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A arte transmídia de instalação nas

décadas de 1960/1970 e na contempora-


neidade (André Parente e Kátia Maciel)

Natasha Marzliak
José Eduardo Ribeiro de Paiva
Marcelo Antonio Milaré Veronese

Resumo

A arte no contexto da transmídia, ao se contaminar por recursos


de diversos meios, tais como o cinema, o vídeo e as novas
tecnologias audiovisuais, ultrapassa fronteiras, abre passagens
e desloca espaços e temporalidades sugerindo a participação do
público. A partir de uma proposição comparativa e temporal,
este estudo pretende traçar possibilidades dialógicas dos
conceitos e práticas da arte de instalação transmidiática
de vanguarda que tiveram início na década de 1960 e se
prolongaram por toda a década de 1970 – sobretudo os do grupo
Fluxus, de Jack Smith, do Cinema expandido, das manifestações
ambientais de alguns artistas brasileiros (a exemplo de Hélio
Palavras-chave:
Arte transmídia, instalação,
Oiticica) e da atualidade, com enfoque em dois artistas
audiovisual brasileiros: André Parente e Kátia Maciel.

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The transmedia art installation in the decades
of 1960/1970 and in the contemporaneity
(André Parente and Kátia Maciel)

Natasha Marzliak
José Eduardo Ribeiro de Paiva
Marcelo Antonio Milaré Veronese

Abstract

The art in the context of transmedia, affected by resources


from various media such as film, video and new audiovisual
technologies, goes beyond borders, open passages and
moving spaces and temporalities suggesting public
participation. From a comparative and temporal proposition,
this study aims to draw dialogic possibilities of the concepts
and practices of the vanguard transmedia art installation
that began in the 1960s and lasted throughout the 1970s –
especially those of the Fluxus group, Jack Smith, expanded
Cinema, environmental manifestations of some Brazilian
Keywords:
artists (like Helio Oiticica) and today, focusing on two Transmedia art, installation,
Brazilian artists: André Parente and Kátia Maciel. audio-visual

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El arte transmedia de instalación en las
décadas de 1960/ 1970 y en la contempo-
raneidad (André Parente y Kátia Maciel)

Natasha Marzliak
José Eduardo Ribeiro de Paiva
Marcelo Antonio Milaré Veronese

Resumen

El arte en el contexto de transmedia, al contaminarse con


los recursos de diversas medias, tales como el cine, el video
y las nuevas tecnologías audiovisuales, ultrapasa fronteras,
abre caminos y disloca espacios y temporalidades sugiriendo
la participación del público. A partir de una propuesta
comparativa y temporal, este estudio pretende trazar
posibilidades dialógicas de los conceptos y prácticas del
arte de instalación transmediática de vanguardia que tuvo
inicio en la década de 1970 – sobre todo los del grupo Fluxuz,
de Jack Smith, del Cine expandido, de las manifestaciones
ambientales de algunos artistas brasileños (por ejemplo de
Palabras-clave:
Arte transmedia, instalación,
Hélio Oiticica) y de la actualidad, centrándose en dos artistas
audiovisual brasileños: André Parente y Kátia Maciel.

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Introdução
Desde que teve suas primeiras experimentações híbridas na
década de 1960 e que se prolongou por toda a década de 1970,
a arte contemporânea transmídia no contexto do audiovisual
articula inúmeras possibilidades de sentido ao contaminar
entre si os campos do cinema, do vídeo e das novas tecno-
logias, a fim de habitar espaços de imersão: as instalações.
São criados ambientes que alteram os sentidos espaço-tem-
porais e a narrativa linear, o que exige do espectador (agora
participante) uma atitude ativa de recepção e recombinação
cognitiva da “desordenação” de imagens e sons. Os espaços
imersivos, ao deslocar o espaço habitual e conhecido, exigem
o corpo em movimento – o corpo em meio a uma situação-
vídeo-cinema cuja mente pensante se encontra entre imagens
fragmentadas, que mudam a temporalidade da obra. Esses
campos transmidiáticos pluralizam os sentidos, implicando
agora que cada pessoa que experimenta a obra tem seu enten-
dimento individual dela, ou melhor, cada indivíduo se torna
parte constitutiva dela.
Com o intuito de uma melhor compreensão e discernimen-
to sobre esse fazer contemporâneo, relaciona-se aqui conceitos
e práticas dos fazeres transmidiáticos de instalação das décadas
de 1960 e 1970 com o que se produz hoje nesse universo, evi-
denciando relações e diálogos possíveis. Considerando a obra
como um evento, um acontecimento de experimentações, um
dispositivo e não um objeto, o que define a tendência contem-
porânea no discurso e modo de fazer da arte, deseja-se traçar
uma sorte de cartografia de tendências dos procedimentos da
pós-modernidade da arte transmídia de instalação.
As intersecções entre arte, cinema, vídeo e meios tecnológi-
cos na construção de instalações tiveram início a partir do final

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da década de 1960 e se desenvolveram durante toda a déca-
da de 1970. São conhecidos os exemplos das experimentações
cinemáticas-ambientais do grupo Fluxus (os Fluxfilms), os
eventos de Jack Smith, o Cinema Expandido e a videoarte (da
videoescultura à videoinstalação). Particularmente no Brasil,
é significante salientar a importância dos trabalhos de artistas
como Hélio Oiticica e Wesley Duke Lee, para citar dois exem-
plos pioneiros no contexto nacional do período mencionado.
Depois de todas as experiências apreendidas em quatro dé-
cadas, as quais mediaram os cruzamentos de diversos meios e
linguagens, o modo de fazer da arte transmídia perpassa, entre
outros, pela radicalização da importância da vida individual in-
serida num espaço-tempo de coletividade, em detrimento da
contemplação de uma imagem, dialogando com o conceito de
participação iniciado pelos artistas de vanguarda. O conceito
de instauração, por exemplo, como explica Lizette Lagnado
(2001), se dá pela junção das atividades ligadas à performance
e à instalação, relacionando a incorporação do outro na obra
– característica marcante das experiências de 1970 e da contem-
poraneidade. Hoje, a arte transmidiática de instalação atualiza
a imersão no que tange a sensorialidade e a provocação de no-
vos pensamentos, resultando numa imagem-relação que, nos
termos de Deleuze (1983), ultrapassa fronteiras; cruza de forma
radical o vídeo, o cinema e as novas tecnologias digitais e, as-
sim, diversos caminhos se abrem a novas possibilidades de cria-
ção, recepção e percepção das imagens. Essa arte se faz dentro
de um cenário de potência inovadora, o qual se revela terreno
fértil para investigação crítica devido a uma dinâmica de reno-
vação intensa de experiências. Como afirma Nicolas Bourriaud
(2011), aproxima-se do cotidiano e do coletivo de uma maneira
menos utópica do que em 1960/1970, pois menos enraizada em
estruturas sociais e identidades culturais locais. Ao radicalizar
os entre-meios, promove descentramentos espaço-temporais e
de narrativa comparáveis às estruturas rizomáticas de Deleuze
e Guattari, onde “[...] o rizoma se refere a um mapa que deve
ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável,
reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com
suas linhas de fuga” (2004, p. 32-33)

Deslocamentos na pós-modernidade
A antiarte é pois uma nova etapa (é o que Mário Pedrosa for-
mulou como arte pós-moderna); é o otimismo, é a criação de
uma nova vitalidade na experiência humana criativa; o seu

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principal objetivo é o de dar ao público a chance de deixar


de ser público espectador, de fora, para (ser) participante na
experiência criadora. É o começo de uma expressão coletiva
[...] (OITICICA, AHO 253.66)

Desde o início do século XX alguns artistas postulavam a ina-


dequação dos meios convencionais, como a escultura e a pin-
tura, dando início a movimentos artísticos de vanguarda de
espírito combatente frente à tradição. A reflexão sobre os no-
vos desenvolvimentos tecnológicos, científicos e intelectuais,
então, veio acompanhada do uso de novos suportes para suas
práticas artísticas, tais como o vídeo, o cinema e os ambientes
de instalação. Como observa Arlindo Machado, artistas como
Hélio Oiticica, já no Brasil de 1960-70, experimentaram ex-
pandir o campo das artes plásticas ao mesclar diversos supor-
tes, produzindo uma obra sem fronteiras, antecipando carac-
terísticas da produção da arte contemporânea:

Como se sabe, a partir de meados da década de 60, muitos


artistas tentaram romper com os esquemas estéticos e merca-
dológicos da pintura de cavalete, buscando materiais mais di-
nâmicos para dar forma às suas ideias plásticas. Alguns saíram
para as ruas e produziram intervenções na paisagem urbana.
Outros passaram a utilizar o próprio corpo como suporte artís-
tico e converteram suas obras em performances no espaço pú-
blico. Outros ainda procuraram mesclar os meios e relativizar
as fronteiras entre as artes, produzindo objetos e espetáculos
híbridos como as instalações e os happenings. E houve também
aqueles que foram buscar materiais para experiências estéticas
inovadoras nas tecnologias geradoras de imagens industriais,
como é o caso da fotografia, do cinema e, sobretudo, do vídeo.
Nos anos 70, Hélio Oiticica introduziu a ideia fertilíssima do
quase-cinema, para designar um campo de experiências trans-
gressivas dentro do universo das mídias ou das imagens e sons
produzidos tecnicamente. (MACHADO, 2007, p.17)

Para se entender o processo de utilização dos novos mate-


riais dentro de um universo contemporâneo complexo, inicial-
mente é importante o reconhecimento de como esses artistas
começaram a abandonar os suportes tradicionais de arte para
fazer uso de novos meios, principalmente os tecnológicos. A
partir do final dos anos 1950 e durante a década de 1960, nos
EUA, “havia uma inquietude no mundo artístico que se mani-
festou no surgimento da arte pop, dos experimentos multimí-

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dia de John Cage e de seus colaboradores de Black Mountain
College: Robert Rauschenberg, o dançarino/coreógrafo Merce
Cunningham e o músico David Tudor.” (RUSH, 2006, p.17).
Esta “inquietude”, nas décadas de 1960 e 1970, enaltecia
a cultura midiática urbana; a exemplo de Nova York (então
“capital” da arte no Ocidente), existe agora um contexto que
mescla o mundo das celebridades, o glamour, o star system de
Hollywood, o rock, a rádio e a TV ao sentimento de inadequa-
ção artística dos próprios meios convencionais, impulsionan-
do uma novidade, em tudo transgressora, através da fusão de
elementos e posturas condizentes com o clima de instabilida-
de – mas também criatividade – encontrado, essencialmente,
no enorme agrupamento humano da metrópole. No Brasil, a
década de 1970 pode ser considerada um dos momentos de
contracultura e subversão mais fortes frente ao regime militar,
que desde os anos 60 impunha “tempos difíceis” à realidade
de um país em vias de modernização. Foi um período em que
se privilegiou a desobediência de várias maneiras, desde o en-
gajamento político mais combatente até a cultura das drogas
como experiência “libertadora”, envolvendo inevitavelmente
as novas experimentações com as artes em geral. Nos domí-
nios contraculturais, políticos e, enfim, inquietos deste fazer
artístico novo, o momento de ruptura e transgressão rompia
com a expressão através de meios tradicionais únicos, geral-
mente com o fim “passivo” da contemplação, não havendo
sentido em continuar com uma arte puramente visual.
As novas tecnologias, como o vídeo e a televisão, se torna-
ram cada vez mais instrumentos para a criação, aproximando
a arte das pessoas, ou seja, da vida que era urbana, tecnológi-
ca, subvertendo e se inscrevendo em um contexto politizado,
nos quais inúmeros atores sociais marginais (ou outsiders)
e suas causas vieram à tona, como é o caso, principalmente,
dos negros, das mulheres e dos homossexuais. As experimen-
tações entre-meios se articulam com a intenção de romper
com as antigas ideias de representação na obra. Daí o cinema,
o teatro, a dança, a música e a literatura, por exemplo, não
poderem mais ser classificados separadamente, o que nova-
mente faz mudar – semelhante às experiências de vanguar-
da do início do século – a definição do que seja uma obra de
arte. Em texto do catálogo da mostra Information, ocorrida no
MOMA-NY de julho a setembro de 1970, seu curador Kynas-
ton McShine, ao relatar o momento político e social em que

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os artistas de diferentes partes do mundo estavam vivendo à


época, remete diretamente aos desdobramentos da definição
ou ideia de arte que se processava naquele contexto:

Se você é um artista no Brasil, você sabe de ao menos um amigo


que está sendo torturado; se você é um artista na Argentina,
você provavelmente teve um vizinho preso por usar cabelos
compridos ou por não estar “vestido” corretamente; e se você
vive nos Estados Unidos, você pode temer ser baleado ou na
universidade, ou na sua cama, ou mais formalmente na Indo-
china. Pode parecer muito inapropriado, ou mesmo absurdo,
levantar-se de manhã, entrar numa sala e aplicar pinceladas de
tinta vinda de um pequeno tubo a uma tela quadrada. O que
você pode fazer como jovem artista que lhe pareça relevante e
significativo? [...] uma alternativa tem sido estender a ideia de
arte, renovar sua definição, e pensar para além das categorias
tradicionais – pintura, escultura, desenho, gravura, fotografia,
teatro, música, dança e poesia. (1970, p. 138)

As primeiras instalações com vídeo são creditadas aos artistas


do final da década de 1950 e durante os anos 1960. De acordo
com Michael Rush (2006), a arte da instalação teve início com
as vanguardas sessentistas, que eram contrárias a instituições
de arte, museus e galerias. O mercado da comunicação em
massa, ou seja, a visão unilateral e restrita da televisão broad-
cast era o principal alvo da crítica desses artistas, que usavam
o mesmo suporte para construírem suas instalações com ví-
deo – como no caso da construção dos ambientes videográfi-
cos a partir da utilização de monitores de TV. O próprio Rush
afirma que Wolf Vostell e Nam June Paik foram os primeiros a
usarem o vídeo fora dos estúdios televisivos. Como uma nova
forma de expressão, Vostell prima por criar ações dentro de
ambientes construídos, que são eventos ocorridos para par-
ticipação de todos. Em seu Manifesto What I Want, de 1964,
escrito na ocasião do evento de arte da Aachen Tecnical Uni-
versity, na Alemanha, ele discorre sobre suas intenções:

...nenhuma diferença entre vida e arte/


...escapar não da mas na realidade/
...fazer do happening uma experiência sentida no próprio
corpo/
...tornar-me cor, luz, tempo, matéria e pintura/

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[…]
...tirar cada cena da vida cotidiana de seu contexto costumei-
ro e situá-las em um novo contexto/
...participação permanente em todos os procedimentos com
os sentidos do toque, cheiro etc./ ...caracterizar um evento
através da soma de efeitos colaterais/
...arte como espaço, espaço como ambiente, ambiente como
evento, evento como vida/ ...viver arte e pensar arte/
...objetivo, sem objetivo, forma aberta, ausência de centro,
conquista de um objetivo, sem foco/
...todos como performers ou executores no lugar de observa-
dores ou ouvintes/ (VOSTELL, 2012, p. 58-59)

No âmbito das experimentações que aconteceram no Bra-


sil, destaca-se dois artistas que deram continuidade às práti-
cas de ambientes instalativos transmidiáticos, conduzindo as
práticas cinematográficas e videográficas a novas formas de
relacionamento: Wesley Duke Lee e Hélio Oiticica.
Os trabalhos ambientais de Wesley Duke Lee O Trapé-
zio ou Uma Confusão, de 1966, e Gaiola de Cadeiras, de 1967,
deram origem, pouco tempo depois, à videoinstalação O He-
licóptero (1967-1969). Trata-se de um espaço criado por um
circuito fechado de vídeo, um espelho, pinturas, colagens,
sons, luzes, cadeira de piloto, painel de controle de aeronave,
entre outras coisas, segundo Cacilda Teixeira da Costa, “pen-
sado como um meio de levar o espectador/participante a uma
viagem que o iluminaria sobre seu espaço interior” (COSTA,
2005, p.148). As imagens das pessoas que transitam pela ins-
talação são refletidas no espelho e também são exibidas na
tela da televisão, “lembrando a concepção de McLuhan de que
o espelho e o vídeo representam diferentes ângulos de cons-
ciência: o sincrônico e o diacrônico” (COSTA, 2005, p.148).
O universo de Wesley Duke Lee, desde as instalações mais
simples até as mais complexas e tecnológicas, situam-se nos
desdobramentos do futurismo italiano de Marinetti (confor-
me exploração da relação humana com os modernos recursos
e possibilidades da máquina), fazendo com que o artista se
inspirasse nesta vertente para construir ambientes multimí-
dia, ainda através da união de diversos materiais e objetos que
interviriam nas experiências sensoriais do público. As luzes
e os sons de O Helicóptero e seus elementos cinéticos afetam
a imaginação e distorcem a noção de tempo e lugar, abrindo
outras percepções e realidades ao participante.

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Além desta instalação de Duke Lee, os trabalhos de arte


ambiental de Hélio Oiticica, que se iniciaram com os Penetrá-
veis (1960) e os Parangolés (1965) e que o levaram a criar, em
1967, o ambiente instalativo híbrido Tropicália - PN2 “A Pureza
é um mito”, PN3 “Imagético”, deram início à construção dos am-
bientes midiáticos sensoriais que, então, fariam parte do seu
processo de trabalho durante a década de 1970 – os quase-cine-
mas. Criado em 1967 e constituído por dois Penetráveis (PN2 e
PN3), além de plantas tropicais, papagaios, areia, brita, poemas
objetos, ervas aromáticas e uma televisão de 14 polegadas ligada
permanentemente, em Tropicália Oiticica opera mecanismos
do vídeo, do cinema experimental, da instalação ambiental e da
participação do público: as “estruturas comportamento-corpo”,
segundo sua própria definição (0409/72, p. 1).

Fluxus: ideias-mundo erigindo invenções


Sob a liderança de George Maciunas, o Grupo Fluxus era cons-
tituído por artistas, cineastas, músicos e atores de diversas
partes do mundo; dentre eles, transitaram pelo grupo Jose-
ph Beuys, Wolf Vostell, Nam June Paik, Bem Vautier e Yoko
Ono. Para Rush, Fluxus era “um movimento ‘entre meios de
expressão’” (2006, p. 18): críticos, provocativos e mergulhados
em humor irônico, esses artistas tentavam ampliar as mais va-
riadas formas de expressão. Ao integrar diferentes linguagens,
sobretudo tecnológicas, a manifestação da arte se dava através
de happenings, performances, filmes, instalações e vídeo-arte:
“a arte deve parecer complexa, pretensioso, profunda, séria,
intelectual, inspirado, hábil, significativa, teatral1” (MACIU-
NAS, 1965, s./p. tradução nossa). Suas realizações compõem
objetos, sons, movimentos e luzes, onde os sentidos do espec-
tador são convocados. Suas experimentações não possuem
sequências pré-estabelecidas de atos; assim, o público pode
(deve) ir para qualquer lugar, para onde desejar. A participa-
ção aqui é condição primária para a construção e constituição
de obra, pensamento e vivência. Pode-se dizer que se trata de
arte ambiental que, a partir de objetos e ações diversas, in-
tentam desestetizar, destruir a imagem “sagrada” do objeto
pronto, sendo obra aberta à participação do público que se
encontra imerso na recepção ativa.
Influenciado pelo dadaísmo – em especial pela obra de
Marcel Duchamp –, Fluxus contrariava a política elitista dos
museus e galerias de arte, bem como a ideia romântica de que

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o artista, individualizado em sua inspiração sagrada, é o único
detentor da capacidade de produzir arte. No Manifesto escri-
to em 1963 há frases que revelam uma postura inconformista
radical, como em “destruam os museus de arte” (que lembra
também a revolta contra o passado dos primeiros manifestos
futuristas de Marinetti) ou “destruam a cultura séria”. Como
Duchamp com seus ready-mades, esses artistas se apropria-
vam de objetos industrializados e produzidos em massa, que
faziam parte do cotidiano, e os expunham em instituições
artísticas, atribuindo a eles o status de obra de arte. Ironiza-
vam o objeto artístico consagrado e, assim, tinham a intenção
de reduzir todas as criações artísticas ao plano dos objetos
comuns, criando o conceito de antiarte.  Para os artistas do
Fluxus, a arte deveria ser retirada dos museus e instituições
e inserida no cotidiano das pessoas. Opondo-se à produção
de obras individuais, pregavam a criação coletiva, onde qual-
quer pessoa poderia entender e criar arte, se aproximando do
Construtivismo Russo, por exemplo, no que se refere à função
social e à participação na política por parte dos artistas. Daí o
museu, para o grupo, representar por excelência a instituição
construtora de padrões que, em sua estrutura original, deve-
riam ser inquestionavelmente seguidos, não permitindo que
aos artistas a proposição de obras que se aproximassem da
vida, no sentido do comportamento existencial das pessoas.
Com espírito dadaísta, os fluxistas negavam os padrões
estabelecidos, pregavam a antiarte e evocavam a desmateria-
lização do objeto de arte e a participação do antigo público
contemplador, movimentando ideias, corpos, lugares e tem-
pos em um universo onde o processo criativo acontece através
da destruição da fronteira entre a arte e a vida, junto à cons-
trução de percepção e pensamento novos. Para eles havia um
vínculo que era primordial para a manifestação da arte: os
objetos cotidianos, os eventos e a própria arte. Dessa forma,
concretizavam a ideia através de performances minimalistas,
mas que eram acessíveis a qualquer pessoa, pois se tratavam
de eventos-ações sobretudo não elitistas. Os eventos fluxistas
possuíam, então, instruções para performance, deixando ao
acaso as inúmeras possibilidades de interpretação: a obra es-
tava aberta às possíveis eventualidades que ocorreriam devido
à participação. Tal evento, como definido por George Brecht,

era a menor unidade de uma situação. Um deles, concebi-


do pelo artista Mieko Shiomi, foi descrito como “um evento

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aberto” – simplesmente “um convite a abrir algo fechado”.


Pediu-se aos participantes que escrevessem exatamente o
que havia acontecido durante o “evento”. Essa simples tarefa
tornou-se um manifesto contra a arrogância da arte em mu-
seus, bem como uma ação participativa porque as pessoas se
reuniram para realizá-la. (RUSH, 2006, p.18)

Fluxfilms
Os fluxfilms são, no total, 40 filmes curtos, feitos na maior par-
te das vezes por artistas, e não por cineastas, cujas referências
estéticas incluem a poesia concreta, a arte dadaísta e a música
experimental de Arnold Schönberg. Rejeitando a imagem tradi-
cional e consagrada das obras de arte, artistas do Fluxus produ-
ziam filmes que traziam significado para os objetos comuns. Ao
criarem filmes minimalistas, sem história narrativa complexa
e com ações repetitivas, colocavam em questão as associações
habituais do espectador contemplativo. O fluxfilm Zen for Film
(1962-64), de Nam June Paik, foi apresentado no apartamento
de Maciunas em Nova York, denominado fluxhall, como um
evento que misturava instalação, filme e performance: uma tela
caseira disposta na parede como se fosse uma pintura, um piano
e um contrabaixo. O filme dava pouca importância à grande – e
caríssima – indústria cinematográfica hollywoodiana (no fun-
do, era em tudo contrário a ela). Não por acaso, na tela foram
projetados trinta minutos de película (16mm) em branco, onde
o mínimo elementar era a película, a projeção na tela sem al-
guma imagem. Paik haveria insuflado “um aspecto de perfor-
mance no contexto da tela e, ao fazê-lo, libertou o observador
das manipulações tanto do cinema comercial quanto do cinema
alternativo” (JENKINS, ANO apud RUSH, 2006, p.19). O objeti-
vo dos fluxistas era eliminar qualquer condicionamento possível
que poderia desenvolver um filme de narrativa linear para ser
assistido por um espectador inerte em uma sala de cinema.

Quase-cinemas: Hélio Oiticica e Jack Smith


[…] será necessária a criação de “ambientes” para essas obras
– o próprio conceito de exposição no seu sentido tradicional
já muda, pois de nada significa “expor” tais peças (seria aí um
interesse parcial menor), mas sim a criação de espaços estru-
turados, livres ao mesmo tempo à participação e invenção
criativa do espectador. (OITICICA, 1986, p.76)

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Hélio Oiticica, ao longo de sua trajetória artística, manteve
como horizonte filosófico e estético a aproximação entre a arte
e a vida, buscando expandir os objetos em sua relação com os
espaços e, com isso, os fazendo interagir com o público. Nesse
sentido, a criação de ambientes propícios para a invenção do
público – que para Oiticica são participantes criativos – ativa o
conceito de “suprassensorial” proposto por ele a partir de 1965,
que é manifestação coletiva desencadeada pela reunião de ele-
mentos diversos: os ritmos das músicas (sobretudo o samba e
o rock), a dança, o uso das drogas e os mitos. Esta ideia se ex-
pande e se potencializa de várias formas em seus trabalhos e na
vida dos participantes, que passam por instantes de criação li-
vre ao adentrar nas ambientações híbridas e acessar seu direito
à liberdade patente no ato criador – o que transforma sua visão
de mundo. Para tanto, o programa de Oiticica tem como carac-
terística substancial a supressão do isolamento da obra de arte
no museu, fazendo-a vir ao público que, por sua vez, precisa
participar da obra para que ela se construa:

Quando proponho um shelter2 para a época de minha obra


de MANIFESTAÇÃO AMBIENTAL, na verdade proponho o
fim do ‘museu’ou da ‘coleção privada’, ou melhor, quero mos-
trar que essas obras não se destinam a esses fins. (OITICICA,
PHO 0316/73, p. 9)3

Em 1968, Oiticica escreve sobre o projeto Barracão, cujo


objetivo seria o de construir uma casa em madeira, à semelhan-
ça de barracos da favela, “onde as pessoas a sentiriam como se
fosse o lugar delas, talvez nas montanhas perto daqui, onde o
meu grupo iria para fazer coisas, conversar, conhecer pessoas”
(OITICICA, 1996, p.135). Este teria surgido através da necessida-
de de expandir a corporalidade dos Parangolés em direção a um
espaço arquitetural para lazer inventivo (o conceito de Crelazer
aqui se radicaliza). A ideia era a de transformar a moradia em
obra aberta para “experimentações-limite” (e não para constru-
ção de obras) através da vivência individual em um ambiente
coletivo, cuja estrutura formasse um todo “corpo-ambiente”. O
projeto não foi realizado naquele momento no Rio de Janeiro,
porém a ideia de viver em permanente estado de lazer inventivo
se concretizou quando Oiticica, em Nova York na década de
1970, transformou os dois apartamentos em que morou em “ni-
nhos” para convivência e deleite dos amigos que o visitavam. Os
ambientes penetráveis construídos a partir de grandes beliches

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de madeira eram repletos de objetos a serem manipulados, apa-


relhos de som, televisão, livros e assim por diante.
As vivências criativas propostas por Oiticica podem ser
comparadas com as que aconteciam no apartamento de Jack
Smith4. Após ter passado oito anos trabalhando com o cinema
tradicional, a partir da década de 1970 Jack Smith começou a
incorporar performances a seus filmes, a trabalhar objetivan-
do a desconstrução do dispositivo cinema através dos slides,
além do uso de multiprojeções, antecipando, assim, aquilo
que Gene Youngblood (ainda em 1970) denominaria Cine-
ma Expandido. Nos eventos, ele projetava nas paredes de seu
apartamento recombinações de imagens de slides e de seus
filmes, ambos misturados, e muitas vezes editava as pelícu-
las ao vivo usando fitas adesivas (antecipando também o Live
Cinema). Ao mesmo tempo, construía sons com vinis e fazia
uma ação teatral ao vivo. Não havia roteiros, tudo se passava
de maneira espontânea, casual. As pessoas que frequentavam
seu apartamento se sentiam parte integrante da performance.
Oiticica, por sua vez, sempre buscando a desativação dos
meios tradicionais de expor e contemplar arte, chega a um
radicalismo limite na década de 1970, quando somou a seu
programa ambiental as ideias de rompimento com a estrutu-
ra tradicional do dispositivo cinema. A obra cinematográfica
de Hélio Oiticica, os quase-cinemas, é permeada por diversas
linguagens, como a fotografia, o cinema e o som, tratando-se
de instalações multimídia, ambientações imersivas com pro-
jeções de slides e objetos a serem manipulados para a efeti-
va participação do público-visitante. A projeção de slides era
acompanhada de instruções a serem seguidas pelo público,
trilha sonora e objetos do cotidiano, como redes, areia, lixas
de unha, panos, estopas etc., que formavam um ambiente
sensório atraente para o participante. Assim como as caixas-
fluxus (os fluxkits), Oiticica fez uso de ferramentas táteis pro-
duzindo uma série de explorações multissensoriais, estimu-
lando o senso individual de participação ao unir – e libertar,
como acreditava – arte e vida.
O próprio Oiticica faz referência a Jack Smith, que tam-
bém trabalhou com slides e da forma como ele almejava, isto
é, com performance e elementos casuais. Na realidade, a pri-
meira vez que cunhou o termo quase-cinema foi para descre-
ver um dos eventos de Jack Smith denominado Travelogue
para Atlantis (ocorrido em 1971 em seu loft em Nova York).
Entusiasmado com a performance, escreveu em seguida para
Waly Salomão dizendo que

Natasha Marzliak , José Eduardo R. de Paiva e Marcelo Antonio M. Veronese . A arte transmídia (...) 269
coisas decisivas aconteceram essas duas últimas semanas!
jack smith: fui lá; tudo aconteceu e só o vi depois numa ses-
são de slides com sound track que foi maravilhosa…no dia
dessa projeção… era êsse o ambiente: chamava-se “travelogue
of atlantis” e estava marcado para sete e meia da noite; bem
…tudo começou às dez horas depois, e só nos três primeiros
slides êle ficou meia hora: mudou a tela de lugar, de modo
que os slides sofriam um corte ao serem projetados, e êle mo-
via o projetor de lugar pra dar o corte devido a cada um: o
resto do slide se espraiava pelo ambiente: incrível; a espera
e a ansiedade que me dominou, valeram: foi uma espécie de
quase-cinema, pra mim tão cinema quanto tudo que se possa
imaginar… (1111.71, pp. 1–2 AHO/PHO)

Destarte, os eventos de Jack Smith em seu apartamento


e o programa ambiental de Hélio Oiticica, sobretudo os qua-
se-cinemas, certamente se revelam como uma obra híbrida,
transmídia de instalação, aberta à participação e ao conheci-
mento através da incitação sensório-cognitiva na recepção.

O cinema expandido
Quando dizemos cinema expandido queremos dizer na ver-
dade consciência expandida.Cinema expandido não significa
filmes de computador, fosforescência de vídeo, luz atômica,
ou projeções esféricas. Cinema expandido não é mesmo um
filme: como a vida é um processo de tornar-se, o curso histó-
rico do homem conduz o manifesto de sua consciência fora
de sua mente, na frente de seus olhos. Não há mais quem
possa mais se especializar numa única disciplina e esperar
sinceramente expressar uma imagem clara das suas relações
no ambiente5. (YOUNGBLOOD, 1970, p. 41, tradução nossa)

À luz da era cibernética e para explicar as experiências dos


anos 1970 que uniam cinema, vídeo e tecnologia digital, Gene
Youngblood cunhou o termo “cinema expandido”. Menos utó-
pico, André Parente acredita que o cinema expandido enquan-
to “processo de desocultamento do dispositivo do cinema e da
produção de uma imagem processual, aberta, que envolve o
espectador” (2011, p.31), caracteriza-se, sobretudo, por duas
ideias centrais. De um lado, consiste em instalações que rom-
pem com a sala escura do cinema tradicional, reinventando o
cinema em outros espaços expositivos – o cinema através da
união da caixa preta do cinema e do cubo branco dos museus

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.1 p. 256-283, jan-jun 2016

e galerias, de onde insurge a sua segunda vertente: a hibri-


dização entre os suportes. Para Parente, “enquanto o cinema
experimental se restringe a experimentações com o cinema e
a videoarte se notabiliza pelo uso da imagem eletrônica, o ci-
nema expandido é o cinema ampliado, o cinema ambiental, o
cinema hibridizado.” (2009, p. 25)
Dessa forma, o conceito de cinema expandido se instaura
através de uma série de trabalhos experimentais que critica-
vam os mecanismos tradicionais do dispositivo cinematográ-
fico, principalmente através da “multiplicação dos níveis de
projeção, abolição das fronteiras entre diferentes formas de
arte, retorno à corporalidade, desconstrução das técnicas fí-
lmicas e a criação de obras de arte feitas de pura luz” (SAN-
TAELLA, 2003, p.162). O cinema tradicional é então substituí-
do por essa nova forma de se fazer cinema, que redimensiona
a arquitetura do espaço expositivo através das multiprojeções,
por exemplo, explorando outras durações e fazendo com que o
espectador, ao se deslocar, também recrie o cinema. Segundo
Nina Velasco e Cruz: “O espectador passa a ter mais mobi-
lidade diante da tela, rompendo com a sensação de imersão
completa que o abandono do corpo na escuridão procura per-
mitir.” (2009, p. 53). Ao imergir o antigo espectador do cinema
tradicional em um ambiente diferenciado, propõe-lhe uma
nova fruição estética e desperta sua inteligência crítica. A tra-
ma sensorial, física e cognitiva, se estende à multiplicidade do
espectador, aqui entendido como coautor da obra.

A condição “transmedium” na arte


contemporânea
Dick Higgins, em 1966, utilizou a palavra-conceito intermédia
para explicar seus trabalhos e de seus colegas do grupo Fluxus.
Para ele, a intermédia, em contraponto ao conjunto de obras
feitas a partir de apenas um médium, compreendia as mani-
festações de arte que faziam o uso simultâneo de linguagens
artísticas plurais que, uma vez unidas, não poderiam mais ser
entendidas separadamente, pois compunham um fluxo único
de criação, num movimento contínuo de transmutação. As-
sim, todos os médiuns engajados na formação da obra, ape-
sar de possuírem sua riqueza e contribuição particular para
o todo, são interdependentes, formando uma “máquina” que
incorpora potências de liberdade e experimentação.
O conceito de transmídia no campo da arte aqui proposto
atualiza e ultrapassa o conceito de Higgins, ao levar ao limite a

Natasha Marzliak , José Eduardo R. de Paiva e Marcelo Antonio M. Veronese . A arte transmídia (...) 271
noção de fluxo de criação na hibridação dos meios arte, cinema
e vídeo, num entendimento de movimento contínuo de trans-
mutação que atravessa, ainda, as mais novas tecnologias audio-
visuais. Assim, preferiu-se definir os dispositivos apresentados
como uma prática transmídia, em detrimento de multimídia,
intermídia ou crossmídia. O prefixo inicial “trans” – “além de”,
e acordo com sua origem no latim –, pode também significar
“outro”, denotando, assim, para além de sua etimologia, a arte
transmídia como agenciamento de médiuns completamente
amalgamados entre si e que formam um dispositivo complexo
para fruição e imersão na recepção. Assim, em transmídia en-
tende-se que a palavra mídia significa médium (meio) e opõe-
se à mídia como mass media. Além disso, a mídia não é mero
suporte técnico, mas um elemento-dispositivo de efetivação
na obra em suas dimensões técnicas, estéticas e poéticas. De-
vido a uma nova conjuntura de práticas contemporâneas que
se desenvolvem na “fundição” de médiuns e que exploram dis-
positivos inovadores como as novas tecnologias audiovisuais
(para captação de imagens, manipulação, apresentação e arqui-
vamento), torna-se necessária uma nova reflexão sobre o mé-
dium, que não é mais absoluto em sua pureza estética e formal.
O médium é outro, ele é “transmedium”.
No “ambiente mediatizado/construído em jogo com o
propósito da reflexão” (MORSE, 1990, p.158) da arte transmí-
dia de instalação, o campo imagético é organizado de manei-
ra que “a imersão é um princípio estético” (MELLO, 2008, p.
170). Nos entre-fluxos do cinema, do vídeo, das artes plásticas
e das novas tecnologias ocorre a modificação do espaço-tem-
po e a exploração de imagens “transnarrativas” (de narrativas
outras, não lineares). Diferentemente das salas de cinema que
“prendem” o público a seus lugares, bem como dos museus
e galerias que expõem objetos para contemplação visual e
passiva, entende-se que a arte transmídia de instalação au-
diovisual fornece um espaço de abertura constante do campo
perceptivo, favorecendo para que o participante, na recepção,
“viva” a obra com seu corpo e mente, fazendo insurgir nele
suas próprias referências de vida, num acometimento de sen-
tidos. Ora, uma vez que a arte transmídia de instalação ope-
ra trânsitos com o outro, seus procedimentos evidentemente
atuam entre o individual e o coletivo, passando a se estruturar
na própria experiência de vida do participante, na sua realida-
de, nos seus sonhos, e assim por diante: “Expandem-se assim
[...] as fronteiras entre o documentário e a ficção, o visível e o
sugerido, o vivido e o imaginado.” (MELLO, 2008, p.183).

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.1 p. 256-283, jan-jun 2016

Na cena internacional, alguns dos artistas/cineastas


transmídia mais relevantes que trabalham dentro do presente
conceito de arte transmídia são: Apichatpong Weerasethakul
(Tailândia), Philippe Grandrieux (França), Zoe Beloff (UK) e
Mark Lewis (Canadá). Em âmbito nacional, alguns dos mais
representativos nesse domínio seriam Eder Santos, Adriana
Varella (ainda que trabalhe em Nova York), Lucas Bamboz-
zi, Kika Nicolela, Luciano Mariussi, Caetano Dias, Giselle
Beiguelman, Fernando Velázquez, Maurício Dias e Walter
Riedweg, entre outros. Tais artistas e cineastas, cada um à
sua maneira, e muitas vezes levando ao extremo a interação
e a imersão do público através de novos códigos midiáticos
e tecnologias audiovisuais, relativizam os meios da arte, do
cinema e do vídeo ao construírem ambientes situacionais que
propõem trânsitos e situações transformadoras.
É importante salientar que a estética da arte transmídia
contemporânea tem, em suas práticas, uma orientação éti-
ca enquanto união da arte com a vida. Distancia-se, porém,
do sentido explorado pelos artistas vanguardistas quando
construíam suas obras na “forma utópica da obra de arte to-
tal”, o gesamtkunstwerk, objetivando transformar o mun-
do na visibilidade de uma revolução politizada. A tendência
contemporânea é agenciar códigos e signos do cotidiano, da
cultura e de outros campos do conhecimento criando “alte-
ridades possíveis” (BOURRIAUD, 2011, p. 168), sobretudo em
espaços heterotópicos6.
No Brasil, a efetiva criação de potências na arte trans-
mídia, desde 1960 até os dias atuais, é alimentada por situa-
ções de mescla social e cultural, por ações “antropofágicas”
(no sentido oswaldiano de deglutição de conceitos e práticas
vindos do exterior) e por se viver o underground como úni-
ca situação possível devido ao ainda encarecimento do ma-
terial audiovisual no país, que não permite que a tecnologia
seja amplamente aproveitada por todos. Os processos cria-
tivos dos artistas são considerados autônomos em oposição
ao que comumente designava-se como “arte brasileira”, pois
se alinham com o contexto da arte contemporânea ao conta-
minar suas práticas com códigos provenientes de outras cul-
turas e de outros campos de conhecimento. Mas, ainda assim,
carregam todo o conteúdo histórico, social e econômico que
dinamizaram o país. Portanto, a arte transmídia de instala-
ção produzida no Brasil atualmente possui singularidades
importantes a serem consideradas, uma vez que constroem
um campo simbólico particular no seu contexto específico,

Natasha Marzliak , José Eduardo R. de Paiva e Marcelo Antonio M. Veronese . A arte transmídia (...) 273
dialogando, ainda, com as principais tendências e práticas
da arte contemporânea global. Pela pluralidade e potência de
aparatos, conceitos e práticas presentes, nos deteremos em
dois trabalhos recentes de dois artistas expoentes de contem-
poraneidade transmídia: André Parente e Kátia Maciel.

Situação-cinema: o cinema-outro de André


Parente e Kátia Maciel
André Parente: Circuladô
Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um
imenso prazer fazer sua casa no numeroso, no ondulante,
no movimento, no fugitivo e no infinito. Estar fora de casa e
sentir-se em casa em todos os lugares; ver o mundo, estar no
centro do mundo e permanecer oculto ao mundo7. (BAU-
DELAIRE, 1863, tradução nossa)

André Parente é artista, cineasta, pesquisador e professor da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde fundou o
grupo de pesquisa N - Imagem (Núcleo de Tecnologia da Ima-
gem), que explora os cruzamentos da arte, do cinema e das
novas mídias digitais. Sua obra, carregada de filmes, vídeos e
instalações, se situa nas contaminações do cinema com a arte,
a filosofia e as novas tecnologias. Em constante diálogo com
a sua produção escrita, seus trabalhos, mesmo tocados por
instrumentalizações de outros meios, continua, para o artis-
ta, a ser cinema. Um cinema-outro, é verdade, uma vez que,
invadido por outros meios, espacializa imagens, desconstrói
narrativas e modifica temporalidades.
Parente trabalha entre duas temporalidades: a primeira
se relacionada ao pré-cinema, e procura a essência do dispo-
sitivo cinematográfico esmiuçando todas as sutilezas intrín-
secas a esse fazer; a segunda, numa reflexão de pós-cinema,
investiga suas contaminações e possibilidades por meio do
uso das mais novas tecnologias. Assim, Parente promove uma
sorte de epistemologia do cinema ampliado através do estu-
do aprofundado de suas técnicas, conceitos e procedimentos
que criam subjetivações nas brechas dos dispositivos. A re-
flexão de Parente, sistemática e de grande riqueza para a arte
contemporânea no contexto da transmídia, se faz presente em
“Circuladô” (2010-2014), instalação construída a partir da arti-
culação de imagens de arquivo de cinema.

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Exposta pela primeira vez no Museu da Imagem e do Som


de São Paulo, em 20118, esta obra explora novos suportes tec-
nológicos numa organização espacial que propicia a interação:
sensores analógicos de rotação para capturar o movimento do
participante, programado no ambiente de programação Isa-
dora9, placas de vídeo TripleHeadTogo para a projeção e um si-
stema de som 5.1 surround para que possa se deslocar em 360º;
isso, em um amplo espaço circular de 6 metros de altura por 18
metros de comprimento. As grandes projeções em diversas telas
circundam o participante, dando a impressão de se estar den-
tro de um grande Zoetrope.10 O público, inserido na situação da
obra, interage quando o artista coloca à sua disposição, no cen-
tro do espaço, um objeto designado como “giroscópio”, que per-
mite a manipulação das imagens fornecidas previamente. Atra-
vés dessa interface, pode-se alterar a velocidade das imagens e
o deslocamento do som, que giram ambos ininterruptamente.
O impulso poético de André Parente, ligado a seu modo
de fazer, surge a partir do que ele denomina como “atraves-
sadores”. Trata-se de momentos, fatos ou coisas, como a
música, a literatura, o cinema e a dança, por exemplo, que
cruzam a vida e que trazem, na surpresa do acaso, sentidos.
Estas circunstâncias e coisas que permeiam a existência são,
segundo ele, como a própria vida, cujos acontecimentos sur-
gem, desaparecem e ressurgem, em um ritmo circular: “[…]
repetições, rotações, círculos, ciclos – somos surpreendidos
pela ‘natureza’ periódica da vida, até o mais recôndito da nos-
sa experiência interior, bordada que ela é sobre a trama de
nossa respiração, de nossos hábitos, de nossa espera, de nos-
sos mecanismos e loops mentais.”11 Já há muito tempo o gesto
do giro chama a atenção do artista e, em “Circuladô”, tudo
efetivamente gira: os personagens, o “giroscópio” e, por fim,
as mãos e os olhos do participante, assim como todo o seu
corpo – se assim o desejar. As imagens dos personagens em
giro presentes são Édipo, Corisco e Dervish e foram retiradas,
respectivamente, dos filmes “Edipo Re” (Pier Paolo Pasolini),
“Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha) e “Decasia”
(Bill Morrison). Quando eles rodopiam em torno de si mes-
mos estão em uma “situação-limite”. O ato de girar, em uma
dimensão filosófica, traz temas de interesse a Parente, como
destino, morte, transe e loucura.

No filme do Glauber, o Corisco acabou de receber um tiro, ele


gira e cai morto. No Édipo, ele acaba de ouvir do oráculo que ia

Natasha Marzliak , José Eduardo R. de Paiva e Marcelo Antonio M. Veronese . A arte transmídia (...) 275
matar o pai e ficar com a mãe, então ao aparecer a primeira en-
cruzilhada ele põe a mão nos olhos para não escolher, gira e vai
na direção em que para, porque acha que se escolher vai acabar
caindo nas armadilhas do destino. (PARENTE, 2014, s./p.)

Usando o corpo do espectador como elemento ativo para


criação nas brechas dos médiuns-dispositivos, a subjetivação
na obra de André Parente nasce na articulação de elementos
que se transformam a cada experiência do participante-cria-
dor: “Circuladô” é um ambiente para imergir, estruturado com
elementos diversos a serem manipulados: objetos, imagens
em movimento, música. Parente imprime em seus percursos
a superação da arte contemplativa, aquela da representação,
para estruturar práticas da arte contemporânea nas quais es-
tão embutidas as experiências da vida individual e coletiva
como proposição da arte, em detrimento do olhar sobre uma
imagem, deflagrando vários caminhos de criação. O corpo
segue um trajeto de infinitas possibilidades ativando nele a
subjetividade de um flâneur, que é envolvido e envolve a obra.
Trata-se do flâneur de Charles Baudelaire, aquele que está,
ubiquamente, imerso no mundo exterior e em seu âmago.

Kátia Maciel: Suspense


O cinema é sempre cinema quando é um dispositivo de cons-
trução de imagem e subjetividade. No sentido bergsoniano
somos todos imagens entre imagens. A arte tem sido na con-
temporaneidade a forma de atualização de cinemas experi-
mentais e expandidos. Se muitas vezes estiveram misturados,
agora cinema e arte são indiscerníveis.12

Kátia Maciel é artista, poeta, curadora, crítica de arte, pesqui-


sadora e professora da Faculdade de Comunicação da UFRJ:
uma “artista-etc” como disse Ricardo Basbaum, definindo a
tendência plural do artista contemporâneo. Nos entre-meios
do cinema, do vídeo, da arte e das novas tecnologias audio-
visuais, ela produz instalações bastante expressivas que ra-
dicalizam processos experimentais de arte-vida alinhados
aos procedimentos menos utópicos da arte contemporânea.
Trata-se de dispositivos de transcinemas, nome-conceito que
criou e desenvolveu para explicitar a sua e outras produções,
cuja construção se dá através da transmidialidade audiovisual
de instalação com o fim de propiciar a participação, sendo
uma nova forma de se fazer cinema. Nas palavras da artista:

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.1 p. 256-283, jan-jun 2016

Transcinemas foi um meio que eu criei para dar conta de


um campo contemporâneo, da Arte Contemporânea, que é
esse cinema expandido pelas instalações. Então, “trans” é de
“além de”. Assim, tem uma forma de cinema ainda – algumas
instalações pegam desde a relação com a própria imagem e
movimento, com as narrativas, multiplicação das narrativas,
multiplicação das formas de interagir com essas narrativas.
(Carrapatoso, 2010, p.194)

Os espaços de “situações-cinema” criados por Maciel


exploram procedimentos do cinema que reagem à maleabi-
lidade e casualidade próprias do vídeo e às novas tecnologias
de montagem e edição, as quais potencializam a recepção
numa experiência estética onde o corpo é expandido no espa-
ço como imagem. O modus operandi da artista abarca

entrecruzamento de narrativas, efeitos, sequenciamentos,


ações corporais e vozes: há já um corpo de obra e conjunto de
experimentos que trazem um fio sinuoso de espessura pró-
pria, onde se materializam as inquietações e problematiza-
ções de uma poética. (BASBAUM, 2014, p. 59)

A poética da artista se divide no que ela chama de “desna-


turezas” e “desnarrativas amorosas”. Na etimologia, o prefixo
“des” se refere à separação ou à uma ação contrária: desfazer
algo. Maciel costuma dizer que não filma o que vê, mas vê o
que filma, negando uma suposta representação da verdade;
a imagem vista no filme nunca é realidade, ou melhor, sua
re-apresentação no filme implica subjetividade. Quando
apresentadas no espaço expositivo, o campo imagético, mais
do que um efeito, convida à experimentação em heteroto-
pias imersivas que, em suas contradições, assim como a vida,
constroem múltiplas narrativas e potencializam a existência
na presentificação do tempo. Uma exposição de cinema ex-
pandido recente, ocorrida na Zipper galeria em São Paulo,
é “Suspense” (2013).13 Trata-se de uma instalação de “desna-
tureza” que funde médiuns no percurso e recepção da obra:
“Vulto” (vídeo-performance), “Suspense”, “Espreita” e “Espe-
ra” (fotografia), “Caixa de ar” e “Caixa de luz” (objeto/poema
visual), “Tocaia”, “Vestígios”, “Cálculo”, “Teoria”, “Perspectiva”,
“Vertigem” e “Abrigo” (conjunto de oito lambe-lambes).14
No vídeo “Vulto”, a câmera fixa mostra a artista mise en scène
em meio a uma floresta, por onde caminha e, em um segundo mo-
mento, surge amarrada pelas mãos pendurada em uma árvore,

Natasha Marzliak , José Eduardo R. de Paiva e Marcelo Antonio M. Veronese . A arte transmídia (...) 277
balançando; um corpo transformado em pêndulo, como se
marcasse o tempo. A repetição do mesmo movimento do cor-
po simultaneamente presentifica o tempo, representando o in-
finito possível no corpo, suspendendo temporalidades: na imi-
nência de um encadeamento de narrativa, ainda não se sabe o
que acontecerá, é um acontecimento em suspenso. De natureza
bergsoniana/deleuziana, assim como em André Parente, a di-
mensão subjetiva na obra da artista pensa a imagem na interiori-
dade do tempo durativo, que não é o tempo cronológico. Em Ma-
ciel, o caráter absoluto da imagem em movimento é relativizado
por essa imagem-tempo dinamizada na repetição – uma estética
recorrente no conjunto de sua obra, segundo afirma:

Como repetição registro o retorno do tempo. Há uma mu-


dança que opera nos dois sentidos da ação. A imagem mostra
a operação de ida e volta de uma ação ou alteração do estado
de um objeto. Com a repetição o fim é o começo e o começo o
fim. Repetir faz ver o que há e não é visto.15

Em outro momento, retirado de uma entrevista para um jor-


nal francês na ocasião de sua exposição “Répétition” na Maison
Européenne de la Photographie de Paris, em 2014, a artista fala
sobre a questão da repetição relativizada pela imagem-tempo:

A ideia de repetição se manifesta na grande maioria dos meus


trabalhos onde o tempo parece resistir ao tempo. Em Meio
cheio, meio vazio, eu despejo a água de uma garrafa em um copo
que sempre permanece preenchido até a metade. O paradoxo
contido neste trabalho é baseado em nossa relação com o tem-
po; o instante é percebido como uma duração em razão da uti-
lização do loop da imagem. É, então, a expressão do que passa
e, ao mesmo tempo, do que permanece. O instante é percebido
como um fluxo contínuo e não como unidade estática. [...] Para
a maior parte dos meus trabalhos eu utilizo um plano fixo e um
enquadramento específico no objeto filmado. Se há movimento,
ele se abre frequentemente no interior da imagem. É então na
edição que se cria um diálogo ou uma fricção entre os diferentes
planos que compõem o espaço-tempo da imagem.16

Além da projeção, “Suspense” compreende um espelho


posicionado em frente ao jardim da galeria que captura, em
tempo real, a imagem refletida, isto é, o jardim e as pessoas
que por ali passam. As pessoas podem se observar no espe-
lho e, simultaneamente, sua imagem é projetada em tempo

278 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.1 p. 256-283, jan-jun 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.1 p. 256-283, jan-jun 2016

real em seu verso, uma tela de projeção disposta de maneira


perpendicular à projeção central, (“Vulto”). Também em en-
trevista, Maciel diz que

implicar o espectador no que se vê é muitas vezes um ele-


mento estrutural nos meus trabalhos. Na instalação Verso, a
própria construção da imagem e a sua disposição no espaço
instalado tornam o visitante parte da paisagem. Desfazer, in-
terromper, reconfigurar, alterar, deslocar o que seria da or-
dem da natureza é uma constante nas imagens que construo,
é retornar ao ver e ser visto, desviando e distorcendo esta ope-
ração sensível, simbólica e estética.17

Há ainda fotografias da artista na floresta que, por sua


natureza, paradoxalmente radicalizam a suspensão do tempo
na visibilidade da infinitude subjetivada na memória, além de
dois objetos/poemas visuais, a “caixa de luz” e “caixa de ar”,
caixas transparentes que se referem, respectivamente, ao ele-
mento primordial da sala escura do cinema e com a noção de
intangibilidade. Completa-se a narrativa com a apresentação
em lambe-lambe dos cartazes prévios da exposição, no impul-
so de mostrar para o público, metalinguisticamente, a monta-
gem ficcional da exposição.
Nesse universo sensorial, o corpo do participante, expandin-
do como sujeito ativo na obra, é também um meio, uma imagem
na interioridade do tempo, uma forma-tempo. Ele se relaciona
com o passado virtual através de sua memória e implica-se no
real como participante cocriador. O tempo da situação-imagem,
tal como o teorizou Gilles Deleuze e, primeiramente, Henri Berg-
son, está entre o presente e o passado, e assim, no interior de cada
relação construída entre o presente da imagem dada e o passado
que cada pessoa carrega dentro de si. Na heterotopia foucaultia-
na de Kátia Maciel, o corpo, o pensamento e a memória aceleram
fruição. A ética em sua produção tem uma crescente consciência
de um novo estatuto do corpo. No espaço-outro de “Suspense”,
experimenta imagens vertiginosas de fora e aquelas que sur-
gem dentro de si mesmo, engolido nas relações e contradições
existentes entre a ficção, a memória e o real.

Conclusão
As obras transmidiáticas de André Parente e Kátia Maciel,
aqui exemplificadas por “Circuladô” e “Suspense”, resultam
de uma profunda reflexão dos procedimentos do cinema, do

Natasha Marzliak , José Eduardo R. de Paiva e Marcelo Antonio M. Veronese . A arte transmídia (...) 279
vídeo e das novas tecnologias no contexto da arte contempo-
rânea. Através desses componentes tônicos caracterizantes,
fomentam a reflexão na recepção. São ambientes expandidos,
de imersão, que trazem força ao corpo pois deslocam a perce-
pção do espaço-tempo, quebram a narrativa linear do cinema
tradicional e, assim, consentem lacunas para otimizar sen-
tidos e pensamentos no participante durante os rebatimentos
com a obra. Trata-se de obras que, desde o gesto de construção
até sua reverberação na participação, abolem a autonomia da
imagem para fazer nascer um dispositivo processual de inte-
ração que reforça e atualiza, alinhado com o pensamento da
arte contemporânea, os eventos transmidiáticos de vanguarda
que tiveram início nas décadas de 1960 e 1970.

Notas

1. Texto original em inglês. Disponível em: < http://randallszott.org/>.


Acesso em: 26 abr. 2016

2. “Shelter”, do inglês “abrigo”.

3. Ironicamente ao repúdio de Hélio Oiticica às instituições de arte, sua obra


é hoje reverenciada em espaços oficiais da arte contemporânea, principal-
mente através de exposições.

4. O apartamento de Smith em Nova York era um duplex e, no segundo


andar, ele construiu um labirinto imagético-fantástico.

5. Texto original em inglês.

6. Heterotopia é um conceito elaborado pelo filósofo Michel Foucault para


descrever lugares e espaços que funcionam em condições não hegemônicas.
Trata-se de espaços de alteridade, que são simultaneamente físicos e men-
tais, como o momento em que alguém se olha no espelho.

7. Texto original em francês.

8. Também foi exposta em outros formatos e em outros espaços de arte, tais


como a Galeria Fayga Ostrower, Funarte Brasília, em 2014.

9. “Isadora” é um software que oferece um ambiente de programação gráfica


que possibilita o controle interativo sobre uma mídia digital. Com esse pro-
grama, pode-se manipular e interagir com um vídeo em tempo real.

10. Zoetrope é um dispositivo de animação pré-cinema do século XIX que


produz a ilusão de movimento, através de uma sequência de desenhos ou
fotografias. O termo “Zoetrope” foi composto a partir das palavras de raiz
grega zoe, “vida”, e tropos, algo como “girando e transformando”.

11. Texto retirado do site da Galeria Mamute (http://www.galeriamamute.


com.br/#!giro/cq1a), por ocasião da exposição GIRO (de abril a maio de
2014), sob curadoria de André Parente, cujos artistas participantes foram:
André Parente, Caetano Dias, Dirceu Maués, Gisela Motta e Leandro Lima,
Jailton Moreira, Katia Maciel, Mariana Manhãs e Sara Ramo.

12. Trecho de entrevista dos pesquisadores deste artigo com Kátia Maciel.

13. Suspense se refere ao gênero cinematográfico e ao corpo suspenso.

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14. Sua segunda mostra ocorreu nas Cavalariças do Parque Lage, no Rio de
Janeiro (Curadoria Paula Alzugaray) e reúne as obras “Pista” (2015), “Verso”
(2013), “Vulto” (2013) e “Uma árvore” (2009).

15. Trecho de entrevista dos pesquisadores deste artigo.

16. Tradução da pesquisadora. Texto original em francês disponível em: <


http://quefaire.paris.fr>. Acesso em: 29 jun. 2014.

17. Trecho de entrevista dos pesquisadores deste artigo.

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Recebido em: 30/05/15


Aceito em: 06/03/16

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Natasha Marzliak
natashamarzliak@hotmail.com
Bacharel em Artes Visuais (2005), mestra em Cultura Audiovisual e
Mídia (2012) e doutoranda em Multimeios e Arte (2014 - andamento)
no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universi-
dade Estadual de Campinas (UNICAMP) com sanduíche no Depar-
tamento de Cinema e Audiovisual da Université Panthéon-Sorbonne
Paris 1. Artista visual, cineasta e pesquisadora, atua em projetos de
video-arte, filme experimental e de vídeo e cineinstalação.

José Eduardo Ribeiro de Paiva


eduardopaivacampinas@gmail.com
Professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunica-
ção do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e professor do programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais e do programa de Pós- Graduação em Música da mesma
instituição. Graduado em Música, mestre em Artes e Doutor em
Multimeios, desenvolve, desde os anos 80, trabalhos sobre as rela-
ções entre arte, mídia, tecnologia e produção audiovisual.

Marcelo Antonio Milaré Veronese


besotcc@hotmail.com
Bacharel em Letras (1998), Mestre em Teoria e História Literária
(2009) e Doutor em Teoria e História Literária (2011 – 2015) pelo
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP). Tem experiência na área de Língua
Portuguesa, Redação, Poesia e Literatura, com ênfase em: Poesia
Brasileira, Literatura Brasileira, Poesia Italiana, Poesia Inglesa,
Poesia Francesa, Beat Generation.

Natasha Marzliak , José Eduardo R. de Paiva e Marcelo Antonio M. Veronese . A arte transmídia (...) 283

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