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Elisaldo A. Carlini 1
1 Centro Brasileiro de Abstract This article analyzes information recently published by the Brazilian press on the use
Informações sobre Drogas
of psychoactive drugs and its implications on health. A sample of 502 newspaper and magazine
Psicotrópicas, Departamento
de Psicobiologia, articles published in 1998 was researched using content analysis. The drugs most frequently fea-
Escola Paulista de tured in the headlines were tobacco (18.1%), coca-derived drugs (9.2%), marijuana (9.2%), alco-
Medicina, Universidade
holic beverages (8.6%), and anabolic steroids (7.4%). Solvents were featured in only one article,
Federal de São Paulo.
Rua Botucatu 862, although they are the most commonly used drug in Brazil, second only to alcohol and tobacco.
São Paulo, SP These data indicate an imbalance between the journalistic approach and the epidemiological
04023-062, Brasil.
profile of psychoactive drug consumption in Brazil. Dependence was the most frequent conse-
quence mentioned in the articles (46%), followed by violence (9.2%), withdrawal syndrome
(8.0%), and AIDS (6.8%). The focus of the articles varied according to the drug in question. While
articles on marijuana focused on its therapeutic use and legalization, those on cocaine-related
issues discussed both the damage caused by consumption as well as various interventions (treat-
ment and repression).
Key words Psychotropic Drugs; Drug Abuse; Communications Media; Newspapers
Resumo O presente estudo analisa as informações que a imprensa escrita vem divulgando
atualmente no Brasil sobre as implicações do uso de drogas para a saúde. Por meio de análise de
conteúdo, foi pesquisada uma amostra de 502 artigos divulgados ao longo do ano de 1998 em
jornais e revistas. Entre os psicotrópicos mais evidenciados nas manchetes, destacaram-se o ci-
garro comum (18,1%), derivados da coca (9,2%), maconha (9,2%), bebidas alcoólicas (8,6%) e
anabolizantes (7,4%). Em contrapartida, os solventes, que são os psicotrópicos mais usados no
Brasil (excetuando-se o álcool e o tabaco), foram evidenciados em apenas um artigo. Esses dados
indicam um descompasso entre o enfoque jornalístico e o perfil epidemiológico do consumo de
psicotrópicos no Brasil. A dependência foi a conseqüência mencionada com maior freqüência
nos artigos (46%), seguida de violência (9,2%), síndrome de abstinência (8,0%) e AIDS (6,8%). Os
artigos apresentaram diferentes enfoques de acordo com a droga em questão; por exemplo, en-
quanto para a maconha prevaleceram os artigos sobre o seu uso terapêutico e a descriminaliza-
ção, para a cocaína predominaram temas relacionados aos danos decorrentes do uso, ao trata-
mento e à repressão.
Palavras-chave Psicotrópicos; Abuso de Drogas; Meios de Comunicação; Jornais
Uma vez organizados, todos os artigos selecio- Foram contados 502 artigos que estavam de
nados foram submetidos a uma análise de con- acordo com as especificações estabelecidas pa-
teúdo detalhada. A análise de conteúdo é defi- ra o presente estudo, ou seja, artigos que en-
nida como uma técnica de tratamento de da- volviam o tema drogas dentro da perspectiva
dos de pesquisa voltada para uma descrição da área de saúde, veiculados no ano de 1998.
objetiva, sistemática e quantitativa do conteú- Os artigos sobre drogas representaram 7% do
do de “comunicações” (textos, entrevistas, en- total de artigos relacionados a saúde.
tre outros). Dessa forma, embora tenha suas A Figura 1 apresenta a classificação geral
origens na pesquisa quantitativa, busca a in- dos artigos, realizada com base nas manchetes.
terpretação de materiais de caráter qualitativo Cerca de um terço das manchetes não mencio-
(Minayo, 1998). nava nenhum psicotrópico em especial, utili-
A análise foi iniciada a partir de uma “leitu- zando termos gerais como “drogas”, “tóxicos”,
ra flutuante” dos artigos. É denominado “leitu- “vício”. Entre as demais, o tabaco foi o psicotró-
ra flutuante” o primeiro contato do analista com pico destacado com maior freqüência (18,1%),
os documentos em estudo, que visa a obter seguido de derivados da coca (9,2%), maconha
“impressões e orientações” a respeito dos mes- (9,2%), álcool (8,6%) e anabolizantes (7,4%). Al-
mos (Bardin, 1977). guns psicotrópicos, embora usados com fre-
Ao longo desse processo de leitura dos arti- qüência pela população, apareceram em um
gos, foram selecionados alguns temas conside- número muito pequeno de manchetes, como
rados mais relevantes para investigação. Esses foi o caso dos ansiolíticos (0,8%) e dos solventes
temas serviram de base para a elaboração de (0,2% – um único caso), inclusive com valores
uma ficha-padrão (“Planilha de análise de con- muito inferiores comparados a drogas menos
teúdo”) para a análise individual de cada artigo. usadas no Brasil, como a heroína (2,9%) e os
A planilha contemplou os seguintes tópi- alucinógenos (1,4%).
cos: (a) temas centrais (da manchete e do tex-
to); (b) personagens (faixa etária, sexo, grupos Características gerais dos artigos
específicos, relação com a droga); (c) droga (pa-
pel e conseqüências); (d) intervenções mencio- A grande maioria (90,8%) dos artigos foi extraí-
nadas (legislação, repressão, prevenção, redu- da de jornais (os quais, em geral, são diários e
ção de danos e/ou tratamento); (e) enfoque do de abrangência estadual), predominantemente
artigo (eventual tendenciosidade e conseqüên- das Regiões Sudeste (72,5% – em especial dos
cias privilegiadas); (f ) fonte das informações Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro) e Sul
divulgadas; (g) autoria do artigo. (8,0%). Apenas 9,2% dos artigos eram de revis-
A análise foi realizada por uma equipe com- tas, as quais, em geral, são mensais e de abran-
posta de uma jornalista, uma publicitária, um gência nacional. Cerca de metade dos artigos
psicólogo e uma farmacêutica. Com o objetivo estava apresentada em um quarto de página
de minimizar a subjetividade da avaliação, foi (51,2%), seguida dos artigos de meia página
estabelecido um fluxograma de análise em du- (20,5%). Também foram observados artigos de
plicata. Dessa forma, um mesmo artigo foi ana- página inteira (12,5%), algumas notas (9,0%) e
lisado distintamente por dois analistas, com artigos de duas ou mais páginas (6,6%).
posterior confronto dos pareceres. As divergên- As fontes das informações citadas nos arti-
cias foram pouco freqüentes, mas, quando ocor- gos foram diversificadas, sendo freqüentes os
reram, os analistas abriam discussão em busca depoimentos de profissionais (60,4% – médi-
de consenso. Nos raros casos em que as diver- cos, delegados, educadores, entre outros) e/ou
gências detectadas não foram sanadas durante especialistas na área de estudo (41,2%), assim
o confronto (1,2% dos artigos), os artigos em como pesquisas científicas (53,4%), leis e/ou
questão foram encaminhados para uma tercei- políticas públicas (26,1%) e depoimentos de
ra avaliação. Para cada artigo, após o confron- usuários (17,7%). A maioria dos artigos mencio-
to, foi preenchida uma planilha final, a qual foi nou ao menos uma fonte nacional, mas aproxi-
encaminhada para digitação e posterior tabu- madamente metade referiu também fontes in-
lação dos dados. ternacionais (na maior parte, pesquisas e polí-
ticas). Os artigos, em geral, referiram mais de
uma fonte, muitas vezes mesclando relatos de
profissionais e/ou especialistas sobre determi-
nado acontecimento com dados de pesquisa,
leis e/ou depoimentos de usuários.
Figura 1
Psicotrópicos destacados nas manchetes dos 502 artigos sobre “psicotrópicos e saúde”,
publicados em 1998 nos principais jornais e revistas do país.
40
35 34,9
30
25
20
18,1
porcentagem de artigos
15
5
3,2 3,0
2,4
1,4 0,8
0
indefinidos tabaco derivados maconha álcool anabolizantes anorexígenos heroína energéticos alucinógenos ansiolíticos
da coca
Para os psicotrópicos, tanto lícitos como ilí- naram temas sobre a prevenção da transmis-
citos, a maioria dos artigos privilegiou os pre- são do HIV. Para a repressão (citada em 23,5%),
juízos decorrentes do uso (80,3% – Tabela 1). A os enfoques se dividiram entre repressão ao
única exceção foi a maconha, para a qual pre- tráfico/traficante e ao uso/usuário.
dominaram artigos referentes aos benefícios
terapêuticos de seu uso (54,3% dos artigos so- A ênfase emocional
bre maconha).
A dependência foi a conseqüência para a Embora os jornalistas escrevam textos aparen-
saúde mencionada com maior freqüência, cita- temente isentos, é notória a tendenciosidade
da em cerca de metade da amostra (46%). Ou- dos temas abordados. Essa ênfase se torna mais
tros prejuízos também foram apresentados, co- evidente nos textos elaborados por outros pro-
mo violência (brigas/roubos – 9,2%), síndrome fissionais e/ou especialistas (advogados, médi-
de abstinência (8,0%), HIV/AIDS (6,8%), over- cos, delegados, entre outros), os quais incluem
dose (5,8%), acidentes de trânsito ou trabalho seus julgamentos pessoais, retratando a situa-
(5,6%), entre outros. No que diz respeito aos be- ção de forma alarmante, usando expressões
nefícios, o uso terapêutico foi o mais freqüen- como “Trata-se de um abismo...”, “O uso de dro-
te, citado em 58 artigos (11,6% do total), os gas... é um bom exemplo do horror...” (por um
quais, na maioria, versavam sobre medicamen- psicanalista), “o flagelo da droga” (por um eco-
tos (ansiolíticos, anfetaminas, entre outros) ou nomista), entre outras.
sobre substâncias da maconha.
Foram variadas as intervenções citadas co-
mo alternativas para lidar com o uso indevido Artigos sobre cigarro (tabaco)
de drogas (Tabela 2). O tratamento foi a inter-
venção mais citada (33,5% dos artigos), sendo A maioria das manchetes dos artigos sobre o
a internação e o uso de medicamentos as op- tabaco fez referência a danos, como, por exem-
ções mais freqüentes. Os aspectos relacionados plo: “Os Malefícios do Fumo” (Estado de Minas
à legislação foram comentados em 26,0% das Gerais, 1998), “Morte pelo Tabaco Crescerá”
matérias. A prevenção, mencionada também (Diário do Comércio, 1998), “Filho de Fumante
em 26% dos artigos, na maioria das vezes foi Sofre Mais de Asma” (O Globo, 1998a). Também
apresentada vinculada ao ambiente escolar e foram freqüentes os artigos sobre políticas an-
privilegiando a “informação” como medida titabagistas, “dicas” ou tratamentos para parar
preventiva. Entre os poucos artigos que men- de fumar: “Serra Aperta o Cerco contra Fuman-
cionaram a redução de danos (6,8%), predomi- tes” (Schuffner & Gonçalves, 1998), “Ministério
Tabela 1 Tabela 2
Redução de danos*
Alvo da redução de danos
Processará Fabricantes de Cigarro” (Zero Hora, HIV 24 4,8
1998), “Sem Fumaça: Técnicas Mais Eficientes Outros 16 3,2
para Abandonar o Cigarro” (Veja, 1998), “O Que
Fazer para Largar o Cigarro?” (Boa Forma, 1998). Tratamento*
O tabaco foi apresentado como prejudicial Setting do tratamento
em quase todos os artigos, sendo que a depen- Internações 58 11,6
dência e as complicações orgânicas, especial- Ambulatório 37 7,4
mente pulmonares e cardiovasculares, foram Tipo AA 30 6,0
as conseqüências mais citadas. As intervenções Indefinido 85 17,0
destacadas foram as relacionadas à legislação
Abordagem do tratamento
(em geral, voltada para o aumento da restrição
Medicamento 51 10,6
ao uso), mas vários artigos também comenta-
Psicoterapia 43 8,7
ram sobre tratamento e prevenção. Os fuman-
Outros 5 1,0
tes foram caracterizados nos artigos como
Indefinida 94 18,7
adultos (alguns adolescentes) de ambos os se-
xos, dependentes do cigarro e sem definição de * Um mesmo artigo pode mencionar mais de uma
conseqüência e, portanto, a soma das porcentagens
classe social ou grupo específico. pode ser superior a 100%.
cool Reduz a Fertilidade Feminina” (O Tempo, liense, 1998), “Os Perigos do Crack” (Soares, 1998)
1998), “Sinal Vermelho para Alcoolismo no Trân- ou “A Fama que Virou Fumaça” (Velloso, 1998 –
sito” (Gazeta Mercantil, 1998). As conseqüên- sobre a dependência de crack do ex-cantor Ra-
cias prejudiciais mais citadas foram dependên- fael do conjunto “Polegar”).
cia, acidentes e violência em geral. Também foram vários os artigos sobre o au-
Também foram freqüentes os artigos sobre mento do consumo na população (“Cresce Con-
dados epidemiológicos (“65% de Alunos de Es- sumo de Cocaína e Crack em Curitiba” – Olivei-
cola Pública Bebem” – Dimenstein & Krausz, ra, 1998; “Aumenta o Consumo de Merla em
1998) e tratamento do alcoolismo (“Pílula Pro- Brasília” – O Estado de São Paulo, 1998) ou ou-
mete Combater o Alcoolismo” – Zolini, 1998). Al- tros temas (“Droga Pode Ajudar Viciados em
guns artigos destacaram os benefícios do vinho Cocaína” – Folha de São Paulo, 1998a), entre
(“Vinho Reduz Taxa de Colesterol” – Moreira, outros.
1998). Cerca de metade das matérias apresentou
Na maioria dos artigos foi observada a pre- personagens caracterizados, em geral, como
sença de personagens caracterizados, em ge- adultos (alguns adolescentes e crianças) e,
ral, como adultos de ambos os sexos e sem de- quando privilegiado algum sexo, com predo-
finição de classe social ou grupo específico. A minância do masculino. Também foi observa-
relação dos personagens com o álcool foi varia- do que, quando definida a classe social, foram
da, com casos de embriaguez (em geral, rela- mais freqüentes as classes baixa e/ou média bai-
cionada a acidentes), abuso, dependência e/ou xa, envolvendo sobretudo a população de rua.
uso recreativo. A intervenção mais citada foi o Normalmente, a relação dessas pessoas com a
tratamento do alcoolismo, mas também foram droga era de dependência. As intervenções
observados artigos sobre legislação e prevenção. mais freqüentes foram as relacionadas a trata-
mentos para dependência de cocaína (45,6%,
Artigos sobre maconha em geral, mencionando indivíduos que esta-
vam em tratamento) e/ou repressão (34,8%, es-
O conteúdo dos artigos relacionados à maco- pecialmente sobre apreensões).
nha foi muito diferenciado dos demais. As Fi-
guras 2 e 3 representam um exemplo da dife- Artigos sobre anabolizantes
rença do perfil dos artigos sobre maconha em
comparação aos sobre cocaína. Em grande par- Embora os anabolizantes não sejam classifica-
te das matérias, a maconha foi apresentada co- dos como psicotrópicos, os artigos sobre essas
mo uma droga relativamente segura ou até mes- substâncias foram incluídos no presente estu-
mo benéfica, no caso dos artigos que mencio- do em função de seu potencial de abuso. Os ar-
naram a possibilidade de seu uso terapêutico tigos destacaram o aumento do uso e os riscos
(54,3%). Algumas das manchetes que exempli- dele decorrentes entre atletas que buscam a
ficaram essa postura foram: “A OMS Adverte: droga para obter um melhor desempenho ou
Maconha é Menos Prejudicial do que Álcool e por vaidade. Algumas das manchetes foram:
Tabaco” (Isto É, 1998), “Descobertos Benefícios “As Drogas que Fortalecem, Embelezam e Ma-
da Maconha” (Diário Popular, 1998), “Califór- tam” (O Globo, 1998c); “Os Riscos do Uso de
nia Vai Distribuir Maconha para Doentes” (O Anabolizantes: Os Adolescentes Consomem Mui-
Globo, 1998b), “Um Remédio Extraído da Ma- to” (Cantanhede, 1998); “Mulheres Apelam para
conha” (Jornal do Brasil, 1998). Anabolizantes” (Lima, 1998); “Anabolizante é
Poucos artigos apresentaram personagens. Bomba Perigosa” (Bouer, 1998).
As intervenções mais mencionadas foram os Os anabolizantes representaram a catego-
aspectos legais (32,6%), em especial os debates ria com maior freqüência de personagens, in-
sobre descriminalização da maconha. clusive com fotos (de atletas). Estes, em geral,
As fontes de informação, na maioria, foram foram caracterizados como adultos esportistas.
de origem internacional (86,9%), obtidas de re- Não foi observada definição de classe social e,
latórios, pesquisas científicas e/ou políticas. para os artigos que definiram sexo, o predomi-
nante foi o masculino. As intervenções men-
Artigos sobre derivados da coca cionadas ficaram apenas no campo da legisla-
(cocaína, crack e merla) ção e/ou da repressão, na maioria das vezes em
função da detecção de anabolizantes entre es-
Os derivados da cocaína foram alvo de um gran- portistas (doping). Não foram observados co-
de número de artigos, os quais enfatizaram os mentários sobre medidas preventivas ou trata-
prejuízos do uso, exemplificados como “Cocaí- mento.
na Aumenta Risco ao Coração” (Correio Brazi-
O número de artigos sobre anfetaminas/anore- Conseqüências decorrentes do uso de maconha e de cocaína, apresentadas
xígenos foi relativamente pequeno, comparado no texto dos 502 artigos sobre “psicotrópicos e saúde”, publicados em 1998
ao consumo dessas substâncias pela popula- nos principais jornais e revistas do país.
ção. No entanto, os artigos denunciam um au-
mento do uso mediante manchetes como: “Con-
80
sumo de Anfetaminas Cresce 1.400%” (Lozano prejudicial
porcentagem de artigos
30
ra Obeso” – Bosco, 1998; “Inibidores de Apetite:
Perigo para o Cérebro” – Vilar, 1998). 20
Em geral, os artigos foram acompanhados
10 8,7 8,7
de personagens caracterizados como adultos de
ambos os sexos (sendo a menção ao sexo femi- 0 0
0
maconha cocaína
Discussão
sobre drogas não está completo, em particular minaria um número ainda maior de artigos so-
no que diz respeito às drogas ilícitas, como a bre as “drogas ilícitas” (em particular maconha,
cocaína, o crack e a maconha, que são alvo de cocaína e crack). Essa desproporção reflete-se
numerosos artigos sobre o tráfico (Carlini-Co- diretamente na percepção da população, dis-
trim et al., 1995). torcendo as crenças relativas ao uso de psico-
Outra peculiaridade que merece considera- trópicos no País. Infelizmente, essa visão ofus-
ção diz respeito ao perfil da amostra obtida. A cada parece não ocorrer apenas entre a popu-
maioria dos artigos foi extraída de jornais vei- lação leiga, atingindo diferentes segmentos, al-
culados nos Estados de São Paulo e Rio de Ja- guns deles, inclusive, responsáveis pelas políti-
neiro, indicando a maior freqüência de maté- cas públicas.
rias sobre o tema nos meios de comunicação A ênfase “emocional” estampada nos arti-
desses Estados. Por outro lado, essa distribui- gos jornalísticos é outro fator que merece aten-
ção desproporcional também acarreta a neces- ção, principalmente por ter sido observada com
sidade de uma leitura criteriosa dos dados ob- maior freqüência nos textos de “especialistas”
tidos no presente estudo, os quais não devem que lidam com a questão no seu cotidiano (ad-
ser generalizados para o Brasil. vogados, médicos, entre outros). Esse dado é
um indicador do quanto o discurso sobre dro-
gas recebe o tom “emocional” nos mais dife-
O retrato da situação sob a ótica rentes setores da sociedade. No entanto, essa
da imprensa brasileira ênfase não parece ser peculiaridade das drogas
ilícitas na imprensa brasileira, sendo observa-
As drogas mais freqüentes nas manchetes fo- da para os psicotrópicos em geral, inclusive
ram: tabaco (18,1%), derivados da coca (9,2%), medicamentos, também em outros países (Hil-
maconha (9,2%) e álcool (8,6%), com menor lert et al., 1996).
destaque para anfetaminas (3,2%), ansiolíticos
(0,8%) e solventes (0,2%). No entanto, quando As substâncias psicotrópicas e as ondas
levamos em conta a prevalência do uso de dro- de intolerância x tolerância
gas na população, o quadro é diferente. O ál-
cool é o psicotrópico mais consumido pela po- Um dos resultados interessantes do presente
pulação brasileira e o responsável pelos maio- estudo refere-se à observação de estereótipos
res índices de problemas decorrentes do uso, diferenciados para cada categoria de psicotró-
contexto este que justificaria sua primeira co- pico. Por exemplo, a heroína é apresentada na
locação no ranking da imprensa (ABDETRAN, imprensa brasileira como um suposto proble-
1997; Galduróz et al., 2000; Noto, 1999). ma crescente no País; a cocaína, como um pro-
Em relação aos solventes, estudos realiza- blema já instalado, responsável por inúmeros
dos entre populações jovens (estudantes do en- casos de dependência e de violência; e a maco-
sino fundamental e médio e jovens em situação nha, como uma droga relativamente segura, de
de rua) têm demonstrado um consumo eleva- uso consumado e aberto para negociações na
do; no entanto, somente 9,1% dos artigos men- legislação relativa ao seu uso.
cionaram essas substâncias, dos quais apenas Esses diferentes enfoques merecem uma
um destacou um solvente (lança-perfume) em reflexão histórica, uma vez que, ao longo dos
sua manchete (Galduróz et al., 1997; Noto et al., anos, os psicotrópicos parecem sofrer ciclos de
1997). Paralelamente, os estudos epidemioló- tolerância x intolerância, que variam de acordo
gicos também têm indicado um consumo abu- com o contexto histórico e social (Carlini-Co-
sivo de determinados medicamentos psicotró- trim, 1995). Voltando cerca de cem anos na his-
picos, sobretudo de anfetaminas e ansiolíticos tória, encontramos um retrato muito diferente
(Nappo et al., 1998). Todavia, a freqüência de do observado no presente. No início do século
artigos sobre esses psicotrópicos foi relativa- passado, o “vinho de coca do Peru” era ampla-
mente pequena. mente usado como medicação revigorante e a
Embora não seja possível estabelecer a fre- heroína era comercializada livremente como
qüência ideal de artigos, ao menos seria espe- sedativo para a tosse. Já o álcool sofria sua pior
rado que houvesse uma distribuição mais equi- onda de intolerância norte-americana, a qual
librada, compatível com os indicadores epide- culminou na famosa “Lei Seca” (Carlini et al.,
miológicos. No entanto, os psicotrópicos ilíci- 1996; Carlini-Cotrim, 1995).
tos acabam ofuscando o panorama de conse- Nos anos subseqüentes, essa postura foi
qüências decorrentes dos lícitos. Vale lembrar sendo modificada e, por volta da década de 80,
ainda que não foram considerados os artigos foi observada em diversos países uma onda de
sobre o tráfico de entorpecentes, o que deter- intolerância acentuada em relação a algumas
drogas, especialmente cocaína, heroína e ma- então realizados não apontaram nenhum dado
conha. Nos Estados Unidos, a “guerra às dro- que pudesse fundamentar tal alarde. Nesse
gas” chegou a ser prioridade de governo (Carli- sentido, poderíamos levantar pelo menos duas
ni-Cotrim, 1995). hipóteses para explicar essa divergência: a im-
Os dados obtidos no presente estudo mos- prensa e alguns profissionais da área poderiam
tram que essa onda de intolerância acentuada estar utilizando referenciais ainda não mensu-
ainda impera para algumas drogas, em parti- ráveis pela epidemiologia, como, por exemplo,
cular para os derivados da coca (cocaína, crack um uso restrito a determinados estratos so-
e merla). A mídia geralmente apresenta essas ciais, ou poderíamos estar diante de um mito
drogas associadas a casos dramáticos de de- (Noto, 1999).
pendência ou situações de violência, somados
a uma tendência de crescimento do consumo. A mídia como instrumento de prevenção
No que diz respeito à maconha, por volta da
década de 70, os artigos eram exclusivamente Os dados epidemiológicos recentes sugerem o
intolerantes, inclusive associando o seu uso a fracasso das intervenções preventivas até en-
atividades politicamente subversivas (Carlini- tão estabelecidas no Brasil, especialmente no
Cotrim et al., 1995). No entanto, voltando aos que diz respeito às “drogas ilícitas”. O consumo
tempos atuais, observamos um processo gra- de algumas drogas, sobretudo maconha e co-
dativo de tolerância, abrindo espaço para de- caína, cresceu bastante ao longo da última dé-
bates sobre a descriminalização e o uso tera- cada. Essa constatação sugere a necessidade da
pêutico (Lefèvre & Simoni, 1999). Esse novo dis- implementação de outras alternativas preven-
curso é “saudável”, uma vez que propicia um de- tivas ainda pouco exploradas (Carlini et al.,
bate menos emocional e mais realista da ques- 1996; Galduróz et al., 1997; Noto, 1999; Noto et
tão, mas requer cautela no que diz respeito à al., 1997).
sua interpretação (Noto et al., 1995). Embora o Apesar de diversos estudos apontarem os
assunto seja a descriminalização, esta muitas limites das intervenções preventivas puramen-
vezes é interpretada como liberação e, apesar te informativas sobre o uso de drogas, parece
de a ciência ponderar o uso médico controlado ser inegável a importância de seu papel. Os
de algumas substâncias presentes na Canna- meios de comunicação têm prestado auxílio a
bis, muitas vezes a imprensa brasileira genera- vários programas de saúde, seja por meio de in-
liza para o uso social da droga, usando man- formações jornalísticas ou de campanhas pu-
chetes como “Descobertos os Benefícios da Ma- blicitárias elaboradas com essa finalidade es-
conha” (Diário Popular, 1998), “Maconha Con- pecífica. No entanto, quando se trata do uso in-
tra Derrame” (Época, 1998), entre outras. Nesse devido de drogas, os recursos da mídia vêm sen-
sentido, uma vez que a droga ainda é conside- do pouco estudados e explorados como instru-
rada ilícita no Brasil e, portanto, os meios para mentos de prevenção e, portanto, merecem
sua aquisição são clandestinos, a “dupla men- maior atenção, uma vez que a utilização de tais
sagem” (proibição enfática x discurso toleran- recursos, aliada a outras medidas de preven-
te) pode soar de forma confusa, especialmente ção, pode representar uma interessante alter-
entre os jovens. nativa a ser considerada nos próximos anos
Por outro lado, vale comentar o destaque (Mirzaee et al., 1991).
da imprensa a um suposto início do consumo Dentro desse contexto, torna-se essencial o
indiscriminado de heroína no País, por meio estabelecimento de parcerias entre os profis-
de manchetes como “A Heroína Passa de Mito a sionais interessados, em particular jornalistas
Ameaça Real no Brasil” (Rydle & Wassermann, e especialistas em prevenção ao uso indevido
1998), divulgadas em meados de março de 1998. de drogas, para que se possa abrir debate sobre
Ao contrário, os estudos epidemiológicos até a questão.
Agradecimentos
Referências
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Versão final reapresentada em 10 de dezembro de 2001
Aprovado em 1 de julho de 2002