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DANIEL L. SCHALT EH Os sete pecados COMO A MENTE ESQUECE E LEMBRA da memoria eames AAR CAPITULO 7 o_o O pecado da persisténcia Numa tarde ensolarada, no inicio de outubro de 1986, uma multiddo exultante de torcedores de beisebol animava o time da casa, o California Angels, que estava préximo da vitéria sobre o Boston Red Sox, na a do campeonato da Liga Americana. Na nona etapa do quinto jogo da série, o Angels detinha uma vantagem aparentemente lestpereveh ieee com um placar de 5 a 2, 0 time precisava apenas de mais uma vitoria para garantir a supremacia na série. Mas o Red Sox reagiu, diminuindo a dife- renga para 5 a 4. Tentando terminar o jogo, o técnico do Angels, Gene Mauch, mobilizou o melhor langador do time, Donnie Moore, para enfrentar o defensor de campo externo do Boston, Dave Henderson. Moore rapidamente acertou dois ataques. Os torcedores e jogadores do Angels comegaram a comemorar, ja que Henderson nao parecia estar conseguindo dar conta do recado. Quando tudo parecia estar contra ele, Henderson defendeu 0 ataque de Moore, partindo para a esquerda em uma corrida que colocou seu time em vantagem. Sem que o Angels rea- gisse, o Red Sox ganhou a partida ¢ se classificou para o Campeonato Mundial. Com 0 passar do tempo, os jogadores e torcedores do Angels acaba- ram se recuperando da derrota desmoralizante. Mas Donnie Moore jamais se recuperou. Ele foi perseguido, muitas vezes oprimido, pela meméria da atuacio brilhante de Henderson. Embora seus companhei- ros de equipe tentassem lembrd-lo de todos os outros jogos enn) ng ele havia salvado o time, Moore se concentrava apenas na sua ultima jogada contra o Boston, culpando a si mesmo pela derrota. Os torcedores ¢ 4 imprensa ajudaram a reforgar a lembranga, falando sem parar sobre 0 4 incidente. Moore foi afundando cada vez mais em uma depress4o pro- funda, que prejudicou seu casamento e sua carreira. Em julho de 1989, 0 O pecado da persisténcia 199 declinio de Moore terminou de forma violenta. “Atormentado pela memoria de uma jogada”, dizia um boletim da agéncia de noticias Associated Press, “e desesperado com o fracasso na carreira e problemas conjugais, o ex-langador do California Angels, Donnie Moore, atirou contra a esposa varias vezes antes de se matar”, concluia a noticia. O agente de Moore, Dave Pinter, comentou que “mesmo que lhe dissessem que uma jogada nao define uma temporada, ele nao conseguiu se recu- perar. Aquela jogada o matou”. Embora a queda de Moore nio possa ser atribuida exclusivamente a um tinico incidente, seu fim oferece um exemplo dramatico do sétimo, e talvez mais debilitante, pecado da meméria: a persisténcia. Ao contrdrio da transitoriedade, da distragao ¢ do bloqueio, que envolvem o esqueci- mento de informagées ou eventos que vocé quer lembrar, a persisténcia faz vocé se lembrar de coisas que gostaria de esquecer. Algumas vezes, a persisténcia nao passa de uma pequena irritagdio. Todos nds ja passamos pela experiéncia de nao conseguir tirar da cabeca uma mtsica ou melo- dia. No principio, podemos até gostar mas, com 0 passar do tempo, can- samos de “ouvir” mentalmente a melodia e tentamos tirar essa intrusa da nossa mente. Algumas vezes, essas memérias persistentes podem nos dis- trair de tarefas mais importantes. Na época em que eu cursava o ensino médio, lembro-me de minha agitagio quando minha cangao favorita do Led Zeppelin continuava na minha cabega no meio de uma prova, tor- nando quase impossivel que eu me concentrasse. Laurie Gordon, uma Universitaria que participou de um dos meus semindrios em Harvard, fala de um contratempo parecido e as medidas que tomou para evit-lo: Fui autorizada a levar, para uma das minhas provas finais, uma folha com um roteiro resumido. Vi que ainda tinha espaco na folha, jA que eu nao achei necessdrio fazer muitas anotagées para a prova. Decidi preencher esse espago com as letras de cinco das minhas misicas favoritas. Fiz isso para evitar que se repetisse a situac4o ocorrida um dia antes, quando tive dificuldades de concentragdo por causa de uma musica irritante que nao safa da minha cabega. Dessa vez, ao fazer a prova final, eu consegui bloquear essa miisica olhando para as letras das outras miisicas que escrevi na folha de revisao. Embora irritante, a experiéncia da “mtsica que nao sai da cabega” Ocorre com pouca freqiiéncia, na maioria das vezes nao tem conseqiién- 200 OS SETE PECADOS DA MEMORIA cias sérias e pode ser evitada eficazmente com técnicas como a usada por Gordon. O tipo de persisténcia que dominou Donnie Moore € bem mais preocupante. Apesar de ser um caso extraordindrio, a histéria de Moore ilustra o territério basico da persisténcia: decepgao, desgosto, fracasso, tristeza e trauma. Experiéncias que lembramos sem querer, apesar de desejar desesperadamente afasta-las de nossa mente, estao intimamente ligadas, ¢ algumas vezes sfo uma ameaga, 4 nossa imagem de quem somos e de quem gostariamos de ser. MEMORIA E EMOCGAO Para entender o sétimo pecado, precisamos estudar a relagdo entre emoc6es ¢ a memoria, j que a persisténcia esta fortemente ligada a noss: vida emocional. As experiéncias do cotidiano e estudos de laboratoric revelam que incidentes com elevada carga emocional s40 mais lembra- dos do que eventos que nao despertam emogées. O efeito da emog comega no momento em que a meméria € criada, quando a atengao codificacao determinam se uma experiéncia vai ser lembrada ou esquect- da. Como os ataques de distragao mostram, quando nao conseguimos prestar atengo ou codificar uma informagio nova, dificilmente con: guiremos lembrar essa informagao mais tarde. Estudos demonstram que informagées com carga emocional atra atencdo rapidamente e de forma automatica, conforme pode ser exemplificado com experimentos que usam uma variacao do fam “efeito Stroop”. Escreva as palavras amarelo com cor amarela, verm: com cor azul e verde com cor preta. Agora tente dizer a cor em que uma das palavras foi escrita. Vocé vai observar que leva mais tempo Pp dizer “azul” e “preto” do que “amarelo”. Isso acontece porque vocé consegue evitar a andlise dos significados de vermetho e preto, que entt em conflito com as cores que esta tentando dizer. Algo semelhante p! acontecer com as palavras triste e alegria: comparando com palavras 2 tras como molhado, dizer 0 nome da cor em que foram escritas pala positivas ou negativas leva mais tempo. As palavras com carga emocion: parecem chamar a atengao automaticamente, o que atrapalha na ho dizer a cor com que essas palavras foram escritas. Em fragao de segune o tempo necessario para ler a palavra, 0 significado emocional é evocat avaliado, afetando a maneira como nomeamos € codificamos essa pal Apés essa primeira avaliagdo automiatica, o significado da info! 8 O pecado da persisténcia 201 ¢4o emocional passa por outra avaliagao em relagdo aos nossos objetivos e preocupagées do presente. Os objetivos podem ser de curto prazo (fazer uma boa jogada para terminar um jogo de beisebol) ou de longo prazo (jogar bem durante a temporada de beisebol para garantir um salario melhor no futuro). Quando nossas ag6es impedem que atinjamos nossos objetivos — como no caso de Donnie Moore -, ficamos tristes, frustrados e decepcionados. Quando conseguimos atingir nossos objetivos — imagi- ne se Donnie Moore tivesse conseguido derrotar Dave Henderson —, ficamos felizes e, talvez, euféricos. Quando relacionamos uma experién- cia do presente com objetivos de curto ou longo prazo, estamos fazendo uma espécie de reflexdo ou andlise — a codificagdo elaborada — que pro- porciona a memorizag4o dessa experiéncia. Embora a meméria de eventos com carga emocional normalmente se beneficie tanto da primeira avaliagdo automAtica quanto das reflexées posteriores, paga-se um prego por isso. Imagine uma pessoa inocente que assiste a um assalto a um banco. Ao tentar escapar, o ladrao mostra um revdlver. Tomada pelo medo, essa pessoa instantaneamente focaliza a atengao na arma. Em conseqiiéncia, mais tarde ela consegue lembrar detalhadamente as caracteristicas do revolver. Mas, quando a policia pede uma descric4o do assaltante, a pessoa consegue lembrar apenas _ vagamente do seu rosto, nao tem informagées suficientes para ajudar nas Investigagées. Psicélogos chamam esse fendmeno de “focalizagao na rina” ! : ‘ : : ma”. O objeto que provoca emogio atrai a aten¢4o automaticamente, dei i 4 ixando poucos recursos para a codificagao do resto da cena. Experi- me tos comprovam que as pessoas normalmente lembram bem o ponto cen Snel MiG s tral de um incidente que provoca emogées, A custa de uma meméria ‘Tuim dos detalhes periféricos. Oo: os . ms . 's beneficios da estimulagio emocional para a memorizagio se apli- meno ee Pafieite quanto negativos: lembramos melhor os ee aaa a nossa vida do que fs acontecimentos triviais. E eae positivas, assim como as negativas, tendem a ser lembradas ~ Otuntariamente e de forma intrusiva. Cerca de 90% dos estudantes ens ans registraram acontecimentos de valor emocional em ti bethemanian que, mais tarde, tiveram pelo menos algumas ie ivas tanto de eventos positivos quanto negativos, sendo ©mogoes mais intensas produziram memérias intrusivas com mais €ncia. A diferenga, obviamente, € que as memérias positivas em 202 OS SETE PECADOS DA MEMORIA 4 geral séo intrusos bem-vindos (gostamos de lembrar um recente éxito _ nos negécios, feitos esportivos ou um encontro rom4ntico), enquanto 9 _ oposto ocorre com as lembrangas negativas. a HA muito que os psicélogos discutem se as experiéncias positivas sao _ mais bem lembradas que as negativas, ou vice-versa. Embora até agora existam poucos sinais, experiéncias conduzidas no meu laboratério pelo | psicélogo Kevin Ochsner revelaram uma intrigante diferenca qualitativa entre as duas. Ele mostrou a universitarios uma série de fotografias com imagens positivas, negativas e neutras, como, por exemplo, um bebé sor- - ridente, um rosto deformado ou um edificio qualquer. Em um teste pos- terior, os estudantes reconheceram mais as fotografias positivas e negati-- vas do que as neutras, e reconheceram mais ou menos o mesmo nimer de imagens negativas e positivas. Mas quando Ochsner investigou em maior profundidade a razao por que os participantes do experimento” afirmavam reconhecer determinada imagem, comegaram a surgir dife- rengas entre as memorias positivas e negativas. Quando reconhecian fotografias positivas, muitos tendiam a dizer que as imagens pareciam familiares; quando reconheciam fotografias negativas, elas diziam q tinham recordagées detalhadas e especificas do que pensaram e sentiram ao ver a imagem pela primeira vez. Se temos a tendéncia a lembrar even- tos negativos mais detalhadamente do que os positivos, entao € possivel que corramos 0 risco especifico de recordar, com persisténcia, os detalhes dolorosos de determinadas experiéncias que gostariamos de esquecer. QUANDO A MEMORIA E DOLOROSA A possibilidade de sofrermos cronicamente de persisténcia da meméri depende até certo ponto do que acontece apés uma experiéncia adversa. Com 0 passar do tempo, a sensagio de desconforto causada por eventos desagrad4veis normalmente desaparece. Todos nés passamos por expe-_ riéncias dificeis — a morte de um ente querido, a rejeic¢io no amor, U problema no trabalho — que causam imensa dor nos dias ou seman apés a ocorréncia. Imediatamente apés essa experiéncia, revivemos © incidente doloroso a ponto de ficarmos obcecados, mas o pior da dot acaba passando. Evidéncia recente indica que, na verdade, as emog6' negativas podem desaparecer mais rapidamente que as positivas. Ex mine um estudo no qual universitarios escreveram suas experiénci O pecado da perststéncia 203 cotidianas em um diario, avaliando se os eventos, entre outras caracteris- ticas, eram agrad4veis. Esses estudantes tentaram entao se lembrar dos eventos e emogées associados em diferentes perfodos, variando de trés meses até quatro anos apés a ocorréncia. As memérias de emogGes desa- gradaveis desapareciam mais rapidamente que as de emogées agradaveis. Coisas que nos fagam recordar experiéncias dificeis podem retardar 0 esquecimento de emogées dolorosas. O grande escritor Gabriel Garcia Marquez comega 0 livro O amor nos tempos do célera com um tributo a uma recordagao desse tipo: “Era inevitavel. O odor de améndoas sempre o fazia lembrar 0 destino do amor nao correspondido.” A recordagao con- tinua pode reforgar a lembranga de detalhes perturbadores de uma expe- riéncia até o ponto em que a persisténcia se torna intoleravel. Repérteres, torcedores e os meios de comunicagao perseguiram Donnie Moore por meses apés sua jogada infeliz contra Henderson, tornando impossivel que ele encontrasse alivio no efeito benéfico da simples passagem do tempo. O colega de equipe Brian Downing responsabilizou os meios de comunicagao por fazer Moore lembrar constantemente 0 seu erro. “Vocés destrufram a vida de um homem por causa de uma jogada”, comentou Downing, pesaroso apés saber do suicidio de Moore. “S6 se ouvia falar, s6 se lia a respeito de uma coisa: uma jogada.” As coisas que nos fazem lembrar experiéncias desagradaveis também podem nos levar a recorrer ao que os psicdlogos chamam de “pensamen- to antifato”, ou seja: a criagdo de cenas alternativas do que poderia ter sido ou deveria ter sido. Qualquer pessoa que tenha investido no merca- do de agdes provavelmente est4 familiarizada com o pensamento antifa- to. Vocé acompanha o desempenho de uma agao favorita, 4 medida que seu prego sobe constantemente. Afinal, vocé toma coragem para investir €, em pouco tempo, suas piores apreensées se confirmam: o mercado comega a retrair e vocé perde 20% do seu investimento em poucos dias. A medida que vé, desesperado, as agdes cairem, vocé se enche de arrepen- dimento por causa da sua acio precipitada. “Bastava esperar um pouco mais para ver o prego das agdes despencar”, vocé se deprecia, ao lembrar Os momentos que antecederam sua decisdo de jogar dinheiro fora com agoes. Vocé acorda no meio da noite, ruminando a decisao, imaginando como estaria feliz se tivesse esperado s6 mais um ou dois dias para inves- tir. Esse tipo de pensamento antifato pode facilmente nos levar as distor- g6es de compreensio tardia que estudamos no Capitulo 6. 204 OS SETE PECADOS DA MEMORIA Eu passei por um episédio inquietante de pensamento antifato em uma recente viagem para uma conferéncia na Florida. Depois de progra- mar minha volta a Boston para uma noite de sexta-feira, ouvi um bole- tim meteorolégico prevendo uma enorme tempestade, que certamente resultaria no cancelamento do meu v6o. Sera que eu deveria sair da con- feréncia mais cedo, para tentar me antecipar A tempestade e viajar para Boston, ou deveria aproveitar mais um dia ou dois de sol na Florida? Depois de alguma hesitagdo, resolvi antecipar o retorno para Boston. A estratégia quase deu certo: o aviao foi autorizado a aterrissar em Boston € parecia que eu ia chegar em casa antes da tempestade. Mas as condigées se deterioraram rapidamente, o piloto nao conseguiu aterrissar e acaba- mos fazendo um pouso de emergéncia em Maine. Depois, eu tive de suportar uma odisséia de 18 horas de espera, outra aterrissagem fracassa- da, um desvio para o aeroporto Kennedy, de Nova York e, finalmente, uma viagem de limusine 4 noite para Boston, junto com varios outros passageiros irritados. “Por que nao fiquei no sol?”, eu continuava a me perguntar a medida que a situag4o piorava. Ao refletir sobre aquele momento no passado em que decidi me antecipar A tempestade, imaginei-me ao telefone falando com a companhia aérea, tomando a decisdo (agora sabia) de que iria permanecer na Florida um pouco mais. O pensamento antifato persistente pode ser bem mais sério quando as pessoas acham que poderiam ou deveriam ter agido para evitar uma tra- gédia. Amigos e parentes de pessoas que cometem suicidio, por exemplo, so freqiientemente afligidos por pensamentos antifato persistentes sobre 0 que poderiam ou deveriam ter feito para impedir que um ente querido acabasse com a prépria vida. “Alguns sobreviventes se culpam por n4o ter intervindo”, conclui o especialista britanico em suicidio Mark Williams, “e repassam sem parar o que poderiam ter feito para impedir a tragédia”. Mesmo depois que um ente querido morre de uma doenga incur4vel, os familiares em luto “ficam reexaminando o passado, repassando na mente Os eventos anteriores 4 morte, muitas vezes relembrando sem parar inci- dentes, como se, ao fazer isso, pudessem alterar os acontecimentos”. Uma vitiva, paralisada pela persisténcia do pensamento antifato, comentou: “Penso sem parar naquela tltima semana no hospital. Parece fotografada na minha mente.” Coerentes com esses exemplos da vida real, estudos de laboraté6rio revelam que experiéncias negativas resultam em niveis mais altos de pensamentos antifato do que as experiéncias positivas. O pecado da persisténcia 205 As mem6rias persistentes e 0 pensamento antifato quase sempre acompanham eventos tragicos como a morte de um ente querido. Mas as reagdes aos muitos tipos de decepgGes e fracassos dependem, pelo menos em parte, de experiéncias prévias que definem a maneira como vemos a nds mesmos: mesmo as recordagGes incessantes de uma experiéncia desagradavel nao precisam resultar, necessariamente, no pensamento antifato paralisante ou no tipo de persist€ncia que debilitou Donnie Moore. Examine o caso de Jean Van de Velde. Esse profissional do golfe francés, antes desconhecido, cativou a atencdo internacional em julho de 1999 quando liderava a iltima rodada do prestigiado Torneio Aberto Britanico. Tendo chegado ao 18° tee, Van de Velde mantinha uma vanta- gem de trés tacadas e parecia ter a vitéria garantida, precisando apenas evitar um desastre total para ganhar. Em vez disso, ele desmoronou: enquanto milhées de torcedores de golfe assistiam incrédulos, ele deu tacadas a esmo, fora do gramado e na Agua. Van de Velde ficou empatado com dois outros jogadores e acabou perdendo o torneio, na derrota mais surpreendente ja vista em um torneio de golfe. Reconhecendo a magnitude do desastre, no dia seguinte, os jornais de Londres proclamavam que a lembranga amarga de sua derrota iria atormentar Van de Velde pelo resto da vida. Mas nfo foi isso o que acon- teceu. Embora abalado e decepcionado nas horas e dias apés a perda do torneio, Van de Velde nao se tornou um prisioneiro da persisténcia da memoria da maneira como aconteceu com Donnie Moore. Ele tampou- co entrou no processo incessante de pensamento antifato, imaginando o que poderia ou deveria ter feito no fatidico 18° tee. Em vez disso, ele explicou a razdo de algumas das decisées polémicas que tomou — deci- sdes que nao tiveram o resultado desejado — e colocou a experiéncia em uma perspectiva mais ampla, ressaltando que o golfe € um jogo e apenas uma parte da sua vida. Van de Velde também apreciou a fama que adqui- nu ao participar de um evento de estatura internacional. “Talvez seja o Meu temperamento”, Van de Velde comentou semanas mais tarde, quan- do repérteres lhe perguntaram como ele conseguia enfrentar a situagao tao bem e evitar reviver sem parar o que tinha acontecido no ¢ee final. “Eu no vivo no passado.” Os destinos opostos de Donnie Moore e Jean Van de Velde nos fazem lembrar que a persisténcia prolongada nao é uma conseqiiéncia inevita- vel de todas as decepgdes: a maneira como reagimos A adversidade, ¢ se 206 OS SETE PECADOS DA MEMORIA nos tornamos perseguidos pela persisténcia, depende de como avaliamos _ € interpretamos 0 que acontece conosco. Os psicélogos se referem As _ compilagées de experiéncias passadas que afetam as avaliagées do pre- sente como “auto-esquemas”. Construfdos ao longo dos anos e décadas, i 0s auto-esquemas retinem conhecimento avaliatério de nossas propria um auto-esquema que contém informagées relevantes, baseadas e experiéncias individuais e numa combinagdo de imagens de esta4gi diferentes da sua vida. As pessoas emocionalmente sadias tendem a esco- Iher mais palavras positivas do que negativas, enquanto individu deprimidos escolhem mais palavras negativas do que positivas. A depre: sdo esta associada a um auto-esquema extremamente negativo, o qu resulta em uma visdo crénica de si mesmo como um individuo desaj tado ou com falhas. O grande poeta russo Alexander Ptishkin captou algumas emog6 marcantes associadas 4s memérias intrusivas, que reforcam a imagem d um roteiro de vida ou auto-esquema negativo: E na va escuriddo vem a mordida De todas as serpentes em chama do remorso; Sonhos agitados; e infelicidades aflitivas Fervilham na minha alma oprimida E a Meménia ante os meus olhos vigilantes Com a mfo silenciosa desenrola sua longa lista. Entao, como que com repugnancia, examino os anos, Tremo e maldigo o dia em que nasci, Lamento amargamente e amargamente derramo lagrimas Mas no posso apagar o infeliz roteiro. Um auto-esquema negativo pode facilmente levar 4 depressao por ‘ que oferece uma rica rede de conhecimento que facilita a codificaga retengiio posterior de experiéncias negativas. Quando pacientes depri dos avaliam se palavras como fracasso ou feliz os descrevem com precis mais tarde eles se lembram mais das palavras negativas, e nao das pos vas, do que as pessoas saudaveis. A psicéloga Patricia Deldin, da Univ sidade de Harvard, descobriu que individuos deprimidos e nao depri dos apresentam padres diferentes de atividade elétrica do cér O pecado da persisténcia 207 durante a codificagdo de informagées positivas e negativas. Pacientes deprimidos, em relagao a pessoas saudaveis, apresentam reagées elétricas maiores a palavras negativas do que positivas. Essas diferengas, que ocor- rem nos breves momentos em que uma lembranga € criada, criam condi- ces favoraveis 4 lembranga persistente de experiéncias negativas. Isso, por sua vez, pode intensificar o sentimento de depressao, contribuindo para um ciclo de autoperpetuag4o potencialmente vicioso. Nao sabemos se Donnie Moore tinha um auto-esquema negativo fora do comum, que o tornou vulneravel a persisténcia. Nao sabemos tampouco se Jean Van de Velde tem um auto-esquema positivo excepcio- nal, que o protege contra o sétimo pecado da meméria. Mas sabemos que pacientes que sofrem de depress4o clinica tem uma propensao especial 4 persisténcia. Estudos realizados pelo psicdlogo Chris Brewin e equipe na Universidade de Londres revelaram que pacientes com depressao estao muito mais propensos a ter memé6rias intrusivas de experiéncias negati- vas do que as pessoas saudaveis. Em um estudo, por exemplo, a equipe de Brewin descobriu que quase todos os pacientes que ficaram deprimi- dos por causa de uma morte recente, problemas de satide ou um inciden- te de abuso sexual ou agressdo acusaram ter lembrangas involuntarias e persistentes relacionadas ao evento causador da depress4o. Brewin também estudou as memérias intrusivas em pessoas que haviam recebido recentemente o diagnéstico de cancer. Alguns desses individuos entraram em profunda depress4o, outros ficaram discreta- mente deprimidos e outros nao entraram em depressdo. Os pacientes com casos sérios de depress4o acusaram um numero bem maior de Memorias intrusivas — a maioria relacionada com doenga, lesdes e morte ~ do que os pacientes discretamente deprimidos e os nao deprimidos. Essa persisténcia intensificada pode ser atribufda ao humor negativo que Prevalece durante a depressao profunda. Estudos de laboratério demons- ‘raram que a maneira como a pessoa se sente no presente influencia os Upos de memérias que costuma ter: quando estamos felizes, as lembran- Sas de experiéncias positivas nos vém 4 mente mais facilmente do que Tecordagées de experiéncias negativas; 0 oposto tende a ocorrer quando “stamos tristes. As memérias intrusivas dos pacientes com cancer podem ‘também estar relacionadas, para comegar, aos auto-esquemas negativos que predispdem os pacientes a entrar em depresso: esses pacientes Podem ter um arquivo maior de lembrangas negativas do que os pacien- 208 OS SETE PECADOS DA MEMORIA tes que se mostram mais fortes emocionalmente ao receber um diagnés- tico de cancer. Mais uma vez, existem condigées para um ciclo de auto- perpetuagdo no qual auto-esquemas e sentimentos negativos criam um solo fértil para a evocagdo persistente de lembrangas negativas. Isso, por sua vez, intensifica o grau da depressao. A psicéloga Susan Nolen-Hoeksema e equipe, da Universidade de Michigan, descobriram que pessoas com temperamento “ruminativo”, que se concentram de forma obsessiva nos seus sentimentos negativos do presente € em eventos negativos do passado, correm mais risco de ficar — paralisadas em tais ciclos de autoperpetuag4o destrutivos. As pessoas com — temperamento ruminativo sofrem de perfodos mais longos de depressao do que aqueles que nao refletem muito sobre 0 passado. Antes do terre- moto de 1989 que abalou o norte da regiao da baia da Califérnia, Nolen- Hoeksema avaliou a tendéncia 4 ruminagao em um grupo grande de uni- versitarios. Nos dias e semanas apés o terremoto, ela estudou o humor ea reaga4o emocional desses mesmos universitdrios. Os estudantes que apre- sentaram tendéncia 4 ruminag4o antes do terremoto eram mais passiveis — de estarem deprimidos semanas apés o desastre do que os outros estudan- tes. A maior intensidade de ruminag&o depois do terremoto foi associada — a perfodos de depress4o mais longos e mais severos. Nolen-Hoeksema — observou algo semelhante entre os atendentes que assistem pacientes em estdgios terminais de doenga, os quais correm sérios riscos de depressao. Os atendentes que tendem a refletir sobre eventos negativos do presente ou do passado ficam mais seriamente deprimidos no curso de uma doen- ; ga fatal do que aqueles que nao apresentam essa tendéncia. A equipe de Nolen-Hoeksema recentemente fez uma ligacao ainda mais forte entre a ruminagio, a depress4o e a memoria. Estudantes uni- _ versitarios deprimidos e nao deprimidos foram instruidos a completar dois tipos de tarefas. Na tarefa de ruminagio, os estudantes se concentra- vam nos humores do presente, nivel de energia e em eventos do passado | ; que os influenciaram. A tarefa de distragio os induzia a desviar a atengao de seus humores e preocupagoes, instruindo-os a imaginar o rosto da Mona Lisa ou nuvens se formando no céu. Os estudantes foram entéo | orientados a recordar acontecimentos autobiograficos do passado. No — caso dos estudantes que j4 estavam passando por um periodo de depres- s4o, a tarefa de ruminagao provocou a recordagao de mais episddios auto- biogrdficos negativos do que a tarefa de distragdo. , iol aN O pecado da persisténcia 209 A tendéncia 4 ruminag4o pode explicar algumas das diferengas entre as reagdes de homens e mulheres 4 depressao. Nolen-Hoeksema acom- panhou casos de depressao em homens e mulheres por um més. Ela constatou que as mulheres tém uma propensdo maior do que os homens a ruminar sobre seu estado de depressdo. Os homens tém uma tendéncia maior a fazer coisas que desviem a atengao dos humores negativos, como ficar mais tempo no trabalho ou encontrar um passatempo. Altos niveis de ruminagio contribufram para perfodos mais longos e mais severos de depress4o nas mulheres do que nos homens. Novamente, nesses casos, 0 ciclo vicioso de ruminagao, meméria e depress4o entrava em operacao. As mulheres entravam em ruminagio, procurando buscar as causas da depressao e, dessa forma, trazendo 4 tona um grande ntimero de mem6- rias negativas: experiéncias do passado em que se sentiram desajustadas ou em que viram a si mesmas sob uma luz negativa. Essas memérias intensificavam sentimentos que j4 eram negativos, levando a uma depressao mais prolongada e dolorosa. Ao buscar atividades de distracao, os homens escapavam desse ciclo negativo. E importante diferenciar entre ruminar uma experiéncia negativa e revel4-la a outros. A ruminagao envolve uma espécie de reciclagem obsessiva de pensamentos e memorias relativas ao estado ou situagdo atual da pessoa, o que leva a um resultado mais negativo. Entretanto, revelar experiéncias dificeis a outra pessoa pode ter efeitos profundamen- te positivos. O psicélogo James Pennebaker e equipe da Universidade do ‘Texas realizaram estudos nos quais as pessoas revelaram experiéncias desagradaveis, escrevendo ou falando sobre elas durante varios dias. Os tesultados dessa experiéncia foram surpreendentemente benéficos: humor mais positivo, melhora nas funcées do sistema imunolégico, menor necessidade de consultas médicas, promogées no trabalho, redu- ¢ao0 do niimero de faltas ao trabalho e até mesmo um nivel maior de Tetorno ao vinculo empregaticio apés perda do emprego. Embora as TazGes exatas desses beneficios ainda n4o sejam claras, a descoberta indi- Ca que 0 ato de verbalizar emog6es turbulentas interfere no funciona- mento de sistemas fisiolégicos importantes. A diferenga entre verbalizar experiéncias de forma Util e ruminar €ssas experiéncias incessantemente fica aparente em casos de depressao Profunda ou suicida. Os pacientes que sofrem de depressao suicida Podem ter dificuldade de articular suas experiéncias com coeréncia por- 210 OS SETE PECADOS DA MEMORIA que eles lembram e ruminam com persisténcia 0 que o psicélogo britani- co Mark Williams chama de “memérias excessivamente gerais”. HA varios anos, Williams comegou a conduzir experimentos sobre memérias autobiogrdficas em pacientes com depressao suicida, usando uma técni- ca largamente empregada de palavras-chave. Tente lembrar um inciden- te especifico da sua vida com cada uma das seguintes palavras: feliz, tris- te, zangado e bem-sucedido. A maioria das pessoas nao tem dificuldades de oferecer recordagées detalhadas de experiéncias especificas. Em rela- cao a feliz, por exemplo, eu me lembrei de como fiquei satisfeito ao ver recentemente minha filha Hannah marcar seis pontos num jogo de bas- quete na escola. Em relacao a triste, eu lembrei como uma conhecida minha ficou quando perdeu uma série de slides que eu usei em um semi- nario na sua universidade. Williams reparou que pacientes com depressao profunda raramente conseguem ter memérias de incidentes especificas em resposta a palavras-chave negativas ou positivas — apesar de, conforme vimos antes, os resultados dos estudos de Kevin Ochsner indicarem que a tendéncia natural é lembrar eventos negativos em grande detalhe. Em vez disso, esses pacientes fazem descrig6es abreviadas, do tipo “quando eu faco as coisas erradas”, ao ver a palavra ¢riste, ou “meu pai”, ao ver a palavra ale- gre. Williams observou que a recordagao persistente de memérias exces- sivamente gerais pode contribuir para que a pessoa por fim decida come- ter o suicidio. Um acontecimento desagrad4vel, que acaba sendo a gota — d’4gua para o suicidio, pode estimular a recordagdo e a ruminagao de ~ lembrangas negativas excessivamente gerais, do tipo “sempre fui um fra- casso” ou “ninguém nunca gostou de mim”. O paciente pode ser atrope- _ lado pela recordago persistente de tais descrigdes autodestrutivas, que — dominam sua mente e acabam por leva-lo ao suicidio. Estudos da atividade cerebral em pacientes deprimidos fornecem — algumas pistas sobre os possiveis fundamentos para a persisténcia dessas__ memoérias excessivamente gerais. Varios estudos descobriram que — pacientes deprimidos apresentam atividade relativamente reduzida em partes do lobo frontal esquerdo, principalmente na superficie lateral (a regido dorsolateral frontal). Isso ocorre quando est4o descansando ou desempenhando tarefas cognitivas. Pacientes que sofrem derrames no lobo frontal esquerdo com freqiiéncia se mostram deprimidos, enquanto pacientes com les4o na regio frontal direita normalmente nao ficam O pecado da persisténcia 211 deprimidos. As regides afetadas no lobo frontal esquerdo podem desem- penhar um papel importante na produg4o de emogées positivas. Do ponto de vista da meméria, estudos de neuroimagem indicam que regides semelhantes no cértex pré-frontal esquerdo tém a fungao de refletir sobre experiéncias passadas e recordar aspectos especificos de acontecimentos. Em estudos feitos pela psicédloga Marcia Johnson e equipe, da Universidade de Yale, a atividade no cértex pré-frontal esquerdo era mais intensa quando as pessoas recordavam detalhes espe- cificos de experiéncias passadas. Se pacientes com depressao profunda tém mais dificuldade em ativar regides importantes do lobo frontal esquerdo, eles podem estar particularmente vulnerdveis A recordacdo persistente de lembrangas muito gerais. Um individuo normal pode combater a recordaga4o de memorias negativas quando recorda uma experiéncia positiva especifica. Se, apds ter um manuscrito rejeitado para publicagao, eu me lembrar de outras rejeigdes anteriores, acabo concluin- do que sou um péssimo pesquisador. Mesmo assim, ainda posso criar memorias especfficas de manuscritos que revisores de outras revistas cientificas aceitaram com entusiasmo. Apoiado nessas memérias positi- vas, comego a me sentir melhor em relagdo 4 minha capacidade e resolvo revisar o estudo rejeitado para tentar public4-lo em outro lugar. Mas, se estou deprimido e, portanto, incapacitado de criar lembrangas especifi- cas, posso acabar sendo dominado por memérias intrusivas excessiva- mente gerais que coincidem com meu humor de desespero (“sempre tive problemas para que meus estudos fossem aceitos pelas publicacdes mais importantes”, “mais uma vez, sinto-me fracassado”), e isso vai agravar meu sentimento de desespero. E bem possfvel que um lobo frontal €squerdo prejudicado contribua para esse ciclo destrutivo. A persisténcia, portanto, prospera em um clima emocional de decep- §Ao, tristeza e arrependimento. Mas, a fim de avaliar a forca maxima do Setimo pecado, precisamos voltar nossa atengao para o mundo das expe- n€ncias traumAticas. TERROR NO PASSADO Em Sacai... 0... terremoto foi tao terrfyel que muitos ficaram despo- jados de seus sentidos; e outros, tao espantados com aquele espetacu- lo horrfvel, nao sabiam o que tinham feito. Blasius, por sua parte, um 212 OS SETE PECADOS DA MEMORIA reporter cristao, ficou tao amedrontado que, mesmo dois meses depois, ainda n4o tinha voltado ao que era e nao conseguia tirar q lembranga da mente. Muitas vezes, nos proximos anos, ou até mesmo por todas as suas vidas, eles vao voltar a tremer com a lem- branga ou pensamento do terrivel acontecimento. Em seu tratado classico do século XVII, The Anatomy of Melancholy, 0 j escritor britanico Robert Burton descreve as devastadoras conseqiiéncias psicolégicas de um terremoto na Antigiiidade. A experiéncia de Blasius e outros em Sacai foi repetida intimeras vezes ao longo dos séculos e milé nios: experiéncias traumAticas quase invariavelmente resultam e memérias intrusivas persistentes de um acontecimento terrivel. No século XX, os efeitos prejudiciais de experiéncias traumaticas n meméria € outras fungdes mentais foram reconhecidos pela primeira ve: durante a Primeira Guerra Mundial. Médicos comegaram a tratar d casos de “neurose”, nos quais soldados expostos a situagdes de risco di morte acabaram incapacitados, afetados por pesadelos recorrentes memiérias intrusivas de seus contatos com a morte. Apés a guerra, governo britAnico criou uma comiss4o para determinar se soldados que tinham sido executados por covardia teriam, na realidade, sofrido d neurose. A Segunda Guerra Mundial registrou uma nova onda de cas de neurose. Mas o que hoje chamamos de sindrome do estresse po’ traumatico sé foi amplamente aceita e reconhecida formalmente no mi médico apés o fim da Guerra do Vietna. Hospitais e outras organizago de assisténcia se viram inundados com casos de veteranos incapacita de recomegar suas vidas na familia, e de se reintegrarem A sociedade po causa das memorias intrusivas da guerra e dos pesadelos recorrent sobre batalhas. Memérias persistentes sdo uma conseqiiéncia séria de quase to! tipo de experiéncia traumatica: guerra, agress6es violentas ou estupr abuso sexual, terremotos e outros desastres naturais, tortura e deten em condicées brutais e acidentes automobilisticos. Embora tais aconted) mentos paregam ser ocorréncias relativamente raras, estudos epidemio- légicos indicam que mais da metade das mulheres e 60% dos home passam por pelo menos uma experiéncia traumatica em suas vidas. memérias intrusivas que resultam dessas experiéncias normalmente § manifestam em imagens vividas, algumas vezes preservando em detal i O pecado da persisténcia 213 minimos as caracteristicas de um trauma que os sobreviventes querem esquecer. Embora as recordag6es intrusivas possam ocorrer com qual- quer um dos sentidos, as lembrangas visuais s40, de longe, as mais comuns. A psicéloga Anke Ehlers, de Oxford, estudou as caracteristicas perceptuais das memérias intrusivas em pessoas que ficaram traumatiza- das por abuso sexual ou acidentes de transito. Em ambos 0s tipos de trau- ma, as recordag6es visuais predominavam em quase todos os casos, com algumas das pessoas afetadas acusando lembrangas de “imagens tinicas” de incidentes traumAticos. Uma proporgdo semelhante de pessoas acu- sou ter recordagées de imagens miltiplas, como “cenas de filme”. Outros sentidos também desempenharam certo papel: mais da metade dos casos de abuso sexual e acidentes de transito tiveram memé6rias intrusivas des- pertadas por odores, sons ou sensagées no corpo. A sindrome do estresse pés-traumatico, SEPT, est4 muitas vezes ligada 4 depress4o. Chris Brewin fez uma comparagio direta entre as memiérias intrusivas de pacientes traumatizados e as de pacientes depri- midos que nao haviam tido um trauma especifico. Pacientes com SEPT acusaram a ocorréncia de memorias intrusivas e stibitas com mais fre- qiiéncia do que pacientes deprimidos. Mas a qualidade das memérias era, de forma geral, parecida nos dois grupos. Os pacientes traumatiza- dos, porém, relataram experiéncias mais raras de dissociag4o, nas quais eles se sentiam observadores assistindo a um acontecimento com outra Pessoa. Estudos com sobreviventes de trauma indicam que quase todas essas Pessoas tem memérias intrusivas nos dias e semanas apés a ocorréncia do ‘rauma. Mas, como vimos com Jean Van de Velde, nem todo mundo con- tnua sendo afetado por recordagées indesejadas por meses, anos ou décadas. Aqueles que continuam tendo memérias intrusivas por muito -_ apés um evento traumatico, e por causa disso nao conseguem vol- * 4 vida cotidiana normal, possivelmente so diagnosticados como Pacientes com sindrome do estresse pds-traumatico. Para algumas pessoas, a forga de um evento traumiatico € tio grande Me elas ficam “presas” ao passado. Estudos sobre veteranos da guerra do “tna € vitimas de abuso sexual indicam que os individuos que conti- Prisioneiros do Uh oaiiaa por anos apés um acontecimento traumé- » *Presentam um nivel mais alto de angustia psicolégica do que aque- " que se concentram no presente e no futuro. Altos niveis de anguistia 214 OS SETE PECADOS DA MEMORIA psicolégica, por sua vez, reforgam o acorrentamento ao passado, inician- observado em casos de depress4o. A possibilidade de se ficar preso ao passado vai depender até certo ponto da maneira como uma pessoa reage no perfodo imediato a um trauma. Lembre-se dos terrfveis incéndios florestais no sul da Califérni e Malibu-Topanga, no distrito de Los Angeles, poucos dias apés o desa: tre, e fizeram um acompanhamento do caso seis meses e um ano apés. primeira entrevista. Imediatamente apés os incéndios, alguns sobrevi- ventes se queixaram de problemas de orientagio no tempo: eles sentia: como se o tempo tivesse parado ou como se o presente n4o fosse um: seqiiéncia do passado para o futuro. As pessoas que apresentaram nivel elevados dessa “desintegragéo temporal” imediatamente apés os incén evento seis meses mais tarde. Um ano apés os incéndios, esses mesmo : individuos sentiam mais angtstia do que as pessoas que conseguiam $ concentrar mais no presente e no futuro. Portanto, a desintegragao te poral em reacdo a um trauma era uma indicagao de problemas poster res nas pessoas que continuavam presas ao passado, prisioneiras d memOrias persistentes. Problemas psicolégicos futuros também podem acontecer quando pessoa tenta evitar pensar sobre um acontecimento traumatico imedia' mente apés esse evento. A dor causada por uma experiéncia traumatic pelas decorrentes memérias intrusivas associadas obviamente leva a pessoas a tentar evitar lembrangas do incidente e, se possivel, reprimit pensamentos e memérias relacionadas ao trauma. Examine o caso d protagonista do livro de Sarah Van Arsdale, Toward Amnesia, de 19 Libby foi abandonada recentemente pelo amante ¢ esta tentando resolver as memoérias persistentes do relacionamento. Ela elabora um plana d fuga psicolégica das memérias que a atormentam constantemente. F no Dia dos Mortos de Guerra que decidi atingir a amnésia”, comega historia. Para chegar a esse objetivo, ela comega simplesmente aconsé Ihando a si mesma a esquecer: “Eu entoava 0 refrao esquega, esque¢ O pecado da persisténcia 215 esquega...” Mas Libby acaba dirigindo por centenas de quilémetros até o Canada, para fugir as lembrangas sempre presentes do relacionamento € encontrar um reftigio que a livrasse das suas memérias. Embora a perspectiva de se esquecer um trauma ou decepgao parega confortadora, tal estratégia pode dar errado. Considere um grupo de pes- soas que correm alto risco de memérias intrusivas traumAticas: profissio- nais dos servigos de emergéncia. Paramédicos (que trabalham em ambu- lancias), bombeiros ¢ profissionais de socorro em desastres sao freqiien- temente expostos a acontecimentos perturbadores, algumas vezes opres- sivos. Em um estudo sobre paramédicos, Anke Ehlers e equipe descobri- ram que quase todos tém algumas memérias intrusivas relacionadas ao trabalho. As fontes mais comuns de memérias intrusivas sdo acidentes envolvendo morte de criangas ou conhecidos, mortes violentas, queima- duras s€rias ou tentativas fracassadas de salvamento de vidas. Mas, ape- sar da presenga constante de memérias traumaticas persistentes entre os paramédicos, apenas um em cada cinco dos profissionais investigados por Ehler sofria de SEPT. Muitas vezes esses individuos inicialmente reagiam tentando evitar lembrar o trauma. Eles tendiam a interpretar suas recordagGes traumAaticas como um sinal de que estavam ficando lou- cos. Em vez de resolver aceitar 0 evento traumatico logo no comeco, esses profissionais esperavam que tudo passasse, algumas vezes tentando alte- rar ou desfazer o passado com fantasias. Entretanto, com o passar do tempo, os esforgos para evitar as memorias angustiantes resultaram ape- Nas em mais ruminac4o e angtistia. Essas observagées sdo bem coerentes com estudos pioneiros de labo- tatorio conduzidos pelo psicélogo Daniel Wegner, de Harvard, sobre os efeitos paradoxais ou irénicos dos esforgos para se reprimir pensamentos indesejados. Nos experimentos de Wegner, as pessoas sido orientadas a tentar evitar pensar sobre um assunto especiffico: uma coisa neutra, como um urso branco, ou algo com significado pessoal, como um ex-amante. Wegner descobriu que, apés um periodo de repressdo ao pensamento, os Participantes do experimento em geral apresentavam um “efeito rebote”: Posteriormente, eles pensam sobre o assunto proibido com mais intensi- dade e freqiiéncia do que ocorreria se nunca tivessem tentado reprimir Seus pensamentos. “Embora evitar pensar sobre uma coisa dolorosa Possa parecer uma estratégia razodvel para se superar uma dificuldade”, Comenta Wegner, “tentar esquecer pode ndo apenas prolongar a infelici- 216 OS SETE PECADOS DA MEMORIA dade, mas intensificd-la”. A teoria de Wegner € apoiada por outros estu- dos, segundo os quais as pessoas que assistem a filmes perturbadores e s4o orientadas a reprimir pensamentos sobre o que viram tém mais lem- brangas involuntérias sobre o filme do que as que nao tentaram reprimir seus pensamentos. E comum que sobreviventes de traumas se esforcem para evitar pensar sobre a experiéncia desagradavel. Mas é bem mais pos- sivel que esses esforgos intensifiquem, em vez de diminuir, problemas posteriores com memérias persistentes. Uma possivel explicagao para isso € que, ao se reviver um evento | traumAtico em condigées seguras e controladas, é possivel amortecer um pouco da dor. A repetigao de qualquer estimulo ou experiéncia resulta no _ que os pesquisadores chamam de hadituagao, ou seja: uma redugio da reacdo fisiolégica ao estimulo. Se eu tocar um som alto a intervalos regu- | lares € registrar sua reacao fisiolégica, a principio vocé vai apresenta’ uma forte reag4o ao som e depois, gradativamente, essa reagdo vai dimi- nuindo. O mesmo se aplica a memérias traumaticas: a vivéncia repetida de memérias traumAticas em condigdes de seguranga pode diluir a rea- ¢ao fisioldgica inicial ao trauma. Os esforgos para reprimir memérias de — ¢do. Recordagées reprimidas, portanto, acumulam uma carga adicional que acaba por aumentar a persisténcia. Portanto, talvez ndo seja surpreendente que os métodos terapéutico de combate a persisténcia em sobreviventes de traumas quase invariavel- mente se concentram em fazer o paciente revivescer os eventos traumatt cos, em condigées controladas, durante a terapia. As técnicas que se reve lam mais eficazes so as de exposigdo imaginaria: os pacientes sa0 expos tos repetidamente a estimulos associados a seus traumas e lembram e revi vem imagens vividas dos acontecimentos. Em princfpios da década ! 1980, o psicdlogo Terrence Keane e equipe documentaram que a tera de exposigao reduzia os niveis de ansiedade e memérias intrusivas om veteranos da guerra do Vietna. Também foram documentados efeilid parecidos em pacientes traumatizados por abuso sexual. Estudos poste riores compararam diretamente a terapia de exposigdo imaginaria CO outros tipos de tratamento, como aconselhamento. O grupo de Keane outra equipe coordenada pela psicéloga Edna Foa constataram, que terapia de exposigio produzia a maior redugao na freqiiéncia de mem rias intrusivas, flashbacks e sintomas associados 4 SEPT. O pecado da persisténcia 217 Recentemente, o psiquiatra Stevan Weine e equipe descreveram um método relacionado para a redugao da persisténcia em pessoas traumati- zadas por terrorismo de Estado. Muitas vezes, os refugiados que escapa- ram do genocidio na Bésnia-Herzegovina apresentavam sintomas classi- cos de SEPT, inclusive memérias intrusivas perturbadoras. Weiner e equipe estao explorando 0 que chamam de “terapia de testemunho”, na qual sobreviventes contam e revivem suas experiéncias traumaticas e ten- tam relacion4-las aos traumas sofridos por outras pessoas na sua comu- nidade. O grupo de Weine recolheu depoimentos de sobreviventes em um arquivo de histéria oral, que foi compartilhado por outros pacientes como parte do processo de terapia de testemunho. “Nesse contexto, no qual os sobreviventes compreendem explicitamente que suas recorda- gOes estao se tornando parte de uma investigacio coletiva”, observou Weine, “o testemunho pode reduzir 0 sofrimento individual, mesmo quando os sobreviventes nao buscaram especificamente tratamento para seu trauma”. Resultados preliminares indicam que a terapia de testemu- nho contribui de fato para reduzir os niveis de memérias intrusivas em refugiados traumatizados da Bésnia. Essas descobertas so coerentes com os estudos de James Pennebaker relativos aos efeitos benéficos da revelagao de decepcées, perdas e outras experiéncias negativas. A curto prazo, a persisténcia é praticamente uma Conseqiiéncia inevitavel de experiéncias dificeis. Mas, a longo prazo, a maneira mais eficaz de combater a persisténcia € enfrentar, revelar e inte- 8rar essas experiéncias. AS RAIZES DA PERSISTENCIA Para uma melhor compreensao da raz4o por que eventos traumaticos Tesultam em uma persisténcia tao forte, devemos examinar os sistemas Neurais responsdveis pela recordagao do trauma. Um dos elementos fun- damentais nas teagoes do cérebro a eventos traumaticos é uma estrutura Pequena, amendoada, chamada amigdala. Localizada nas profundezas das regides internas do lobo temporal, a amigdala fica ao lado do hipo- Campo, mas desempenha fungdes bem diferentes do seu vizinho. Serve que as pessoas, quase invariavelmente, ficam incapacitadas de _ tlar € evocar memérias episédicas de experiéncias pessoais ao sofrerem lesdes no hipocampo e nas dreas corticais que o cercam. Lesées na amig-

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