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“DEFICIÊNIA ESTATURAL”: O CORPO NÃO APTO AO

SERVÇO MILITAR E A DISCRIMINAÇÃO DO CORPO


DEFICIENTE.

Benedito Gonçalves Costa (beneditogcosta@yahoo.com.br). .

Resumo.
Este artigo buscou refletir sobre a experiência do autor durante o período de alistamento militar
obrigatório no ano de 1992, na cidade de Belém, Estado do Pará, Norte do Brasil. Enfatiza inicialmente o
processo histórico que contribuíram para a idealização do corpo do soldado aptpo ao serviço militar.
Salienta também alguns marcos históricos que ajudaram a construir uma concepção hegemônica do
conceito de normalidade e de média e sua relação com o processo de exclusão e discriminação do corpo
deficiente no contexto da modernidade.

Palavras-chave: Corpo aptpo ao serviço militar. Corpo incapacitado. Discriminação do corpo deficiente.

Abstract
This article reflects on the author's experience during the period of conscription. Emphasizes the
historical process that initially contributed to the idealization of the soldier's body. It also highlights some
milestones that contributed to the hegemonic conception of the concept of normality and mean and its
relation to the process of exclusion and discrimination of the disabled body.

Keywords: Disabilities. Body. Military Service.

Introdução
A ideia de escrever este artigo surgiu durante as aulas da disciplina
“Educação Especial na perspectiva inclusiva: políticas e fundamentos teórico-
metodológicos” no curso de Mestrado em Educação do Programa de Pós-graduação em
Educação – Linha de Pesquisa: “Saberes culturais e educação na Amazônia” na
Universidade do Estado do Pará – UEPA, no ano de 2012.
Durante as discussões do texto “A construção da normalidade: a curva do
sino, o romance e a invenção do corpo incapacitado no século XIX” de L. J. Davis foi
possivel refletir sobre os fatores históricos que contribuiram para o processo de
construção de idealização do corpo normal e do corpo anormal, do corpo capacitado e
do corpo incapacitado. Esses debates durante as aulas me fez lembrar de uma
experiência vivida durante o período de alistamento militar e me motivou a refletir
sobre como o ideal de corpo normal apto ao serviço militar contribuíram para
segregação e menospreso dos diferentes ao longo da história.

1
No ano de 1992 fui fazer os exames de admissão para o serviço militar num
quartel da Força Áerea Brasileira em Belém-Pa. Depois de fazer todos o testes, fiquei
aguardando o resultado junto com outros rapazes que realizaram os exames junto
comigo. Algum tempo depois, veio um soldado com uma folha de pápel na mão e
começou a chamar os nomes. Fulano: aprovado. Ciclano: eliminado por... (explicava o
motivo da eliminação). Quando chegou no meu nome ele falou: Benedito Gonçalves
Costa: eliminado por “deficiência estatural”. Deixei de realizar o sonho se ser soldado
porque me faltou de 2 centímetros, pois medir 1 metreo e 60 centímetros e o mínimo
exigindo naquele momento era 1 metros e 62 centímetros. Além disso fui considerado
“deficiênte” por ser “baixinho”.
Para refletir sobre o termo “deficiência estatural” utilizado pelos militares
naquele período, buscamos elucidar o conceito de corpo e sua realção com o conceito
de corpo perfeito para o serviço militar construidos historicamente. No segundo item
refletimos sobre a concepção hegemônica do conceito de normalidade e de média e sua
realação com o conceito d corpo defendido pelos eugenistas.
Para alcançamos os objetivos propostos, utilizamos a pesquisa bibliográfica
trazendo as reflexões apartir de três fatores históricos principais: a visão dicotômica de
mundo, o papel da guerra e o determinismo científico moderno.

O corpo do soldado apto e não apto ao serviço militar.

Essa distinção segregadora entre o corpo normal e corpo anormal é


resultado de um processo histórico. Contribuíram para isso três fatores principais: a
visão dicotômica de mundo (bem x mal, bonito x feio, perfeito x imperfeito, normal x
anormal), o papel da guerra como determinante para supervalorização do corpo do
soldado e o determinismo da ciência moderna.
A civilização ocidental de tradição judaico-cristã ao dicotomizar e a
hierarquizar o mundo em espiritual (Deus) e material (homem), em bom (Deus) e mau
(Diabo), perfeito (Deus) e imperfeito (Diabo e homens por causa do pecado) enquadra
as pessoas e as coisas em modelos fechados que os coloca dentro ou fora do padrão ou
da norma. Assim, toda imperfeição será atribuída ao Diabo, pois depois que Lúcifer
cometeu desobediência contra Deus perdeu toda sua beleza, tornando-se um ser
horroroso e maldito, inimigo de toda a verdade.

2
Estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te cobrias: o
sárdio, o topázio, o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo
e a esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos; no dia em
que foste criado foram eles preparados. Tu eras Querubim da guarda
ungido, e te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus, no brilho das
pedras andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia que foste
criado, até que se achou iniquidade em ti (Ezequiel, 28:13-15).
Vós sois do Diabo que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe aos desejos. Ele
foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele
não há verdade. Quando ele profere a mentira fala do que lhe é próprio
porque é mentiroso e pai da mentira (João, 8:44).

Diante disso, a tradição cristã perpetuou o ideal de perfeição, beleza e


verdade como graça divina e o seu oposto como maldição, coisa do “capeta”. Portanto,
toda dor, doença, imperfeição do corpo será visto como maldição ou castigo divino,
resultado do pecado dos pais, familiares ou da própria pessoa.
Caminhando Jesus, viu um cego de nascença. E seus discípulos perguntaram:
Mestre, quem pecou, este ou seus pais para que nascesse cego? Respondeu
Jesus: nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem sobre
ele as obras de Deus [...] Dito isso, cuspiu na terra e, tendo feito lodo com a
saliva, aplicou-o aos olhos do cego dizendo: Vai, lava-te no tanque de Siloé
(que quer dizer enviado). Ele foi, lavou-se, e voltou vendo (João, 9:1-3,6 e7).

Como se observa no texto bíblico, havia uma crença entre o povo judeu de
que o fato de uma pessoa nascer cega ou com qualquer deficiência física ou mental era
decorrência de um castigo pelo pecado. Logo as pessoas deficientes e doentes eram
vistos com “maus olhos” pela sociedade, em alguns casos (como dos “leprosos”) essas
pessoas eram afastados para longe dos povoados para não contaminarem os demais.
Jesus muda essa visão ao dizer que “nem ele pecou, nem seus pais; mas foi
para que se manifestem sobre ele as obras de Deus”. Com isso os paralíticos, cegos, os
demais deficientes, muitos deles mendigos de rua, passaram a ser vistos pelos
medievais, como alvos da caridade cristã. Ao fazer caridade para os “desvalidos” os
“medievos” buscavam com isso obter o perdão e a graça divina. Era uma espécie de
barganha no campo da fé. No entanto, muitas doenças causadas por epidemias como a
“peste negra” foram interpretadas como castigo divino e prenúncios do fim do mundo
ou da vinda do reino milenar de Cristo (DELUMEAU, 2001).
Foi também a caridade cristã das irmandades e ordens religiosas que
possibilitaram a criação de asilos e escolas para os desvalidos e deficientes.
Em França, em meados do século XII, a Ordem do Santo Espírito, em
reacção às teses augustinianas do pecado original, funda em Montpellier um
dos primeiros hospícios, com os Hôtels-Dieu, destinados às crianças
«loucas» ou «abandonadas». Dois séculos mais tarde, existem mais de cem
estabelecimentos idênticos. na França de então (GARDOU e DEVELAY,
2005, p.33).

3
Além de iniciativas das ordens religiosas e clérigos, a causa será abraçada
também por autoridade e intelectuais como Charles-Michel Abbé de l’Epée, Diderot,
Pestalozzi e tantos outros1 como Jean-Louis Vivès que esforçava-se “para convencer os
homens do seu tempo dos benefícios humanos e sociais da educação das crianças
abandonadas ao seu destino nas escolas populares públicas”. Para ele a escola publica
deveria atender meninos e meninas, inclusive os cegos: “nem aos cegos se permitirá
serem preguiçosos” (Idem).
Como se observa, houve uma mudança na forma de olhar para o deficiente
e/ou desvalido. Na Idade Média eram alvos da caridade cristã, na modernidade com o
Capitalismo, os mendigos e entre eles os deficientes, principalmente os adultos serão
vistos como vagabundos, perigosos, não dados ao trabalho. Por isso, para alguns como
Jean-Louis Vivès “nem aos cegos se permitirá serem preguiçosos”. A escola devia
também possibilitar aos cegos aprender para ser útil a sociedade moderna capitalista,
pois a preguiça era considerada pecado. Aqui temos outra dicotomia fruto da visão
dualista da tradição ocidental: o corpo que serve para o trabalho e o que não serve.
Que corpo serve então para o serviço militar? Só os normais, fortes e
resistentes. Na Grécia antiga, especificamente em Esparta, o corpo apto ao serviço
militar era o do menino que nascia perfeito, sem nenhum defeito físico aparente.
O recém-nascido só será digno da cidadania de Esparta se for belo, bem
formado e robusto. Reconhecida pelo pai e julgada digna de vida por uma
comissão especial de anciãos a criança é entregue, até aos sete anos, aos
cuidados maternos. Com sete anos, o espartano cai, até a morte, sob o braço
forte do Estado. Começa então a educação propriamente dita que se estende
até os vinte anos (GIORDANI, 2001, pp.272, 273)

Como se depreende do texto acima, o papel social da guerra nas sociedades


antigas foi determinante para construção do ideal de corpo perfeito e corpo imperfeito.
Em Esparta o corpo são, era salvo, o corpo incapacitado era literalmente eliminado,
jogado de cima do penhasco morro abaixo porque não serviria aos interesses do Estado
guerreiro. Em algumas sociedades, entretanto, outras motivações faziam com que
também se eliminassem as crianças deficientes, como ainda fazem algumas tribos
indígenas.
Essas regras impostos ao corpo são nas sociedades antigas uma exigência da
guerra devida o contato físico direto entre os soldados. No campo de batalha, para que o
soldado sobrevivesse e ajudasse seu exército a vencer a guerra, era fundamental um

1
Cf: GARDOU, C.; DEVELAY, M. O que as situações de deficiência e a educação inclusiva “dizem”
às ciências da educação. Revista Lusófona de educação, número 06, Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologia, Lisboa, Portugal, 2005, pp. 31-45.
4
bom porte fisco para poder manusear com facilidade seus instrumentos de defesa e
ataque: escudos, lanças e espadas, etc.
Devido às vitórias e conquistas dos soldados espartanos (tanto no campo de
batalha como nos Jogos Olímpicos2) e dos demais exércitos vitoriosos da antiguidade
como de Alexandre o Grande, do poderoso Exército Romano, dos Cavaleiros Medievais
o culto ao corpo do soldado perfeito capaz de adquirir altas habilidades para o serviço
na guerra foi perpetuado e contribuiu decisivamente para segregação dos deficientes e
de todos os que não se enquadravam nos padrões estabelecidos, como os “deficientes
estaturais”.
Atualmente, será que as Forças Armadas consideram as pessoas baixinhas
como deficientes? Que condições do corpo são exigidas atualmente para o serviço
militar? A Lei do Serviço Militar Brasileira nº 4.375, de 17 de agosto de 1964 no Art.
13 que trata da seleção dos futuros soldados avalia os seguintes aspectos: físico,
cultural, psicológico e moral. No Art. 28, letra a, que trata dos isentos do Serviço
Militar, os motivos são: “por incapacidade física ou mental definitiva, em qualquer
tempo, os que forem julgados inaptos em seleção ou inspeção e considerados
irrecuperáveis para o Serviço Militar nas Forças Armadas”.
A Interrupção do serviço ativo nas Forças Armadas poderá ocorrer pela
anulação da incorporação, pela desincorporação, pela expulsão e pela deserção. No
caso da desincorporação o motivo exposto no item C está relacionado incapacidade do
corpo: “por moléstia ou acidente que torne o incorporado definitivamente incapaz para
o Serviço Militar; - o incorporado nessas condições será excluído e isento
definitivamente do Serviço Militar” (Art. 31).

Num edital deste ano (2012) de convocação para seleção ao serviço militar
temporário de oficial médico (a), farmacêutico (a), dentista e veterinário (a) os critérios
cobrados são quase infindáveis. São tantas exigências que podemos nos perguntar: eles
querem realmente seres humanos nesse Exército?
l) As causas de incapacidade física, por motivo de saúde, para a
convocação, são as relacionadas a seguir: 1. para ambos os sexos: (a) as
doenças que motivam a isenção definitiva dos Conscritos para o Serviço
Militar das Forças Armadas, constantes do Anexo II às Instruções Gerais para
a Inspeção de Saúde dos Conscritos - IGISC (Dec Nr 60.822, de 07 JUN 67,
em sua atual redação), no que couber; (b) peso desproporcional à altura,
tomando-se por base a diferença de mais de 10 (dez) entre a altura (número
de centímetros acima de um metro) e o peso (em quilogramas), para
candidatos com altura inferior a 1,75m e de mais de 15 (quinze) para os
candidatos de altura igual ou superior a 1,75m. Estas diferenças, entretanto,
por si só, não constituem em elemento decisivo para a JIS, a qual as analisará
2
GIORDANI, 2001, p.272.
5
em relação ao biótipo e outros parâmetros do exame físico, tais como: massa
muscular, constituição óssea, perímetro torácico etc; (c) reações sorológicas
positivas para sífilis, doença de Chagas ou Síndrome de
Imunodeficiência Adquirida (SIDA), sempre que, afastadas as demais
causas da positividade, confirmem a existência daquelas doenças; (d) taxa
glicêmica anormal; (e) campos pleuro-pulmonares anormais, inclusive os
que apresentarem vestígios de lesões graves anteriores; Folha nº 10 do Aviso
de Convocação de MFDV/2012, da 4ª Região Militar; (f) hérnias, qualquer
que seja sua sede ou volume; (g) albuminúria ou glicosúria persistentes;
(h) audibilidade inferior a 35 (trinta e cinco) decibéis ISO, nas freqüências
de 250 a 6000 C/S, em ambos os ouvidos. Na impossibilidade da
audiometria, a não percepção da voz cochichante à distância de 5m, em
ambos os ouvidos; (i) doenças contagiosas crônicas da pele; (j) cicatrizes
que, por sua natureza e sede, possam, em face de exercícios peculiares, vir a
motivar qualquer perturbação funcional ou ulcerar-se; (k) ausência ou
atrofia de músculos, quaisquer que sejam as causas; (l) imperfeita
mobilidade funcional das articulações e, bem assim, quaisquer vestígios
anatômicos e funcionais de lesões ósseas ou articulares anteriores; (m)
hipertrofia média ou acentuada da tireóide, associada ou não aos sinais
clínicos de hipertiroidismo; (n) anemia com homoglobinometria inferior a
12 g/dl; (o) varizes acentuadas de membros inferiores; e (p) acuidade
visual menor que 0,3 (20/67), em ambos os olhos, sem correção, utilizando-
se a escala de Snellen, desde que, com a melhor correção possível, através do
uso de lentes corretoras ou realização de cirurgias refrativas, não se atinja
índices de visão igual a 20/30 em ambos os olhos, tolerando-se os seguintes
índices: 20/50 em um olho, quando a visão no outro for igual a 20/20; 20/40
em um olho, quando a visão no outro for igual a 20/22; e 20/33 em um olho,
quando a visão no outro for igual a 20/25. A visão monocular, com a melhor
correção possível, será sempre incapacitante. 2. para candidatos (sexo
masculino): (a) altura inferior a 1,60m; (b) hidrocele. 3. para candidatas:
(a) altura inferior a 1,55m; (b) gigantomastia; (c) neoplasias malignas de
mama; (d) doença inflamatória pélvica crônica; (e) cistite recorrente; (f)
sangramento genital anormal rebelde ao tratamento; (g) endometriose; (h)
dismenorréia secundária; (i) doença trofoblástica; (j) prolapso genital; (k)
fístulas do trato genital feminino; (l) anomalias congênitas dos órgãos
genitais externos; (m) neoplasias malignas dos órgãos genitais externos e
internos; (n) outras afecções ginecológicas que determinem perturbações
funcionais incompatíveis com o desempenho das atividades militares
(pp,9,10).3

A partir do texto acima podemos concluir que ainda “reina” nas Forças
Armadas o “Império do corpo perfeito”. Ainda continua a busca por um corpo perfeito,
saudável, que não seja nem muito alto nem muito baixo, mas que estejam dentro de uma
média. Para os homens exige-se altura não inferior a 1,60m e para as mulheres, altura
não inferior a 1,55m. Portanto, todos os baixinhos, embora não sejam mais chamados de
“deficientes estaturais” estão excluídos por sua condição de corpo não apto.
Essa supremacia do império do corpo perfeito que contou com contribuição
decisiva da visão dicotômica de mundo, do papel da guerra na história humana, ganhará

3
Ministério da Defesa: Exército Brasileiro. Comando Militar do Leste. Comando da 4a Região Militar (4º
Distrito Militar / 1891) Região das Minas do ouro. Aviso de convocação para seleção ao serviço militar
temporário de oficial médico(a), farmacêutico(a), dentista e veterinário(a) (mfdv) nr 001 – seção de
serviço militar regional (ssmr/4), de 3 de agosto de 2012.
6
mais força e legitimação com as verdades absolutas difundida pela voz imponente da
ciência moderna.

A hegemonia do conceito de normalidade e de média.

A ciência moderna principalmente nos campos da matemática (com a


estatística) e biologia (com o darwinismo) irá trazer várias verdades fundamentadas em
conceitos. Dentre os conceitos que contribuíram também decisivamente para segregação
dos deficientes, temos: normalidade e de média.
De acordo do Dicionário Aurélio, a palavra normal significa “conforme a
norma, que é habitual, comum. Diz-se de reta perpendicular a uma curva ou plano”.
Portanto, ser normal é estar conforme a norma; é não ser incomum. É estar numa reta,
dentro de um padrão. Para o Dicionário Eletrônico Houaiss a palavra Normal além de
significar algo que é feito, tirado a esquadria, ou seja, medido com instrumento para
traçar ângulos, é ainda algo sem defeitos ou problemas físicos ou mentais.
Esse estado de normalização exige que nos enquadremos numa reta dentro
dos limites aceitos, nem muito para um extremo, nem muito para o outro, mais perto da
média. Por isso, que segundo Davis (2006, p.1), nesse mundo de normalizações
Cada um de nós se esforça para ser normal ou tenta deliberadamente evitar o
estado contrário. Nós consideramos o que uma pessoa média faz, pensa,
adquire ou consome. Nosso grau de inteligência, nosso nível de colesterol,
nosso peso, altura, excitação sexual, dimensões corporais estão ao longo de
alguma linha conceitual da subnormalidade em relação à média. Nós
consumimos um mínimo diariamente de vitaminas e nutrientes balanceados,
baseados no que um ser humano deve consumir em média. Nossas crianças
são classificadas na escola e testadas para determinar onde se ajustam em
uma curva normal de aprendizagem, de inteligência. Os doutores medem e
pesam para ver se elas estão acima ou abaixo da curva de altura e peso. Não
existe provavelmente nenhuma área da vida contemporânea na qual alguma
idéia de uma norma, meio, ou média que não tenha sido calculada.

Nesse sentido, normal é estar dentro da média dos padrões exigidos pela
sociedade. Essa é a regra imposta devido à matematização do mundo pela ciência
moderna. Mas é importante destacar que os termos: normal, normalidade e média foram
incorporadas nas línguas européias, segundo Devis, no século XIX, mas precisamente
nos entre os anos 1840 e 1860. Para este autor o que se tinha antes era o conceito de
ideal expressado no corpo mito-poético que estava ligado a tradição em que o corpo dos
deuses é visualizado. Já seu oposto, o corpo grotesco, enquanto “forma visual foi
relacionada como o inverso do conceito de ideal e seu resultado é que todos os corpos
estão em algum sentido incapacitado”. Entretanto, Davis esclarece que o termo
7
“grotesco não era equivalente a concepção atual de incapacitado”, pois na Idade Média
não se usava o termo deficiências com o sentido que é usado na atualidade (Idem, p. 2).
Se foi na modernidade, mais precisamente em meados do século XIX, que
se constituiu a idéia de corpo normal, Devis então pergunta: “qual é a causa desta
conceitualização?” Ele mesmo responde: “a origem desses conhecimentos advém dos
conhecimentos da estatística4”: (idem,p.3).
Foi o estatístico francês Adolfe Quetelet (1796-1847) que mais contribuiu
para a maioria das noções gerais de normalidade, como um imperativo. Ele
observou que a "lei do erro", usada por astrônomos para localizar uma
estrela, traçando todas as aparições desta, e em seguida calculando a média
dos erros, poderia igualmente ser aplicada à distribuição das características
humanas tais como a altura e o peso.

A partir dessas observações Quetelet vai formular o conceito de homem


médio, e passar a defender também um modelo de sociedade ideal a partir de resultados
médios obtidos: a sociedade burguesa com sua classe média. Nesse sentido, as
qualidades do homem médio, grandeza, beleza, saúde e bondade representariam a
síntese dos valores exigidos para uma sociedade ideal, na qual a classe média européia,
portanto, branca, seria sua legitima representante.
Para tanto, caberia a ciência moderna legitimar esse novo modelo de
sociedade. E faz isso muito bem a partir da matematização do corpo e do estudo das
características físicas e biológicas que serviam para “certificação” e legitimação de um
tipo de corpo que deveria ser cultivado e preservado. Enquanto que seu oposto, o corpo
incapacitado deveria ser eliminado, substituído, por um processo de seleção natural.
O darwinismo social ou teoria das raças de Francis Galton irá trazer a crença
na eugenia (eu:boa; genus: geração) e na função da hereditariedade humana. Depois de
ler a obra A Origem das Espécies do seu primo Charles Darwin, Galton publica sua
primeira obra Hereditary genius (genialidade hereditária) em 1869 na qual começa a
formular suas principais idéias eugênicas:
I propose to show in this book, that a man’s natural abilities are derived by
inheritance […] It would be quite practicable to produce a highly gifted race
of men by judicious marriages during several consecutive generations
(SCHWARCZ, 1993. p.60).

Ao afirmar que as habilidades naturais dos homens são herdadas por seus
familiares, Galton vai defender a idéia de se produzir uma raça via casamento,

4
Segundo Davis, a palavra estatística foi usada primeiramente em 1749 por Gottfried Achenwall, no
contexto da compilação de informação sobre o estado. Depois o conceito migrou para o corpo quando
Bisset Hawkins definiu a estatística médica em 1829 como "a aplicação dos números para ilustrar a
história natural da saúde e da doença" (Idem, p.3).

8
altamente dotada de atributos superiores. Isso significava, portanto, a proibição de
casamentos inter-raciais entre pessoas detentoras de genes ou heranças indesejáveis
como alcoólatras, epiléticos e alienados. (Idem).
Para os darwinistas, segundo Lilia Moritz Schwarcz, existiam duas formas
de aperfeiçoamento da humanidade: um defendido pelos evolucionistas e outro
defendido pelos darwinistas sociais. Os primeiros acreditavam que a humanidade estava
fadada a civilização por um processo natural de seleção dos mais aptos. Os darwinistas
sociais defendiam que “o progresso estaria restrito às sociedades puras, livres de um
processo de miscigenação, deixando a evolução de ser entendida como obrigatória”
(Idem, p.61), ou seja, deveria ser realizada pelos próprios homens, e não esperar que a
natureza a fizesse.
Partindo desses, pressupostos, os eugenistas irão propor um programa de
melhoramento racial no qual consistia no combate ao casamento entre pessoas que
geneticamente pudessem criar um tipo de raça degenerada. Alexander Graham Bell foi
um dos que advertiu que devido à tendência de “surdos-mudos” se relacionarem
sexualmente, poderia ser criada um raça de “surdos-mudos” (Davis, 2006, p.7).
Na busca do melhoramento racial como forma de encontrar um tipo humano
ideal, os eugenistas do departamento de estatísticas aplicadas e dos laboratórios
biométricos da universidade de Londres, do qual Galton fazia parte, irão então definir,
além dos já citados “surdos-mudos”, os tipo ou características que deveriam ser
eliminados:
[...] os criminosos, os pobres e as pessoas com deficiências puderam ser
mencionados no mesmo instante. Considere Karl Pearson, uma liderança no
movimento da eugenia, que definiu o "inadequado" da seguinte forma: "o
criminoso habitual, o vagabundo profissional, o tuberculoso, o insano, o
mentalmente defeituoso, o alcoólico, o doente de nascimento ou decorrente
do excesso" [...] hermafroditismo, hemofilia, fissura congênita do céu da
boca, lábio leporino, tuberculose, diabetes, surdo-mudismo, polidactilia (mais
de cinco dedos) ou braquidactilia (dedos curtos), insanidade e deficiência
mental" (Davis, 2006, p.10).

Para combater a proliferação dos tipos degenerados, alguns países, além de


proibir o casamento inter-racial, (“resultado de um casamento hibrido era sempre
degenerado ou mais fraco. Pior ainda, carregava os defeitos e não as qualidades de cada
um de seus ancestrais”), irão também implementar uma política de castração com leis de
esterilização eugênica como as que ocorreu nos Estados Unidos em 1919, na Suíça em
1928, na Dinamarca em 1929. Segundo Lilia Schwarcz, entre os anos 1909 até o final
da Segunda Guerra Mundial, o número de indivíduos esterilizados chegaria a 70 mil.
Desses, eram na sua grande maioria, membros da população pobre e negra
9
(SCHWARCZ, 1993. p.6 e 234). Davis também acusa a aprovação de uma lei na
Inglaterra em 1933. Esta lei objetivava o “controle do estoque humano para ‘evitar
doenças herdadas para a posteridade’, com a esterilização das pessoas incapacitadas”
(Idem, p. 11).
No caso do Brasil, não se chegou a aprovar nenhuma lei de esterilização,
mas se difundiu amplamente no meio intelectual, as idéias eugenistas como mostra Lilia
Schwarcz na sua obra “O Espetáculo das Raças”. Para alguns como João Batista
Lacerda (1911), a solução para o país estava no branqueamento da nação via
cruzamento acelerado e depurado mediante uma seleção natural: “o Brasil mestiço de
hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (Idem,
p.11,12). Para outros, entretanto, segundo Schwarcz (1993, p.169) “higienizar” o país
era educar seu povo:
Não é porque somos um ensaio de nação que marchamos a retaguarda de
outros povos, é porque somo ignorantes, mas educados, mal nutridos e
porque temos sangue depauperado, coração, os fígados, os intestinos, os
nervos infeccionados. Mais do que a raça, mas do que a tradição, mais de que
o costume a educação é a lei que modifica a raça que faz recuar a tradição.
(RAFDR5, 1919, p.60).

Como se observa, havia uma crença enorme, quase que profética na ciência
como possibilitadora de mudanças, como aquela que iria resolver todos os “problemas”
da Humanidade, inclusive, a questão da “imperfeição genética” que era visto como a
causa do atraso e barbaria dos povos não europeus como o Mestiço Brasil. Para uns a
solução para o nosso país estava no aprimoramento genético, para outros a solução era a
educação. Para outros as duas coisas deveriam caminhar juntas: branquear a nação com
a vinda de imigrantes europeus e implantar de forma sistemática a instrução do povo,
essa foi à política republicana a partir de 1889.

Considerações Finais
Diante do exposto, podemos concluir que as verdades positivas oriundas das
certezas matemáticas e do dogmatismo Darwiniano eugenista, serviram como afirmou
Davis, para “colocar pessoas incapacitadas ao longo da beira da estrada por
apresentarem defeitos evolucionários sobrepujados pela seleção natural”.
Contribuiu também para isso, a tradição cristã ocidental com sua visão
dicotômica de mundo que atribuía à imperfeição do corpo, castigos ou punição divina
ou mesmo, no caso de doenças ou transtornos mentais, a presença do próprio demônio
5
Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife.
10
no corpo das pessoas. Devido essa crença, muitas mulheres foram queimadas em
fogueiras acusadas de bruxaria, de hospedarem o próprio demônio no corpo.
Apesar desse processo de demonização do corpo deficiente ser “superado”,
o mal estar e a rejeição ao deficiente continuam, principalmente porque a ciência
moderna rejeitando a explicação teológica e metafísica, o classifica como fruto de um
desequilíbrio genético, problema que deve ser corrigido. E ao mesmo tempo,
desenvolve um tipo de homem perfeito, aquele que está na média da curva do sino, o
Homem Médio cujas qualidades expressam a perfeição do homem branco, o europeu.
É esse tipo humano, cujo corpo pela evolução da raça branca alcançou o
padrão médio que será o modelo aceito para o serviço militar. No Brasil, entretanto, a
formação de um exercito branco não será possível, embora a Republica brasileira
influenciada pelos valores positivistas e eugênicos o queiram.
Diante da impossibilidade de um exercito branco, os melhores negros e
mestiços serão incorporados. Porém o tratamento que receberão será à base de chibatas
e os cargos e funções, os piores possíveis.
Atualmente, a chibata acabou, mas o império do corpo perfeito não. Ainda
não se aceitam os deficientes, inclusive os que possuem “deficiência Estatural” os
baixinhos.
Referências:

Bíblia Anotada. The Ryrie Study Bible. Versão Almeida, Revisada. Editora Mundo
Cristão. São Paulo, 1994.

DAVIS, L. J. A construção da normalidade: a curva do sino, o romance e a


invenção do corpo incapacitado no século XIX. Trad. José Anchieta de Oliveira
Bentes. In: DAVIS, L. J. (Ed.). The disability Studies Reader. 2nd ed. New York:
Routledge, 2006.

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