl 4,6). Agora, todo ho-
mem batizado se manifesta em figura nova, semelhante à Imagem do Fi-
lho de Deus (Rm 8,29), em contínuo processo de identificação com Ele,
de glória em glória (2Cor 3,18).
Antropologia de Paulo de Tarso 529

Os batizados, incorporados (1Cor 12,13.14) em Cristo (Rm 12,5;


1Cor 6,15; 10,17; 12,12.27), cabeça do “Corpo-Sôma-Igreja-Ekklesía”
(Ef 1,23; 4,4.12; 5,23.30), são Templo do Espírito Santo (1Cor 6,19). O
que o homem fora na Primeira Criação é pálida imagem do que é agora
na Nova (Gl 6,15): nela, o gênero humano não é apenas ele mesmo: é ele
mais a presença, em si, da própria Trindade, as Três Pessoas no Homem
Novo (Cl 3,10; Ef 2,15; 4,24). Tudo o que existiu no gênero humano an-
tes da Encarnação e Ressurreição do Filho de Deus foi apenas sombra do
que ainda está para vir plenamente: Cl 2,17, a realidade mesma do gêne-
ro humano redimido por Cristo, segundo o plano de Deus para a “Nova
Criação-kainé ktísis”. Nela, Deus não separa povos, raças, nações etc.:
Gl 6,15; 2Cor 5,17.
São Paulo herdara do judaísmo a promessa do Espírito a ser dado ao
Povo Eleito, em Ez 36,26-27. Este Espírito poria seu santuário no meio
do Povo Eleito: Ez 37,26-27. Herdara também a profecia da Nova Ali-
ança, Jr 31,31-34, pela qual Deus prometera superar a Antiga por meio
de uma Nova, dada ao Novo Povo de Deus, a Igreja. São Paulo verá no
Espírito da Promessa o Espírito Santo dado aos batizados (Gl 3,15; Ef
1,13), que os identifica com o Novo Povo Eleito que aderiu a Cristo pela
fé e se tornou assim merecedor das promessas de Deus a Abraão: Gl
3,25-29.
A figura do homem Imagem de Deus na Primeira Criação será supe-
rada pela gloriosa Imagem do Filho de Deus, Cristo (Rm 8,29), na qual
todos seremos transformados. E assim, para maravilha do mundo cria-
do, os filhos e filhas de Deus se manifestarão exteriormente a toda a
Criação, em tudo o que são: corpo, espírito, coração, mente e tudo o
mais, e mais ainda, com a vida eterna (Rm 8,19-23). Esta é a maravilha
que Deus reserva para todo o universo: a Criação toda anseia pela mani-
festação dos filhos de Deus assim transformados.
Como se transformou o homem em sua realidade corpórea exterior,
uma vez salvo pelo Cristo Ressuscitado? Seu “corpo-sôma”, livre do
“Pecado-hamartía”, passa a ser “corpo espiritual-sôma pneumatikón”
na Ressurreição (1Cor 15,44; Fl 3,21). Porém, somente saberemos co-
mo exteriormente se manifestará este corpo espiritual, quando a Ressur-
reição acontecer e estivermos com Cristo para sempre (Cl 3,3; 1Ts 4,17).
Nesta vida, somente quem viu o Cristo ressuscitado pode ver seu sôma
pneumatikón, como aconteceu com Pedro, Tiago, os demais apóstolos e
Paulo (1Cor 15,3-8).
530 V. Marques

O “espírito-pneuma humano” passa a participar do “Espírito-Pneu-


ma divino”, que é Espírito de Santidade presente em Cristo (Rm 1,4).
A “carne-sárks” será libertada do império do pecado; cada indiví-
duo manifestará como “carne-sárks” somente o aspecto positivo, como
o de sua origem étnica: Jesus será sempre judeu, da “carne de Davi”
(Rm 1,3), como cada um de nós, descendentes de nossos antepassados.
Isto é, a “carne-sárks” conservará somente seu aspecto positivo, por-
que o negativo vai desaparecer, o do “Pecado-hamartía” (1Cor 5,5;
Rm 8,13; Gl 5,19-21). Isto, porque, com a Morte, o “corpo de mor-
te-sôma thanátou” (Rm 7,24), desaparecerá em sua corrupção: a di-
mensão corpórea mortal do “eu pessoal-sôma” deixará de existir. E
acabará a “Morte-thánatos”, porque será eliminado o “Pecado-hamar-
tía” (1Cor 15,55s), uma vez que Cristo morreu para a Lei, fazendo-se
Pecado em nosso lugar (2Cor 5,21; Gl 4,4-5).
Como vive o homem, agora que o “espírito vivificante”, Jesus Res-
suscitado (1Cor 15,45), lhe deu sua própria Vida Eterna? Ou seja, o que
acontece com a “vida-psyché” recebida de Deus no ato da Primeira Cria-
ção? São Paulo não a chama mais de “vida-psyché”, porque, depois da
Ressurreição, não há mais sôma psychikón, isto é, um corpo que mani-
festa aquela forma de vida puramente criatural, como qualquer animal.
O homem renasce como “corpo-sôma” “espiritual-penumatikón” (1Cor
15,44), com uma Vida à qual Paulo dá outro nome: “Vida-dzoé”, a pró-
pria do Cristo Ressuscitado, Vida eterna, Dzoé aiônios, somente recebi-
da através de Nosso Senhor Jesus Cristo: Rm 5,21. Notar estas palavras:
“através de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Ou seja, não se trata mais do
simples homem criado na Primeira Criação por Deus enquanto filho de
Adão, com uma natureza puramente adâmica, mas o Novo Homem, de
natureza “crística”, numa existência nova, depois que Deus o ressuscita,
dando-lhe a vida que Jesus tem: Dzoé aiônios. Não que os seres huma-
nos se tornem deuses como é Deus o Filho de Deus, mas participam da
natureza divina do Filho de Deus, sendo filhos “no Filho”: Rm 5,21.
A Encarnação do Filho de Deus e sua Ressurreição transformaram
totalmente a condição humana depois da Primeira Criação submetida ao
“Pecado-hamartía”: agora o gênero humano é “Nova Criação-kainé ktí-
sis” (Gl 6,15; 2Cor 5,17), “Homem novo-kainós ânthropos” (Ef 2,15).
Diante desta compreensão do gênero humano, redimido e transfor-
mado por Cristo, como entenderemos o pneuma, a psyché e o sôma de
1Ts 5,23? Entendemos esta tríade como São Paulo quis que os tessaloni-
Antropologia de Paulo de Tarso 531

censes a entendessem: eles tinham pneuma, psyché e sôma corrompidos


pelo Pecado antes de se converterem ao Deus vivo e verdadeiro e de es-
perarem do céu Seu Filho, para serem salvos da ira futura: 1Ts 1,9-10.
Uma vez convertidos, todo seu ser está purificado. O que lhes resta fazer?
Resta-lhes desejar permanecer neste estado, o que não conseguem sozi-
nhos. Por isso, São Paulo pede, por eles, que o Deus da paz os santifique
por inteiro, de tal modo que sejam fortes o bastante para não retrocederem
ao Pecado, em seu pneuma, psyché e sôma, mantendo-se irrepreensíveis
até o dia da Parusia do Senhor. Mas, como conseguiriam isto por si mes-
mos? Por si mesmos, jamais. São Paulo então lhes mostra como Deus não
os abandona a si próprios: “O Deus que vos chamou é fiel; ele mesmo o
realizará” (1Ts 5,24). Ou seja, a salvação desejada é realizada por Deus e
pelos homens que a desejam. Os tessalonicenses já não estão sem Deus
no mundo, mas cheios de esperança na salvação (cf. Ef 2,12).
O que resta esperar? A vinda gloriosa do Filho de Deus ressuscitado
(1Ts 1,10; 4,15), mesmo sem saber nem o dia nem a hora (1Ts 5,2), para
sermos arrebatados com Ele (1Ts 4,17) e vivermos para sempre em Deus,
de sua Dzoé aiônios, Vida Eterna, em seu “Amor-agápe” (1Cor 13,8.13;
2Cor 13,13). Somente então saberemos que, antes que Deus criasse o
mundo, já nos tinha escolhido para vivermos santos e irrepreensíveis em
seu amor (Ef 1,4). Da parte de Deus, é seu reencontro com suas criaturas
por meio de Seu Filho. De nossa parte, a surpresa e maravilha com a re-
velação do mistério de amor de Deus por nós. Deus será, assim, tudo em
tudo e em todos (1Cor 15,28). Na verdade, Deus nunca se esqueceu dos
homens (Sl 8,5), mas os visitou (Sl 8,6) pela Encarnação de Seu Filho,
nascido de mulher (Gl 4,4), fazendo de todos filhos Seus (Gl 4,5-7).
Em resumo: o ser humano, criado perfeito pelas mãos de Deus na
“Primeira Criação”, corrompido pelo Pecado do Primeiro Homem, Adão,
é salvo da Morte por Cristo (Rm 5,12-21). No momento atual, prévio à
Parusia, vive de maneira a não perder a santidade e a ética irrepreensível
para a Vida Gloriosa do Senhor Jesus: 1Ts 5,23. Já convive com o Espí-
rito Santo, que em seu “corpo-soma” tem seu Templo (1Cor 3,11). A Lei
de Deus está em seu “coração-kardía”, que, com sua “mente-nous”, obe-
dece à vontade de Deus. Ainda vive em soma psychikón, que pode su-
cumbir à “carne-sárks” e voltar ao “Pecado-hamartía”, merecendo no-
vamente a “Morte-thánatos”. Porém, todos esperamos a vinda gloriosa
de Cristo, que transformará nossa existência mortal (Rm 7,24). São Pau-
lo passa a usar os vários termos e conceitos antropológicos impregnados
pela marca positiva da salvação já e ainda não plena, em nossa transfor-
532 V. Marques

mação de glória em glória (3Cor 3,18), conforme a Imagem do Filho


(Rm 8,29). A Nova Criação ocupou o lugar da Primeira, pois as coisas
antigas já passaram, e tudo se renovou: 2Cor 5,17. Deus lembrou-se do
gênero humano e visitou-o (Sl 8,5).

Conclusão

Quem é o homem para que dele Te lembres? E o filho do homem,


para que o visites (Sl 8,5)? São Paulo respondeu a estas questões satisfa-
toriamente, para si, em 1Cor 15,24-28, e, em 1Cor 2,14, para todos os
que, de modo “espiritual-pneumatikós”, entendem as coisas do Espírito.
A Soteriologia cristológica paulina é a chave interpretativa de sua
Antropologia. Por meio da salvação dada em Cristo e por decisão do Pai,
São Paulo entende tanto o indivíduo como todo o gênero humano em
suas diferentes condições soteriológicas. Assim, cada termo antropoló-
gico usado por São Paulo deve ser entendido a partir de seu contexto, em
que fica claro o momento soteriológico em que o ser humano se encon-
tra: desde a Criação até o momento em que todos comparecerão perante
o Senhor, em sua Vinda (1Ts 5,23).
Quando o Senhor vier, todos devem estar totalmente preparados, cor-
poral e incorporalmente, exterior e interiormente, santos e irrepreensí-
veis (1Ts 3,13). Tendo os olhos voltados para o encontro definitivo com
Cristo Ressuscitado e Imagem perfeita de Deus é que o momento salví-
fico, em que vivemos agora, nos faz entender quem somos na mente do
Criador. No “dia da redenção” (Ef 4,30), Deus será tudo em todos (1Cor
15,28); as criaturas retornarão a seu Criador na Dzoé aionios. Somente
então entenderemos plenamente o que significamos para Deus desde an-
tes da Criação do mundo: seus filhos vivificados por seu amor, com Ele,
para sempre: Ef 1,4.
Quem é o homem para que dele Deus se lembre? É o gênero humano
da Nova Criação, o Homem Novo, Cristo e os que nele vivem (1Ts 5,10;
Rm 14,8).
Endereço do Autor:
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
31720-300 Belo Horizonte – MG/BRASIL
E-mail: valdirsj@yahoo.com

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