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V i v e r e m P o r t u g u ê s – 6 6 5 7 – D i v e r s i d a d e l i n g u í s ti c a e c u l t u r a l

“A lição do aprendiz”

Apresentou-se com uma carta na mão. O barbeiro Lázaro interrompeu a tesouração e


foi à porta. O miúdo estendeu a carta, com a mão esquerda segurando respeitos no braço
direito. Era uma missiva triste, com notícias escuras dos lados da guerra. O rapaz que ali se
apresentava ficara sem ninguém, a família dele era só pena dos outros.
O barbeiro fingiu demorar-se na leitura. Tinha receio de enfrentar aqueles olhos
órfãos, parentes da morte.
- Quem escreveu este bilhete foi meu primo Ezequiel?
O miúdo acenou com a cabeça, dispensando a voz.
- E queres trabalhar aqui comigo, aprender o serviço de barbeiro?
Agora foram os ombros que responderam um encolhimento.
- Como te chamas?
Chamava-se Antoninho. O barbeiro aprontou-lhe na condição. Pequena, mas
constante. Antoninho trabalharia ali mesmo, ajudante. Dormiria na própria barbearia. Chegada
a hora de fechar, retiravam-se as almofadas da cadeira e estendiam-se no chão. Ele deitava
naquele sossego frio, até dava jeito para espantar a ladroeira.
O menino foi ficando, vassourando os intervalos da clientela, lustrando o espelho,
sacudindo os panos. Nunca de sua língua se confecionava palavra. Lázaro empurrava-lhe para
a vontade, com ordem amiga:
- Está atentinho, veja como eu faço. Um dia desses vais poder cortar o cabelo, tu
também.
Mas o miúdo parecia sempre longe, dissidente da infância, olhos exilados na rua por
onde a vida se derramava quente e luminosa. Fazia até medo contemplar aqueles olhos cheios
dele. Toda a alma daquele pequeno corpo estava ali naqueles dois luzeiros, pareciam feitos de
água incendiada. Antoninho amealhava silêncios, sem que ninguém suspeitasse que sonho
brincava dentro dele.
Uma manhã, mais cedo que a hora habituada, Lázaro surpreendeu o miúdo deitado
por baixo da cadeira, de alicate na mão.
- Que estás a fazer?
O moço gaguejou: a razão por que alicateava era a cadeira que estava a soltar-se dos
parafusos. Um dia desses, o cliente se descompunha, placando contra a vontade. Assim se
explicou Antoninho, com a vergonha adoçando-lhe as maneiras da voz.
Lázaro espreitou a obra, abanou a cadeira. A dita estava agora bem fixa. O raio do
miúdo até que teve boa iniciativa. Dali em diante, sucederam-se as surpresas mecânicas. As
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dobradiças da porta foram reparadas, as tesouras afinadas. Antoninho revelava seus dotes de
consertador.
- Você bem podia consertar este espelho, adaptar posição dele. Os clientes têm de
esticar os pescoços para se verem.
Mas o suporte do espelho era obra demasiada, pedia habilitações superiores.
Antoninho pediu tempo para se instruir dos serviços requeridos. Só um tempo que os dias
estão cheios de semanas inúteis. O tio começou a nutrir admiração pelo rapaz. Uma ideia lhe
nasceu: o sobrinho merecia um futuro, quem sabe ele não dava um mecânico de primeira.
Falou com o Manjate, proprietário da oficina lá do bairro. Ficou assente. Depois de despegar
da barbearia, Antoninho passou a frequentar a oficina, apreciar técnicas e segredos da
mecânica. O jovem tinha olhos aprendizes, reparando em tudo com grande velocidade. Cedo
se acostumou às intimidades dos motores, cirurgião dos ferros.
O barbeiro começou a pensar ainda mais alto. A barbearia, com essa coisa da Sida,
estava adoecida, aflita de clientes. Talvez nem fosse má ideia aproveitar as tendências do
miúdo e abrir ele próprio um negócio de oficina. Uma manhã, a loja repleta, Lázaro anunciou
bem alto o seu plano. Na cadeira, Serafindo Matine, estudante de economia, esticou bem seu
português:
- É um projeto de pequena dimensão, mas se tiver financiamento garantido, meios
técnicos, viabilizados, então a reprodução do capital investido...
Levantando a mão, o barbeiro interrompeu os ditos. Nem ele suspeitava que sua
simples ideia merecesse tamanha palavreação. E enquanto o futuro economista prosseguia
xiricando1 sabedoria, Lázaro chamou o miúdo e lançou-lhe a proposta. Seriam sócios, o
dinheiro seria por conta dele, mas as receitas não demorariam. E encheu a língua de
promessas. Então?
- Não quero sociedade, tio.
- Não queres?
- É que eu vou voltar na minha terra.
Lázaro estranhou. Mas então ele não via que aqui é que se ganham os tacos, enquanto
lá, com essa porcaria dos bandidos, ninguém para descansado? Mas o miúdo insistia:
- Já decidi, vou voltar. Lá sou muito precisado. Há tanta coisa que é preciso reparar lá,
você nem imagina, tio.
No dia seguinte, o miúdo se abraçou à viagem, com um saco cheio de ferramentas
compradas de sua economia. O barbeiro deu conta da sua ausência e foi logo à caixa ver se
desaparecera dinheiro. A caixa estava intacta, virgem de maldades. Então o barbeiro reparou
que um novo suporte, de haste flexível, sustentava o espelho. Sentou-se na cadeira e, horas
1
Xiricando: de xirico, pequeno pássaro.
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perdidas, ficou remirando seu rosto, agora mais antigo, mais longínquo, como se houvesse na
ausência do sobrinho uma lição que ele lentamente decifrasse.

in “Cronicando” de Mia Couto

1. Quem é a personagem principal do texto. Justifique a sua resposta.

2. “Era uma missiva triste, com notícias escuras dos lados da guerra.”. De que guerra fala
o texto?

3. Que condição apresentou o barbeiro a Antoninho?

4. Que qualidades foi apresentando Antoninho a Lázaro?

5. Que decisão toma Antoninho e porquê?

6. Como reage o barbeiro?

7. “Sentou-se na cadeira e, horas perdidas, ficou remirando seu rosto, agora mais antigo,
mais longínquo, como se houvesse na ausência do sobrinho uma lição que ele
lentamente decifrasse.” Explique por palavras suas o sentido da frase.

8. Retire do texto expressões, palavras que demonstrem uma variação linguística do


português.

9. Pesquise na internet quem é Mia Couto, escrevendo, por palavras suas, uma pequena
biografia do autor.

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