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O adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o processo de

responsabilização na perspectiva da psicanálise.

*Marina Soares Otoni

Desde que foi criada uma legislação especifica para os adolescentes, proposta
pelo direito infanto-juvenil no Brasil, promulgada em 1990 com o advento do Estatuto
da Criança e do Adolescente, que reconheceu não só os direitos dos adolescentes, mas
também os seus deveres, principalmente no que se referem às situações em que um
jovem se envolve com a prática infracional, profissionais de diversas áreas tem sido
chamados a operar no campo jurídico, do qual participavam, até então, apenas os
operadores do direito e a polícia.
Entre os profissionais convocados, temos os psicanalistas que tem se dedicado
não somente a aplicação da psicanálise no contexto jurídico, mas também a construção
de políticas públicas e execução de programas que visam o tratamento da violência e do
crime nos mais diversos espaços penitenciários, no cumprimento das medidas
socioeducativas previstas pelo Estatuto, em projetos comunitários, no acompanhamento
de medidas judiciais para pacientes psicóticos infratores, dentre outros.
Neste artigo interessa saber como a psicanálise trabalha a responsabilidade
subjetiva do adolescente pelo ato infracional, que cumpre uma medida socioeducativa
em meio aberto na cidade de Belo Horizonte. Tais medidas são executadas, em parceria
com o Juizado da Infância e Juventude, por uma equipe de psicólogos e assistentes
sociais que pertencem a Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de
Belo Horizonte.
O Estatuto da Criança e do Adolescente se transformou em objeto de debate
constante na mídia fomentado principalmente pelos adeptos da redução da maioridade
penal que acreditam que a lei isentou os adolescentes da sua responsabilidade pelos atos
infracionais praticados, ao considerá-los inimputáveis penalmente. Mas, ao contrário do
que pensam essas pessoas, o Estatuto não prevê que os adolescentes não sofram uma
sanção jurídica, ele apenas inaugura uma lógica diferente daquela preconizada pelo
direito penal, que determina a aplicação de uma pena, de uma punição como uma forma
de responsabilizar aqueles que cometeram um crime, ao partir do principio de que o
homem é um ser de razão, dotado de livre arbítrio e, por isso, responsável e senhor das
suas escolhas, mesmo aquelas relacionadas á prática de um crime.

*Marina Soares é técnica do Serviço de Execução das Medidas Sócioeducativa em Meio Aberto da
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Graduada em psicologia pela PUC-MG, Pós-graduada em
psicanálise pela UFMG e mestranda em psicologia pela UFMG.
Este artigo foi apresentado no 8º CONPSI- Congresso Nacional de Psicologia Norte- Nordeste.
Apoiado no debate dos direitos humanos e fundamentado na doutrina jurídica da
proteção integral, o Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece os adolescentes não
só como pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, mas também como
cidadãos, que devem gozar dos mesmos direitos que os adultos, como o acesso a
educação, cultura, esporte, lazer, á profissionalização e à proteção no trabalho. Para
contemplar tais direitos ele abrange as medidas protetivas e as socioeducativas,
previstas nos incisos II a VI do artigo 112, que só poderão ser aplicadas para o
adolescente de 12 a 18 anos que praticou uma infração e somente mediante a existência
de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração praticada por ele, como
consta no artigo 114.
Para Salum (2012), tais medidas podem ser consideradas como um chamado da
justiça para que o adolescente possa responder pelo seu ato em sua condição de pessoa
humana, ainda que considerado sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. O
que nos mostra que o Estatuto não isenta o adolescente da responsabilidade pelo ato
infracional cometido, mas, diferente do que acontece no direito penal, ele prevê que a
responsabilização vai acontecer através da construção de um novo projeto de vida pelo
adolescente e não de uma pena.
Essa construção deverá envolver diversos parceiros, profissionais e instituições,
como a família e o Estado, representando pelas políticas de saúde, pela educação, pela
assistência, pelas instâncias jurídicas e pela sociedade de uma forma geral. Para Salum
(2012), é no encontro do adolescente com essas instâncias que a construção de um novo
projeto de vida possibilita que a responsabilização vai se dá. Mas, para que isso
aconteça, é necessário dar voz ao adolescente, criar condições para que ele fale da sua
vida, do seu sofrimento e do seu ato, e para que ele localize um sentido para o mesmo
na sua história. É preciso também que ele descubra suas habilidades, interesses e
sonhos, para que ele encontre nesse universo de possibilidades que serão apresentadas a
ele, algo que faça sentido.
Falar de si, do seu ato, da sua história, não representa uma tarefa fácil para os
adolescentes. Nesses anos de trabalho realizado com os adolescentes que cumprem as
medidas em meio aberto em Belo Horizonte foi possível observar que no encontro com
esses jovens raramente encontramos um sujeito, mas alguém que está totalmente
alienado nas determinações oriundas do seu contexto social. Munidos da crença de que
a criminalidade é a única forma de conquistar um lugar no mundo, grande parte dos
adolescentes não consegue vislumbrar outras saídas para lidar com as questões que
envolvem esse momento da sua vida. Assim, elegem o crime como uma forma rápida de
emancipar-se da família, economicamente e de conquistar um lugar de reconhecimento
e respeito na comunidade a que pertencem.
Por isso, apostar na palavra é como afirma Salum (2012) apostar no sujeito,
apostar que ao falar de si o adolescente vai dizer algo da sua posição de sujeito e se
posicionar como tal diante das possibilidades que lhe forem apresentadas. É acreditar
que o adolescente vai conseguir falar sobre o que lhe sucedeu e teve como consequência
o encontro com a justiça, localizando, a partir dai um ponto de embaraço subjetivo que
teve no ato a saída.
Partindo da premissa de que para a psicanálise o sujeito não está presente desde o
início e que a responsabilidade subjetiva concerne às respostas e posições que ele toma
diante de um acontecimento, podemos afirmar que as medidas socioeducativas previstas
no Estatuto, ao trabalhar numa lógica diferente da punitiva, consideram a
responsabilidade numa perspectiva mais próxima da forma concebida pela psicanálise.
Mas para que a medida tenha uma incidência sobre a subjetividade do adolescente
é necessário observar as particularidades de cada caso e operar a partir do que cada
sujeito traz, pois sabemos que a responsabilização subjetiva ganhará matizes distintos e
exigirá diferentes níveis de trabalho subjetivo, conforme cada situação e cada sujeito o
exijam. E também que diferirá do que ocorre quando o adolescente se responsabiliza
apenas juridicamente pelo ato. Nesse caso, ele cumpre formalmente a medida, “de boa”
como dizem, mas não é possível recolher os efeitos da medida sobre sua posição
subjetiva ou sobre seu efeito societário.
Na medida de Prestação de Serviço à Comunidade, esse processo se dá em dois
momentos: nos atendimentos que antecedem o encaminhamento do jovem para o local
onde ele vai cumprir a medida, e na instituição na qual ele presta o serviço. Em muitos
casos, é na instituição, através das atividades que ele realiza e da convivência com o
educador de referência, que o jovem consegue vislumbrar novas possibilidades para a
sua vida e se posicionar de outra forma em relação ao seu envolvimento com a
criminalidade e seu ato delituoso. O caso que será apresentado revela como isso pode
ocorrer.
Pedro é um jovem de quinze anos, encaminhado para cumprir a medida de
Prestação de Serviço à Comunidade devido ao seu envolvimento com o tráfico de
drogas. Quando interpelado sobre o delito praticado, Pedro não alegou inocência,
assumiu que a droga encontrada com ele lhe pertencia e era para ser vendida.
Embora afirmasse a autoria do ato, Pedro questionava a decisão do juiz. Para ele,
o juiz não deveria puni-lo com uma medida, já que não lhe foi dada a oportunidade de
fazer uma escolha diferente do tráfico, que foi a única saída que ele encontrou para ser
reconhecido e respeitado na sua comunidade. Pedro preferia ser um traficante a um “Zé
Mané”, assujeitado às agressões que sofria, antes de ingressar no tráfico, por parte de
outros jovens e da própria polícia, que já o tratava como um bandido antes mesmo dele
se envolver com a criminalidade.
Pedro comparecia com assiduidade nos atendimentos, mas se recusava a falar de
sua história e de seu envolvimento com o tráfico. Solicitava insistentemente que eu o
encaminhasse para prestar o serviço, que poderia se dar em qualquer lugar, desde que
fosse perto da sua casa. Não queria sair da comunidade, já que não tinha o costume de
circular pela cidade. Sua vida se fez no morro e dali não queria sair.
O modo como Pedro conduzia a medida revelava que ele comparecia aos
atendimentos apenas para não correr o risco de agravar a sua situação no Juizado, já que
ele havia descumprido essa medida anteriormente. Pedro dava, assim, uma resposta
jurídica à medida, que parecia não ter qualquer incidência sobre sua posição subjetiva.
Entretanto, buscávamos “ir ao possível do que dá consistência à situação de fala. Falar é
recortar e atar. Mas falar com sujeitos para os quais o recorte ainda está privado de seu
efeito de recorte é dobrar os trajetos, as linhas, as errâncias, os passos que traçam e se
fazem traços, é dobrar essa orientação do corpo no espaço, como se dobra o tecido de
uma roupa” (Douville, 2002, p. 86).
Assim, diante da sua recusa em dar tratamento, nos atendimentos, a questões
relevantes para sua responsabilização no cumprimento da medida, foi decidido
encaminhá-lo para o Instituto Criança Esperança. A escolha dessa instituição e do
educador que seria a sua referência durante o cumprimento da medida, orientando as
atividades que ele deveria desenvolver, não foi sem um cálculo.
Carlos, responsável pela oficina de futebol oferecida para as crianças que
frequentavam o instituto, é um oficineiro que pertence à comunidade, e é muito
respeitado e admirando pelo trabalho que desenvolve não só nesse lugar, mas também
em outros projetos. Se até então, para Pedro, só o tráfico pôde lhe dar um lugar de
reconhecimento na comunidade, a convivência com esse educador poderia fazer vacilar
essa crença e lhe abrir outras possibilidades.
E foi o que começou a aparecer nos relatos do jovem sobre a sua passagem pelo
Instituto Criança Esperança. Convivendo com Carlos, Pedro percebeu que ele era
admirado e respeitado na comunidade pelos trabalhos que desenvolvia, o que o levou a
questionar a sua entrada no tráfico. Seria realmente essa a única saída? Seria ele
respeitado pelas pessoas da comunidade ou temido? Essas foram perguntas que Pedro
começou a se fazer.
Incentivado por Carlos, Pedro começou a organizar torneios para as crianças da
oficina que inicialmente ficaram receosas com relação à sua presença na oficina, por
conhecê-lo como o “menino do tráfico”. Aos poucos, elas foram se afeiçoando a ele e
destituindo-o desse lugar, para, então, transformá-lo no “tio da oficina,” admirado e
querido por elas.
A passagem de Pedro pelo instituto Criança Esperança não foi sem efeitos. No
final da medida, ele manifestou a vontade de trabalhar como oficineiro, desenvolvendo
um trabalho como o de Carlos. Vislumbrando essa possibilidade, retornou a escola e
voltou a participar das aulas de futebol de outro programa de governo mineiro para
prevenção a homicídios, o Fica Vivo! que ele havia abandonado. Apesar disso,
continuou dividido entre ser o “menino do tráfico” ou o “tio da oficina”, o que nos
mostra que a medida não fez um corte definitivo na sua trajetória pela criminalidade,
mas apontou uma possibilidade para além do tráfico, o que trouxe uma mudança na
forma como ele se posicionava em relação a sua escolha pelo tráfico, face ao ato
delituoso e, sobretudo, a forma como o Outro social acolheu seu movimento. O tráfico
se desloca da posição central que sustentava e se torna apenas uma opção, e não mais a
única saída sem opção para esse sujeito.
Trata-se de um caso bem sucedido, no qual a vacilação da identificação
imaginária ao Outro do tráfico e a constituição discursiva de uma nova posição
subjetiva, a de tio do futebol, são escritas no Outro social, que acolhe e referenda a nova
posição do sujeito. Uma divisão subjetiva se instala, abrindo caminho para que o sujeito
possa, num novo passo, responder por sua condição desejante, em outros termos,
responsabilizar-se subjetivamente.

Referências bibliográficas|:
Douville, O.(2002). Fundações subjetivas dos espaços na adolescência. In Revista da
associação psicanalítica de porto alegre. Ano x, n° 23 . Dezembro, pp. 76-89.
Salum, Maria José Gontijo. O adolescente, o ECA e a responsabilidade. In Revista
Brasileira Adolescência e Conflitualidade. Ano 2012, nº 6. Pp. 162-176.

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