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RESUMO O Normal e o Patolégico em Freud MARIA REGINA PRATA* Este artigo discute 0 problema do normal e do patolégico no discurso freudiano, a partir de dois modelos: num primeiro modelo, haveria a idéia de uma homeostase psiquica, um estado de equitibrio dinfmico, que balizaria as con- copes de normal e de patol6gico, as quais se diferenciariam quantitativamente, Num segundo modelo, que poderia ser pensado a partir de 1920, com a construgio do conceito de pulsdo de morte, Freud se depararia com 0 campo para além do princfpio de prazer, trazendo a idéia de um desequilfbrio ineren- te ao sujeito. Palavras-chave: Freud; normal; patolégico; pulso. ABSTRACT Normal and Pathologic in Freud This article discusses the problem of normal and pathologic in Freud’s work ‘on the basis of two models: in the first one, there would be a notion of “psychic homeostasis”, a status of dynamic balance that would gauge the conceptions of normal and pathologic, quantitatively distinct one from another. In the second model, which could be seen since 1920, with the construction of Todestrieb’s concept, Freud would confront the field beyond the pleasure principle, conveying the idea of a disequilibrium inherent to the subject. Keywords: Freud; normal; pathologic; instinct. * Mestre em Te ia Psicanalitica (UFRJ) € Doutora em Saide Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; professora do Mestrado em Educagéo ¢ da Graduagio em Psicologia da Universidade Estécio de Sé. PHYSTS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1}: 37-81, 1999 37 Maria Regina Prata RESUME Le Normal et le Pathologique en Freud Lvarticle discute le probléme du normal et du pathologique dans l’oeuvre de Freud, basé sur deux modeles: dans le premier, il y aura une notion de “homeostasis psychique”, un status d’équilibre dinamique, qui fonde les concepts de normal et de pathologique, et qui sont quantitativement differents. Dans fe seconde modéle, qui pourrait étre pensé a partir de 1920, avec la construction du concept de pulsion de mort, Freud trouve le champs au déla du principe du plaisir, en apportant I"idée d’un déséquilibre inhérent au sujet. Mots-clé: Freud; pulsion; pathologique; normal, Recebido em 12/4/99. Aprovado em 12/5/99. 38 PHYSIS; Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 37-81, 1999 © Normal e 0 Patolégico em Freud Quando instauramos uma classificagto refletida, quando dizemos que o gato ¢ 0 cdo se parecer menos que dois galgos, mesmo se ambos esto adestrados ou embalsamados, mesmo se 0s dois correm como loucos ¢ mesmo se acabam de quebrar a bilha, qual é, pois, 0 solo a partir do qual podemos estabelecé-lo com inteira certeza? Em que “tibua”, segundo a qual o espago de identidades, de similitudes, de analogias, adquirimos 0 hébito de distribuir tantas coisas diferentes e parecidas? Que coeréncia é essa — que se vé logo nao ser nem determinada por um encadeamento a priori e necessirio, nem imposta por contetidos imediatamente sensfveis? fato no hd, mesmo para a mais ingénua experiéncia, nenhuma similitude, nenhuma disting3o que nfo resulte de uma operago precisa e da aplicagao de um critério prévio Foucault, As palavras ¢ as coisas. Introdugao Quando tentamos discutir as categotias de normal e patolégico no campo freudiano, a primeira pergunta que se coloca é: “de que lugar Freud estava falando?’, ou melhor, “qual era o contexto em que ele apresentava seus problemas?”. E quando dizemos “contexto”, nos referimos tanto ao contexto histérico quanto ao contexto problemético no qual Freud colocava suas questdes. Partindo do contexto histérico, podemos dizer que o discurso freudiano, tal como qualquer outro, tem data e lugar, 0 que quer dizer também que seu pensamento foi possivel em uma determinada época, na qual determinadas questées puderam ser formuladas. No final do século XIX, havia uma atmosfera positivista no meio cien- tifico, onde se sobressafam vertentes do pensamento comteano nas diversas Areas de conhecimento. Um dos aspectos marcantes dessa atmosfera era a idéia de uma continuidade entre os fenémenos normais ¢ os patolégicos, que seriam idénticos entre si, salvo pelas variagbes quantitativas. Ou seja, have- ria um limiar quantitativo ideal do corpo so, um equilfbrio homeostatico do corpo, que, quando ultrapassado, deflagraria uma patologia. Qual seria a relagdo de Freud com essa atmosfera? A idéia do fator quantitativo como determinante do funcionamento do sistema nervoso foi explicitada pela primeira vez por Freud no “Esbo¢o para a comunicagao preliminar”, em 1892. Nessa poca, ele falava que a soma de excitagio (Erregungssumme) era o fator quantitativo que deveria ser manti- do constante, pelo escoamento por via associativa do actimulo de excitagao (Erregungszuwachs). PHYSIS: Rey. Side Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 37-81, 199939 Maria Regina Prata Portanto, a constancia da soma de excitagao seria um fator condicionante da satide do sujeito, e o trauma ps{quico aconteceria quando a tentativa de escoamento da excitagao fosse dificultada. No “Manuscrito D, sobre a etiologia e a teoria das grandes neuroses” (sem data, provavelmente escrito em 1894), Freud confirma isso, colocando ainda o mecanismo das neuroses como “perturbagdes do equilfbrio”, decorrentes do impedimento da descarga da excitacao. Essa descarga evitaria 0 actimulo de excitagao ¢ garantiria o equilibrio, conforme expressa a teoria da constfincia. No entanto, a questo nfo é apenas dizer que o pensamento freudiano patticipava, de alguma forma, de um modelo homeostitico: € necessério também que busquemos, mesmo no comego de seu discurso, 0 que se co- locava em confronto com esse modelo, para pensarmos como Freud foi aos poucos se distanciando do referencia! positivista, para enfim, a partir da postulagio do conceito de pulsio de morte, marcarmos sua ruptura. Nesta perspectiva, podemos dizer que, de um lado, hd uma afinidade do pensamento freudiano com o positivismo; porém, de outro lado, com as idéias de singularidade do sujeito e da critica 4 concepgao de patologia como esséncia, atreladas & idéia de que o discurso do Jouco teria um sentido, Freud apresentaria diferengas em relag&o & sua época. Para rastrear a pluralidade de nogdes e conceitos que estio envolvidos na questdo do patolégico, teremos dois modelos como ponto de ancoragem: 0 primeiro apresenta a id¢ia de uma homeostase interna, e liga a concep¢ao de patolégico em Freud ao desequilfbrio energético do psiquico. Este modelo 6 balizado pelo princfpio da constancia quantitativa e posteriormente pelo principio do prazer. Aqui Freud estaria sendo influenciado — através de Breuer — por um contempordneo seu, 0 bidlogo Claude Bernard, que apre- sentava uma teoria das regulagées internas, tendo como pano de fundo uma homeostase organica fundamental e uma idéia de equilfbrio submetida a esses moldes. O segundo modelo utilizado aponta para a virada que o dis- curso freudiano teve a partir da postulagao da pulsio de morte. Pois se a partir desse conceito a idéia de um confronto de forgas é ressaltada de forma ainda mais decisiva, as concepgdes de normal e de patolégico devem colo- car-se frente a esta problemética. Com efeito, podemos questionar que se hd um ponto de vista homeostatico no infcio da obra freudiana, apds 1920 ele nao poderia mais ser sustentado, uma vez que na propria vida existiriam forgas desarménicas. Neste contexto, a tendéncia a estabilidade no aparelho psiquico também seria reavaliada, ¢ nfo haveria mais sentido falarmos de um normal em relagao a um patolégico no discurso freudiano. 40 _ PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Jancito, 91): 37-81, 1999 © Normal € 0 Patolégico em Freud A partir desse segundo modelo, Freud péde redimensionar varios proble- mas, tais como colocar 0 masoquismo como primério, repensar 0 término da analise tendo em vista o fato de que o desequilforio é inerente ao sujeito, colocar a angtistia como anterior ao recalcamento, reafirmar que o desam- paro faz parte da vida. E, dentre outras questdes, podemos dizer que ocorre toda uma mudanga no que podemos chamar de uma postura ética freudiana, que vai se colocar de frente ao fato de que o conflito € intermindvel. Nesta perspectiva, a idéia de cura entendida nos moldes da dissolugao dos confli- tos, de um “bem” ov uma “normalidade” a ser atingida, seré definitivamente repensada. Freud e a Atmosfera da Epoca Sabemos que quando o discurso de determinado autor é langado, os cientistas podem concordar ou discordar dele, utilizando-o de formas varia- das, & nesta perspectiva que Stengers nos diz que o mais fundamental na ciéncia é que ela seja um didlogo constante dos homens com o mundo. Para que uma hipétese se apresente como verdade, ou seja, para que digamos “isso € cientifico”, é necessario que haja um didlogo com uma coletividade. Nao ha resposta de dircito, normativa ou transistérica, pois qualquer respos- ta 6 hist6rica e coletiva, constituindo em cada época e para cada ciéncia 0 que est em jogo no trabalho dos cientistas interessados. Portanto, se alguém diz “eu fago ciéncia”, o que ele diz é completamente nulo (Stengers, 1989). De acordo com Stengers, 0 que coloca o saber psicanalitico como singu- lar é 0 desafio constante de Freud em produzir testemunhas fidedignas. A testemunha fidedigna se constitui como uma peculiaridade experimental em fazer 0 mundo testemunhar a favor ou contra uma hipétese cientifica, par- ticipando de uma discussao. Ela é um evento raro, porque quando os homens dialogam entre si em torno de determinada hipstese, abre-se a possibilidade da decepedo do cientista que a formulou, uma vez que este tiltimo niio pode prever os resultados que serao obtidos. Se a testemunha fidedigna leva em conta a discussdo da coletividade em torno de suas proposigées, é importante que falemos um pouco de qual era a coletividade ou a atmosfera cientifica em que Freud estava inserido. As- sim, podemos perguntar: quais eram os aspectos marcantes na atmosfera do final do século XIX? Na Enciclopédia de Medicina (1963), Lain Entralgo sublinha que o solo pelo qual o saber médico se desenvolveu na segunda metade do século XIX PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 91): 37-81, 1999 4 Maria Regina Prata foi permeado pela “mentalidade positivista”, que tinha a “observagéio experi- mental” direta ou instrumental como um dos seus pressupostos fundamentais. Nesta perspectiva, para que o experimento cientifico tivesse 0 carter inquestionavel de uma verdade, deveriam ser estabelecidas relagdes de cau- sa e efeito: o dado da observagao deveria se converter num “resultado de uma medida”; portanto, num “dado numérico”. Entaéo, 0 saber cientifico chegaria a sua total perfeic&o quando a relagio entre os dados numéricos correspondentes & causa de um fendmeno e os correspondentes aos efeitos desta causa conduzissem a formulagdo de uma “lei geral da natureza” (Entralgo, 1963). A partir dessa idéia da “ciéncia no laboratério”, trés pélos fundamentais do estudo do patolégico estavam presentes no final do século passado: 0 fisiopatolégico, 0 etiopatolégico e 0 anatomoclfnico. Dito de forma simplificada, do ponto de vista fisiopatolégico, predominante na medicina alema, a vida pode manifestar-se no laboratério como um fluxo energético ¢ material peculiarmente configurado, ¢ 0 acidente vital chamado enfermi- dade é conhecido cientificamente quando o patologista obtém “a medida das alteragées” de cada processo mérbido. Do ponto de vista da etiopatologia, os processos estudados pelos fisiologistas e as lesdes organicas que os anatomoclinicos descrevem sao conseqiiéncias especificas das diversas cau- gas mérbidas, que sao estudadas pelos microbidlogos e pelos toxicélogos. Assim, para a doutrina etiopatolégica, quando nao hd infecgdo microbiana, nao ha uma verdadeira enfermidade. Pois a enfermidade seria sempre um caso particular da luta pela vida, um combate entre o organismo infectante e 0 héspede. Finalmente, no pélo anatomoclfnico —- especialmente cultivado pela medicina francesa —, a lesfio anatémica teria um cardter fundamental. Nesse sentido, a patologia se sucederia no organismo em decorréncia de uma lesio fisica. Embora Pinel nao considerasse a anatomia patoldégica, Xavier Bichat inspirou-se em sua nosologia para juntar a “observagao anatémica & clinica”, reunindo duas figuras heterogéneas do saber, de modo que “o grande corte na histéria da medicina ocidental data do momento em gue a experiéncia clinica transformou-se na visdo anatomoclinica” (Foucault, 1987). A partir da visio anatomoclinica, a anatomia tem seus tecidos simples, que por suas combinagées formam os Orgios. Nesta perspectiva, podemos dizer que as experimentagies laboratoriais adquiriram uma grande importancia na ciéncia do século XIX, e Freud participou desse contexto. 42 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1); 37-81, 1999 © Normal e © Patolégico em Freud A Fisiologia Fisica No livro A nova alianga (1984), Prigogine e Stengers nos dizem que no comego do século XIX produziu-se uma “efervecéncia experimental”, quan- do foram descobertos em laboratério “efeitos novos”, que impuseram aos fisicos a idéia de que 0 movimento nao produzia somente modificagdes da disposigao espacial dos corpos (ou seja, do valor da energia potencial). Foi nesse contexto que surgiu a termodinamica, nascida em 1824 com o trabalho de Sadi Carnot sobre a forga motriz do fogo, ou seja, a verificagéo de que o fogo é capaz de mover e transformar as coisas. Essas modificagGes so irreversiveis, pois nem toda energia calorifica resultante da queima, por exemplo, do carvao, se transforma em energia mecdnica capaz de mover algo. Desta forma, se nao ha recuperagio das coisas que se queimam, € preciso que a ciéncia nova nao pretenda descrever uma idealizagdo, podendo também conceber as perdas: a energia, embora conservando-se, também se dissipa (Prigogine e Stengers, 1984). ‘A primeira descoberta da termodindmica € que, nas wansformagées tér- micas que acontecem em sistemas isolados do exterior, a energia se conser- va. Assim é formulado o primeiro principio da termodinamica: “o intercam- bio total de energia através das fronteiras de um dado sistema é igual & variagao de energia desse sistema” (Reif, 1965: 122). No entanto, como vimos, nem toda energia € utilizada, ou seja, hé algo que se perde. Esse fato aponta para o segundo principio da termodinamica, que formula que em qualquer transformagiio produzida num sistema isolado, a entropia desse sistema — ou seja, a grandeza que mede seu grau de desordem — aumenta positivamente até um grau méximo. Quando esse processo para, 0 sistema permanece em estado de constanci Portanto, o segundo principio da termodinfmica expressa a tendéncia de um sistema caminhar para a desordem, ou melhor, para uma situagao em que haja uma distribuig&io cada vez mais uniforme de matéria e de energia no sistema. Esse nivelamento da energia traz como perspectiva final a morte térmica do universo, quando toda energia tiver sido degradada e 0 processo césmico chegar a paralisagdo (Faveret, 1996). Assim, as idéias de conservagio, dissipagao, desordem, distribuigdo de energia, ou de forma geral, as descobertas feitas no campo da energética e 0 relevo dado as questes decorrentes disso, faziam parte do contexto cientifico do século XIX. Mas como Freud participou dessa atmosfera efervescente? PHIYSIS: Rev, Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 37-81, 1999 43 Maria Regina Prata Podemos dizer que muitas vezes Freud utilizou uma linguagem que trazia ressonancias com a termodindmica de sua época. Isso pode ser constatado no “Projeto para uma psicologia cientifica”, de 1895, ou ainda pela formu- lagdo do principio da constancia, que apresenta a idéia de que o aparelho psiquico busca manter sua excita¢do interna num nivel constante, tentando conservar a energia, expressando uma lei de regulagdo no psfquico, onde se procura manter um equilfbrio em relagio ao uso da energia. Os exemplos so intimeros, mas neste espaco cabe somente indicd-los. Podemos apontar ainda que mesmo a idéia da conversdo histérica, em que a energia psiquica € convertida no corpo, provocando um ataque, uma paralisagdo, também apresenta a questdo da transformagio da energia, presente no campo discursivo da época de Freud. No Semindrio 2 - O eu na teoria de Freud e na técnica da psicandlise (1978), Lacan esclarece que Freud concebe o aparelho psiquico como uma maquina, que busca retornar ao estado de equilfbrio. Diz Lacan: “Do inicio ao fim da obra de Freud, o principio do prazer se explica assim —o sistema nervoso 6, de certa maneira, diante de uma estimulagio trazida a este aparelho vivo, o representante essencial do homeostato, do regulador essencial gragas ao qual o ser vivo persiste, ao qual vai corresponder uma tendéncia a levar a excitagdo de volta ao mais baixo (...)" (Lacan, 1987: 106-7). Lacan pergunta o que quer dizer esse “mais baixo”. E responde: o mais baixo da tenséio pode querer dizer duas coisas: de um lado, remonta-se a um certo equilfbrio do sistema, e de outro, da morte, que leva todas as tensdes a zero. No entanto, essa morte nfo € a morte dos seres vivos, mas a vivéncia humana, a intersubjetividade: “(.)) hf algo no que ele [Freud] observa do homem que 0 coage a sair dos limites da vida, HA sem diivida um principio que leva a libido de volta & morte, porém nfo de uma maneira qualquer. Se a levasse pelos mais curtos caminhos, 0 problema estaria resolvido. Mas é s6 pelos caminhos da vida que ele a leva, af € que est (...). Ele nao pode ir para a morte por qualquer caminho” (Lacan, 1987), Assim, a mdquina procura manter-se em existéncia, 0 que apontaria ao primeiro principio da termodinamica, o da conservagio de energia — “para 44 PHYSIS: Rev. Sate Coteti |. Rio de Janeiro, 9(1): 37-81, 1999 © Normal e o Patolégico em Freud que haja algo no fim & preciso que tenha havido, pelo menos, no comego” (Lacan, 1987: 108). Jé o segundo principio da termodinamica é enunciado no fato de que quando a méquina faz seu trabalho de manutengio, uma parte da energia € gasta, ou seja, hd perda. Isso designaria a entropia nos moldes freudianos, apontaria 4 pulsdo de morte. E importante dizer que Freud aproveitou 0 fisicalismo de seu tempo a seu proprio modo, ou seja, utilizou-o como matéria-prima para suas elaboragoes discursivas. Neste contexto, parece-nos que Freud nao se deteve rigorosa- mente nos conceitos fisicalistas, tal como a fisica da tetmodinamica os apresentava, mas os utilizou como fonte de inspiragdo & sua concepgdo de aparelho psiquico. Por ora, podemos concluir que o solo no qual a psicandlise se desen- volveu no infcio do século XX constituiu-se das figuras dominantes que regiam o saber, tal como a andtomo-patologia, a anatomoclinica, anatomofisiologia, a fisiologia fisica, a microbiologia, a teoria das Joca- lizagdes cerebrais, da hereditariedade-degenerescéncia, etc. (Roudinesco, 1989)". Contudo, é importante ressaltar que essas figuras foram aprovei- tadas por Freud de forma que ele pudesse ultrapass4-las, utilizando-as como ponto de partida, podendo, a partir disso, criar um campo diferente do saber, a psicandlise. O Laboratério Freudiano Na introdugio deste artigo, dissemos que Freud teria sido influenciado por Claude Bernard, um dos representantes proeminentes da tradig#o médica do século passado, Claude Bernard trazia a idéia de uma continuidade entre os fenémenos normais ¢ patolégicos, na qual toda doenga teria uma fungao normal correspondente, da qual ela seria apenas a expresso perturbada, exagerada, diminufda ou anulada, Por outro lado, Claude Bernard falava também de um antagonismo ou luta entre forgas da criagéo vital e da des- truigdo, em que o objetivo do organismo seria a busca da estabilidade inter- na, uma homeostase que garantisse seu funcionamento étimo. Mas o que é a homeostase? 1 Foram essas nogdes que fundamentaram a elaboragdio ou a reformulagdo dos diferentes campos da clinica das “doengas nervosas”: a ncurologia, a psiquiatria, a psicopatologia, a psicologia e a psicandlise. PHYSIS: Rev, Saside Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 37-81, 1999 45 Maria Regina Prata O conceito de homeostase, que foi nomeado posteriormente por Cannon no livro A sabedoria do corpo (1929), tenta dar conta dos processos fisio- Iégicos de auto-regulagio do organismo, por meio dos quais 0 corpo tende- ria a manter constante a composigao dos elementos do meio sangiiineo, “A homeostase seria um equilibrio dinamico, caracterfstico do corpo vivo, e nao a redugio da tensdo interna a um nivel mfinimo” (Laplanche ¢ Pontalis, 1986: 460). Nesse sentido, falar em “‘sabedoria do corpo” significa dizer que © corpo vivo est4 em estado de permanente equilibrio controlado, de esta- bilidade mantida contra as influéncias perturbadoras de origem externa. Essa idéia de um funcionamento étimo parece ter influenciado Breuer. Paralelamente a Breuer, mesmo que nao tivesse compartilhado totalmente suas idéias, Freud mantinha uma idéia de forgas em luta no sujeito, e tam- bém uma certa idéia de auto-regulagio no psiquismo. Adiantamos na introdugaio que, para Freud, o excesso de excitagdes nao elaboradas poderia desencadear uma patologia. No entanto, sabemos tam- bém que o que desencadeia um trauma em um sujeito pode nao desencadear em outro. Ent&o, podemos dizer que 0 problema da homeostase é relevante no pensamento freudiano, mas essa homeostase seria “singular”: nao haveria um “padrao de normalidade ideal”. Por outro lado, a patologia “uransforma- sia o psiquismo”, ou melhor, aproveitando o que coloca Canguilhem, pode- mos dizer que Freud considera 0 sentido ¢ 0 valor da doenga em relagdo as possibilidades de existéncia (Canguilhem, 1978). Mas talvez, haja, no comego da obra freudiana, uma tentativa de fundamen- tar a clinica como um espaco experimental neutro, que busca a cura das doengas. Nesta perspectiva, no trabalho em que comenta o caso clinico “Dora”, Freud fala dessa ambigio de controle e verificagdo, propria de sua época: “Foi sem divida espinhoso ter que publicar resultados de minhas investiga- oes, de natureza surpreendente e pouco atraente, sem que meus colegas tivessem a possibilidade de controlé-las, Nao € menos espinhoso agora me ‘empenhar em expor ao juizo pablico uma parte do material que me permitiu obter aqueles resultados (...)" (Freud, 1905: 7 - grifo meu). ‘Assim, a clinica freudiana do final do século XIX e do comego do século XX parece tet se preocupado com um campo experimental de verificagao, 2 As tradugdes de todas as citagbes de Freud sto de minha autoria. 46 PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 37-81, 1999 © Normal e 0 Patolégico em Freud buscando na clinica os meios pelos quais as assertivas seriam provadas ¢ controladas, E neste contexto que podemos aproveitar 0 que Chertok € Stengers nos falam: “A diferenga entre ciéncia e nio-ciéncia, para Freud, nao passava, portanto, por uma teoria que explicasse a agdo da ‘confianca expectante’; poder dosé- Ja, ‘dispor dela’, em suma, manipulé-la como Pasteur manipulava a ago de seus germes ou como o quimico manipulava a reagdo, aquecendo-a ou esfri- ando-a. Talvez estejamos hoje demasiadamente esquecidos, neste século XX, em que 0 ideal cientifico esta associado a nogio de ‘revolugiio’, de descober- tas te6rico-experimentais que causem uma reviravolta, como a do étomo quantico ou a do ADN, de que, no final do século XIX, triunfaram a quimica 6 pasteurismo, ciéncias agndsticas quanto Aquilo que manipulavam, glorio- sas quanto 2 eficiéncia de sua manipulagio. E as experiéncias “Jaboratoriais’ de Charcot, fazendo e desfazendo paralisias, inscreveram-se nesse ideal de racionalidade ativa, em que a razfio nfo remete & compreenstio dos mecanis- mos, mas a seu controle, em que o ‘horror do ininteligivel’, como dizia Venel, & aplacado pela possibilidade de submeté-lo ao controle. Da mesma forma, nele se inscreveram, sem divida, a esperanga freudiana de poder, graces & hipnose, agir sobre a mem@ria e eliminar a carga afetiva determinada pelo trauma passado, ¢ a defini¢ao que Freud deu & técnica analitica, centrada nna resisténcia ¢ na transferéneia” (Chertok e Stengers, 1990: 72 - grifos meus). Mas, se por um lado as experiéncias laboratoriais de Charcot e a hipnose expressam um ideal de cura e de controle, que com o decorrer da obra freudiana foram abandonados, por outro, a postulacao do conceito de incons- ciente, bem como o fato de a loucura ter um sentido a ser interpretado, distanciam Freud do ideal do positivismo. Nesse sentido, podemos dizer que o discurso freudiano nao era completamente sincr6nico em relag&o a seus contemporaneos. A Patologia no Inicio do Percurso Freudiano Sabemos que, com a técnica da hipnose, Charcot iniciou a clinica da neu- rose histérica. Foi com Charcot que Freud aprendeu a distinguir os distirbios organicos ligados a uma afec¢do nervosa organica, dos disttirbios histéricos: uma vez que a paralisia histérica produzia sintomas globais que nao faziam PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janciro, 9(1): 37-81, 199947 Maria Regina Prata sentido do ponto de vista funcional, cla no poderia ser explicada por uma causa organica. Nesta perspectiva, Charcot deu a Freud o germe da hipstese etiolégica, permitindo que este iltimo definisse 0 método catértico sob hipno- se como um instrumento terapéutico conveniente ao tratamento da histeria. Em 1888, no artigo intitulado “Histeria”, Freud coloca que a palavra “histeria” origina-se da hystera dos gregos e significa utero, provindo dos primeiros tempos da medicina, quando a histeria ainda era ligada ao sexo feminino. Na Idade Média, cla desempenhou um papel histérico-cultural significativo, constituindo o fundamento das possessées pelo deménio, da bruxaria, bem como 0 motivo dos exorcismos e das fogueiras (Freud, 1888). Frend inicia a discussiio dizendo que “a histeria é uma neurose no sentido mais estrito do termo”. Ele continua: “A histeria repousa por completo nas modificagdes fisiolégicas do sistema nervoso, € sa esséncia deveria expressar-se mediante uma frmula que leve em considerago as relagées de excitabilidade entre as diversas partes deste sistema” (Freud, 1888; 45 — grifo meu). Podemos ressaltar dois aspectos nessa passagem. O primeiro se remete a preocupagio de Freud, peculiar em sua época, com as “modificagdes fisio- légicas”. Logo adiante, ele responde que uma férmula fisiopatolégica desse tipo ainda nao foi descoberta, e que devemos nos contentar em defini-la a partir de um ponto de vista nosografico, ou seja, pelo conjunto dos sintomas apresentados. Portanto, este primeiro aspecto aponta para a preocupagao freudiana com © campo da nosografia. Nesta perspectiva, Freud critica o agrupamento indiscriminado da histeria com os “estados nervosos em geral”, a neurastenia, muitos estados psicéticos e diversas neuroses que nfo foram destacadas das doengas nervosas, 0 que valoriza o trabalho de Charcot, que sustentava que “a histeria era um quadro clinico nitidamente circunscrito ¢ bem definido”, Assim, a constituigdo de um campo nosografico, ou, dito de outro modo, a disting’io sintomatolégica entre os estados patolégicos, bem como 0 proble- ma da escolha da neurose, sio preocupagdes que acompanham a clinica freudiana. O outro aspecto que pode ser apontado na passagem citada é a ques- to da excitabilidade. Assim, apés percorter a sintomatologia da histeria, Freud coloca que ha uma influéncia dos processos psiquicos sobre os processos fisicos do organismo, caracterizada por um “excedente de 48 PHYSIS; Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 91): 37-81, 1999 © Normal ¢ 0 Patolégico em Freud excitagio”. Esse excedente poderia funcionar ora come inibidor, ora como estimulador, podendo deslocar-se com grande liberdade no siste- ma nervoso: “Junto aos sintomas fisicos da histeria, cabe observar uma série de perturba- ges psiquicas, e que certamente algum dia se descobriré as alteragdes carac- teristicas desta enfermidade, mas que a andlise no momento mal comegou. Trata-se de alteragSes no curso € na associagio de representagdes, de inibigoes na atividade voluntéria, de acentuagao € sufocamento de sentimentos, etc., que se resumem, om geral, como umas modificagiies na distribuicho nor- mal, sobre o sistema nervoso, das magnitudes de excitacées estaveis” (Freud, 1888: 54 — geifo do autor). O aspecto quantitative € aqui revelador: 6 0 excesso de estimulos que explica a patologia histérica. E 0 tratamento consiste na remogiio das fontes psiquicas que impelem os sintomas histéricos, através de uma sugestio feita ao sujeito, que esté em estado de hipnose. Nesta perspectiva, a cura deve modificar a distribuigdo das excitagdes do sistema nervoso. Por outro lado, & importante destacar aqui 0 relevo cada vez maior que o registro da repre- sentago vai ganhando no discurso freudiano. Podemos observar também que a idéia do excesso quantitativo como determinante da patologia, ou entdo, a idéia de que 0 psiquico deveria manter sua energia interna t4o baixa quanto possivel, vem lembrar a assertiva de Claude Bernard, de que a regulagdo do organismo fundamenta-se na estabi- lidade do meio interior. No entanto, néo podemos reduzit o pensamento de Freud a um “piologismo”, até porque Freud nos falava de um sujeito do inconsciente e nao de um individuo, de um aparelho psiquico e nao de um organismo. Entio, o que vale sublinhar é que se alguns aspectos do pensamento de Freud participam da atmosfera “bemnardiana” e comteana de sua época, em contrapartida, seu pensamento aponta o tempo todo para um campo que transcende esses limites. O enfoque quantitative no "Projeto para uma psicologia cientifica", de 1895 Estamos falando da questo da quantidade de excitagdes que atingem o sujeito, presente desde 0 comego da obra freudiana. Um outro texto que PHYSIS: Rev, Satide Coletiva, Rio de Janciro, 9(1): 37-81. 1999 49

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